O dilema do escritor seboso

07/10/2010

07out2010

Certos escritores amadurecem cedo. Tenho inveja desses. Porque nunca viverão o constrangimento de não se reconhecerem em suas primeiras obras

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O DILEMA DO ESCRITOR SEBOSO

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Dia desses acessei o Estante Virtual, digitei meu nome no campo de buscas e encontrei, espalhados pelos sebos constantes no site, noventa livros meus. Foi aí que caiu a ficha: sou um escritor seboso! Fiquei feliz porque para um escritor, ter seus livros expostos é sempre bom, claro, e estar exposto numa imensa livraria virtual que reúne centenas de sebos e livrarias de todo o país é a certeza de que qualquer pessoa, do Oiapoque ao Chuí, poderá localizar facilmente meus livros e comprá-los sem precisar sair de casa.

Entre os títulos que encontrei, o único com exemplares novos é o Vocês Terráqueas, de 2008, que eu mesmo deixei num sebo paulistano. Os demais títulos são livros usados de edições antigas, inclusive o Quem Apagou a Luz?, de 1995, meu livro de estreia, da minha fase esotérica. Sim, já fui esotérico, eu juro. E este livro, que é prova disso, é meu campeão de vendas, com uns sete mil exemplares vendidos pela Universalista, uma pequena editora do interior do Paraná. Quatro anos depois a editora Record quis comprar os direitos de publicação mas eu já não gostava mais do livro e ele nunca foi reeditado. Mas essa história eu conto melhor outro dia, prometo.

No Estante Virtual encontrei também O Irresistível Charme da Insanidade, meu romance místico-erótico de 1996. Estavam lá também o Guia de Sobrevivência para o Fim dos Tempos, livro de contos fantásticos, de 1997 (e a edição de 2000, pela editora Elevação), e o Baseado Nisso, meu livro independente de 1998, com seus contos de humor sobre o universo folclórico dos usuários de maconha e o glossário de termos e expressões.

Foi interessante ver esses livros lá, à disposição de quem quisesse adquiri-los. Mas foi também constrangedor esse encontro com o meu passado literário. Explico. É que a partir de 2004, estando sem editora, decidi republicar meus livros em edições independentes. E daí? Daí que, ao relê-los, morri de vergonha pois percebi que estavam mal escritos, as histórias não estavam bem contadas como deveriam. Então, antes de republicar, reescrevi todos eles.

Isso é comum entre escritores, desejar reescrever seus livros ao relê-los tempos depois. Eu não fujo à regra pois a cada releitura de meus textos, sempre sou tentado a mudar algo. Ultimamente, porém, isso já não ocorre tanto – sinal de maturidade estilística? Tomara. O campeão de mudanças é O Irresistível Charme da Insanidade: ele tem uma versão publicada em 1996, outra em 2005 e em 2010 reescrevi novamente para a edição da Arte Paubrasil. Dessa última vez usei minha experiência de roteirista e me concentrei no que era absolutamente indispensável à história, agilizando as situações e dando à narrativa o ritmo que ela sempre necessitou ter. Quinze anos após parir o rebento, só agora sinto que ele está realmente pronto para ganhar o mundo.

Certos escritores amadurecem cedo. Tenho inveja desses. Porque nunca viverão o constrangimento de não se reconhecerem em suas primeiras obras. Nunca olharão para os seus livros nos sebos e secretamente desejarão que fiquem lá encalhados por toda a eternidade. A mim, do time dos que demoram a amadurecer, me resta esperar que alguns leitores comparem as edições antigas e novas e digam: É, até que ele melhorou…

Enquanto isso, aiai, lá no Estante Virtual o meu passado seboso me condena. Quer saber? Amanhã mesmo voltarei lá. E roubarei todos os exemplares de quem um dia eu fui.

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Ricardo Kelmer 2010 – blogdokelmer.com

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Lançamento do Guia de Sobrevivência para o Fim dos Tempos (1997)

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RK1998LordAutografando1Lançamento do Baseado Nisso. Encarnando Lord Kelmer (1998)

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rk200508ICI-01Edição de bolso do Irresistível Charme da Insanidade (2005)

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Bienal do Livro, Fortaleza (2006)

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Vocês Terráqueas, Bienal de São Paulo (2010)

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LIVROS PUBLICADOS
relação atualizada aqui
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Quem Apagou a Luz?
(Ensaio, 1995. Fora de catálogo)
Certas coisas que você deve saber sobre a morte para não dar vexame do lado de lá

O Irresistível Charme da Insanidade
(romance, 1996/2005/2011)
Uma história de amor e vidas passadas, com erotismo e rock´n´roll

Guia de Sobrevivência para o Fim dos Tempos
(contos, 1997/2005)2012)
O fantástico e o sobrenatural invadirão sua realidade. Você está preparado?

Baseado Nisso
Liberando o bom humor da maconha
(contos/glossário, 1998/2005)
Contos sobre o folclore dos usuários + glossário de termos e expressões

A Arte Zen de Tanger Caranguejos
(crônicas, 2003)

Seleção de crônicas publicadas em jornal, 1992 a 2003

Matrix e o Despertar do Herói
A jornada mítica de autorrealização em Matrix e em nossas vidas
(ensaio, 2005)

Blues da Vida Crônica
(crônicas, 2007)
Seleção de crônicas publicadas em jornal, 2003 a 2006

Guia do Escritor Independente
Como publicar livros e gerenciar a carreira literária
(dicas, 2007)

Vocês Terráqueas
Seduções e perdições do feminino
(contos/crônicas, 2008)
Coletânea de textos sobre a Mulher

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Will Duran, no seu magnífico livro, A história da filosofia, diz que a imaturidade o tempo conserta. O Marx tentou várias vezes modificar o seu Manifesto Comunista, pois a cada vez que lia via possibilidades de mudanças. Em 2000 publiquei um ensaio sobre a violência urbana, Violência: causas, conseguencias e soluções,  e jamais imaginei que tudo que escrevi estaria acontecendo, mas devo te confessar que não gosto hoje do texto, pois ainda era neófito como publicista e fico até acabrunhado por tê-lo escrito. Mas o importante é escrevermos nossas histórias e ter a certeza de que um dia valeu a pena ter escrito, mesmo que depois não nos reconheçamos mais dentro do texto, como você genialmente dissertou. Forte abraço,

Luís Olímpio

A profecia

18/05/2010

18mai2010

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Este conto integra o livro Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha, de Ricardo Kelmer

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A PROFECIA

A maconha terráquea, melhor da galáxia, está faltando no mercado. Os culpados são os mulgélicos, fanáticos religiosos que tomaram o poder no planeta. O Conselho Galático precisa decidir o que fazer
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A SRA. ZIEGR, PRESIDENTA do Conselho da Confederação Galática, entrou na sala e ocupou sua poltrona à grande mesa. Ela trazia o semblante sério e nas mãos alguns envelopes.

– Conselheiros, bom dia. Convoquei-os a esta reunião extraordinária porque acabo de receber o relatório do Centro de Registros. Como é de conhecimento de todos, fatos preocupantes estão acontecendo no planeta Terra. Por causa deles seremos obrigados a cortar o suprimento da canabis terráquea a todos os planetas confederados por tempo indeterminado.

O rumor na sala foi geral.

– Silêncio, por favor, silêncio!

Mas os rumores cresciam e a presidenta Ziegr teve de bater na mesa. Ela entendia perfeitamente o porquê da indignação. Todos já haviam protestado em reuniões anteriores pela diminuição da cota de canabis terráquea para seus planetas e alertavam para o perigo do corte definitivo.

– Eu sabia que isso ia acontecer! – protestou o conselheiro Baqt. – Todos sabiam. Menos o Centro de Registros.

– Por favor, conselheiros. Deixem-me mostrar o relatório antes de discutir o que faremos.

As vozes se calaram e a presidenta Ziegr passou a ler o relatório. Ele dizia que a canabis já não podia ser encontrada com facilidade no planeta Terra e que já se estudava a possibilidade de pesquisar outros planetas para o plantio.

– Bobagem! – levantou-se Baqt, irritado. – Todo mundo está cansado de saber que, exceto a Terra, nenhum planeta desta zona da galáxia reúne condições perfeitas para o plantio da canabis!

– Isso mesmo! – complementou uma conselheira. – Por que gastar verbas com pesquisas inúteis? Precisamos intervir antes que a canabis terráquea seja totalmente extinta.

– Exatamente! Minha família, por exemplo, não fuma um baseado que preste faz mais de um ano disse Reuzaramon, o mais velho dos conselheiros.

Ziegr escutou com paciência mais algumas considerações. Estavam todos revoltados. Então prosseguiu:

– Conselheiros, a canabis terráquea é material estratégico para a galáxia, todos nós sabemos. Foi ela que propiciou o desenvolvimento ecológico dos planetas confederados e lhes permitiu superar a delicada fase do término dos combustíveis fósseis. Para isso, no entanto, durante milênios as naves da Confederação abordaram a Terra e, na calada da noite, de lá retiraram a canabis para abastecer nossos mundos.

– Eram os deuses astronautas? Não. Eram os deuses maconheiros – sussurrou Reuzaramon para o colega ao lado.

– Agimos assim porque precisávamos da canabis, claro, mas também porque os terráqueos não estavam preparados para nos conhecer – continuou Ziegr. – Agora, porém, grandes mudanças operam naquele planeta e exigem que tomemos uma posição.

– São os mulgélicos, aposto!

– Eles mesmos – respondeu Ziegr.

– Calhordas! – gritou Baqt, erguendo-se. – Por causa deles só estou fumando maconha de Fens, aquela porcaria.

– Conselheiros, semana passada a nave da Monitoria 54 resgatou, da órbita da Terra, uma pequena cápsula contendo informações valiosas. São textos e imagens sobre o momento atual da Terra e que confirmam as informações do relatório do Centro de Registros.

Ziegr entregou a cada um dos conselheiros um óculos projetor, pediu que cada um assistisse com atenção e encerrou a reunião, avisando que prosseguiriam à tarde.

Reuzaramon, o mais velho dos conselheiros, rumou para o jardim dos fundos do prédio, lá era mais agradável. Sentou-se num banco, pôs o óculos projetor e ligou. Enquanto as imagens tridimensionais se formavam à sua frente, ele escutava…

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A Ecologia toma impulso no planeta Terra no fim do segundo milênio da era cristã com a constatação de que a sociedade industrial e tecnológica produzia riqueza e conforto, mas também gerava um enorme perigo ao planeta e a todas as formas de vida. A partir daí uma crescente conscientização ecológica desenvolveu-se e direcionou os rumos de uma nova noção de desenvolvimento para o planeta: o desenvolvimento sustentável, onde a prioridade é manter os avanços tecnológicos sem abrir mão do equilíbrio ambiental.

No primeiro século do terceiro milênio um acontecimento crucial vem somar-se a toda essa revolução: a canabis, até então criminalizada em quase todo o planeta, é reconhecida oficialmente pela maioria dos blocos geopolíticos como matéria-prima estratégica para a sociedade. O baixo custo, a alta performance produtiva, a não necessidade de agrotóxicos e o seu caráter limpo e renovável a credenciam como a grande alternativa ecológica para a crise dos combustíveis fósseis que se instalara no mundo.

Assim, sob recomendação da ONU, os blocos geopolíticos mudam suas leis e legalizam a canabis. Cultivar, comercializar e consumir maconha deixa de ser crime, e as leis referentes a ela se inspiram nas leis que regulamentam outras drogas legalmente aceitas como o álcool. Dessa planta altamente estratégica extraem-se milhares de produtos essenciais ao dia a dia da sociedade, permitindo que o mundo respire aliviado após décadas de medo e incertezas quanto à saúde do planeta. A planta mostra-se eclética a ponto de ser utilizada também, e com muita eficácia, na medicina terapêutica.

Junto à canabis, outros recursos naturais também passam a ser utilizados dentro dos princípios do desenvolvimento ecológico. A canabis, porém, logo apresenta-se como carro-chefe dessa transformação, pois à sua intensa utilização industrial vem juntar-se o tema das liberdades individuais, gerando providenciais discussões sobre a relação do ser humano com as drogas e a questão do tráfico, da violência e dos interesses econômicos, além de questionar a eficácia dos programas de saúde pública e o tratamento policial dispensado ao usuário.

Nem todos, porém, concordam com isso. Ocorrem protestos em vários setores da sociedade e uma nova organização político-religiosa surge para combater o que ela entende por “exageros da democracia”, como o uso livre da maconha. São os autodenominados mulgélicos (multidões angelicais), fanáticos religiosos de caráter ultraconservador que cultuam a tecnologia máxima e defendem o terrorismo como forma de garantir seus valores. A eles se juntam todos aqueles que discordam da legalização da canabis, e assim a organização cresce e promove atos terroristas por todo o mundo, utilizando tecnologia química e biológica contra a população. Com discurso sedutor às mentes religiosas e amedrontando a muitos com sua política ultrarradical, tomam o poder em alguns blocos e aos poucos conseguem exterminar os principais líderes democráticos.

Estamos sob domínio dos mulgélicos há uma década. Eles governam o mundo globalizado, convocando todos a se entregar aos braços de seu deus, que em breve, creem eles, voltará para carregar os abençoados consigo rumo ao Paraíso, abandonando na Terra os seguidores de Satanás. Os mulgélicos perseguem aqueles que não comungam da crença de seu deus e castram as liberdades individuais conquistadas. Para eles, a canabis é a personificação do Mal e precisa ser combatida com toda a força e métodos possíveis. De nada adiantam os argumentos médicos e sociológicos, de nada valem os direitos humanos: os usuários passam a ser perseguidos pelo mundo inteiro e mortos com crueldade. E o cultivo da canabis, novamente proibido, abre caminho para o retorno de antigas, caras e poluentes formas de produção industrial, intoxicando novamente o planeta e pondo em risco o equilíbrio ambiental.

O culto exacerbado da tecnologia torna cegos os mulgélicos e eles não percebem que estão conduzindo a espécie humana ao seu extermínio. Contra esses argumentos, e até mesmo contra todos os fatos, eles respondem que seu deus está chegando para resgatá-los e assim ficará provado quem está certo.

Hoje, vivemos num planeta praticamente esgotado de recursos naturais e a grande alternativa foi bloqueada pela política repressora dos mulgélicos. O ar, os rios e os oceanos estão sujos. A preservação da fauna e da flora não é mais importante – importante é tentar converter os infiéis. Catástrofes naturais acontecem todos os dias, mas os mulgélicos veem nisso o legítimo cumprimento de suas profecias, o sinal dos últimos dias que antecedem a tão esperada chegada de seu deus.

A única possibilidade que nós, os resistentes dessa ditadura teocrática, vislumbramos foi pedir ajuda a outros planetas. Certamente, há vida em outros mundos, e talvez eles tenham passado por problemas semelhantes aos nossos. Talvez seus habitantes possam ajudar a Terra a reencontrar o caminho das liberdades individuais e do desenvolvimento autossustentável.

Isso é um pedido de socorro interplanetário. Talvez ainda haja tempo de salvar este planeta que já foi tão belo. Ainda podemos reaprender a respeitar as liberdades que pertencem ao ser humano. Clandestinamente, ainda cultivamos os últimos exemplares da canabis em plantações disfarçadas, o que nos proporciona raros momentos de prazer e a esperança de que ainda podemos retomar o crescimento interrompido. Mas tudo está por um fio, pois não sabemos até quando o planeta suportará.

Nosso plano é soltar esta mensagem no espaço, feito uma mensagem de náufrago. Talvez consigamos. É uma operação arriscada e com poucas chances de sucesso. Mas talvez alguma nave a recolha e esta mensagem alcance boas mãos.

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Reuzaramon retirou o óculos projetor e olhou para o céu. Terra…, sussurrou ele. Era realmente um belo planeta. Lembrou que seu planeta natal vivera problemas semelhantes aos que os terráqueos agora viviam e que a história da evolução das espécies era sempre marcada por momentos cruciais onde velhos e novos valores protagonizavam o dramático teatro do mito do Juízo Final. Antes da criação da Confederação Galática muitos planetas morreram, e com eles o seu povo, por não saber encontrar seu próprio caminho de democracia e desenvolvimento sustentável. Hoje, a Confederação, ciente de que a morte de um planeta empobrece o Universo, estava sempre atenta para tentar ajudar – mas somente quando isso representava a última chance, pois o sagrado princípio da soberania dos mundos regia a Constituição Galática.

O velho conselheiro levantou-se do banco, guardando o óculos no bolso. Olhou mais uma vez para o céu e depois seguiu para a sala. Talvez fosse mesmo o momento da Confederação intervir.

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BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– MUITO BEM, CONSELHEIROS – falou a presidenta Ziegr, contando os votos. – A maioria considerou que o Conselho deve intervir no planeta Terra. E que não podemos mais continuar roubando maconha de lá.

– Exatamente. O que está em jogo são os interesses da Galáxia.

– Isso mesmo! Os desvarios de um grupo de fanáticos religiosos não podem interromper a evolução do Universo.

– Mas como interviremos no planeta sem desrespeitar sua soberania? – insistiam os que não concordavam com a intervenção.

Reuzaramon pediu a palavra.

– Conselheiros, nenhum planeta é autônomo no último sentido do termo. Sabemos que todos os mundos estão ligados numa interdependência sutil, mas vital, e o que é feito a um repercute em todos. A Terra é apenas um dos elos dessa imensa corrente que se chama galáxia, que por sua vez é apenas um dos elos do Universo, que por sua vez é apenas um dos muitos universos possíveis. Quanto mais abrangemos nossa compreensão da realidade, mais percebemos o quanto tudo está ligado. O que acontece na Terra está influenciando o destino de outros mundos, e por isso a Confederação deve intervir.

– Você fala assim porque não é o seu mundo que será invadido!

– Conselheiros, por favor, deixem-me terminar. A espécie humana já está madura o suficiente para compreender que não está sozinha no Universo. Além disso, a canabis da Terra é a melhor de todas e ela é indispensável à evolução do planeta. Sem ela, não haverá desenvolvimento autossustentável. Sem ela, a Terra corre o risco de se destruir. E sem a Terra, senhoras e senhores deste Conselho, a Via Lactea enfrentará um grave desequilíbrio.

Reuzaramon foi aplaudido pela maioria. E mesmo os reticentes quanto à intervenção viram sentido em seus argumentos.

– A intervenção já foi decidida – falou Ziegr. – Mesmo assim, resta uma dúvida. Como faremos? Não podemos atacar os mulgélicos, nem podemos plantar canabis no planeta às escondidas.

– Que tal envolver o planeta numa grande baforada de maconha? – brincou alguém. – Assim todos finalmente experimentarão e tirarão suas próprias conclusões…

– O verdadeiro efeito estufa!

– Ou podemos fornecer armas com balas de canabis para os resistentes atirarem nos mulgélicos…

– Conselheiros, por favor. Precisamos de um plano de intervenção pacífica, sem comprometermos nossa carta de princípios. E não dispomos de muito tempo.

– Talvez possamos convencer os mulgélicos a retomar o crescimento ecológico – propôs uma conselheira. – Eles têm de entender que não há outra saída para o planeta deles.

– É inútil, minha senhora – falou Reuzaramon. – Para um fanático religioso, quem não está com ele, está de mãos dadas com o Mal.

Chegaram ao incômodo impasse. A intervenção se fazia necessária, mas parecia não haver maneira de realizá-la sem ferir os princípios éticos da Confederação. Até que Reuzaramon ergueu o braço.

– Amigos, acho que vislumbrei a saída do labirinto.

Todos olharam curiosos para ele.

– Nós sabemos o que pensam os terráqueos, sabemos sobre suas crenças e suas profecias. Isso é tudo que precisamos.

– Explique melhor, Reuzaramon – pediu Ziegr.

– Muitas profecias terráqueas falam do Juízo Final. Parte dos terráqueos já entendeu que a linguagem das profecias é simbólica, que “fim do mundo” é só o fim de uma fase, uma espécie de renascimento para a nova fase, tanto no âmbito individual quanto num âmbito social. Mas outros entendem ao pé da letra e acham que a salvação virá de fora. Estes se acham os eleitos e creem que seu deus, de fato, irá resgatá-los.

Todos ouviam atentos, curiosos por ver onde o velho conselheiro queria chegar.

– Ora, ora… As profecias se realizam porque no fundo as pessoas creem nelas. Se existe a profecia, então ela deve ser realizada.

– Sábias palavras, Reuzaramon. Mas quem vai realizar a profecia? E de que modo?

– Conselheiros… Esqueceram que quem acredita em deuses, precisa de deuses para viver?

Reuzaramon sorriu ao perceber que finalmente começava a ser compreendido.

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BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04aNAQUELA MANHÃ, as nuvens do planeta Terra se abriram e dos céus desceram naves gigantescas, milhares delas, espalhadas por todos os países. Trombetas soaram ensurdecedoras, para todos ouvirem, em todos os cantos do mundo. De cada uma delas saiu um anjo com roupa prateada e grandes asas reluzentes para avisar que o grande dia chegara e que os eleitos seriam levados.

– Aí está! – berravam os líderes mulgélicos com lágrimas nos olhos. – Aí está o Deus Todo Abençoado que veio resgatar seu rebanho querido!

A imprensa do mundo inteiro transmitia o fim do mundo. Nas residências, nas repartições, nas academias, todos se mantinham em frente à TV. Audiência total. Até os botequins estavam lotados.

– Ô, seo Manel! O fim do mundo chegou. Desce aí a saideira.

– Só se você primeiro pagar o que deve.

Os mulgélicos atenderam ao chamado e ocuparam rapidamente os assentos das naves, emocionados, gratificados por sua fé finalmente recompensada. Muitos tentaram se converter de última hora, mas não havia mais lugar nas naves.

– Eu até que queria ir, mas os cambistas estão explorando!

– Que dia pro fim do mundo! Deus podia pelo menos esperar passar o réveillon.

Ao fim da manhã, as naves partiram, levando todos os mulgélicos ao paraíso prometido. Uma nave, porém, a maior de todas, permaneceu no pátio da sede da ONU. Suspense. Bilhões de pessoas acompanhando pela TV. Uma voz ecoou, vinda da nave:

– Amigos terráqueos. Ouviremos agora o pronunciamento da excelentíssima presidenta do Conselho da Confederação Galática, sra. Ziegr.

A presidenta surgiu à porta da nave, de microfone à mão. Pigarreou discretamente e começou a falar:

– Serei breve, amigos terráqueos.

Ela fez uma pausa, juntou as mãos como quem implora, e perguntou:

– Alguém tem unzinho aí?

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Ricardo Kelmer 1998 – blogdokelmer.com

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O dia em que papai e mamãe ficaram muito doidos

18/05/2010

18mai2010

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a
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Este conto integra o livro Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha, de Ricardo Kelmer

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O DIA EM QUE PAPAI E MAMÃE
FICARAM MUITO DOIDOS

Juninho está preocupado. Seus pais decidiram experimentar um baseado para saber o que o filho via de tão bom nisso
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– Juninho, eu e sua mãe decidimos fumar um baseado com você.

O menino ficou olhando para os pais, sem acreditar no que escutava. Depois de tantos anos insistindo em conselhos, castigos e orações, seu pai e sua mãe resolveram experimentar para saber o que afinal o filho tanto via num cigarro de maconha. O importante era a união da família.

Juninho ficou tão surpreso, atordoado mesmo, que quando deu-se conta já havia entregue o baseado e seus pais estavam sentados em sua cama, fumando e tossindo. Juninho recusou-se a fumar também, inventou uma desculpa qualquer. Mas a verdade é que alguém tinha de ficar careta para segurar a onda.

– Não tô sentindo nada – reclamou a mãe.

– Calma, Vanda, demora um pouco – explicou o pai com ar de entendido. – Não é, Juninho?

– Você tá bem, mãe?

– Tô ótima, quer dizer, tô normal. Normalíssima – respondeu a mãe, rindo.

– Eu também – disse o pai. – Aliás, nunca me senti tão normal em toda a minha vida.

– Mãe, qualquer coisa tem leite na geladeira, viu?

– Vanda, há algo errado com minhas orelhas?

– Suas orelhas? – ela olhou curiosa para o marido. – Não, Afonso, por quê?

– Elas estão maiores, não?… – Ele apalpava as orelhas, intrigado.

– É normal, pai. É viagem.

– É normal as orelhas crescerem? – perguntou o pai, indo conferir no espelho do banheiro.

– Pois eu continuo normalíssima – observou a mãe, rindo. – Eu e minhas orelhas.

– Tem gente que não viaja da primeira vez, mãe.

– Vanda!!! Vem aqui correndo!

A mãe correu assustada. Chegou ao banheiro e deu com o marido se observando atentamente ao espelho.

– Eu sempre fui assim, Vanda? Sempre?

– Assim como? – Ela não compreendia. Juninho, atrás dela, muito menos.

– Como você pôde aturar essa barba horrorosa durante todos esses anos? Heim?

– Ué? Você sempre disse que era o seu charme…

– Sei não, acho que eu ficaria melhor sem barba.

– Pai… – Juninho começava a se preocupar.

– Não acredito! – exclamou a mãe, erguendo as mãos. – Minhas preces foram ouvidas!

– Mãe, não deixe… – pediu Juninho, assustado com o rumo das coisas. – Isso é viagem, mãe, é viagem…

– Então não se meta na viagem de seu pai – ralhou a mãe.

– Vanda, faz quantos anos que você não solta seu cabelo? – perguntou o pai de volta do banheiro, retirando de repente a fivela da cabeça da mulher. Ela tentou impedir, mas foi tarde.

– Afonso! Dá aqui, dá!

– Não fica melhor assim, filho? Sempre falei, mas ela nunca escutou.

– Pai, eu acho que… será que… vocês…

– Juninho, você tem algum CD aí pra eu dançar com sua mãe? O que é isso aqui?

– É rap. Acho que vocês não vão gostar muito não…

– Tá vendo, Vanda? Precisamos comprar uns CDs pra nós dois.

– Pai, bota um pouco desse colírio aqui…

– Afonso… – disse a mãe, o tom da voz levemente lânguido, como havia muito tempo ela não experimentava. – A noite está ótima… Bem que a gente podia ir dançar. Inaugurou um barzinho aqui perto…

– Sabe que você teve uma grande ideia?

– Não precisava pingar tanto, pai. Mãe, você tem certeza que…

– Vou tomar logo meu banho. Será que ainda sei dançar?

– E por que a gente não toma banho junto? Economiza água…

– Economiza água… Ahahahah!!! Economiza água… – repetiu a mãe, morrendo de rir.

Naquela noite, eles voltaram para casa às três da manhã. Juninho ainda rolava na cama, preocupado. Não conseguira dormir e muito menos estudar para a prova. Escutou abrirem a porta e experimentou um alívio imenso, que bom que estavam de volta. Os dois entraram se esforçando para não fazer barulho, mas não conseguiram.

– Afonso, você ficou um gato sem a barba…

– Aqui não, Vanda, vai acordar o Juninho…

Juninho virou para o outro lado. Não devia ter permitido, sabia que não devia. E se tivessem realmente gostado? E se ficassem viciados, o que podia acontecer? Seu pai tirara a barba depois de vinte anos, ficou tão estranho, não conseguiu olhar direito para ele. E se chamassem os amigos para fumar, o que eles achariam? E o trabalho deles, não podia prejudicar? E a mãe então, nunca vira a mãe rir tanto, parecia uma… uma louca. E se dessem muita bandeira e a polícia descobrisse, a vergonha que seria… Não podia fazer mal à saúde deles? Não era perigoso fumar e sair por aí?

Juninho puxou o lençol, fechando os olhos, tinha de acordar muito cedo. Bem, talvez fosse só empolgação, ele pensou, primeira vez é assim mesmo, pai e mãe são muitos inexperientes para fumar maconha.

Do corredor, ainda chegavam as vozes, abafadas:

– Afonso, onde será que ele guarda?
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Ricardo Kelmer 1998 – blogdokelmer.com

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01- Oi Ricardo Cara, eu ri demais “No Dia em que papai e mamãe ficaram muito doidos” hahahaha… isso já valeu o meu domingo. Beijos. Ana Cristina Souto, Fortaleza-CE – jan2006

02- adorooooooooooo muito bom…rs. Magna Mastroianni, São Paulo-SP – abr2011

03- Adorei!!! Aliás, tenho lido vários, e tá difícil não gostar de algum, viu?rsrs. Bjão!! Simone Marini, São Paulo-SP – abr2011

04- Esse Ricardão!!! ahahahah :* Gisela Symanski, Porto Alegre-RS – abr2011



O último homem do mundo

24/12/2008

24dez2008

O Ultimo Homem do Mundo CAPA 2a.

O sonho de Agenor é que todas as mulheres o desejem. Para isso, ele está disposto a fazer um pacto com o diabo. Mas há um velho ditado que diz: cuidado com o que deseja, pois você pode conseguir…

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Este conto integra os livros Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha e o livreto O Último Homem do Mundo.

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O ÚLTIMO HOMEM DO MUNDO

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Agenor cumpriu todo o ritual, direitinho. Colhera o fumo num dia seis, e seis dias depois o debulhara, fumo plantado no sítio Inferninho, na sexta noite após a sexta lua do ano. Não contara nada a ninguém. Tudo dentro dos conformes do ritual.

Eram onze e meia da noite. Ali, no alto do morro, o céu parecia mais próximo e a pouca lua permitia às estrelas brilharem à vontade. Agenor sentia medo, mas estava decidido. Apenas meia hora o separava do momento mais importante de sua vida.

Tirou o cigarro da bolsa e acendeu. O nervosismo fez o cigarro cair duas vezes. Deveria fumá-lo sozinho, era o que pregava o ritual. Agenor fumou e, aos poucos, foi se acalmando. Tinha de estar tranquilo para dizer as palavras certas, não podia errar. Subiu numa pedra mais alta e lá encostou-se. E relaxou. Era realmente um excelente fumo, diferente de qualquer um que já houvesse experimentado. Diziam que, de tão especial, não estragava nunca.

Agora, as estrelas pareciam mais brilhantes, mais próximas. Lá embaixo, dava para ver as luzes da cidade de Jubá, a torre da matriz, o estádio. Quase dava para ver a casa onde morava e o restaurante onde trabalhava Dorinha…

Então, escutou um ruído vindo do mato. Olhou para o relógio. Onze e quarenta e cinco. Não, não devia ser ele ainda, pensou. Talvez algum bicho. Deu a última tragada e apagou o cigarro. Começava a fazer frio. Agenor tirou da bolsa um cobertor e se cobriu inteiro, encolhido à pedra.

Durante meses, estudara seu pedido como quem retoca uma pintura, ajeitando aqui e ali os detalhes das miudezas semânticas. Segundo o ritual do Encontro, o pedido tinha de ser formulado corretamente, as palavras exatas, o sentido perfeito. Não podia haver qualquer erro. Os diabos eram espertos, e se as palavras dessem margem a qualquer outra interpretação, eles não perdoavam a falha.

Agenor olhou o relógio: meia-noite. O diabo chegaria a qualquer momento. Meia-noite e dez. Talvez o relógio estivesse adiantado, pensou. Meia-noite e vinte. Teria falhado em algum ponto do ritual?

À meia-noite e meia, quando já começava a cochilar, Agenor percebeu que alguém chegava, vindo de dentro do mato, caminhando devagar entre as folhagens. Sentiu medo. Pensou em desistir daquela história de pacto… mas as pernas não obedeceram e ele continuou ali em pé, esperando.

Quem chegou foi um velhinho de barbicha branca, de sobretudo e botas pretas, chapéu e bengala. Agenor estranhou. Não se parecia com um diabo.

– Boa noite – o velho o cumprimentou, erguendo o braço e tocando seu chapéu. – Desculpe a demora, sexta-feira sempre tem muito serviço. Você é o Agenor, não é? Sou Soloniel, o mais astuto dos diabos. Certamente, já ouviu falar muito de mim.

– Ahn… não… – Agenor olhava para a figura à sua frente. Aquilo era um diabo? Parecia mais com aqueles velhos aposentados que jogavam dominó na praça.

– Devia ler mais, meu jovem – disse o diabo, apontando-lhe um dedo acusador. – É nisso que dá ficar vendo esses filmes idiotas da tevê. Deixa de saber quem foram os grandes nomes da História.

Agenor concordava com a cabeça, sem compreender aquela espécie de sermão. Aquilo era mesmo um diabo?

– Ainda duvidando de mim?

Ele lia pensamentos! – assustou-se Agenor.

– Desculpe… é que… eu…

– Já sei, já sei – o diabo o interrompeu, dando com a mão, resignado. – Esperava um diabo mais moço. A culpa é da moda, que agora exige diabos jovens e bonitões. Por isso que eles querem me aposentar. Nem um diabo velho é mais respeitado hoje em dia. O mundo está perdido.

– Desculpe, eu não quis…

– Pois saiba, rapaz, que toda a juventude deles não serve nem para lustrar as botas da experiência de Soloniel, estas aqui!

Agenor olhou para as botas. Eram bonitas e brilhosas. Talvez um pouco grandes.

– Eu emagreci e elas ficaram um pouco folgadas. Mas não comprarei outras. Sabe por quê? Porque estas botas estiveram em muitos lugares e muitos tempos, tantos que os números já não contam – Ele batia nas botas com a ponta da bengala, tum-tum-tum. – Estas botas já pisaram em cavernas, tendas, palácios… Em castelos, campos de batalha, escritórios, alcovas mal iluminadas… Presenciaram acontecimentos cruciais da história humana. Não só presenciaram como também ajudaram a determiná-los. Entende?

– Sim, sim… – balbuciou Agenor.

– Com estas botas, realizei vontades ardentes e inconfessáveis. Elas são testemunhas das confissões dos desejos mais profundos da humanidade. Tem um pano aí?

– Um pano? Este serve?

Agenor estendeu-lhe o cobertor. O diabo agachou-se e limpou o bico da bota com o cobertor.

– Obrigado. Vamos lá, qual é mesmo o seu pedido?

Agenor respirou fundo.

– Bem, eu… O senhor pode mesmo realizar qualquer desejo?

O diabo deu um risinho de impaciência.

– Diga logo o que quer, meu jovem. O diabo Soloniel ainda tem quatro encontros esta noite.

– Eu… eu…

De repente, Agenor sentiu um medo imenso. Valia mesmo a pena um pacto com o demo?

– Volte para a sua mamãe, jovem – disse o diabo, virando-se e afastando-se. – Pacto com o diabo não é para gente fraca como você.

– Ei, espere! – gritou Agenor, nervoso. – Vou fazer o meu pedido. Agora.

O diabo parou e voltou-se. E aguardou, apoiado em sua bengala.

– Eu…

– Sim?

– Eu quero que todas as mulheres…

– Estou ouvindo.

– Eu quero que todas as mulheres do mundo me desejem.

Pronto, dissera. Estava feito. E uma vez formulado, o pedido não podia mais ser mudado, ele sabia.

Agenor aguardava, a respiração suspensa, as palavras ecoando em seus ouvidos: todas as mulheres… do mundo… me desejem… Naquele instante, pela primeira vez, seu desejo lhe pareceu ridículo e despropositado. Era como se as palavras, enfim pronunciadas, concretizadas solenes no ar, tivessem o poder de lhe abrir os olhos.

– Hummm… Bom pedido, bom pedido – disse o diabo, balançando a cabeça e coçando a barbicha branca. – Fazia tempo que eu não topava com um desse. Deixe-me ver…

O Ultimo Homem do Mundo CAPA 2a Agenor aguardava, o coração batendo forte. Teria sido um pedido difícil demais? Zombaria dele? Estaria estudando suas palavras, procurando brechas para poder enganá-lo?

– Fazer todas as mulheres do mundo desejarem um cara feio, pobre e desengonçado como você não é tarefa fácil. Por outro lado, é o tipo de coisa que pode consagrar um diabo pela eternidade inteira. Sabe o que significa a eternidade inteira, meu jovem?

A eternidade?, pensou Agenor. Sim, claro. Quer dizer, não, não sabia.

O diabo continuava coçando a barbicha, apoiado na bengala, olhando para as estrelas… Eram segundos que para Agenor pareciam séculos.

– Teve muita sorte de pegar um profissional como Soloniel, meu jovem. O que você pediu requer a experiência que só eu possuo, acredite. Pois muito bem. Dê-me o documento.

Agenor puxou do bolso uma folha de papel dobrada. Nela estavam a frase exata de seu pedido, data, local e a assinatura.

– Perfeito – falou o diabo, guardando o papel no bolso do sobretudo. – Então, estamos combinados. Toque aqui.

Apertaram-se as mãos.

– Na hora certa virei buscar o pagamento pelo serviço. Adeus.

Agenor viu o diabo sumir mato adentro. Então, suspirou. Fizera o pacto. O diabo realizaria seu desejo, era isso que importava. Ele conseguira. Não era um fraco.

Quanto à sua alma, pensou, já descendo o morro a caminho da cidade, perdê-la seria um preço pequeno diante do grandioso futuro que o aguardava.

*     *     *

O dia seguinte foi normal como todos os outros dias do carteiro Agenor. Envelopes, encomendas, campainhas que não funcionavam, cães que detestavam carteiros. Entregas e entregas sob o sol da manhã e da tarde. Nada demais. Mas, nesse dia, pela primeira vez, o feio, tímido e desengonçado Agenor olhou as mulheres com certa segurança. Na lanchonete, olhou para a moça que servia e lhe piscou um olho. Mas a moça não correspondeu e virou o rosto. Ele sorriu tranquilo: Deixe estar…

O dia terminou sem novidades. Após o jantar, pediu bênção à mãe, dona Fafá, e se recolheu. Antes, porém, olhou-se no espelho. Nada mudara em seu rosto, em seu corpo, ele continuava igual. Mas era apenas o primeiro dia, explicou a si mesmo. Estava esperançoso.

No segundo dia, as coisas também não foram diferentes. A mesma caminhada diária, a mesma rotina, tudo igual. E as mulheres de Jubá também. Nenhuma lhe pareceu mais simpática. Continuavam todas em seu mundo distante, princesas inalcançáveis de um reino a ele não permitido. Nem Dorinha, pela qual era secretamente apaixonado, mostrou-se mais acessível. Uma pena, pois Dorinha era bonita, prendada, trabalhadeira. Poderia ser sua mulher…

O terceiro dia também não trouxe novidades. O quarto dia também. Passou-se uma semana e nada aconteceu. Agenor olhava-se ao espelho e via, decepcionado, que continuava feio e desajeitado. E a vida também era a mesma, ele suando de endereço em endereço, e as mulheres limpas e perfumadas a ignorá-lo.

A segunda semana também correu igual, assim como a terceira. Um mês e nada, nenhuma mudança em sua vida.

Naquela noite, Agenor virou-se na cama e sentiu-se imensamente triste por seu desejo não ter sido realizado. O diabo bem que avisara que era um pedido difícil.

Talvez houvesse errado na formulação do pedido, será? Talvez não houvesse escolhido as palavras exatas, isso era comum nas histórias dos pactos com o demo. Mas onde errara? De todas as que pensara, aquela era a melhor frase. Não podia dizer “Quero todas as mulheres”, pois o diabo poderia, simplesmente, deixá-lo continuar querendo. Listar as mulheres que queria que o desejassem também não era uma boa ideia, pois terminaria deixando alguma de fora e, além do mais, está sempre nascendo mulher, né?

“Quero que todas as mulheres do mundo me desejem” era a melhor maneira de pedir. Não importariam sua pobreza, sua feiura e sua falta de jeito se elas o desejassem. E sendo “todas as mulheres do mundo” não haveria risco de deixar nenhuma de fora, entrariam todas, da mais feia à mais linda, da mais pobre às milionárias, da mais insignificante à mais famosa e cobiçada. Todas o desejariam e a ele caberia apenas escolher quem delas teria o privilégio de ficar com ele.

Súbito, lembrou-se de um detalhe, algo que havia lhe escapado durante todo aquele tempo: sua mãe. Dona Fafá, viúva, que tão bem cuidava do filho único. Sua mãe era uma mulher e, sendo assim, também o desejaria. E agora?

Agenor percebia, sobressaltado, que a formulação não fora perfeita. O que fazer com o desejo de sua mãe? Ou ela, por ser mãe, estaria automaticamente excluída das possibilidades? O diabo Soloniel seria razoável, entenderia a questão? E se seu pai fosse vivo, o que não acharia de uma marmota dessa?

Agenor puxou o lençol e se cobriu, como se assim pudesse se esconder daqueles tantos pensamentos. Demorou uma eternidade para pegar no sono.

*     *     *

Primeiro, foi o Chico da Magnólia, velho amigo. Era domingo e tomavam uma cachacinha à beira da lagoa quando Chico, já bêbado, confidenciou a Agenor, sem jeito, que estava acontecendo com ele uma coisa terrível. E a muito custo foi que conseguiu dizer que ficara broxa, já não conseguia fazer nada com as mulheres, o dito cujo não funcionava mais, uma desgraça. Na noite anterior, por sinal, fora ter com as raparigas lá do Siribó, elas que sabiam como ninguém alegrar o cidadão. Mas que nada, não teve jeito que desse jeito. Tentou com a Paizinha, com a Chiquinha Piassaba e a Neide Peixeirão. Nenhuma delas conseguiu levantar-lhe o moral um centímetro que fosse. Tentou até umas pilulazinhas que um primo trouxera da cidade grande, diziam que levantava até bigorna. Mas nem elas deram jeito. No desespero, chamou a Paloma, a espanhola dos peitões, a mais cara daquelas bandas do sertão, disposto a gastar cinquenta contos, o salário da semana inteira. Pois nem a Paloma, veja você, nem ela.

Agenor consolou o amigo, dizendo que procurasse um médico, não devia ser coisa muito séria. Mas Chico respondeu que já havia ido ao médico e este, sem detectar nada de anormal, falou que algum problema devia estar preocupando-o. Mas não tinha problema algum, explicou Chico, a não ser esse, esse era o problema, o pinto não queria mais subir e pronto. Uma vergonha que o cidadão trabalhador e pagador dos seus impostos não merecia passar.

Agenor, sensibilizado, encheu um copo e tomou. Que uma desgraceira daquela nunca se abatesse sobre ele, jamais.

Depois, foi a vez do seo Ribamar da bodega, que se chegou para perguntar se ele, Agenor, não conhecia um pai de santo bom, bom mesmo, que entendesse de mandinga de mulher malamada, pois ele tinha certeza: foi mulher, sim, que lhe jogara aquele trabalho desgostoso, para descompensar sua rola, foi mulher sim.

Agenor ficou impressionado. Seo Ribamar era homem forte, de saúde, viúvo e namorador. Difícil crer que tão cedo deixasse de dar nos couros. Sim, ele sabia de um pai de santo muito bom, lá para as bandas do Paredão, fosse lá que ele com certeza anularia aquele encosto de mulher ruim. Seo Ribamar agradeceu e saiu. Agenor viu o homem se afastar e bateu três vezes na madeira.

Então, começaram a chegar as notícias. O atendente da farmácia, rapaz novo, não tinha vinte anos, também andava com o mesmo problema, como podia? E o cabo Nonato, famoso pela ruma de namorada que tinha, também havia ido ao Paredão se consultar com o pai de santo para se curar de uma desgraceira repentina que o deixara inutilizado para as artes da agarração.

De um dia para o outro, boa parte dos homens de Jubá estava broxa e o assunto era o preferido nas rodas de conversa. As beatas nas janelas invocavam Esaú aos Filisteus, capítulo 2, versículo 14: “E o peso da descrença pesará sobre a virilidade dos ímpios, e estes serão marcados pelo Anjo com o castigo de não poderem mais dar filhos às suas mulheres e a Terra os amaldiçoará.” Benza Deus.

Autoridades evitavam se pronunciar sobre o assunto porque o fato provocava risinhos e constrangimentos. O que estava acontecendo, afinal? Ninguém possuía explicação convincente para o fato e os médicos da cidade se debatiam entre teorias diversas, sem chegar a conclusão alguma. 

O Ultimo Homem do Mundo CAPA 2a A cada notícia, Agenor se assustava e corria para o banheiro para se investigar, munido de algum recorte de revista. Não, com ele não, felizmente. Com ele tudo corria normalmente, conforme a natureza estabelecera. E com as mulheres, tudo normal também: elas continuavam distantes como sempre.

Alguns forasteiros, atraídos pela notícia de que as mulheres de Jubá estavam que nem lagartixa, subindo pelas paredes, decidiram descer por lá e averiguar se a história tinha mesmo cabimento. Resultado: os hotéis da cidade agora estavam lotados. Se a broxação geral representava um golpe no orgulho dos machos jubaenses, a receita do turismo fechava os olhos dos donos de hotéis.

Os homens sérios de Jubá não gostaram nem um pouco dessas novidades, lógico, e exigiram posição firme das autoridades. Uma equipe médica da capital foi designada para estudar a estranha epidemia e, após muitos exames, constatou que, com exceção de uns gatos pingados, toda a população masculina da cidade fora afetada. Uma tragédia.

Apesar de todos os esforços, a equipe deixou a cidade sem qualquer explicação para o fenômeno. Bem ao contrário de outras coisas na cidade, o mistério continuava de pé.

Receitas, simpatias, promessas e orações, tudo foi usado contra a desgraceira. A Ladainha Milagrosa dos Sete Pingos, ou Ladainha da Bengala Poderosa, como também é conhecida, que diz que é tiro-e-queda, reapareceu por esses dias com força total, circulando pelas banquinhas da feira e até mesmo em farmácia, veja o desmantelo da situação. Ela dizia que o cidadão, pouco antes de começar a peleja do amor, devia acender uma vela branca nunca antes usada e, ajoelhado na direção de Juazeiro do Norte, deixar cair sete pingos sobre o dito cujo desmilinguido enquanto rezava:

Com minha fé e humildade, eu trago aberto o coração
E rogo pela intercessão de quem escuta o meu pedir
Que me ajude nessa prece para expulsar o malefício
Acabando o meu suplício nos sete pingos a cair

Minha bengala poderosa, acuda logo sem demora
Que é urgente essa hora de dor, espanto e aflição
Minha bengala poderosa, cancele a lei da gravidade
Para que suma a maldade e suba logo o cacetão

O estojinho contendo vela e folheto vendeu que nem bolacha. Só não ensinava para que lado ficava exatamente a cidade de Juazeiro, indesculpável falha que, certamente, deve ter inviabilizado muita reza, pois ninguém viu melhora alguma na situação.

Um jornalista da capital, que acompanhava o trabalho dos médicos, levou as informações para o seu jornal, e pronto: no outro dia, os leitores estavam cientes da desgraça da pequena Jubá. No mesmo dia, chegaram repórteres de rádio, jornal e tevê, e a cidade se transformou em notícia obrigatória em todo o estado. Até um laboratório farmacêutico, que produzia as tais pilulazinhas milagrosas, andou distribuindo amostras grátis, farejando na desgraceira alheia uma boa oportunidade de negócios. Mas deu com os burros nágua: para os homens de Jubá, as pilulazinhas e nada eram a mesma coisa.

Foi então que começaram a chegar notícias de outras localidades próximas: nelas também estava ocorrendo a mesma coisa! Tudo o que acontecera em Jubá estava nelas se repetindo, o mesmíssimo drama. E poucos dias depois, soube-se dos primeiros casos na capital e fora do estado ‒ era uma epidemia, desconhecida e assustadora. Logo depois, cidades do país inteiro exibiam alarmadas seus casos de impotência. Daí a mais uns dias e o mal já havia alcançado os outros países. A desgraça atingira nível de pandemia.

Cientistas se esforçavam por explicar, políticos exigiam verbas, empresários se mobilizavam, organizações formavam passeatas… O mundo inteiro não falava em outra coisa. Da Europa aos recônditos da África, de Santiago a Vladvostock, os homens, pretos, brancos, índios e amarelos, ricos e pobres, sucumbiam ao mal sem que ninguém entendesse por que diabos aquilo acontecia.

*     *     *

Desde o primeiro caso notificado em Jubá tinham se passado quase seis meses, e as estatísticas mostravam que noventa por cento da população mundial masculina fora afetada pela repentina impotência, e os casos seguiam aumentando, sem poupar nem os adolescentes, coitados, mal entrados no assunto. Podia-se realizar inseminação artificial nas mulheres, é claro, mas isso não resolvia o problema. Muito menos explicava.

Enquanto isso, médicos e terapeutas faturavam alto com o desespero, líderes religiosos engordavam a conta bancária, pomadas e sprays milagrosos surgiam às centenas e os vibradores viraram itens obrigatoríssimos no comércio inteiro, fazendo surgir inclusive um projeto de lei que incluía o vibrador na cesta básica.

Enquanto o mundo vivia seu terrível pesadelo, naquele domingo Agenor acordou sorridente. Após dois sorvetes na lanchonete e três noites de conversa mole na porta de sua casa, Dorinha aceitara seu pedido e agora estavam namorando, ela que já fazia algum tempo comprovava, nas despedidas ao portão, que aquele romance tinha, literalmente, onde se segurar. E, para comemorar o namoro, ela conseguira folga no restaurante e passaram o sábado na lagoa bebendo vermute. No fim, já noite escura, ela o puxou para si e ali mesmo sacramentaram o nheconheco, ele alegríssimo, ela em desesperado ardor, como se havia muito não soubesse como era um homem, coitada. Embora não houvesse muitas estrelas no céu, Dorinha viu uma constelação delas, todas brilhando só para si.

Quando as amigas de Dorinha souberam que ela estava namorando Agenor e andava cantarolando alegre e vistosa, chegaram à mais óbvia das mais óbvias das conclusões. Assim foi que a partir desse dia, Agenor pôde perceber uns olhares mais insinuantes pela rua e por onde quer que fosse.

Belo dia, ao receber a correspondência entregue por Agenor, a moça da butique, de nome Carmela e apelido Botinha, que por sinal era prima da Dorinha, mas, ao contrário da prima, nunca se prestara a saliência na frente do portão, perguntou mui delicadamente a Agenor se por um acaso ele não faria a gentileza de matar uma barata voadora que teimava em não querer deixar o depósito lá atrás, ela que tinha pavor de barata, quanto mais voadora. Agenor, muito solícito, dispôs-se. Quando chegou ao depósito foi que percebeu que era outra a barata. Embora a moça não fosse lá muito bem dotada de atributos físicos, tendo, inclusive, de usar bota ortopédica, daí o apelido, por causa de uma perna maior que a outra, sem falar num braço seco que furou no prego, Agenor foi solidário, ah, foi, sim, e fez com que a danada da barata se aquietasse. E voltou para a rua de ânimo revigorado, nem ligando para os cães que detestavam carteiros.

Mas em cidade pequena as notícias correm que nem fogo morro acima. Dois dias depois, elas foram dar no ouvido de Dorinha que, depois de largar meia dúzia de mãozada na cara da prima Botinha traidora, tratou logo de tomar providências contra o perigo que corria seu patrimônio. O que fez: botou as amigas, todas de altíssima confiança, para acompanhar a trajetória do namorado pelas ruas da cidade, olheiras a bem dizer, uma vez que ela mesma não podia fazê-lo, já que pegava no batente o dia inteiro no restaurante.

Uma semana depois, Agenor já havia sido requisitado para matar duas dezenas de baratas pela cidade, inclusive na casa das tais olheiras, algumas delas crentes, irmãs em Cristo, sim, que Cristo, bom que se diga, não tem nada a ver com certas agonias femininas que costumam dar no fim da tarde, quando o sol desce em Jubá e sopra um ventinho fresco que se intromete por baixo das saias.

Dorinha, de sangue quente por causa da crescente fama do namorado, agarrou-o pelo cangote no meio da praça e deu o ultimato: ou ela ou as baratas, que ela não era mulher de dividir com as outras aquilo que de direito era só dela.

Agenor pensou um pouco. Não era sua intenção magoá-la, Dorinha era mulher boa e ele gostava muito dela. Mas é que as baratas… Bem, elas lhe acenavam com um horizonte bem mais amplo de possibilidades, digamos dessa forma. Andava até pensando em montar uma firmazinha de dedetização, o mercado era promissor.

Ficaria com elas, as baratas. Foi o que respondeu.

Quem estava na praça viu quando o tabefe de Dorinha estalou no pé da orelha do carteiro, tabefe daqueles de ficar zunindo por três dias. Ela virou as costas e saiu, o passo ligeiro, a tromba desse tamanho, deixando Agenor de quatro a recolher as correspondências caídas ao chão.

Na mesma noite, porém, ela haveria de cair em si e se arrepender, tentar reconciliação, haja vista a carência horrorosa de homem na cidade. Melhor dividir o prato que não ter o que comer, coisa mais óbvia, né?

Mas nada feito. Agora era Agenor, ainda com a orelha ardendo, coitado, quem não queria. Dorinha chegara atrasada à obviedade.

No dia seguinte, um conhecido repórter da rádio local, de modos muito delicados, e que fazia reportagem sobre a pandemia, cismou de querer entrevistar algum homem que ainda estivesse com suas funções de macho normais. Perguntando daqui e dali, o repórter soube do carteiro Agenor. Animado com a descoberta, alcançou-o no momento em que, fim de expediente, trabalho terminado, o moço se encaminhava para matar uma barata lá para o lado do açude. Porém, tímido como era, Agenor nem deixou que o repórter lhe explicasse o motivo da entrevista e saiu correndo.

O Ultimo Homem do Mundo CAPA 2a Naquela mesma noite, a reportagem foi ao ar. Não continha a entrevista de Agenor, claro, mas falava dele. E bem.

Dez minutos após terminada a reportagem, já tinha gente em frente à casa do carteiro Agenor, homens e mulheres. Um pouco assustada, Dona Fafá lhes informou que o filho não estava, mas que não demoraria a chegar. Todos resolveram aguardar, enquanto outros chegavam.

Do outro lado da cidade, Agenor pediu que a moça parasse um pouquinho com o vai e vem sobre seu corpo porque ele acabara de escutar seu nome no rádio.

– Preciso ir pra casa – falou, afastando a moça. – Mamãe deve tá preocupada.

– Ah, só mais um pouquinho…

Era a terceira vez que escutava aquela frase naquele dia.

Alguns minutos depois, Agenor dobrou a esquina de sua rua e tomou um susto. Havia um bando de gente em frente à sua casa. Ele se escondeu atrás de uma árvore, com medo. Decidiu entrar pelos fundos.

– Filho, aquilo que saiu no rádio é verdade? – Foi a primeira coisa que a mãe perguntou, ao abrir a porta do quintal para ele entrar.

– Mãe, a senhora viu? Tem uma ruma de gente lá fora.

– Na sala também. O Chico da Magnólia, seu tio Ferreirinha… Suas primas também estão aí. Até o prefeito veio.

– Pode dizer pra todo mundo que eu viajei.

– Mas…

– Vai, mãe. Vou esperar aqui.

‒ Já jantou?

‒ Não tô com fome. Vai, mãe.

Agenor escondeu-se no quartinho dos fundos enquanto dona Fafá voltava à sala.

– Foi um custo, mas foram embora – ela disse, retornando. – Agora me conte direito essa história.

Agenor falou que não sabia o que estava acontecendo. Mas estava muito preocupado com tudo aquilo.

– Então, vá dormir, filho, que é melhor. Estou vendo que você está cansado. Trabalhou muito hoje, né?

Agenor pediu a bênção e foi para o quarto. Mas sono que é bom, não teve, não conseguiu pregar o olho. Sem falar que, perto da meia-noite, uma vizinha conseguiu entrar pela janela e se atracou com ele, quase que não consegue se soltar, a moça pedindo pelo amor que ele tinha a Nossa Senhorinha que também desse uma chinelada em sua barata, que ela andava muito precisada. E, já perto de amanhecer, foi a Jaciara, filha do dono do cartório, que todo mundo desconfiava ser meio destrambelhada do juízo. Pois ela provou que era mesmo: trepou-se no telhado da casa, e ficou lá em cima, peladinha da silva, berrando para o mundo inteiro ouvir que estava grávida de Agenor. Mentira, claro, Agenor nunca nem tocara na moça, e ela antes nunca nem tinha olhado para ele.

Assustado e exausto pela noite em claro, Agenor decidiu que o melhor era ir embora.

– A gente pode mudar de endereço.

– Não vai adiantar, mãe.

– O mundo lá fora é tão perigoso, filho. Essas mulheres todas se enxerindo pra você…

Agenor olhou para a mãe e sentiu uma pontada de tristeza magoar seu coração. Súbito, percebeu o quanto estava sendo egoísta. Como podia pensar em abandonar sua mãe querida, deixá-la sozinha? Pensava apenas em si mesmo.

Então, se achegou no colo da mãe, que o abraçou forte, abraço sentido, apertado, seu corpo envolvendo o do filho amado. Agenor fechou os olhos e deixou-se levar por aquele abraço gostoso, o mormaço aconchegante dos seios de dona Fafá, que o apertava forte contra si, mais forte, mais forte…

Agenor abriu os olhos. O rosto afundado entre os seios grandes da mãe, quase não conseguia respirar. Um terror repentino se apossou de sua alma. O que estava fazendo?

– Tenho que ir embora, mãe… – balbuciou, levantando. – A senhora me perdoa?

– Eu sabia que um dia você ia partir, filho.

Ela foi ao quarto e voltou com umas notas que tirara do fundo da gaveta.

– Guardei esse dinheirinho pra você. É muito não, mas ajuda. Tome, leve. Vou ligar para minha irmã, em Bocariús. Zulmira vai lhe receber.

Na rodoviária, enquanto Agenor esperava o ônibus, foi surpreendido pela equipe de tevê da capital, que acabara de chegar a Jubá à sua procura. Ele não quis dar entrevista, mas mesmo assim o filmaram entrando no ônibus.

Na estrada, a caminho de Bocariús, foi que atinou: o pacto com o diabo! E ficou pasmo, os olhos arregalados. Tudo aquilo seria o pacto funcionando?, ele se perguntava, a mão sobre o coração agitado. Talvez o diabo estivesse realizando seu desejo, embora por vias que ele jamais pudesse atinar. Todo o tempo pensou que ficaria mais bonito, ou que o diabo lhe forneceria um perfume irresistível… Mas não, não foi nada disso.

Se era realmente o pacto funcionando, então lamentava que os outros homens estivessem pagando tão caro pela sua felicidade. Mas talvez fosse só por um tempo, logo voltariam ao normal. Mas se voltassem ao normal, como ficaria ele?

O ônibus chegou a Bocariús no fim da manhã. Agenor estava faminto, pensava somente num prato de comida. Encostou-se no balcão da lanchonete e pediu arroz, feijão, bife e ovo. Na tevê, passava uma reportagem, mostrando o último homem de Jubá entrando no ônibus, seguindo para… Bocariús.

Todos na lanchonete pararam ao ouvir o nome da cidade. Agenor nem respirava. A garçonete foi a primeira a reconhecê-lo.

– Gente, é ele! O homem de Jubá!

No instante seguinte, estavam todos à sua volta, queriam perguntar coisas, tocá-lo. Os homens imploravam que divulgasse a receita milagrosa, as mulheres o abordavam, eufóricas. Agenor se desvencilhou como pôde e saiu. Mas as pessoas o seguiram. É o gostosão de Jubá!, uma garota gritou da janela do ônibus que passava na rua. Ele vai morar aqui!, gritou a outra. E a terceira completou: E vai casar comigo!!!

Em dois minutos, uma multidão o acompanhava pelas ruas, parecia uma procissão. O comércio fechou para vê-lo passar. Agenor correu e a multidão correu atrás. Finalmente, chegou à casa da irmã de sua mãe, ofegante, a roupa rasgada, um sapato faltando. Tia Zulmira, noventa e cinco quilos de gordura e macheza, abriu rápido a porta e botou para dentro o sobrinho escangalhado. Depois, brandindo a carabina velha, gritou que o primeiro que chegasse perto ia ficar que nem peneira. E atirou para o alto, espalhando a multidão.

Porém, a cidade inteira já sabia quem havia chegado e não o deixaram em paz nem por um minuto. Eram populares, radialistas, comerciantes, religiosos, vereadores e toda classe de gente interessada em ter com o último homem de Jubá. A tia trancara portas e janelas e desligara o telefone. Mas lá fora a multidão alvoroçada gritava seu nome, e tarde da noite ainda tinha gente rondando a casa.

Agenor estava cada vez mais assustado. A tia, porém, lhe garantiu que ali dentro ele estava seguro.

– Obrigado, tia. Vou ficar em dívida com a senhora pro resto da vida.

De madrugada, outra noite sem conseguir dormir, Agenor viu a tia entrando no quarto.

– Ô, meu filho, acuda sua tia, acuda… Não é só lá em Jubá que tem carestia de homem não…

Foi assim que Agenor pagou a dívida.

Antes que amanhecesse, ele aproveitou a escuridão, correu para a estrada e pegou carona num caminhão. Sorte que o motorista não o reconheceu. Desceu numa cidadezinha que nem sabia o nome. Mas lá as pessoas também sabiam quem ele era, e havia homens revoltados, se arregimentando para capá-lo, e as mulheres, revoltadas, tentando impedir. Quando a polícia chegou, ele precisou correr bastante para não ser preso por incitar a desordem.

Pobre Agenor. Já não havia mais onde se esconder. Sua imagem fora divulgada pela tevê para o mundo inteiro, o planeta sabia seu nome, todos conheciam detalhes de sua vida. Para onde fosse, seria reconhecido. Podia ser preso, podia ser morto.

Mas… havia um lugar, sim, lembrou Agenor, a esperança de repente renascida. A capital. Lá tinha muita gente, parecia formigueiro. E as pessoas estavam sempre ocupadas demais para reparar nas outras.

Foi assim que Agenor, pela primeira vez na vida, pisou o chão da cidade grande. Escondendo o rosto com boné e óculos escuros. Na primeira lixeira, jogou fora todos os seus documentos. Não era mais Agenor. Era um ninguém.

*     *     *

O Ultimo Homem do Mundo CAPA 2a O mundo inteiro continuava buscando a explicação e, principalmente, a solução para o problema da impotência generalizada. Jubá, a pequenina cidade interiorana, virara atração internacional, por ter sido lá onde a estranha pandemia começou. Assim foi que os jubaenses, de repente, se viram entre autoridades de países do mundo inteiro, toda uma espécie de gente ávida por saber o que havia naquela cidade que pudesse ter causado o que causou. Jubá, a cidade celebrizada pela desgraça.

– Dizem que só sobrou um homem sadio em Jubá – explicou o prefeito na coletiva de imprensa. – Mas ele fugiu, ninguém sabe onde se meteu. Aproveitando a ocasião, gostaria de dizer que inauguraremos um monumento comemorativo dessa pandemia que projetou para todo o planeta o nome da próspera cidade de Jubá e…

Pelos quatro cantos do mundo os jornais ofereciam anúncios de mulheres, e homens também, que pagavam fortunas por uma noite, uma noite apenas com qualquer um que houvesse escapado da broxação geral. Na tevê, os cientistas, olheiras profundas, imploravam que se apresentassem aqueles que ainda podiam ser preservados da pandemia. Nas ruas, os semblantes seguiam tristes. Nas igrejas, os sermões falavam de castigo divino, de Sodoma e Gomorra revividas, era o fim do mundo das profecias.

Parecia que o sombrio e previsível fim havia finalmente chegado: o mundo não tinha mais homens dignos do nome.

*     *     *

Seis meses após chegar à capital, lá estava Agenor, ao lado do ponto de ônibus, sentado na calçada, a mão estendida. Era o seu ponto de pedir esmolas. O local não era muito movimentado, mas pelo menos não tinha dono para cobrar aluguel, como os outros pontos. A barba crescida, o boné e as roupas sujas faziam-no apenas mais um entre os tantos mendigos que compunham a cena decadente da cidade grande.

O que ganhava era o suficiente para não morrer de fome e de frio. Dormia num velho prédio que fora abandonado no meio da construção, onde também dormiam outros mendigos, com os quais evitava maiores contatos. Não era um lar, era um esconderijo. As pouquíssimas coisas que possuía levava sempre consigo numa bolsa de pano, que um dia fora branca. E tomava banho, quando era possível, usando a torneira da praça, na discrição da madrugada.

A vida na clandestinidade era muito difícil, claro, mas era melhor ser ninguém que ser reconhecido na rua e ir parar sabe-se lá onde, nas mãos de sabe-se lá que tipo de gente. Emprego, então, nem pensar. Mesmo que conseguisse empregar-se sem documentos, isso seria arriscar-se demais.

Não tinha amigos, não podia confiar em ninguém. A solidão era a companheira, ela e a saudade da mãe e dos amigos. Sua vida chegara a uma rua sem saída, onde ele não podia seguir em frente e, muito menos, voltar. Estava condenado a viver aquela subvida até o último dia, quando finalmente o diabo voltaria para receber sua alma como pagamento pelo serviço. A não ser que…

A não ser que descobrissem a cura para a impotência generalizada. Quando isso acontecesse, Agenor finalmente poderia deixar de ser ninguém para ser novamente… Agenor. Ou seja, continuaria a ser ninguém, mas, pelo menos, teria um lar e não precisaria pedir esmolas.

Que grande ironia…. Obtivera a realização do seu maior desejo e, no entanto, não podia usufruir nem um pouco dele. Era ardentemente desejado por todas as mulheres, era o último homem do mundo – e não havia nenhuma vantagem nisso.

Às vezes, tomava coragem e caminhava pelas ruas, ia aos parques, mas sempre surgia algum guarda ou policial para importuná-lo. Outras vezes, percebia uns certos olhares desconfiados… Pronto, era o bastante para fazê-lo voltar imediatamente ao esconderijo. Estava bem diferente da imagem que o tornara famoso, sim, mas todo cuidado era pouco.

Pelos jornais que pegava no lixo ou pela tevê do botequim, Agenor acompanhava as notícias da pandemia. Sabia que tudo continuava do mesmo jeito. E sabia que o mundo inteiro prosseguia a busca pelo último homem do mundo, como ele ficara conhecido. Seu desaparecimento gerara uma série de hipóteses, desde as que afirmavam que ele fora assassinado às que sustentavam que ele era mantido preso nos subterrâneos de um laboratório enquanto cientistas tentavam decifrar seu segredo. Corria a notícia que o último homem do mundo fugira para uma ilha distante e montara um harém só para ele, mandando buscar as mulheres mais lindas do mundo…

Agenor até ria desses absurdos, era mesmo incrível a imaginação do povo. Mas não dava para rir quando via seu rosto surgir na tela da tevê, o que acontecia quase todo dia. Nessas ocasiões, ele baixava ainda mais o boné sobre o rosto e saía de mansinho, tremendo de medo.

Tão grande quanto o medo de ser descoberto, porém, era a angústia que lhe faziam sentir… as mulheres. Ah, as mulheres da cidade grande… Eram lindas, carnudas, bem aprumadas, vestiam-se com elegância, a pele fresquinha, o cabelo bem tratado, o jeito de andar… Elas enfeitavam todos os lugares, as ruas, as lojas, os bares. Onde estivesse, vinha-lhe o perfume inebriante da tentação, atingindo-o em cheio. À noite, deitado sobre os papelões que lhe serviam de cama, rolava de um lado para outro, a imagem de uma ruma de mulheres desfilando em seu pensamento, aquela de vermelho com quem cruzou na esquina e aquela que passou no ônibus e aquela vendedora de flores, todas elas, mil mulheres… Mil possibilidades que, entretanto, sempre terminavam expelidas em jatos de prazer solitário.

Uma vez, sem aguentar mais, dirigiu-se à periferia em busca de um cabaré, mesmo consciente do altíssimo risco da operação. Mas não encontrou nenhum. Foi então que soube que todos os cabarés haviam fechado. Por absoluta falta de clientes.

Até que uma noite…

Desde o início, Agenor adquirira um hábito: guardar classificados dos jornais que recolhia no lixo. Recortava pedaços e juntava aos que possuía. Eram anúncios de mulheres oferecendo verdadeiras fortunas por uma noite com um homem de verdade. Pois bem. Naquela noite, no auge da angústia e da solidão, ele separou um anúncio e com ele desceu as escadas sem corrimão do velho prédio inacabado. De um orelhão da rua ligou para o número do anúncio. Uma voz de mulher atendeu… Ele falou quem ele era. A mulher não acreditou. Nervoso, ele insistiu, disse que poderia facilmente provar, mas para isso precisavam se encontrar. Então, a mulher pediu o endereço e informou que enviaria um táxi imediatamente.

Enquanto Agenor aguardava, ansioso, começou a chover e ele se protegeu sob o orelhão. Não sabia se fizera a coisa certa, mas já não voltaria atrás.

Logo, o táxi chegou. Ele entrou e acomodou-se no banco de trás, molhado da chuva. Estava nervoso, mas esperançoso. Aquela podia ser a saída que tanto buscava: uma mulher rica e insatisfeita, disposta a pagar muito por um homem que lhe desse prazer. Ela o levaria para morar numa bonita casa de praia, cozinharia para ele, lhe compraria roupas caras, lhe daria um carro bonito e lhe ensinaria a dirigir, faria todas as suas vontades. Em troca disso tudo, ele teria apenas que ser o que era: um homem. Só isso.

O táxi parou em frente a uma casa. Agenor reparou que era grande e bonita, com um jardim cheio de plantas coloridas. Um homem de paletó, com um guarda-chuva, abriu a porta do carro.

– Boa noite, senhor. Queira acompanhar-me, por gentileza.

Agenor foi conduzido pelo jardim, subiu uma escadaria e entrou numa sala.

– Por favor, sente-se. Anunciarei sua chegada.

Agenor sentou-se no sofá, admirando os móveis e os quadros nas paredes. Devia ser uma mulher muito rica, pensou, satisfeito. Aproveitando o espelho ao lado, passou o pente no cabelo e ajeitou a camisa. Por sorte havia tomado banho aquele dia. Pensara até em tirar a barba, mas não teve coragem.

Uma outra porta se abriu e uma moça muito bonita surgiu à sua frente. Tinha lindos cabelos loiros, um rosto suave e… sorria. E vestia uma camisola transparente que nada escondia de seu maravilhoso corpo.

– Agenor de Jubá? – perguntou, delicadamente.

– Sim… sou eu… – gaguejou Agenor, o desejo já se manifestando sob as calças.

Ela se aproximou.

– Como posso ter certeza disso?

O Ultimo Homem do Mundo CAPA 2aAgenor sorriu, sem saber o que responder. De repente, ela o empurrou e ele caiu sentado no sofá. Ela ajoelhou-se, tirou seus sapatos, depois sua calça, a cueca, deixando-o inteiramente nu.

– A senhora pensou que eu estava mentindo, né? – disse ele, vendo que ela olhava impressionada para o meio de suas pernas. – Menti, não.

Ela continuou ajoelhada entre suas pernas, o queixo caído, os olhos de quem não acredita no que vê. Então, ela gritou, alvoroçada:

– Está no ponto! Está no ponto!

Agenor achou estranho, mas já sabia que as mulheres da cidade grande possuíam hábitos esquisitos, de forma que apenas riu. No instante seguinte, surgiram uma mulher e dois homens, carregando equipamentos.

– Obrigado – a mulher falou para a moça de camisola. – Agora é com a gente.

– Não dá pra eu ficar sozinha com ele por dez minutinhos? – perguntou a moça.

Um dos homens, porém, a puxou e a afastou para o outro lado da sala. Agenor percebeu que o outro homem empunhava uma câmera de filmar. Uma luz forte acendeu-se sobre ele.

– Estamos transmitindo ao vivo! – disse a mulher, falando no microfone. – Isso que você está vendo não é truque. A imagem não deixa qualquer dúvida: é o último homem do mundo! Nós o encontramos! Vocês podem ver, olhem aqui, é incrível, é, é inacreditável, é… maravilhoso…

Apavorado, Agenor levantou de um salto. Um dos homens ainda tentou detê-lo, mas ele saiu correndo, nu como estava, a mulher e os homens correndo atrás, aquela luz a persegui-lo. Saltou o muro da casa e caiu na calçada, no meio de uma poça dágua. A chuva havia aumentado bastante. Agenor levantou, sentindo a perna doendo, e continuou a correr.

Correu e correu até não aguentar mais. Somente então parou e caiu no chão, ofegante, a perna doendo bastante. E assim ficou, estendido no chão da passarela do viaduto, enquanto a chuva descia sobre seu corpo e lá embaixo os automóveis passavam em alta velocidade.

Chegara ao fim. Não tinha mais forças para continuar com aquela vida. Estava cansado de correr, de se esconder, de ser ninguém. Que sentido ainda havia em continuar vivo?

Naquele instante, apesar do cansaço, da dor da perna, de tudo, Agenor fechou os olhos e sorriu. Sorriu porque a ideia do fim era como um bálsamo para sua alma sofredora. Sorriu porque sentia-se finalmente liberto da dolorosa obrigação de viver.

*     *     *

Um tempo depois, Agenor percebeu que havia alguém ao seu lado.

– Humm, você fica horrível sem roupa…

Ainda deitado, Agenor virou o rosto e tentou ver quem era. Mas a água em seus olhos dificultava a visão. Aos poucos, foi enxergando melhor: um par de botas pretas, a ponta de uma bengala…

– Soloniel… – ele sussurrou, reconhecendo o diabo em seu sobretudo.

– O mais astuto dos diabos – respondeu Soloniel, tocando seu chapéu com a ponta dos dedos.

Agenor deitou novamente a cabeça.

– Por que fez isso comigo?

– Como assim? Fiz apenas o que me pediu.

– Eu só queria ser desejado…

– E não conseguiu?

Agenor suspirou, sem forças.

– Creio que ambos concordamos que cumpri minha parte no trato, não é?

Agenor não respondeu. Nada mais importava. Ficaria ali, sob a chuva, até morrer.

– Conforme combinamos, vim buscar meu pagamento.

Agenor escutou aquelas palavras sem qualquer surpresa. Não lhe importava. Já estava morto.

– Por favor, levante-se, jovem. Esta não é a melhor posição para um momento tão solene.

Agenor abriu a boca, deixando que a água entrasse. Bebeu um pouco e depois perguntou, enquanto se erguia com dificuldade, a perna uma dor só.

– O mundo vai continuar como está, todos os homens impotentes?

– O que você acha?

– Não está certo.

O diabo Soloniel riu.

– Sente-se culpado apenas porque realizou seu grande desejo?

Agenor não respondeu.

– Eu devia estar acostumado, mas sempre me encantam essas ironias… – O diabo bateu na bota com a ponta da bengala. – Bem, se isso serve de consolo, depois que você se for, tudo voltará ao normal.

Por um breve instante, Agenor sentiu-se feliz.

– Agora, siga-me. Está na hora.

O diabo caminhou até a murada da passarela e subiu, ficando de pé. Depois, virou-se para Agenor.

– Sua vez.

Agenor foi até a murada e olhou para baixo. Era uma altura considerável. Ouvira dizer que várias pessoas já haviam se jogado dali. Que maneira horrível de morrer, estatelado no asfalto, os carros passando por cima… Depois, seu corpo seria recolhido aos pedaços e levado ao necrotério, ninguém o reconheceria, seria enterrado numa cova qualquer, como indigente…

Apesar da dor na perna, Agenor subiu e firmou os pés sobre o cimento.

– Muito bem – disse o diabo. – Se quiser se despedir, posso dar-lhe um minuto.

De pé na murada, inteiramente nu, Agenor viu as luzes da cidade ao redor. O som da chuva se misturava ao dos carros passando lá embaixo. A queda seria rápida, uns poucos segundos e pronto, tudo estaria acabado, não haveria mais sofrimento.

– Um, dois, três e…

De repente… uma dúvida. Como assim não haveria mais sofrimento? Esperava o quê do inferno? Agenor olhou para o diabo, pensando em como perguntar sobre aquela questão repentina.

– Que saco. O que foi agora, meu jovem?

– Como é o Inferno?

O diabo pareceu não acreditar no que ouvia.

– Você quer que eu lhe explique como é o Inferno? Agora?

– É que… não consigo imaginar algo pior do que o que já estou vivendo.

O diabo bateu na bota com a bengala.

– Bem, digamos que seu caso é uma exceção.

– Como assim?

– Como havia lhe dito, todos os diabos sonham com um pedido como o seu. Realizá-lo significaria a glória eterna para um diabo, o nome para sempre brilhando em ouro na entrada do Inferno. Bem, eu consegui. E graças a você.

Agenor escutava, curioso.

O Ultimo Homem do Mundo CAPA 2a– Então, como retribuição, reservei um lugar especial para você. Será meu assessor. Você sabe, já estou velho, preciso dividir o serviço.

– Assessor? Eu?

– Claro. Dentro de alguns segundos, você também será um diabo. E já tem um serviço esperando.

– Como assim?

O diabo fez uma pausa enquanto sorria.

– Dorinha vai fazer o pacto. Assim que terminar com você, irei encontrá-la.

– Dorinha?! – exclamou Agenor, surpreso.

– Sim, sua ex-namorada. Aquela que você abandonou.

A lembrança de Dorinha chegou, vinda de longe… Agenor viu seu rosto bonito, sorridente… Uma sensação de suavidade e ternura tomou-lhe conta. A doce Dorinha, esquecera dela. Esquecera dos bons momentos que viveram, antes daquele pesadelo começar.

– Pois ela não esqueceu. E sabe qual é o pedido dela?

Agenor ficou calado, com medo do que poderia escutar.

– Que você volte para ela.

– Não acredito…

– Pelo jeito, ela gosta muito de você.

Agenor estava confuso.

– A ponto de sacrificar a própria alma.

Mas como aquilo seria possível?, Agenor pensou. Como ele voltaria para Dorinha se iria para o Inferno?

O diabo deu uma gargalhada.

– Você vai para o Inferno, sim. Mas logo voltará aqui. Para buscar Dorinha. Dessa forma, ela terá seu grande desejo realizado. Soloniel é um diabo de palavra.

Agenor não acreditou. Aquilo não podia acontecer. Não com Dorinha.

– Escute, Soloniel, Dorinha é uma pessoa boa, não merece sofrer.

– Todos têm que sofrer. É a lei da vida.

– Mas não deviam vender a alma!

Agenor se surpreendeu com o próprio grito. E com o raio que caiu próximo, seguido de um estrondoso trovão. Ao seu lado, o diabo o encarava, muito sério.

– Ainda bem que você não é o dono do Inferno. Eu perderia meu emprego. Agora, salte, já me fez perder muito tempo.

Agenor continuou parado, a água da chuva escorrendo por seu rosto.

– Salte, homem. Ainda tenho trabalho hoje.

Agenor nem se mexeu.

Então. a dor, súbita e aguda. O diabo o atingira com uma bengalada na perna machucada, fazendo-o gritar de dor.

– Algo me diz que você também precisará de uma bengala em sua nova vida.

Desequilibrado, Agenor agitou os braços, como se pudesse se segurar em algo, e seus movimentos pareceram uma estranha dança. Seu corpo caiu pesadamente e se chocou todo desajeitado contra o chão.

Quando abriu os olhos, já não havia dor. E a chuva havia parado. Não viu a passarela. Nem os carros. Nem a avenida, nem a cidade, nada. Estava no Inferno? Ao redor, via apenas mato. Mas o Inferno tinha mato? No céu, as estrelas brilhavam.

Levantou, sentindo o coração acelerado, o suor no rosto. Adormecera enquanto aguardava pelo diabo, e tivera um pesadelo horrível. E caíra da pedra. Estava no alto do morro, a cidade de Jubá lá embaixo.

Como pudera sonhar tanto em tão pouco tempo? E fora tudo tão real, tão real…

Pegou o cobertor no chão. Depois, olhou o relógio. Era meia-noite, em ponto. Nesse momento, escutou um ruído, alguém chegava pelo mato. O ruído ficou mais forte e ele viu as folhas mexerem.

Não teve dúvidas: deu meia-volta e saiu numa carreira apavorada, descendo aos saltos a encosta do morro, sem olhar para trás. Entrou na cidade e só parou de correr quando chegou em casa.

– Meu filho, onde você estava? – perguntou dona Fafá, vindo da cozinha. – Venha jantar.

– Oi, mãe… – ele murmurou, ofegante, fechando rapidamente a porta e passando a tranca.

– Que cara é essa? Parece que viu alma.

Agenor beijou a mãe e foi para a cozinha.

– Quem esteve aqui agora há pouco foi Dorinha.

– Dorinha? – ele perguntou, surpreso.

– Sim, vinha do restaurante. Perguntou de você. Menina boa, ela.

– E… pra onde ela foi?

– Disse que ia se encontrar com alguém e depois ia para casa.

– Encontrar… com alguém? A essa hora?

O coração de Agenor batia forte. Foi então que alguém bateu na porta.

– Tá esperando alguém? – disse dona Fafá, caminhando para abrir a porta.

– Não, mãe! Não abra!

Dona Fafá parou e olhou para o filho, desconfiada.

– Você andou bebendo?

Agenor correu para impedir, mas ela abriu a porta, enquanto ele fechava os olhos para não ver.

– Oi, Agenor.

Aquela voz…

– Mas que pressa medonha, Agenor! Passou correndo por mim, nem me ouviu te chamar…

Ele abriu os olhos e viu Dorinha.

– Tem comida na geladeira, viu, filho? – disse dona Fafá, piscando um olho para Dorinha e saindo da sala.

– Você… foi encontrar… alguém? – ele indagou, gaguejando.

– Fui.

– Quem?

– A prima Botinha. Ela vai casar, sabia? E a festa vai ser lá no restaurante.

Ele suspirou, aliviado. Depois desviou o olhar, com vergonha.

– E você, tudo bem?

Ele fez que sim com a cabeça. Ela sorriu.

– Vim só dar um oi.

O Ultimo Homem do Mundo CAPA 2aEle procurou algo para dizer, mas não achou. O coração ainda batia acelerado. Dorinha… Em Jubá até havia mulheres mais bonitas que ela, mas Dorinha era especial, tinha um algo mais… Se ela soubesse quantas noites ele sonhara com ela… em seus braços…

– Bem, acho que já vou indo.

– Vai?

– Tá tarde, Agenor.

Ele sentiu uma súbita vontade de abraçá-la. Mas a timidez jamais permitiria. A velha timidez que nos últimos meses sempre o impedia de dizer a ela o que sentia.

– Dorinha…

– Sim?

Ela aguardava.

– É, está tarde mesmo ‒ ele falou, sorrindo nervosamente. Nunca conseguia. Jamais conseguiria.

– Tchau, Agenor. Aparece no restaurante.

Dorinha virou-se e saiu. Agenor foi para o batente da porta e de lá a observou caminhando pela calçada. Não fora forte para fazer o pacto. E nem era forte para lutar pela mulher com quem tanto sonhava. Era um fraco.

Naquele instante, um carro passou na rua e a luz dos faróis bateu em cheio sobre seu rosto. Lembrou da luz a persegui-lo enquanto tentava escapar da equipe de tevê. Então, num impulso, sem pensar no que fazia, abriu a porta e saiu correndo.

Na esquina, o carro fez a curva e sumiu. Mas Agenor não dobrou a esquina, não era o carro que lhe interessava. Continuou correndo e só parou quando alcançou Dorinha, que tomou um susto ao vê-lo chegar e lhe pegar pelos ombros. Sem dizer nada, ele a virou para si e sapecou-lhe um beijo na boca. Dorinha quase caiu, mas ele a amparou e a encostou no muro, sem interromper o beijo.

Um bom tempo depois, quando ele finalmente a largou, Dorinha só de uma coisa sabia: que queria mais.

– Pensei que você não me desejava… – ela murmurou, encostada no muro, toda molenga.

– É que eu… não sabia desejar direito.

E beijaram-se outra vez, mais forte.

Na bodega da esquina, sentado numa mesa com o último cliente da noite, Ribamar olhava satisfeito o casal se beijando.

– Até que enfim esse rapaz tomou tenência. A moça doidinha por ele…

– Quanto lhe devo, meu amigo?

– Um conhaque. Dois reais.

O homem tirou uma nota do bolso do sobretudo e pagou.

– O senhor não é daqui, né? – perguntou Ribamar, recolhendo o copo e levando para o balcão.

– Vim ver um cliente ‒ respondeu o homem, levantando e apoiando-se numa bengala. ‒ Mas ele não apareceu.

– Que pena. Fez viagem perdida.

– Fiz não. No meu ramo, cliente é o que não falta.

– Coisa boa. Que mal pergunte, qual é o seu ramo? – perguntou Ribamar, voltando à mesa.

Mas ela estava vazia. Ninguém na mesa, ninguém por perto.

– Vixe! – exclamou, sentindo um calafrio.

Bateu três vezes na madeira e rapidamente fechou a porta, sem esquecer de dar duas voltas na chave, e do cadeado e da tranca.

Adiante, encostada no muro, Dorinha suspirou nos braços de Agenor e, com os olhinhos fechados, pediu outro beijo. Mais forte.

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Ricardo Kelmer 1998 – blogdokelmer.com

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BaseadoNissoCapaMiragem-01aEste conto integra o livro
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O sonho de Agenor é que todas as mulheres do mundo o desejem. Para isso, ele está disposto a fazer um pacto com o diabo. Mas há um velho ditado que diz: cuidado com o que deseja, pois você pode conseguir…

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COMENTÁRIOS
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01- Eu gostei deste muito. gigi28 – jul2008

02- Você é bom mesmo, Ricardo. Quando vem a terrinha? Um grande abraço do amigo-leitor seu. Maninho, Fortaleza-CE – ago2008

03- Quem quer todas, não tem nenhuma. A graça de um relacionamento é ir até o fundo, explorar tudo, dure 3 meses ou 10 anos. Mas com inteireza, com verdade. Quem tem todas, não conhece, de verdade, nenhuma. Bjo. Chris, Rio de Janeiro-RJ – jan2009

04- Aquela que serve é a que conhece . conhece mesmo ? e aquele que deseja, é o faminto do lobisomem ? o grande assustado ? o fugitivo de boné … quisera ter o pacto com quem ? efusivo Agenor , talvez um perfume afrodisíaco com a tônica dionisíaca vai saber … agradaria uma bela garçonete que pega a carona no seu caminhão feito mesmo o último homem de jubá …. ahahahahahahah ! Marcia, São Paulo-SP – ago2009

05- Oi, Kelmer! Agenor é bem dotado, também, de criatividade. Ele conseguirá, um dia. rsss Linkei o teu blog no meu. =) Abs! Val – mar2010

06- Ei macho… Tu quer me matar de curiosidade é?? Parabens esse conto é incrível!!! Todo homem já se imaginou nessa situação, o problema é que nenhum homem tentou imaginar a saída desta. Valeu!!! Pedro Henrique – mar2010

07- =D Adorei essa história!!! Parabéns… o desfecho foi muito interessante. Agradeço pela possibilidade de tê-la lido. Mas… Já acabou… =(. Luciana R – abr2010

08- Achei legal o desfecho. Que pena que acabou! Karla – abr2010

09- Adorei! Aplausossssssssssss….. Gostei tanto que fiquei triste por ter acabado, hauhauahau… Parabéns Kelmer. Quero mais histórias assim. ;D Até a próxima! ;* Ingrid – abr2010

10- É até boa, mas muito brusco o fim, o que a torna sem um bom desfecho. Mariana – abr2010

11- Faltaram os créditos para a imagem da pintura usada neste artigo. O autor é o pintor peruano Boris Vallejo. Silveira Neto – abr2010

12- Muito boa a história, acompanhei-a e gostei muito. Até que enfim o Agenor teve coragem. Eu já estava angustiado com a timidez dele. Francisco Edvar – abr2010

13- ACOMPANHEI E GOSTEI DE TODA A HISTÓRIA,PORÉM O FINAL FICOU UM TANTO INCOMPLETO,HAVERÁ CONTINUAÇÃO? Dokho– abr2010

14- eita historia mais envolvente rapaz,cada capitulo era uma viagem,parabens para o escritor que deleitor dentro dos sonhos de muitos homens timidos q desejam serem desejados. Espero outras historias exoticas. Kildery – abr2010

15- Esse cigarrinho era bem docinho, hein? rs. Christiane – mai2010

16- Essa história é genial (O último homem do mundo). Recomendo. Vale muito a pena ler. Marcelo Gavini, São Paulo-SP – jun2010

 


A fantástica loja de ideias

24/12/2008

24dez2008.

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a.

Este conto integra o livro Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha, de Ricardo Kelmer

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A FANTÁSTICA LOJA DE IDEIAS

Projetor 3D, supositório para disfarçar peido, máquina de sexo virtual com personalidades… Todas aquelas ideias geniais que se têm quando se está doidão são vendidas nessa loja

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(TEXTO TRANSCRITO DA GRAVAÇÃO do programa Canabistrô, exibido no dia 26/08/2005, pelo site Terramestra)

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– Bom dia, queridos amigos telespectadores do Canabistrô, seu melhor programa de viagem! Eu sou Bia Voyage e hoje vamos apresentar pra vocês aquela matéria que havíamos prometido na semana passada, a loja de ideias Ki Lombra, na praia de Canoa Quebrada. Uma das sócias da loja, a Lulu, recebeu nossa reportagem com muita simpatia, e a matéria taí no ponto pra vocês verem, tá sensacional, vocês não vão acreditar nas ideias dos malucos. Mas antes vamos às mensagens dos nossos patrocinadores lindos.

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Entra comercial da revista Lucidez Total. Matérias e reportagens do mês. Gatinha Canabis. Maconha e autoconhecimento. As mil e uma utilidades da planta para a indústria. Entrevista com o Deputado Federal Fernando Gabeira.

Entra comercial do colírio HOMO TOTAL, para usuários gays. Um rapaz aborda outro no balcão do bar e diz que seus olhos são muito bonitos para ficarem vermelhos e irritados daquele jeito. Ele puxa do bolso um colírio, oferece, o outro pinga uma gotinha em cada olho e, quando devolve, seus olhos já estão brancos. Áudio: HOMO TOTAL, colírio pra quem entende…

Entra comercial da maconha MARLEY. Uma garota assiste a um filme no cinema, viajando bastante. Uma outra, atrás dela, cochila. A garota vibra com as cenas e a de trás só cochila. No fim do filme, as duas saem, uma satisfeita e a outra sonolenta. Áudio: Maconha MARLEY, a diferença tá na cara.

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– Oi, gente, estamos de volta com o Canabistrô, eu sou Bia Voyage e você é uma pessoa que tá aí na sua e deseja se antenar com as novidades do mundo hemp, não é, trocar ideias com a gente, conhecer pessoas e se informar a respeito da canabis. Não é isso? Isso. Porque usuário consciente faz a diferença. Agora vamos ver, vamos ver, quem acertou a pergunta da semana passada. Qual é a dose mortal de canabis? Vamos ver, abre o envelope aqui, isso… Resposta: cinco quilos jogados do 20o andar de um prédio. Acertou! O felizardo da semana mora em… Cabrobó, olha só, em Pernambuco. Um beijão pra moçada de Cabrobó que tá de olho no nosso programa. Mas não é um felizardo, é uma felizarda. Beleza. Você sabe que aqui no programa a gente não lê o nome completo, só as iniciais. Então lá vai: A, M, O, S. Fica ligada, A-M-O-S,  que a produção vai entrar em contato. Você, sua sortuda, vai receber em casa nosso kit Canabistrô completo, com camiseta, óculos, CD do programa, uma caixa de sedas Sedosa, maquininha, debulhador, marica e um exemplar da revista Lucidez Total. Parabéns. Solta o primeiro clipe aí enquanto eu vou despachar essa encomenda no correio. Volto já, moçada.

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Entra o clipe da música Libera a Pamonha, da banda Intocáveis Putz Band.

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– Bacana esse clipe, heim? Recebemos esta semana, é novinho. Se você gostou, ligue agora mesmo ou acesse nosso site, esse que taí no vídeo, e concorra a um CD da Intocáveis Putz Band, essa banda virtual mucho loca, que por sinal tem um baixista gatíssimo, vocês viram? Eu vi, não vou mentir. Mas vamos deixar de galinhagem que meu diretor já tá me olhando feio aqui. Libera a matéria com a Lulu. Libera o produto!

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Entra matéria sobre a loja Ki Lombra.

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– Olha só, gente… Eu sou Bia Voyage, pro programa Canabistrô, e você vai conhecer agora uma loja louquíssima que existe aqui em Canoa Quebrada, essa praia maravilhosa do Ceará. É a loja Ki Lombra. Sabe o que ela vende? Ideias! Ideias de todo tipo, mas de preferência, ideias malucas. As proprietárias são duas senhoras, a Lulu e a Ely. Um dia, elas vieram passar um fim de semana aqui em Canoa Quebrada, se apaixonaram pelo local e decidiram ficar. Aí tiveram a ideia de montar uma lojinha pra vender as ideias que o povo tem quando tá doidão. Começaram devagarinho, uma ideia aqui, outra ali, aí começou a aparecer gente interessada, artista, escritor, músico, gente de todo tipo interessada em ideias novas, ideias malucas, coisa diferente. A notícia se espalhou e hoje, além das próprias ideias, elas também vendem ideias dos outros. A maluqueira fuma, olha só, viaja nas ideias e depois vem aqui e vende pra elas. Não foi uma sacação genial? Tão genial que copiaram e aqui em Canoa já tem mais três lojas parecidas com esta. A Ki Lombra é a mais antiga e a mais famosa, certamente pela qualidade dos produtos. Mas também pela simpatia das donas, vocês vão ver. Olha só, A Lulu é essa aqui. Passa o dia de biquíni, o tempo todo de alto astral. Faz tempo que a senhora tem esse negócio, dona Lulu?

– Pode tirar o “dona”, viu, minha filha.

– Ah, me desculpe, eu esqueci. Faz tempo que vocês têm esse negócio, Lulu?

– Cinco anos.

– Dá pra faturar uma graninha com ideia maluca?

– Dá pra tirar a da cerveja, não tenho do que reclamar não.

– E sua sócia, a Ely?

– Ely tá viajando.

– Em que sentido?

– Eheheh. Tá cuidando da abertura de uma franquia da Ki Lombra em Piripiri.

– Em Piripiri? No Piauí?

– Lá mesmo. O povo lá é chegado numas ideias…

– E quantas franquias vocês têm?

– Deixa eu ver… Piripiri, Olinda, Jericoacoara, Jurerê, e mês passado inaugurou uma em Ipanema. Mas a gente tem um bocado de propostas, de vários países. Tamo estudando.

– Como que vocês fazem? O maluco ou a maluca vem aqui, conta a viagem…

– Isso aí, conta a viagem. A gente escuta. Se servir, a gente compra.

– Se for maluca demais, vocês dispensam?

– Aí é que eu compro mesmo, minha filha. As que vendem mais são essas, eheheh.

– E a clientela, é boa?

– De primeira vinha aqui só músico, escritor, pessoal que trabalha com cinema, televisão. Depois passou a vir outras pessoas. Até político já veio.

– Político?

– É. Porque tem maluco que tem umas ideias que serve pra política, umas ideias boas de se aproveitar.

– Tem alguma aí pra gente ver?

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– Tinha muita. Mas hoje eu não vendo mais ideia pra político não. Quando eu vejo que é dessa raça, não vendo. Porque é tudo um bando de aproveitador, tudo nojento. Sabe aquela ideia do imposto único, pra substituir todos os impostos, um por cento sobre cada cheque? Foi uma moça que me vendeu, ideia boa. Aí veio um deputado aí, olhou, gostou e comprou. Pra quê? Pra transformar nesse imposto aí sobre movimentação financeira. Olha a ironia: o que era pra acabar com essa enormidade de imposto que tem aí, acabou virando mais um imposto. Por isso que pra político eu não vendo.

– Dá pra ver que a Lulu não gosta de político, né? Mas vamos ver o que tem mais… Isso aqui, o que é?

– Isso foi um menino que deixou semana passada. É um Flatex.

– Parece um apito.

– É um supositório pra quem sofre de flatulência crônica.

– Mas que coisa! Não acredito! Verdade, Lulu? Mostra aqui, Ferdinando, mostra aqui pertinho.

– E o preço tá bom, cinquenta pilas, eheheh.

– Quer dizer que com isso o pum fica retido. Mas que coisa, olha só, gente… Mas e se o pum chega aqui, vê que não tem saída… não periga ele pegar outro caminho e escapulir pela boca? É pior, não?

– Não, minha filha, fica retido não. O flato passa por essa frestazinha aí, ó, e libera uma fragrância bem suave. Tem Patchuli e Flores do Campo. Tinha um de Coisa Queimando, mas levaram ontem.

– Coisa Queimando? E alguém se interessou por uma fragrância dessa?

– É dos que mais vende. Porque disfarça bem, fica todo mundo preocupado, procurando o que é que tá queimando…

– Ahhh, é verdade. Olha só, mas que ideia maluca…

– Quer levar um Flores do Campo pra você? Cortesia.

– Tá me chamando de peidona, Lulu?

‒ É sempre bom estar prevenida, minha filha.

‒ A senhora tem razão. Muito obrigado. Mas esse Flatex serve também praqueles puns barulhentos?

– Arrá! Pra esses é que existe o Flatex Som. Tem Pássaros, Buzina, Freio, Celular…

– Flatex Som… Não acredito. A pessoa solta um pum, o ambiente fica perfumado, toca uma musiquinha e ninguém percebe. Que voyage… Que mais que tem por aqui, Lulu?

– Tem Noves-Fora de Placa de Carro.

– Ah, esse é manjado. Já vi nos seus concorrentes, não é só você quem tem.

– Mas esse é diferente, minha filha, esse é diferente… Olha aqui, parece um Noves-Fora de Placa comum, igual a esses que tem por aí, né? Mas esse tem um detalhe que os outros não têm: é Noves-Fora + Palavra.

– Palavra?

– Sim, você olha a placa do carro e, além de tirar o noves-fora, ainda tem que dizer a primeira palavra ou frase que vier à mente com as iniciais da placa. É mais difícil, só pra iniciados. Foi a Ely quem inventou, nesse dia ela tava inspirada. Olha esta aqui. ABE 9473. Qual é o noves-fora de 9473?

– Deixa eu calcular… Cinco.

– Isso. E o que lhe vem à mente com ABE?

– Com ABE? Humm, deixa eu ver…

– Não, não pode pensar. Tem que dizer a primeira ideia que vier, mesmo que não seja nada diretamente relacionado a ABE.

– Abacate.

– Abacate cinco, entendeu?

– Ahhh…

– Ou então Abelha, A Bela e a Fera, A Bunda da Ely, Associação Brasileira de Estranhos… O que vier.

– Nossa, mas o maluco tem de ser fera pra tirar o noves-fora e ainda pensar numa palavra…

– Com o tempo, pega prática. Quem compra muito é ator, pra exercitar o improviso. Mas também é muito bom praqueles momentos em que você tá preso no trânsito.

– Ah, é. Só maluco mesmo… Epa, isso aqui eu não conheço.

– Chegou sexta-feira. É um pacote de inventos do futuro. Tem três inventos aí.

– Isso parece um projetor de slides.

– É um Holocine, um projetor holográfico com som. Exibe imagens em 360 graus. Filme, show, qualquer coisa. Em vez de você assistir ao último show da Kátia Freitas numa tevê ou num telão, você liga o Holocine e se sente no próprio local do show, como se a Kátia realmente estivesse cantando bem à sua frente, como se você estivesse num camarote de frente pro palco.

– Que interessante…

– E pode ser visto de qualquer lugar, a imagem se ajusta automaticamente ao ângulo de visão.

– Gente, o futuro já chegou! E essa cabine aqui?

– É o CelebriSex. Sexo virtual com pessoas famosas. Você escolhe se hoje quer transar com a Sabrina Sato ou com a Angelina Jolie. Então você entra na cabine, senta, conecta os sensores na pele, põe o visor 3D e escolhe a pessoa aqui no painel. Sua estrela preferida vai surgir na tela.

– Que maravilha! Mas sente mesmo, quer dizer, a sensação é a mesma do sexo no mundo real?

– Igualzinha. Quer experimentar?

– Eu? Agora? Bem… Agora tô trabalhando, né, Lulu? Vamos deixar pra depois da gravação…

– Combinado. Ah, e você também escolhe o cenário. E tem a opção de bebidas, um baseado, o que você quiser pra incrementar o lance. Por exemplo: eu quero transar com o Kelmer no alto do Pão de Açúcar, tomando um vinho francês, escutando Sade.

– Quem é Kelmer?

– Ricardo Kelmer, é um escritor muito doido. Foi ele quem criou o CelebriSex. Olha ele aqui.

– É esse? Hummm… Mais ou menos. Quais os outros homens disponíveis aí?

– Tem vários. O Fábio Jr. sempre sai bem. Tem os globais, aquele povo de Hollywood, jogador de futebol. Tem até o pessoal aqui de Canoa. Tem também aquele baixista da Intocáveis Putz Band, o Emílio. Agora que ele casou, aumentou a procura.

– Gente! Minhas amigas vão ficar loucas! Tá vendo, né, Isabella? Tá vendo, né, Cris?

– Na nova versão do CelebriSex você pode escolher mais de uma pessoa, dá pra fazer ménage à trois. A nova cabine é bem espaçosa, ou seja, vai dar pra fazer swing, olha que maravilha!

– Tô passada…

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– Ah, isso aqui também é muito legal. É um teletransportador instantâneo de moléculas, última geração, que transporta organismos vivos. O nome é TeleZapt. Você senta aqui, se conecta e puff!, é transportado pra qualquer lugar do mundo em um segundo. Com o TeleZapt você pode estudar em Londres de manhã, passear na Lagoa à tarde, e à noite dar um pulinho em Belém pra ver aquele seu namorado gostoso.

– Genial. Não precisa de passaporte?

– Que passaporte que nada! O TeleZapt chegou pra acabar com essa história de país, de soberania nacional. Todo mundo é livre pra ir aonde quiser. Minha pátria é o planeta, minha filha!

– É isso aí, Lulu! E isso aqui, é uma festa?

– É um festão. Aqui vem muito produtor comprar ideia pra festa. Essa aí, por exemplo, é um cassino-cabaré e os convidados se vestem a caráter: putas, madames, magnatas, políticos, marinheiros, garçonetes… A festa acontece numa mansão e os convidados chegam em limusines com chofer, são recebidos sob luzes de holofotes e conduzidos até o salão. Olha as máquinas de jogo, a roleta, os crupiês, a decoração da casa, tudo como se fosse um grande cassino. O nome da festa é Cabaré Soçaite. Tá vendo aquele piano ali no palco? É pro clímax da festa, um show com o Eduardo Dusek e a Karine Alexandrino. Festa boa.

– Festaça! Essa eu não perderia. Ninguém se interessou por ela?

– Todo mundo se interessa, mas a produção da festa é cara. Mas tem festa mais barata, esta aqui, por exemplo. Também é uma festa à fantasia, só que as pessoas se vestem com traje típico de algum país. Chama-se Planeta Show. Tem uma banda tocando músicas de vários países e barraquinhas com comidas típicas.

– Interessante. Acho que eu iria de dançarina espanhola. E isso aqui? “Transbordo”?

– É sugestão pra nome de transportadora, eheheh. Bom nome, não?

– Olha aí, quem estiver montando uma transportadora, passa aqui na Ki Lombra e pega um nome bom pro seu negócio. Transbordo, sua carga com segurança.

– Tem outras sugestões. Nome pra bar: Sarjeta, Mulheres Bahr, Bar Canal, Di Sempre, Barbossa, Cogumelo, Barembar, Baratoa, Glub-Glub, Tremilik… Nome pra banda: Orrori Zadus, Calígulas de Notre Dame, Os Desce-Mais, Rap Hour, Funk Tutti, Falsos Fósseis, Mulgasmos Órtiplos. Nome pra torcida organizada do Santos: Santo Suor & Cerveja. Do Fluminense: Fluminante. Nome pra motel: Dê Lírios, Amantes & Depois. Nome pra doceria: Papel de Bombom. Nome pra show de strip-tease masculino: Homens de Perto.

– E isso aqui? Cu Frito?

– É nome pra petisco de boteco. Anéis de lula na chapa.

– Ahahah! Adorei.

– Tem nome pra tudo, é só escolher.

– Isso aqui o que é? Campanha publicitária de lingerie?

– Exatamente. Uma moça deixou aí essa semana. Mas já tá vendida, um publicitário vem pegar amanhã. O mote é “Porque de repente tudo pode acontecer.”

– E pode mesmo. Aqui, Lulu, e este labirinto aqui?

– Ah, isso aí é um processador de ideias. Funciona assim, deixa eu mostrar. Você pega as ideias que você tem e joga dentro do labirinto por esse buraquinho aqui. Depois balança assim. O que é que vai acontecer? As ideias vão tentar encontrar a saída, claro. Nessa tentativa, muitas vão se encontrar pelos corredores, tá vendo? Olha só o que acontece quando elas se encontram… Uma se junta com a outra e forma uma nova ideia, tá vendo?

– Gente, que voyage… Será que é isso que acontece com as ideias na cabeça da gente?

– Chega um momento em que uma delas encontra a saída. Quando ela encontrar, você apanha rápido senão ela escapole. É sempre bom pra resolver aqueles problemas que parece que não têm solução, sabe?

– Tô passada… Mas olha, é tanta coisa aqui que um programa só não vê nem um por cento. Bem, pra terminar, Lulu, tem alguma ideia que você gostaria de mostrar pra gente?

– Tem essa aqui que chegou hoje de manhã. É o site do Grande Braulito. O Grande Braulito é o espírito da canabis, ele tá em todas as maconhas que são fumadas pelo mundo. Você fuma um e acessa o site do Grande Braulito. Você vai entrar numa viagem especial, com sensores conectados ao seu corpo, e aí você pode viajar pelos grandes momentos da História.

– Ah, é? Quais momentos, por exemplo?

– Você pode sentir o que Einstein sentiu quando criou a teoria da relatividade, o instante em que Vinícius e Tom viram a Helô Pinheiro passar e criaram Garota de Ipanema… Tem também umas lombras tortas, como o momento em que o piloto largou a bomba atômica em Hiroshima e em Nagasaki. Essa viagem eu não aconselho, pois todos os que experimentaram, ficaram pirados de verdade.

– Essa eu não quero.

– Tem a primeira transa da rainha Cleópatra, o milésimo gol do Pelé, o momento em que os índios viram as caravelas de Cabral chegando…

– Olha que coisa… Infelizmente nosso tempo tá no fim. É isso aí, gente. Você conheceu a Ki Lombra, loja de ideias da Lulu e da Ely, e pôde conferir o que tem de ideia maluca nesse mundo hemp, não é? A gente volta pro estúdio e na próxima semana tem mais. Valeu. Manda um tchauzinho aí, Lulu…

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Entra bloco de anunciantes.

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– E aí, Lulu, aquela proposta tá de pé?

– Claro. Quer experimentar agora? Pega essa ficha.

– Oba. Segura aqui o microfone, Ferdinando. Não vai gravar isso, heim?

– Entra aí na cabine. Isso. Senta aí. Agora escolhe no painel quem você quer.

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– Hummm… Quero o Tom Cruise, cadê ele? Ah, taqui. Hummm, vou comer o Tom Cruise… Quero essa aqui também.

– A Luana Piovani?

– Acho ela ótima.

– Hummm… Um baião-de-três, né?

– Pode ser?

– Claro. Você é quem manda. Agora bota esses sensores. Isso. Onde que vai ser?

– Hummm… Essa opção aqui, no quarto do Tom.

– Escutando o quê?

– Ai, tô um pouco nervosa… Deixa ver… Bota Chico.

– Chico Buarque, pronto. Tomando o quê?

– Tem uísque?

– Tem. Vai unzinho também?

– Lógico!

– Unzinho, pronto. Põe o visor. Assim. Isso. Tá vendo direitinho?

– Uau, é perfeito! Superreal!!!

– A Luana já apareceu?

– Ainda não. Ops… ela tá chegando.

– Oi, Bia. Tudo bem?

– Ahnn… Oi, Luana…

– Você queria me conhecer?

– Queria… quer dizer… quero.

– Tô aqui.

– …

– É a tua primeira vez, Bia?

– É.

– Relaxa, vai ser ótimo. Vamos fumar um?

– Nada mal…

– Tira o sapato. Pega essa almofada aí, fica à vontade…

– Nossa, quanto livro! Não sabia que o Tom gostava tanto de ler. Cadê ele?

– Toma, pode fumar na boa. Esse é ótimo pra transar.

– Obrigado. Ahnn… Luana, desculpa perguntar… Você já transou com o Tom Cruise?

– Não. Posso soltar teu cabelo?

– Pode. Hummm… Esse fumo é mesmo bom…

– Tá mais relaxada?

– Tô ótima.

– Que bom. Deixa eu servir teu uísque.

– Você é tão doce… Eu tinha a impressão que você… era meio antipática.

– Às vezes esse negócio de ser famosa enche o saco. Aqui é bom porque todo mundo é verdadeiro, é o que é, não tem falsidade.

– Você é muito solicitada no CelebriSex?

– Sou. Mas se eu não quiser, posso negar. Conheço o programador.

– Conhece? Olha só, que privilégio…

– Quantas pedras?

– Heim?

– Quantas pedras. No uísque.

– Ahahahah! Entendi outra coisa. Duas tá bom. Aliás, quanto tempo a gente tem?

– Se tua ficha for simples, vinte minutos.

– Só? Não dá pra nada!

– Você se incomoda se eu tirar a roupa?

– Você?… Não, claro que não…

– Quer que eu tire a tua também?

– Ahnn… Agora não, deixa ele chegar primeiro.

– Ele tá chegando…

– Oi, Bia.

– Quem é você? E o que é que você tá fazendo na minha viagem?

– Eu sou o Kelmer.

– O escritor? O que criou o CelebriSex?

– Eu mesmo. Vamos escutar Chico Buarque? Boa pedida. Deixa eu ligar o som.

– Peraí, cadê o Tom Cruise?

– O Tom tá ocupadão. Pediu pra eu substituir.

– Como assim?

– Ele é muito requisitado no CelebriSex, não pode atender a todos os pedidos.

– Eu pedi uma transa com ele e não com você.

– Eu sei. Mas ele não pode vir. Qual disco do Chico você prefere?

– Esse aí tá bom.

– Ei, cadê meu beijo, Rica? Tava com saudade. Hummm… Ah, agora sim.

– Vocês… Você já conhecia ele, Luana?

– A gente sempre se encontra aqui no CelebriSex. Né, Rica?

– É. O uísque tá bom, Bia? Se você quiser outra bebida, é só pedir.

– Não sei…

– Quer comer alguma coisa? Tem um sushi muito bom.

– Chega aqui, Bia, deixa eu te dizer uma coisa. Sabia que no outro aposento tem uma piscina incrível, com água quente, holocine com show dos Doors…

– Quanto tempo já passou, Luana?

– Não te preocupa. O Rica liberou nosso tempo.

– E se eu quiser ir embora agora?

– É só sair por aquela porta.

– Você quer ir embora, Bia?

– Ahnn… Deixa eu dar mais um tapinha que eu decido…

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Ricardo Kelmer 2004 – blogdokelmer.com

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BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04aEste conto integra o livro
Baseado Nisso
– Liberando o bom humor da maconha

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Minhoca na cabeça

24/12/2008

24dez2008

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a.

Este conto integra o livro Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha, de Ricardo Kelmer

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MINHOCA NA CABEÇA

Quando o jovem escritor fuma, minhocas saem de sua cabeça. É mais um caso do além para Javier Viegas resolver

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USADOS E ABUSADOS. Ivan conferiu a placa na fachada da loja de usados e entrou. A moça no balcão o cumprimentou.

– Boa tarde. Posso ajudar?

– É aqui a loja do Javier?

– Sim, Javier Viegas. No momento ele está atendendo, mas deve desocupar em quinze minutos. Aguarde um pouco, por favor.

Ivan sentou-se no sofá e pegou uma revista para folhear. Logo depois estava entretido numa matéria sobre extraterrestres que raptam pessoas para implantar chips em seus cérebros e depois as devolvem à Terra e elas só conseguem recordar o que se passou em sessões de hipnose. Foi quando o homem apareceu, saindo da salinha ao lado, acompanhado de uma senhora de quem se despediu.

– Até logo, dona Iracema. Não esqueça de acender a vela hoje, heim? Vela amarela, virgem, de sete dias.

O homem virou-se para Ivan:

– Boa tarde, o moço está me aguardando?

Ivan reparou na figura: moreno, barrigudinho, meio calvo, cabelo preto, provavelmente com tintura, numa trança única que descia até o meio das costas. Devia ter seus cinquenta anos. Um sotaque espanhol e uns trejeitos afeminados.

– Vi seu anúncio no jornal.

– Ah, entre, entre, por favor. Aceita um licorzito de manga? Ana Isaura, traz dois pra gente, traz.

Era uma sala decorada com coisas antigas, quadros, candelabros, móveis rústicos. Javier lhe ofereceu uma cadeira em frente à mesa e sentou-se na sua, do outro lado, brincando com a longa trança sobre o peito.

– Prazer. Javier Viegas. Tarô e outros babados.

– Prazer, Ivan.

– Ivan, el terrible, ui… Mas diga, meu filho, a que devo o prazer de receber olhos tão bonitos? – E cantarolou: – Lindo, e eu me sinto enfeitiçada, iééé…

– É o seguinte, seo Javier…

– Seo, não. Assim eu não atendo. Pode levantar e ir embora ‒ falou Javier, fingindo estar magoado.

– Desculpe. Javier. Bem, Javier, é uma coisa assim meio… esquisita.

– Mi querido, já vi tanta coisa esquisita neste mundo que não me assusto com mais nada. Olha seu licorzito aí. É caseiro, viu?

Ivan recebeu o cálice que a atendente lhe oferecia. Levou-o à boca, mas foi interrompido por Javier.

– Menino, que heresia! Não vai brindar?

– Ah, claro, claro…

Javier ergueu o cálice e fechou os olhos, concentrado, em silêncio. Ivan esperou que ele concluísse seu ritual, talvez fosse algo esotérico, melhor acompanhar. Fechou os olhos, respirou fundo e escutou:

– Beber sem brindar, dez anos sem pimbar… Brindar sem ver, dez anos sem foder…

Ivan abriu os olhos, surpreso. Javier bebia seu licor, compenetrado, os olhos fechados. Que diabo de sujeito era aquele?

– Muito bom o licor, obrigado – disse Ivan, após provar da bebida.

– Minha mamacita quem faz. Dona Carmela. Todo mês me manda um vidrão assim. Esse é de manga, que é muy bueno, mas tem um de café que você não crê. Aliás, estou procurando um sócio, esses licores de mamãe podem deixar qualquer um milionário. Você não estaria interessado?

– Não obrigado, não gosto de comércio.

– Depois não diga que eu não avisei. Mas fale, conte seu problema.

– Bem, eu… O senhor, digo, você fuma? – Ivan fez o gesto de quem fuma um baseado.

– Marijuana? Não no primeiro encontro – respondeu Javier, rindo. Ivan riu sem jeito. – Não é minha viagem predileta, mas de vez em quando dou meus tapinhas pra ir ver o Almodovar.

– Bem, eu fumo. Quer dizer, fumava. Deixei exatamente porque começou a acontecer uma coisa estranha…

– Hummm, está melhorando. A-do-ro cositas estranhas.

Ivan olhou para a porta, desconfiado.

– Está fechada, menino, fique tranquilo. Fora duas entidades aqui atrás… – e apontou com a ponta da trança por sobre o ombro – aqui nesta sala só tem eu e você, você e eu. Juntinhos. Tim Maia era ótimo, não?

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– Ah, sim. Era sim. – Ivan pigarreou. E prosseguiu. – Você vê espíritos, Javier?

– Desde que eu era niño de teta. Mas diga, que coisa estranha é essa que lhe acontece?

– Ultimamente, quando eu fumo um baseado, começam a sair minhocas da minha cabeça.

– Minhocas?

– Isso.

– Saem minhocas de dentro da sua cabeça?

– Exatamente. Minhocas. Saem pelas orelhas.

Ivan aguardou enquanto Javier o observava.

– Faz tempo que você fuma marijuana?

– Desde os dezoito. Tô com trinta e quatro.

– Fuma todo dia?

– Geralmente, quando vou escrever. Duas, três vezes por semana. Sou escritor.

– Ah, é escritor? Que bueno receber um escritor em minha sala. Ainda mais um escritor cheio de lombrices na cabeça…

– É sério, Javier. Não é viagem não, é verdade. Olhe, eu trouxe uma aqui pra você ver.

Ivan tirou do bolso da camisa um saquinho de plástico e o estendeu sobre a mesa. Mas Javier o interrompeu.

– Não, não, gracias. Eu acredito em você.

– Pode pegar. É inofensiva.

– Não preciso pegar em sua minhoca pra saber que ela existe, criatura, estou vendo.

– E então? O que você acha?

– Já procurou um médico?

– Nunca falei pra ninguém. Quem ia acreditar?

– Então vamos ter que ver esse babado de perto. Quinta-feira, oito da noite. Tá bom pra você?

– Tá bom.

– Então me espere que eu apareço.

– E quanto vai cobrar?

– Pelo quê?

– Sei lá. Você vai fazer alguma coisa, não vai?

– Bueno, eu cobraria esses seus olhos. Botaria eles numa moldura pra eles ficarem mirando a mim todo dia. Mas como eu sei que você não me daria, então vou cobrar só o preço de custo.

– E quanto é?

– Milzito.

– Mil reais?

– Caro, é?

– Bem que me disseram que você é careiro.

– Careiro é quem cobra caro e não resolve. Eu resolvo.

– Eu não tenho esse dinheiro todo.

– Posso facilitar.

– Não dá pra deixar por cem?

– Cem? Ai, meu são Sebastião flechado… Setecentos.

– Cento e cinquenta.

– Meu filho, sabe quanto me custou esse livro aí que você está com o cotovelito em cima? Cinco mil reais. Mandei buscar em Damasco, veio na corcova de um camelo, protegido por uma caravana de tuaregs barbudos, pegou barco, avião… É um livro sobre como criar demônios em garrafa.

– Você cria demônios?

– Eu não. Mas conheço gente que cria e estou aprendendo a fazer umas garrafitas maravilhosas pros bichinhos morarem com mais dignidade. Sabe a Jeannie É Um Gênio? Pois é daquele modelito, com sofazinho, cortininha… Demônio também é gente.

Ivan coçou a cabeça, pensando se não fora uma péssima ideia ir ali.

– Muito bem. Quinhentos e não se fala mais nisso.

– Duzentos.

– Quatrocentos.

– Duzentos e cinquenta.

– Trezentos, e acabou. Metade agora que estou com o aluguel atrasado. A outra metade no dia.

– Ah, agora eu não tenho. Não dá mesmo pra pagar na quinta-feira?

– Ai, pelas sete pétalas! Está certo, criatura. Mas não diga a ninguém que fiz por esse preço, sim? Minha reputação iria pelo ralo do esgoto…

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BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04aNA QUINTA-FEIRA, A CAMPAINHA do apartamento de Ivan tocou e ele abriu a porta.

– Preparado? – Javier disse, alisando a longa trança que passava pelo ombro e caía sobre o peito. Vestia calça e camisão, tudo branco.

– Só um pouco nervoso… Vamos entrando. Que elegância, heim?

– Gostou? Comprei especialmente pra esta ocasião. Tinha que ser uma roupa que nunca foi usada. Humm, Karine Alexandrino… – Javier pegou um CD sobre o aparelho de som. – Mas não é que o bofe tem bom gosto? Adoro essa perua. Dizem que é homem operado, mas eu não acredito.

– Quer escutar?

– Em outra ocasião. Vamos logo ao que interessa. Menino, mas que buena vista que você tem desta janela. Pra empurrar cobrador é uma beleza. Cadê o baseadito?

– Aqui. Você fuma também?

– Desta vez não. Anda, senta aqui do meu lado e acende logo.

Ivan acendeu o baseado e começou a fumar. Javier observava atento, sentado ao lado no sofá.

– Não tem problema com os vizinhos?

– Que nada. Nesse prédio só tem maconheiro.

Ivan deu mais algumas tragadas, apagou e guardou a guimba numa caixinha de alumínio.

– Olha aí, já tá começando… – falou Ivan, apontando para a orelha direita.

Javier se aproximou e pôde ver perfeitamente: alguma coisa surgiu à entrada do ouvido. Depois foi saindo, saindo e era mesmo uma minhoca, uma pequena minhoca que deslizou um pouco mais para fora, balançou-se e caiu sobre o ombro do rapaz.

– Pelas pantufas do niño Jesus… Que coisa…

– Pode pegar, não morde.

– Não, gracias, minha religião não permite.

– Olha, já tá vindo outra…

Javier viu outra minhoca surgir à entrada do ouvido. Essa também deslizou, balançou um pouco e caiu.

– Tá saindo outra! – Javier gritou. – É a invasão das minhocas… E pelo outro ouvido, não sai?

– Sai. Tá saindo agora, olhaí.

– Que coisa loca. Me diga, quantas saem?

– Ah, depende. Às vezes sai uma só, outras vezes duas, três, cinco. Uma vez saíram nove, quase fiquei doido.

– O que você faz com elas?

– O que eu faço? Jogo fora, claro.

Javier fechou os olhos e apoiou-se com as costas na parede. Respirou profundamente, uma, duas, três vezes. Depois murmurou algo ininteligível por alguns segundos e, por fim, abriu os olhos. Afastou-se da parede e falou calmamente:

– Pois desta vez vamos fazer diferente. Já saiu tudo?

– Acho que sim.

– Então junta num papel e traz aqui – Javier foi à cozinha e abriu a geladeira. – Tem cebola?

– Cebola?

– É. Cebola. Aquela cosita arredondada, com casquinha, que faz chorar…

– Não tô entendendo…

– Claro que não está. Se estivesse entendendo não teria de me pagar quatrocentos reais.

– Trezentos.

– Não foi quatrocentos?

– Não, foi trezentos.

– Então anda, vem cá, me ajuda a cortar. Este tomate também vai.

– Minhoca não come tomate, Javier.

– Quem disse que elas vão comer alguma coisa? Onde está a frigideira, é aqui embaixo? Ah, aqui está. Tem manteiga?

– Javier, você podia me explicar…

– Dá aqui as minhocas.

Ivan passou-lhe as quatro minhocas e Javier despejou-as na frigideira, junto com pedaços picados de tomate e cebola.

– Javier, você não tá pensando…

– Um temperozinho…

Enquanto Javier fritava e temperava as minhocas, Ivan observava sem acreditar.

– Javier, você por acaso…

– Creio que já está bueno. Tem farinha? Tem, ótimo. Vamos botar um poquito, mexer… Onde estão os pires? Creio que um azeite vai bem. Pronto, você come essas duas aí e eu como essas duas aqui.

– Eu?!

– É riquíssimo em proteína, sabia? Na China o povo faz fila pra comer.

– Eu não sou chinês.

– Mas é um escritor que me contratou pra desvendar o mistério das lombrices. Anda, aproveita que está quentinho.

Javier levou a primeira minhoca à boca e começou a mastigá-la, de olhos fechados, calmamente. Ivan olhava enojado.

– Não está tão mal, Ivan. Prova aí.

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04aIvan levou a colher à boca e mastigou uma minhoca. Quase pôs tudo para fora, mas controlou-se e engoliu.

– Ivan, tô recebendo uma mensagem pra você – Javier falou, de olhos fechados.

– Pra mim?

– Um bruxo… que mora sozinho na floresta…

– Como?

– Isso mesmo. Um bruxo. Ele mora… sozinho numa cabana, próximo de uma aldeia.

– Ele tá enviando uma mensagem pra mim?

– Uma bruxa muy bonita que mora perto… e os dois vivem brigando.

– O que é isso, Javier?

– Na verdade, os dois… são apaixonados um pelo outro. Mas não reconhecem isso.

– Sinceramente, não tô entendendo nada.

– Deixa ver essa outra minhoquita… – Javier mastigou a segunda minhoca. – Hummm… Um velhinho que é o Guardião dos Gnomos… Cruzes, é isso mesmo? Sim, é isso mesmo, Guardião dos Gnomos. Os gnomos têm o poder de encontrar pessoas… de fazer com que as pessoas se encontrem… Um dia, um rapaz o procura porque está interessado em…

– Espere um pouco, Javier – interrompeu Ivan. – Só um instante.

– Um pescador… uma bela noite… – Javier seguia falando, aparentemente em transe. – Ele encontra uma sereia e ela… diz que tem o poder de lhe dar muito dinheiro.

– Espere, Javier, que eu vou pegar uma caneta!

Ivan saiu correndo e voltou com papel e caneta.

– Aquela primeira, como era mesmo? Um bruxo e uma bruxa que vivem na floresta…

– Um fantasma… ele mora no quarto de uma pensão e… e sempre trata de expulsar os inquilinos que o alugam.

– O guardião dos gnomos… e depois… depois o quê mesmo?

– Menino, o que eu fiz? – falou Javier, de repente, abrindo os olhos.

– Comeu duas minhocas fritas. Como era mesmo a outra mensagem?

– Aaaaaaarrrrrgh!!! – gritou Javier, levando as mãos à boca e correndo para o banheiro. – Me acuda, minha cabocla Mariana do cabelo cor de telha! Argh!

– Depois foi o quê mesmo? – perguntou Ivan, indo atrás dele com a caneta e o papel. – Ah, o pescador e a sereia.

– Minhoca frita! Não creio! Traz água, por caridade!

– Já vou pegar. Depois foi o quê?

– Ah, não me recordo, criatura. Quem tem de lembrar é você. Vai pegar minha água, maligno.

– Não são mensagens, Javier, são ideias pra contos.

– Ah, é?

– E são ótimas, todas elas. Ah, lembrei! O fantasma da pensão.

– Então não deixa de ser mensagem. Deixa que eu vou pegar a água, cavalheiro.

– Puxa, não acredito! Javier, você é demais!

– Ideias pra contos, heim? Bueno, vai ver que é isso que faltava pra você ser um escritor famoso: uma dieta à base de minhoca frita.

– Puxa, Javier, nunca poderei lhe agradecer…

– Claro que pode. São trezentos reais, aqui en la mano.

– Escute, Javier, tenho uma proposta a lhe fazer. Que tal trabalharmos juntos? Você come as minhocas e me passa as mensagens. Eu serei um escritor famoso, venderei muitos livros… Nós ficaremos ricos, Javier! Você fica com dez por cento de tudo o que eu ganhar, aceita?

– Não.

– Mas, Javier, as ideias são maravilhosas, eu vou escrever ótimos contos, eles vão ser um sucesso!

– Tsc, tsc. Madre de Dios, esse gosto horrível não sai…

– Vinte por cento.

– Já disse que não me interessa. Imagina, vou virar um minhocário ambulante…

– Trinta!

– Trinta por cento? – Javier alisou a trança sobre o peito, pensativo. Fez algumas contas rápido. – E se você não ficar famoso nem nada?

– Com essas ideias? Impossível!

– Não, não interessa. É melhor eu garantir o meu agora. Escuta, por que você não come as minhocas? Afinal, é da sua cabecita que elas saem, e não da minha.

– Ah, Javier, eu não vou conseguir, é ruim demais.

– Faz parte do seu aprendizado cósmico. Vamos, eu quero meu pagamento, dá aqui na mãozinha.

– Javier, por favor, seja mais bondoso…

– Mais bondoso? Só se da próxima vez eu comer aranha…

– Desculpe, não quero ser injusto.

– Exatamente, seja justo. Eu mostrei pra você qual a utilidade dessas minhocas que saem de sua cabeça quando você fuma, e agora é muito justo que eu receba meu pagamento, que te parece?

– Então vamos deixar pelos duzentos?

– Trezentos, foi o que combinamos.

– Duzentos e cinquenta então.

– Ah, eu não creio! Está bem, me pague e me deixe ir embora comer qualquer coisa pra tirar esse gosto horrível da boca, argh…

– Vou fazer os cheques.

– Cheques?

– Você parcela, não parcela?

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BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– SEO JAVIER, DESCULPE interromper, mas é encomenda pro senhor assinar – avisou Ana Isaura, entregando um pacote.

– Só um instantito, dona Iracema… – disse Javier, interrompendo a consulta do tarô e assinando o papel. – O que deve ser? Ah, é do Ivan, aquele bofe dos olhos lindos. Livro novo…

– Quem é Ivan? – perguntou dona Iracema, sentada à sua frente na mesa.

– É aquele escritor, a senhora não conhece? Ivan Ferreti.

– Ah, sim, claro. Ele é seu amigo?

– Uns anos atrás resolvi um babado forte pra ele, entonces sempre que ele lança livro novo, manda pra mim, com dedicatória e tudo – Javier abriu o pacote e mostrou o livro, orgulhoso. – Mira que capa bonita.

– Bonita mesmo.

– Era um pé-rapado. Hoje está famoso, podre de rico. Casou dia desses com uma modelo italiana que é a cara da Anita Ekberg, até os peitos são deste tamanho. Sabe onde o bofe mora atualmente? Num castelo na França, imagina o luxo.

– Nossa, que partido… Pra mim não cai um desse.

– Ai, ai, quando eu penso naqueles trinta por cento…

– Como?

– Nada, mulher, nada. Divaguei. Mas sim, onde estávamos?

– No Enamorado.

– Ah, nessa carta aqui. Pois bem… Bueno, deixa eu ver… Humm, é um senhor alto, viu, educado, distinto… Um guapo.

– Será que é casado, Javier?

– E isso lá é problema, mulher! Se for, a gente descasa.

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Ricardo Kelmer 2000 – blogdokelmer.com

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BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04aEste conto integra o livro
Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha

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Animação no jantar

23/12/2008

23dez2008

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a.

Este conto integra o livro Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha, de Ricardo Kelmer

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ANIMAÇÃO NO JANTAR

Os pais de Maria Amélia estão impressionados com o namorado da filha, um profundo conhecedor da psicologia dos super-heróis

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– PAI, MÃE, ESSE AQUI é o Mingo.

– Boa noite, seo Erandir. Boa noite, dona Gilda.

– Boa noite, Mingo. Sente aí pra jantar.

– Obrigado.

– Gosta de sopa de feijão, Mingo?

– Gosto, dona Gilda.

– Eu sirvo pra você. Maria Amélia, pega mais pão na cozinha.

– Ô Mingo, você sempre janta de óculos escuros?

– Estou com um probleminha nos olhos, seo Erandir.

– Ah.

– Maria Amélia me disse que você está concluindo uma tese de mestrado, Mingo. É verdade?

– É, dona Gilda.

– E sobre o que é mesmo?

– Personagens de gibis e desenho animado.

– Gente, que interessante.

– Pois é, mãe, o Mingo é um grande estudioso da psicologia dos super-heróis.

– Que bom.

– Quer mais pão, Mingo?

– Aceito.

– No meu tempo os desenhos eram muito bons, educativos, ensinavam coisas boas às crianças. Hoje o que se vê é só porcaria. Muita violência. Muito sangue.

– Concordo com o senhor.

– Na minha opinião, o último desenho que ainda prestava era aquele dos Smurfs. Você assistia?

– Sim.

– O que você acha? Era bom, não era? O Gargamel sempre se dava mal. Isso mostrava às crianças que fazer o mal não compensa. Desenho educativo.

– Quer bolo, Mingo?

– Aceito. Na verdade, seo Erandir, o Gargamel era usuário de LSD.

– Heim?

– Usuário, sim. O senhor conhece LSD?

– Se eu conheço? Não, mas já li alguma coisa.

– Aquele LSD não era dos melhores, a gente logo via. Atente pro comportamento do Gargamel. Fica a vida inteira perseguindo uns homenzinhos azuis que vestem gorros e fraldinhas. Aprofundando mais, podemos nos perguntar: pra que ele quer tanto pegar os Smurfs?

– Ahnn… Pra comer, né?

– Justamente. O LSD de péssima qualidade potencializa as tendências pedófilas do Gargamel. Isso hoje dá cadeia, o senhor sabe. Sem falar que ele abusava psicologicamente de seu gato, um prato cheio pra sociedade protetora dos animais entrar com um processo contra a produtora do desenho, milhões de dólares.

– Eu nunca tinha pensado nesses termos.

– Tem mais bolo?

– Tem, Mingo, deixa eu servir pra você. Ah, eu gostava mais do Patolino. Ele era muito engraçado, né, Erandir?

– Eu não gostava, Gilda. Ele era muito agoniado.

– Exato, seo Erandir. O Patolino é o maior cheirador do planeta.

– Cheirador?

– Cocaína, pai. Cheirador de coca.

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– O cara é ligadão demais, seo Erandir. Não para de falar um só instante, tem uns papos muito estranhos. E sofre de mania de perseguição. É tão ligadão que consegue ficar gritando, pulando sem parar, arrancando as penas e batendo a cabeça no chão sem sentir dor.

– Gente, cocaína faz isso?

– Faz, dona Gilda. Uma vez ele cheirou tanto que travou geral.

– Travou geral?

– Exato. Foi uma travada tão violenta que o queixo dele foi bater atrás da cabeça.

– Ah, eu gostava tanto do Patolino… Gente, mas por que ninguém nunca disse que ele cheirava cocaína?

– Se dissessem, dona Gilda, os pais não deixariam seus filhos assistir.

– Viu, Gilda? Bem que eu não gostava dele.

– Ah, eu gosto. Quer dizer, depois dessa revelação, já não sei…

– E o Popeye? Aqui na rua tinha uma vizinha do outro lado da rua, a Lindalva, lembra da Lindalva, Gilda? Ela era bem magrinha. A gente chamava ela de Olívia Palito. Influência dos desenhos.

– Olívia Palito. É uma personagem inspirada em muitas mulheres que existem por aí, seo Erandir, mulheres de carne e osso.

– No caso da Lindalva, mais osso que carne.

– Exatamente, dona Gilda. Mas a Olívia é uma personagem tremendamente complexa. Foi a primeira heroína da TV a usar descaradamente anfetaminas e moderadores de apetite. Na verdade, ela é anoréxica. E ainda é evangélica.

– Evangélica?

– O senhor nunca reparou? Veja o estilo da roupa: saia abaixo do joelho, blusa fechadinha, tudo muito comportado e sem graça.

– Que coincidência! A Lindalva também era evangélica. Não era, Gilda?

– A Olívia é evangélica, seo Erandir, mas é uma evangélica piradaça, pois fica provocando o Popeye o tempo todo. Faz o coitado gastar uma fortuna tomando Viagra misturado com espinafre. Como se não bastasse, engana o cara o tempo todo com falsas promessas de casamento. E tem mais. A safada adora ser raptada e amarrada pelo Brutus. Sexo selvagem. É a famosa magrinha que aguenta o tranco…

– Isso! Exatamente!

– E o Scooby-Doo, Mingo, fala do Scooby.

– Era um cachorro muito doido. Mas mais doido era o dono.

– Como era mesmo o nome dele?

– Salsicha.

– Isso, Salsicha! Eu não gostava muito dele não. Era assim meio, meio sujo…

– O Salsicha, seo Erandir, é o suspeito número um, o maconheiro típico.

– Ele fumava maconha? Nunca reparei.

– É só ver o jeitão dele, as roupas, o cabelo, o cavanhaque… O maluco conversa altos papos com um cachorro e está sempre na maior larica, louco pra traçar um sanduba. Isso sem falar naquele furgão psicodélico: eles se trancavam pra fumar um e saíam de lá vendo fantasma pra todo lado… Mas o Salsicha tinha muita moral com os roteiristas porque mesmo com aquela bandeira toda, nunca levou uma geral dos canas. O Scooby não fumava, mas pegava toda a maresia e por isso também vivia na larica.

– Maresia?

– É a fumaça do baseado, seo Erandir.

– E o que é larica?

– É a fome que dá depois de fumar. Esse bolo tá bom mesmo… Vou pegar mais um pouquinho. Mas voltando ao Scooby. Um cachorro que come, em média, cento e vinte biscoitos por episódio só pode estar totalmente laricado.

– Que coisa… Eu nunca tinha visto por esse lado.

– Fala do Homem-Aranha, Mingo, fala.

– Ah, o Homem-Aranha eu gosto! Lembra, Gilda, que eu tinha a coleção completa? Peter Parker. Esse sim era um super-herói educativo, você não concorda? Trabalhava, cuidava da tia doente, você via que ele era muito apegado a ela.

– Apegado ao dinheirinho que ela guardava na poupança, isso sim. A velha tinha quase cem anos. Já pensou o montante da bufunfa? Um nome mais apropriado pro Homem-Aranha seria Homem-Urubu, pois ele tava ali sempre rondando a tia, esperando a velha morrer pra pegar a herança. E ainda vivia em eterno conflito por não assumir sua bissexualidade.

– O Homem-Aranha era gay?

– Claro. O senhor acha que aquele negócio de ficar soltando teinha de aranha pra lá e pra cá é coisa de homem sério? É o primeiro caso de super-herói que começa a carreira por causa de uma picadura. E o cara é azarado pra cacete: a primeira namorada, uma loiraça rica e boazuda, morreu assassinada pelo Duende Verde. O senhor sabia que Duende Verde é o nome de uma boate gay lá em Pelotas?

– Não sabia.

– Pois é, homenagem ao Homem-Aranha. Super-herói gay tem muito por aí. Tem também o…

– Não sei se quero saber de mais algum…

– Batman.

– Ah, não!

– Ah, sim, seo Erandir. Essa é a dupla homossexual mais bandeirosa do mundo dos super-heróis. O clássico exemplo do gay titio que curte garotão. O bofinho esperto, que se aproveita do coroa pra pagar a faculdade. Homem-morcego. Morcego faz o quê, seo Erandir? Sai à noite e chupa fruta. Menino-prodígio. Prodígio em quê? Isso é lá apelido que um homem sério bote no outro! E ainda tem o mordomo.

– O Alfred? Que é que tem ele?

– Aquela pouca-vergonha rolando na bat-caverna, todo santo dia… O senhor acha que o Alfred não ia saber? Claro que sabia. Se é que não participava também. Aquela cara de diretor de seminário não me engana.

– Gente… Tô muito surpresa. Como você descobriu isso tudo, Mingo?

– Pesquisando, dona Gilda, pesquisando…

– Acho que vou proibir o Cacá de assistir TV. Batman, Homem-Aranha… Tudo gay!

– Relaxa, Erandir. Nosso filho gosta é do He-Man.

– Hummm… Logo o He-Man?

– Qual o problema com o He-Man?

– Quer saber mesmo, seo Erandir?

‒ Acho que não…

‒ Gay da geração mais nova, ligada em academia, corpo malhado. Consumidor compulsivo de esteróides. Torra a grana toda com vitamina e energético. E aquele cabelinho chanel? Loira poderosa.

– Não posso acreditar…

– Acredite. O He-Man lançou o “barbie life style” na TV. Sucesso total. E aquele grito dele?

– Ah, isso eu lembro. Pelos poderes de Grayskull! Eu tenho a fooorçaaaa!!!

– Isso na tradução final do estúdio brasileiro, seo Erandir.

– Como assim?

– No original é “Pelos poderes de gay que sou! Eu dou a rosca!”

– Você tem certeza, Mingo? Será que você não se enganou?

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– Pense bem, dona Gilda, é muita bandeira. O cara mora num castelo, fica pra lá e pra cá de sunguinha e botinha, malhando o tempo todo, injetando anabolizante… Tem até um tigre de estimação. Pura fantasia selvagem de bicha louca.

– Mas se ele é gay, quem é o outro?

– Ora, quem mais seria? O Esqueleto.

– Cruz credo!

– Aquela risadinha do Esqueleto é muito aviadada, a senhora não acha não? Os dois têm um caso super-mega-mal-resolvido. O Esqueleto, coitado, não se conforma de jeito nenhum com a separação. Por isso é que fica o tempo todo bolando vingancinha, aprontando o maior barraco em público… Bicha vingativa é um horror.

– Bom, pelo menos tem a turma da Mônica pra salvar os gibis…

– Em termos, seo Erandir, em termos…

– Não vá me dizer que a Mônica e o Cebolinha…

– Os dois? Não, não, entre eles não sai nada. A Mônica é sapata, estilo caminhoneira, dá porrada em todo mundo.

– Gente, não acredito… Ah, mas pelo menos não tem droga no meio…

– Como não tem, dona Gilda? E o Rolo? Autêntico bicho-grilo dos anos 70. Barbudo, andava descalço… E o cabelo? Nunca viu um xampu na vida. O cara não trabalhava, passava o dia inteiro viajando nas ideias e tocando um violão faltando uma corda. Bastava ele acender um baseado e botar um Led na vitrola que a Tina vinha correndo dar pra ele.

– A Tina?

– Claro. Mas hoje é diferente. Ela virou hippie de butique, anda toda arrumadinha, tem namorado mauricinho e trocou o baseado por umas caipirinhas no pagode. E com essa moda aí de juntar os personagens, alguém ainda vai criar a história onde o Rolo e o Salsicha desvendam o misterioso caso do sumiço do bagulho.

– Nossa, Mingo, você deve ter pesquisado bastante. Aceita mais um café?

– Aceito. E se não for abusar, vou pegar só mais pedacinho desse bolo, tá muito gostoso.

– Ô Mingo. Não escapa ninguém nesse seu estudo? A Alice no País das Maravilhas, por exemplo. Eu não vejo nada ali de maldade…

– Alice, a ninfeta maluquete.

– Ah, não era isso não.

– Comeu sete cogumelos de uma vez só e ficou triloca, conversando com os bichos mais estranhos do pedaço e fumando um puta haxixe da Turquia num narguilê junto de uma centopeia doidona.

– Cogumelo? Haxixe?

– O haxixe deixou a ninfeta tarada: ela traçou o coelho corredor, o gato listrado, o chapeleiro maluco, e não dispensou nem as cartas de baralho. Só não traçou a rainha porque o efeito passou.

– Gente, estou decepcionada…

– Tem mais, Mingo?

– Ah, não, Erandir! Não quero ouvir mais. Minha infância foi… foi… violentada.

– Desculpe, dona Gilda. Não era minha intenção.

– A gente tem que ir, pai.

– Tá cedo, fiquem mais um pouco.

– Obrigado pelo jantar, dona Gilda. Estava ótimo.

– Apareça mais, Mingo.

– Tchau, pai. Tchau, mãe.

– Juízo, filha.

– Gostei do Mingo, Gilda. Ele deve ser muito estudioso. Só achei estranho aquele óculos escuro. E você viu como ele estava com fome? Quase acabou com o bolo.

– Erandir…

– Sim.

– O que você quis dizer com “exatamente”?

– Como assim?

– Não se faça de desentendido.

– Juro que não estou entendendo.

– Quando ele falou da Olívia Palito, você lembrou da Lindalva, nossa vizinha.

– Ué, você também lembra dela.

– O caso não é esse.

– E qual é o caso?

– Quando ele contou que a Olívia gostava de sexo selvagem com o Brutus e disse que ela era a famosa magrinha que aguentava o tranco, você disse o quê?

– Sei lá.

– Você disse “exatamente”.

– Eu disse isso?

– Disse.

– Tá, eu disse. E qual é o problema?

– Com aquele “exatamente” você quis dizer que sabe que a Lindalva também gosta de sexo selvagem.

– Eu sei disso?

– Erandir, não queira me fazer de boba. Você comeu aquela magricela sem-vergonha?

– Gilda, você está delirando…

– Estou é muito lúcida, isso sim. Você falou “exatamente” e eu sei muitíssimo bem o que você quis dizer com isso. Não queira me fazer de boba.

– Danou-se. Agora ninguém mais pode falar “exatamente”…

– Erandir, você comeu ou não comeu?

– Minha filha, você trabalhou muito hoje…

– Não me chame de minha filha!

– Tá bom, tá bom, calma…

– Comeu ou não comeu?

– Quer saber mesmo a verdade?

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– Quero.

– Quer mesmo?

– Quero!

– Não comi.

– Não acredito.

– Então não acredite.

– Se não comeu, então o que você quis dizer com “exatamente”?

– Pô, Gilda, eu sei lá o que eu quis dizer com “exatamente”! A gente fala essas coisas pra conversa prosseguir e não porque está concordando…

– Sei.

– Gilda, a gente estava falando da Olívia e não da Lindalva.

– Você estava falando da Lindalva.

– Não, era da Olívia.

– Não era.

– Gilda, de uma vez por todas: eu não comi a Olívia.

– A Lindalva.

– A Lindalva sim. A Olívia não.

– Taí! Eu sabia!!!

– Sabia o quê?

– Você comeu!

– Não comi!

– Você acabou de falar!

– Eu falei?!

– Falou sim. “Comi a Lindalva, a Olívia não.”

– Enlouqueceu? Falei o contrário: comi a Olívia, a Lindalva não. Peraí. Eu também não falei isso. O que foi que eu falei mesmo?

– Erandir, você é desprezível!

– E você me confundiu de propósito.

– Como que você teve a coragem de me trair com aquela, aquela evangélica neurótica?! Aquela tarada que dava em cima dos homens todos dessa rua em nome de Jesus Cristo! Heim? Heim?

– Gilda…

– Você pensa que eu não percebia ela olhando pra você quando você regava as plantas? E aquelas visitinhas que ela fazia pra deixar panfletinho do culto? Eu sabia!

– Gilda…

– O que é?

– Eu te amo.

– Heim?

– Eu disse que eu te amo.

– Não vem com essa!

– Amo sim.

– …

– Eu te amo demais, Gilda…

– Não ama.

– Amo e sempre amei. E nunca vou deixar de amar.

– Você está é querendo mudar de assunto.

– Sabe por quê?

– Por que o quê?

– Por que eu nunca vou deixar de te amar?

– Não.

– Porque você é a heroína dos quadrinhos da minha vida.

– Mentira.

– Verdade.

– Eu te conheço, Erandir…

– E sabe o que um homem tem vontade de fazer com a heroína dos quadrinhos da vida dele?

– Não…

– Comê-la. Todinha. Com papel e tudo.

– Besteira.

– Besteira? Olha aqui o tamanho da besteira.

– Erandir, você é louco! Bota isso pra dentro!

– Só se for pra dentro da minha heroína.

– Erandir, o Cacá…

– Cacá já está no quinto sono.

– Ahnn… eu não sei…

– Pois eu sei. Senta aqui.

– Aqui não.

– Tira esse vestido.

– Erandir, é melhor…

– Então eu tiro.

– Não. Deixa que eu tiro. Você sempre arranca os botões.

– Isso, agora vira assim, aqui na mesa.

– Erandir, olha a cafeteira da mamãe…

– Isso, assim mesmo.

– Ai, Erandir…

– Tá bom?

– Tá ótimo…

– Quer Popeye ou Brutus?

– Brutus.

– Então toma, sua safada.

– Ai! Me chama de Olívia…

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Ricardo Kelmer 1998 – blogdokelmer.com

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Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha

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01- vc e muito figura mesmo mas devo confessar que adoro “animação no jantar” não da outro Mingo!!!!!!!!!!! lembro que estava em um vôo para o Parana e conheci um rapaz e começamos a falar sobre desenhos e eu falava igualzinho o Mingo e o figura morria de rir assim como eu daí no fim pedi pra ele visitar o blog do Ricardo kelmer que a idéia não era minha kkkkkkkk mas valeu …. Fernanda Vasconcelos, Aracaju-SE – jul2012


A verdadeira história do resgate do soldado Rian

23/12/2008

23dez2008

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a.

Este conto integra o livro Baseado Nisso – Liberando bom humor da maconha, de Ricardo Kelmer

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A VERDADEIRA HISTÓRIA
DO RESGATE DO SOLDADO RIAN

O soldado Rian foi capturado pelos inimigos. Seu sargento acredita que pode salvá-lo. Mas é uma missão quase impossível

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EU JÁ HAVIA ME JUNTADO a dois companheiros na 13ª base quando o soldado Rian, que deixava o 4o quadrante, foi capturado no momento em que tentava nos alcançar. Fora de fato uma tentativa arriscada, pois o 3o quadrante possuía dois destacamentos inimigos posicionados imediatamente atrás de nós. No entanto, se ele conseguisse passar por eles e juntar-se a nós, já poderíamos começar a comemorar a vitória, pois ele era o último soldado da retaguarda.

Vi quando renderam o soldado Rian, lhe bateram com o rifle e o levaram arrastado. Uma vez prisioneiro no 4o quadrante, Rian tentou escapar através da 20a e 22a bases, que estavam livres, mas levou azar: vieram as Senas Obscenas e o impediram. As Senas costumam aparecer nesses piores momentos. Logo em seguida, o inimigo conquistou a 20a base e aí a coisa piorou de vez, pois Rian passou a dispor de apenas uma única base para escapar, exatamente a 22a, e por três tentativas consecutivas não conseguiu, o que possibilitou ao inimigo retirar com tranquilidade um destacamento inteiro do 1o quadrante e avançá-lo até o 3º.

A sorte é que o inimigo também não foi competente o suficiente para conquistar a 22a base, deixando-a livre para mais uma tentativa de fuga de Rian. Foi assim que pude vislumbrar uma saída. Levei o plano ao comandante Martan.

– Deixe ver se entendi. Você quer se entregar, sargento Veras?

– Sim, comandante.

– Na 11ª?

– Exato, senhor.

– Você acha que aquele bunda-mole do Rian vale seu sacrifício?

– É o meu melhor soldado, senhor. Sem falar que ele anima bastante as noites da companhia com o seu violão. E é a única chance que temos de vencer. Atrairei o destacamento que ocupa a 10a e me deixarei aprisionar. Juntos, eu e Rian teremos mais chances de escapar do que ele sozinho.

– Ou então perderemos de vez esta batalha. Mesmo que vocês dois escapem, talvez não consigam retornar a tempo.

– Dê-me uma chance, senhor.

O comandante Martan levantou da cadeira e caminhou em silêncio pela sala, o olhar no chão. Foi até a janela e ficou a observar a movimentação de alguns destacamentos lá fora, nos rostos dos soldados a visível apreensão pelo companheiro aprisionado. Nós sabíamos perfeitamente o que aqueles demônios faziam com seus prisioneiros. Talvez, aquela hora, Rian sequer estivesse vivo para merecer que o Comando alterasse seus planos e arriscasse tudo para tentar resgatá-lo.

Mas eu sentia que ele estava vivo, que ele resistira a tudo o que porventura lhe houvessem feito. Havíamos nascido ali, vivido nossa infância no meio daquelas montanhas, daqueles rios. Conhecíamos todas as árvores e sabíamos dos atalhos e das cavernas. Juntos, participamos da tomada do 3o Quadrante na batalha de Barbanetto e, praticamente sozinhos, esfarelamos dois destacamentos, mandando-os para a prisão. Eu não podia voltar ao QG assim, deixando Rian lá, sozinho, a mercê do sadismo daqueles monstros.

– Sargento Veras, às vezes é melhor salvar o pouco que possuímos do que arriscar perder tudo.

– Sei disso, senhor.

– Estamos em vantagem aqui em Ludicósia e não estou disposto a perder o que já conquistei. A guerra nos ensina a ser práticos. Um soldado a menos não interferirá no resultado final. Por outro lado, se perdermos você, eles, além de tomarem sua posição, poderão nos fazer um bom estrago.

A cruel lógica da guerra estava ao seu lado, eu sabia. Mas eu tinha que tentar.

– Eles ainda não conquistaram a 22ª, senhor. Podem fazê-lo na próxima investida, eu sei. Mas se eu atraí-los na 11a, isso lhes desviará a atenção e eles ainda desmontarão a barricada na 12a.

– Nada garante.

– Eles me querem prisioneiro, senhor. Isca melhor não há. Barbanetto ainda está atravessada na garganta deles.

– Para seu plano dar certo, sargento, vocês teriam que sair imediatamente e ocupar a 22a.

– Operação Ternos Eternos, senhor. Já está engatilhada.

– Se não conseguirem na primeira tentativa, tudo estará perdido.

– Conseguiremos, senhor.

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04aEle me encarou durante um bom tempo. Era como se tentasse ver através de meus olhos um indício qualquer que enfim lhe revelasse minha incompetência para tal missão. Bastaria um indício qualquer, qualquer um… Quem poderia acreditar em missão tão suicida? Ninguém. Mas eu aguentei firme o olhar do comandante Martan.

– Permissão concedida, sargento Veras. Tentaremos resgatar o soldado Rian.

Eu conseguira! Agora tudo que eu precisava era apenas que toda a sorte do mundo estivesse ao meu lado.

Tínhamos três bases ocupadas no 1o quadrante, aguardando capturas. Havia um destacamento na 7a (cinco soldados) e o meu na 13a (eu e mais dois soldados). No 2o quadrante havia um destacamento deles ocupando a 12a (três soldados) e outro na 10a (dois soldados) O plano era atrair um desses dois na 11a.

A primeira movimentação, porém, foi um fracasso e tivemos de avançar dois dos nossos que estavam na 7a.

Eles contra-atacaram com um soldado da 12a e nos sobrou a última tentativa antes que o destacamento deles da 10a saísse para sempre de nosso alcance. Então corri. E fui atingido de raspão no braço. Caí, rolando pela ribanceira. Sob uma chuva de tiros consegui me arrastar e finalmente alcancei a 11ª. A primeira parte da missão estava cumprida. Então aguardei, enquanto improvisava um curativo. Dava para suportar a dor.

A isca funcionou. Um soldado inimigo percebeu o movimento e me emboscou. Fui aprisionado – exatamente como queria. Levaram-me ao 4º quadrante e lá encontrei o soldado Rian, bastante ferido, mas vivo. Ele sorriu ao me ver e de imediato entendeu tudo. Reanimei-o e lhe detalhei o plano. Ele sorriu e balançou a cabeça, como se dissesse: que loucura…

Na primeira tentativa de fuga, fracassamos. No entanto, como mais uma vez eles não conseguiram ocupar a 22ª, continuamos respirando. Mas fracassamos também na segunda tentativa. Então, o que não podia acontecer, aconteceu: a 22a foi ocupada e perdemos a única chance de saída. Era o fim.

Totalmente impossibilitados de escapar, as quatro movimentações seguintes foram todas deles: quatro soldados evacuados, levados livres para fora da área de combate. E os que ficaram continuavam, para o nosso azar, protegidos em dupla. Na quinta movimentação, porém, abriu-se a 19a. Imediatamente empurrei o soldado Rian:

– Corre!

Ele ainda vacilou um pouco, mas obedeceu. E eu fiquei, aguardando um milagre. Eis que ele veio duas movimentações depois, e eu ocupei a 24a. Enquanto Rian cumpria seu papel, retardando ao máximo sua chegada ao 1o quadrante, eles evacuaram mais alguns soldados.

Restavam apenas três soldados inimigos no 4o quadrante, onde eu estava, sendo dois na 22ª e um, sozinho, na 23ª, bem à minha frente. Eles aguardavam serem evacuados em uma ou duas movimentações, e aí perderíamos definitivamente a batalha. Mas fui rápido e eficiente: tomei a 23a e capturei o soldado que a ocupava. Alívio. Ganhávamos um pouco de tempo para respirar. Como o 1o quadrante estava inteiramente ocupado por nossos destacamentos, o que impedia qualquer chance do soldado capturado escapar, pude avançar tranquilamente pelo 3o e 2o e cheguei para comandar a evacuação de nossos homens.

Foi dramático, pois tivemos de arriscar várias vezes algumas de nossas posições enquanto o soldado prisioneiro tentava mas não conseguia um golpe certeiro. Quando ele enfim escapou, operando em Quinas Traquinas, pensei no pior, nadar tanto para morrer na praia. Evacuamos então um soldado e, em seguida, eles evacuaram dois.

Esta era a situação final: tínhamos seis soldados para retirar, e eles apenas dois. Então livramos dois e aguardamos, nervosos, sem poder acreditar que depois de tudo, não venceríamos. No entanto, um vacilo na movimentação deles fez com que sobrasse ainda um soldado, um único soldado instalado solitariamente na 24a base, a um pio da vitória. Reunimo-nos, nós quatro, os restantes, dois na 1a, um na segunda e outro na quarta, e eu lembrei a eles que somente agindo em dobradinha teríamos alguma chance. Dividimo-nos e, concentrados, contamos: um, dois, três e já!

– Quadras Esquadras!!!

Operação Quadras Esquadras. Alta complexidade. Mas conseguimos. Movimentação perfeita, em sincronia. No último instante. A vitória sorriu para nossas cores. Era realmente para não acreditar, pois vencemos contra todas as probabilidades. Na 24a base ficou o derradeiro soldado inimigo, à espera da evacuação que não viria, igualmente sem acreditar no que acontecia.

 Enquanto o soldado Rian festejava junto com seus companheiros, sentei numa pedra, enxuguei o suor da testa e abri a garrafinha de Jack Daniel’s, mandando para dentro um merecedor gole. O tiro no braço não era problema, antes da próxima batalha eu já estaria em forma.

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BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– GOSTOU DAS QUADRAS?

– Sorte demais…

– Quer perder outra?

– Não, obrigado.

– Qualé, meu irmão? Cadê o espírito esportivo?

– Não é isso.

– O que é então?

– Pô, você viaja demais, cara! Faz muito drama!

– Desculpa de perdedor.

– Não dá pra jogar gamão com você doidão assim. Transforma o jogo numa guerra.

– Ah, deixa de viadagem. Vamos outra, vamos. Eu deixo você jogar com as vermelhas.

– Não. Vou esperar você ficar de cara.

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Ricardo Kelmer 1998 – blogdokelmer.com

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BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04aEste conto integra o livro
Baseado Nisso
– Liberando o bom humor da maconha

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Plutão sai de férias

23/12/2008

23dez2008

PlutaoSaiDeFerias-03
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BaseadoNissoCapaMiragem-01aEste conto integra o livro Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha,
de Ricardo Kelmer

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PLUTÃO SAI DE FÉRIAS

O baseado acontecedor é aquele que provoca acontecimentos inusitados. Alfredo fumou um desses e reencontrou um amigo que acha que sua mulher está traindo-o.

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ALFREDO ABRIU O ESTOJINHO, olhou, olhou e escolheu o baseado acontecedor. Era uma noite de terça-feira e havia lhe batido uma vontade de fazer algo diferente. Para isso, nada mais apropriado que um fumo acontecedor.

Sim, porque existiam diversas qualidades de fumo, ele sabia disso. Existia o fumo energético, que servia perfeitamente para jogar bola, por exemplo. Existia o fumo musical, ideal para escutar Pink Floyd, Frank Zappa, Renascence, Cristiano Pinho, Érico Baymma… Havia também o namorador, o leitor, o Warner Bros, o bom-dia, o digestivo etc. Bom maconheiro que era, Alfredo sabia das melhores plantações e comprava direto na fonte, controlando assim a exata origem do fumo. Com o tempo, aprendera a catalogá-los, cada um na sua especialidade.

O acontecedor atraía situações insólitas, era essa sua especialidade. Situações nem sempre positivas, é verdade, mas esse era um risco que se corria. Fumo ideal para quem gostava de novidade, e de um certo risco. Pois bem, pensou Alfredo, acendendo o cigarro, vamos ver agora o que é que acontece. Eram sete horas da noite.

Alfredo sentou no sofá e ligou a TV. Já sentia o efeito do fumo, os sentidos e o raciocínio prolongando-se além dos próprios limites, descortinando novos horizontes de possibilidades. Procurou algo nos canais, zap-zap, mas não encontrou. Então pegou o jornal, começou a folhear. No caderno de variedades, entre as mesmices de sempre, encontrou algo curioso: uma palestra sobre astrologia cármica.

– Mas que porra é essa?

Meia hora depois lá estava Alfredo no Olimpo Center, ficava pertinho de sua casa. Sala 14, no fim do corredor. Escolheu uma cadeira nos fundos da sala e sentou-se, observando as pessoas. Um bando de esotéricos malucos, pensou, desses que conhecem profundamente os segredos da vida e principalmente da morte. Esse povo que à noite sai do corpo para ajudar desencarnados a deixar de vez o corpo físico. Esse povo que alardeia suas vidas passadas como quem exibe conquistas sexuais ou fala do carro novo. O fumo acontecedor o fizera ir a uma palestra sobre astrologia cármica, fosse lá o que isso significasse, em plena noite de terça-feira. Agora era relaxar.

Mas que nada. Não suportou a palestra muito tempo. Como é que em pleno século 20, ele se perguntava, ainda havia pessoas que se deixavam influenciar pelos astros? Então levantou e saiu da sala. No corredor, parou para beber água.

– Fala, Alfredo! Tá lembrado de mim?

Pronto, gente conhecida. Numa palestra de astrologia cármica. Ô mundo pequeno.

– Ahnn… Plínio.

Era o Plínio, amigo da faculdade, uns dez anos que não se viam.

– Não sabia que você se interessava por esses assuntos.

– Na verdade, não muito – disse Alfredo, enxugando a boca com a manga da camiseta.

– Dois amigos que se encontram. Anos sem ser ver. Numa palestra de astrologia cármica. O que é que isso quer mostrar, heim?

– Não sei. O quê?

– Então, tô dizendo. O que é que isso quer mostrar, heim? Quer mostrar que isso é um Acontecimento. Com A maiúsculo. A… contecimento – repetiu Plínio, desenhando no ar a letra A.

– Entendi.

Plínio sempre gostara daqueles temas. Pelo jeito, continuava o mesmo, ingênuo e acreditando em tudo. Em tudo que não existia.

– Já tá saindo, Alfredo? Eu também. Tá indo pra onde?

– Tomar uma cerveja.

– Tem um bar aqui na esquina.

– É lá mesmo.

– Vou com você. Eu já vi essa palestra.

– Já?

– Sete vezes.

Chegaram no bar, sentaram e pediram uma cerveja. Enquanto Plínio enchia os copos, Alfredo admirava a bunda de uma mulher que levantara da mesa vizinha. Foi quando escutou Plínio comentar algo.

– Desculpa, cara, o que é que tu falou?

– Sexo anal, Alfredo.

– O que é que tem?

– Não é recomendável, sabia?

– Ora, e por quê?

– Infesta o mundo astral. O astral fica que é um fedor só.

– Que papo, Plínio… Só se for os que tu anda pegando por aí.

– É sério. Se quiser, lhe mostro um livro que explica isso.

– Depois. Tô com muita coisa pra ler.

– Então um brinde pra comemorar.

– Ao nosso encontro.

– E também porque Plutão está mais próximo do Sol que Netuno.

– Não sabia. Está, é?

– Está.

– Ora veja. Então precisamos mesmo comemorar – Alfredo ergueu o copo. Comemorar que Plutão estava mais próximo do Sol. Isso sim era um pretexto.

PlutaoSaiDeFerias-03Soubera um tempo desse que o Plínio terminou casando com a Nisa, a gostosa da Letras. A mais gostosa e também a mais danadinha de todas as meninas do Centro de Humanidades. Grande Nisa. Pensando bem, até que os dois tinham algo a ver, o Plínio sempre fora chegado em astrologia e a Nisa botava tarô nos intervalos, cobrava cinco pilas, lembrava bem. Tinha uns peitões maravilhosos, grandes e filantrópicos – ela os oferecia em decote todos os dias, como numa bandeja, generosíssimos. A sabedoria popular, aliás, juntando seus dotes físicos e espirituais, alcunhou-a oportunamente Peitonisa. Pois bem, a Peitonisa casada com o Plínio. Que coisa. Bem, melhor deixar de pensar na mulher do amigo.

– Mas por que Plutão está mais próximo do Sol que Saturno? – perguntou Alfredo. Quase dissera peitão em vez de Plutão.

– Saturno não, Netuno.

– Netuno.

– Por causa de sua órbita. É mais elíptica – explicou Plínio, gesticulando a órbita de Plutão. – Entendeu? Mais elíptica, ó… – e repetiu o gesto. – Faça aí pra ver se entendeu mesmo.

– Entendi, pode continuar.

– Isso faz com que às vezes Plutão se aproxime mais do Sol que Netuno, que normalmente está mais próximo.

– Ahh.

Uma vez, aconteceu. A Nisa lhe concedera o prazer de chafurdar o rosto entre os peitos dela, por trás da cantina da faculdade. Ficou maravilhado, que nem menino em parque de diversão que não sabe qual brinquedo escolher. E só não chegaram às vias de fato porque tinha gente por perto. Então o curso terminou e nunca mais teve outra chance. Nisa e seus peitos impossíveis sumiram de sua vida. Essa era a grande falha de seu currículo universitário. Reprovado em Introdução a Peitonisa.

– Mas por que brindar a isso? – perguntou Alfredo, afastando as lembranças. Estava pensando muito na mulher do amigo, que coisa feia.

– Ora, porque essa situação só vai durar até 1999. Um nove nove nove.

– Que situação?

– Plutão estar mais próximo do Sol que Netuno. Começou em sete nove e vai até nove nove.

Não mudara nada. Era o mesmo chato de antigos tempos, com seus planetas, suas órbitas, a simbologia, aquele jeito de explicar as coisas. Tomaria três cervejas com ele, divertiria-se um pouco com suas histórias mirabolantes e pronto, depois iria para casa rastrear alguma coisa na tevê e fumar o velho dorminhoco. O acontecedor já fizera sua parte: encontrar o Plínio depois daqueles anos todos era realmente um acontecimento. Um Acontecimento. O Plínio às vezes se tornava um pouco chato, é verdade, mas também era um sujeito engraçado.

– E o que é que tem de tão importante numa coisa dessa, Plínio?

– Você não percebe?

– Perceber o quê?

– Isso são as férias de Plutão. Plutão vai à praia.

– Ahhhh…

Plutão vai à praia. Alfredo imaginou o planeta Plutão de calção e chinelas havaianas, segurando uma boia, o jornal debaixo do braço.

– Vai, por que não? Os deuses também têm direito a férias.

– Sem dúvida.

A mitologia! Esquecera da mitologia greco-romana. Quantas vezes, no intervalo das aulas, o Plínio o puxara para falar das eternas confusões que Mercúrio aprontava, e de como Juno descobriu que a ninfa Eco favorecia as infidelidades de Júpiter ao distraí-la com longas histórias, e, por isso, Juno a puniu, condenando-a a não mais falar sem que fosse interrogada e a só responder às perguntas com as últimas palavras que lhe fossem dirigidas. Daí seu nome, Eco.

– Quando Plutão vai à praia, sabe o que acontece?

– Juro que não sei, Plínio.

– Plutão é irmão de Júpiter e Netuno, todos filhos de Saturno, o deus que devora seus filhos. Eles se rebelam contra o pai e dividem os reinos. Júpiter fica com o Céu, Netuno com o Mar e Plutão com o Inferno. Plutão é o deus do Inferno, lugar pra onde vão todas as almas depois da morte, pra serem julgadas. Pois olha só: quando Plutão tira férias, o Inferno vira uma bagunça: falta funcionário, o serviço acumula, o barqueiro que faz a travessia do rio cobra mais caro, morto volta porque não tem ninguém pra receber, é uma confusão. O que é que isso quer dizer, heim? Quer dizer que…

– O que quer dizer?

– É isso que eu tô dizendo. O que é que quer dizer? Quer dizer que mesmo que você morra, corre o risco de não poder entrar no Inferno. Aí o que é que acontece?

– O que acontece?

– Deixa eu dizer, você é muito impaciente. O que é que acontece, heim? Acontece que muitos que morrem ficam por aí vagando, sem saber pra onde ir, alma penada zanzando de lá pra cá… – e ele mostrava com as mãos como as almas penavam, de um lado para o outro – Todas esperando que Plutão volte de férias e reorganize o Inferno pra poder enfim recebê-las.

– Pros romanos não havia paraíso depois da morte?

– É que o Inferno tem várias partes. Olha só, vou explicar. A primeira parte é o Érebo, onde tem um rio tenebroso chamado Cocito, feito das lágrimas dos maus. Caronte, o barqueiro do Inferno, é o encarregado de levar as almas ao julgamento, no Campo da Verdade. Mas Caronte se recusa a levar as almas dos que não tiveram sepultura, e então eles vagam pela margem do rio a implorar por cem anos até que o barqueiro canse de recusá-los.

– Que coisa horripilante.

– Muitíssimo. Depois vem o Inferno dos maus, um lugar absolutamente terrível, pra onde vão os condenados. Tem rios de lava, pântanos lamacentos e fedorentos, lagos gelados onde as almas são mergulhadas e outras barbaridades. Depois vem o Tártaro, onde fica o palácio de Plutão e a prisão dos antigos deuses expulsos do Olimpo. Por último vêm os Campos Elísios, o paraíso.

– E quem julgava os mortos?

Até que aquele assunto não era assim tão desinteressante, pensou Alfredo. Ou então era o fumo acontecedor que o deixara mais paciente com as doidices do outro…

– Três juízes: Éacos, Minos e Radamanto. Quem é condenado vai pro Inferno dos maus. Permanece lá o tempo que for necessário. O que é que isso tudo significa, heim? Significa… Peraí, deixa eu falar, significa que durante esses vinte anos em que Plutão saiu de férias, muita alma ficou penando por aí pelo meio do mundo. Isso é muito sério.

– Sério mesmo?

– Sério mesmo.

– Tu viu alguma?

– Eu não vejo espírito, mas minha mulher vê. Casei com a Nisa, que fazia Letras, lembra dela?

‒ Eu soube ‒ Alfredo respondeu com a expressão mais neutra que lhe foi possível.

‒ Pois foi. Uma noite a Nisa levantou pra beber água e deu de cara com um espírito. Agora esse espírito aparece lá toda sexta, logo na noite em que eu dou plantão na empresa.

‒ E aí, o que o espírito faz?

‒ A Nisa diz que ele espera ela ir beber água. Por causa disso, pusemos uma geladeirinha no quarto, lá o espírito não entra. Mas mesmo assim, a Nisa tem medo. Por isso, o Elísio está indo lá toda sexta, pra ela não ficar sozinha com esse espírito.

– Elísio?

– É o primo dela.

‒ O primo dorme na tua casa toda sexta? Na noite do teu plantão?

‒ Sim. Ele é de confiança, e não tem medo de espíritos.

PlutaoSaiDeFerias-03Alfredo tomou um gole e lembrou… Um dia, alguns anos antes, encontrara a Nisa no shopping. Continuava gostosa, os mesmo peitos se oferecendo para o mundo. E já estava casada com o Plínio. Olharam-se maliciosamente, e ela lhe piscou um olho. Ele ficou muito atiçado, e só não foi lá ter com ela porque estava acompanhado. Porém, naqueles poucos segundos toda a cena lhe passou novamente no pensamento, Nisa subindo a camiseta, os peitões mais desejados da Humanas. Durante aqueles segundos sentiu-se novamente encostado à parede da cantina, sentiu inclusive o cheiro oleoso do velho sanduíche de queijo que sempre comia no intervalo. Peitonisa… Pelo jeito, continuava safada. E agora certamente estava dando para o primo, nas barbas do marido. E o coitado acreditando em espíritos.

– Ô, Plínio…

– Diz. Garçom, mais uma estupidamente.

– Tu que é mais entendido que eu nesses assuntos, me diz uma coisa. Por que essas almas, já que não podem entrar no Inferno, não fazem como Plutão e vão pegar uma praiazinha também? Tanta coisa melhor pra fazer do que ficar assustando a mulher dos outros no meio da madrugada enquanto o marido trabalha…

– Não sei. Acho que elas não podem frequentar a mesma praia dos deuses. Nunca tinha pensado nisso. Vou consultar.

– Faz isso.

– Pode deixar.

– Ô, Plínio…

– Do que é que você está rindo?

– Desculpe – Alfredo não sabia se devia dizer. – Posso ser bem franco?

– Claro. Qual é a graça?

Alfredo coçou a cabeça. Talvez fosse mais sensato não se meter naquele assunto de marido e mulher. Plínio sempre fora um ingênuo, e com mulher era um boboca de marca maior. E casara logo com quem? Com a Nisa. Chapéu de otário era marreta mesmo. Mas, coitado, ele não merecia aquilo.

– Plínio, por favor. Um homem do teu tamanho, querer me convencer de que Plutão sai de férias e vai se bronzear no Sol, e o Inferno vira uma bagunça, e por isso enche de alma penada por aí porque não pode entrar no Inferno? Ô, Plínio…

– Mas é sério! Se quiser, eu lhe mostro um livro…

– E essa história aí, rapaz, da tua mulher com o primo dela…

– O que é que tem?

– Onde já se viu uma coisa dessa, Plínio? O cara ir dormir na tua casa porque tem um espírito perseguindo tua mulher…

– O que é que tem?

– O que é que tem? Não acredito…

– Você por acaso está insinuando que minha mulher e o Elísio…

– Deixa pra lá – Alfredo deu com a mão, impaciente. Não conseguia entender como ainda havia pessoas, dois mil e quinhentos anos depois de Platão, que ainda acreditavam que seus destinos eram comandados pelos deuses.

– Não, não. Agora eu quero que você diga o que está pensando.

– Deixa pra lá.

– Pô, Alfredo, você é ou não é meu amigo? Amigo com A maiúsculo.

– Plínio… – Alfredo segurou o braço do outro. – Desculpe a sinceridade, mas pelo que tu me falou, a tua mulher tá te corneando com esse primo, rapaz! Tu tá levando um baita de um chifre e só tu não percebe. Fica aí com essa história de Plutão saindo de férias…

– Você não acredita, não é?

– Em ti ou na Nisa?

– Nos deuses.

– Plínio, eu…

– Pois eles existem.

– Tá bom.

– Sempre existiram. Estão todos ainda por aí, influenciando nossas vidas, aprontando todos os dias. Nós é que não acreditamos mais, só acreditamos na ciência. Pois eu acredito nos deuses e sei do que eles são capazes. Se você não acredita, lastimo.

– Tá bom, Plínio, respeito tua crença. Mas tu pelo menos podia ir averiguar direitinho a história desse espírito aí. Tá muito mal contada, rapaz, não percebe? Vai lá, conversa com a Nisa sobre isso, mostrar pra ela que tu não é trouxa de acreditar numa armação absurda dessa.

Alfredo respirou fundo. Pronto, falara. Como um homem podia ser tão ingênuo? Se contasse, ninguém acreditaria. E logo com a Nisa… Enquanto o amigo ia ao banheiro, vieram-lhe mais uma vez as lembranças, a cantina e o shopping se misturando. Peitonisa…

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PlutaoSaiDeFerias-03DIAS DEPOIS, ALFREDO estava em casa, era uma sexta-feira, oito da noite. Acabara de fumar novamente do baseado acontecedor. Então o telefone tocou. Era o Plínio. Ele estava no mesmo bar da outra semana e precisava conversar. Pela voz do amigo, Alfredo percebeu que ele estava preocupado. Encontraram-se quinze minutos depois.

‒ Que bom que você veio, meu amigo ‒ disse Plínio, recebendo Alfredo com um abraço. ‒ Vamos sentar naquela mesa do canto. Não posso demorar, hoje dou plantão na empresa.

‒ Ah, sim, hoje é sexta. Mas que cara é essa? O que aconteceu?

– Conversei com a Nisa ‒ ele falou discretamente enquanto sentavam. ‒  Ela me contou tudo.

– Ah… ‒ Alfredo pediu uma cerveja e dois copos.

‒ Não, obrigado. Não posso chegar lá com bafo de bebida.

‒ Claro. Mas e então, eu tinha razão?

– Não.

– Não?

– Não. Ela não tem nada com o primo.

Alfredo olhou sério para o amigo.

– Quer dizer que tu fica trabalhando na empresa a noite toda e o primo dela vai dormir lá na tua casa porque um espírito inventou de toda sexta…

– É Plutão ‒ interrompeu Plínio.

– Heim?

– É ele, Plutão, Senhor do Tártaro.

– Como assim?

– O espírito. É o próprio Plutão. A Nisa está tendo um lance com ele. Ela confessou.

– Com Plutão.

– Com Plutão.

– O irmão de Saturno.

– Filho.

– O deus do Inferno.

– O próprio.

Alfredo suspirou. A coisa era mais séria, bem mais séria.

– E tu, o que é que fez?

– Eu, nada. Vou me meter com um cidadão desse?

– E ela?

– Ela disse que não pode fazer nada, que ele é mais forte que ela, o que é verdade, claro. Sem dizer que ele tem um cão terrível, com três cabeças, dentes enormes e serpentes enroladas pelo pescoço. Cara, eu tenho pavor mortal de cobra. Imagina dar com um bicho desse na minha frente de madrugada.

Alfredo suspirou. Era inútil, o homem era um caso perdido. Um prato de batatinhas fritas pousou no balcão.

– Gosta de molho tártaro, Plínio?

– Não, não. Tártaro não.

– Ah, claro… 

Com marido traído, sempre bom ter cuidado com as palavras.

– Plínio.

– Diz.

– Não fica com essa cara, rapaz. A vida é boa.

– Você diz isso porque não é com você.

– Não, eu não tô zombando não.

– Tudo bem.

– Tá com raiva de mim?

– Claro que não.

– Então esta é pelo meu amigo Plínio – Alfredo ergueu o copo e bebeu.

E abraçou o amigo. De repente, sentia compaixão por aquele sujeito que acreditava piamente que os deuses governavam sua vida. Olhando-o, como diferenciá-lo daqueles hominídeos primitivos que se moviam por meros instintos? Não havia diferença. Nele, a humanidade não evoluíra.

– Alfredo.

– O que foi?

– Você não tem medo de espírito, né?

– Não.

– Sabe o que é…

– Pode dizer.

– Você sabe quem é Prosérpina?

‒ Quem?

‒ É filha de Júpiter. Um dia, ela foi buscar água na fonte e Plutão se apaixonou por ela. E a raptou. Os dois se casaram e ela virou rainha do Inferno.

‒ E daí?

‒ Daí que ele talvez deseje fazer o mesmo com a minha mulher.

‒ Raptar a Nisa.

‒ Isso.

Tinha bom gosto esse Plutão, pensou Alfredo.

‒ Andei pensando numa saída para esse problema. Será que você poderia dormir hoje lá em casa?

Alfredo quase engasgou com a cerveja.

– Eu?

– Sim. Talvez Plutão escute você.

– Peraí. Tu quer que eu converse com Plutão?

PlutaoSaiDeFerias-03– Ele veria que você não o teme. E escutaria.

– E eu diria o quê pro deus do Inferno?

– Diria pra ele parar de…você sabe, pra ele deixar de importunar minha mulher. Talvez ele proponha um trato. Você escuta e depois me diz, a gente vê o que pode fazer. Os deuses também negociam.

Era demais, pensou Alfredo. Onde fora se meter? Não, aquilo não estava acontecendo.

– Você faz isso?

– Plínio, tu sabe que eu não acredito nessas coisas.

‒ Não precisa acreditar. É só pro caso de Plutão aparecer. Ah, vamos, você é meu amigo, não é? E minha mulher já está sabendo.

– Tu contou pra ela sobre essa ideia?

– Contei.

– E ela?

– Achou uma boa. Ela disse que você sempre foi um cara compreensivo. No que eu concordo. E eu confio mais em você que no primo dela, que, aliás, não vai lá em casa hoje. Nisa está sozinha.

Alfredo olhou novamente para o copo, refugiando nele o constrangimento que sentia. Seu amigo propondo que dormisse com a mulher para protegê-la das investidas de Plutão, o deus do Inferno, que estava aproveitando as férias para ir lá chafurdar nos peitos da outra. E a mulher do amigo concordava que ele fosse, ele, Alfredo. A Peitonisa. Dessa vez, o fumo acontecedor exagerara…

– Ô, Plínio.

– Diz.

– Que ano terminam mesmo as férias de Plutão?

– 1999. Um nove nove nove.

– Ano que vem?

– Exato.

– E depois?

– Depois ele volta pro Inferno. E só tira férias de novo daqui a 200 anos. Dois zero zero.

Um alvoroço se manifestando no baixo ventre, Alfredo podia senti-lo. Um alvoroço se espalhando pelo resto do corpo, se intrometendo no pensamento. Nisa sozinha…

Mas não, não podia, não era tão cafajeste assim…

– Quer um conselho, Plínio?

– Quero.

– Não mexe com o homem, rapaz. Esse pessoal tem muita influência. Melhor ser corno com espírito do que com gente. Pelo menos a fofoca fica só lá no astral. Tu sabe, né, o pior do chifre são os comentários.

– Você acha? – Plínio coçava o rosto, pensativo.

Alfredo sentia o alvoroço se espalhar rapidamente por seu corpo, por sua mente… Já não conseguia controlá-lo. Um animal enjaulado querendo sair a todo custo. Concentrava-se para falar, mas por dentro era o desejo louco que gritava.

Mas não, não podia fazer isso com o amigo…

– Sim, claro. E além do mais é só um ano, rapaz. Depois acabam as férias de Plutão, ele volta pro batente e esquece a tua mulher. Aguenta mais um pouquinho.

Nisa sozinha…

Não, não, precisava resistir. Melhor deixar aquela história com o tal do primo, mais prudente não se meter na confusão…

‒ Mas… e se Plutão raptar a Nisa? Você tem que ir, Alfredo. Vá, por favor, ela está esperando por você.

A Peitonisa… esperando… Alfredo sentia agora uma imensa coceira pelo corpo inteiro. Um ano… toda sexta… Olhou para o céu, tentando se concentrar nas estrelas, qual delas seria Plutão? Não, Plutão não era visível a olho nu. Ele atuava escondido, nos confins do sistema solar, lá onde a vista não alcançava. A vista… Visa… Nisa…

As grades da jaula enfim se romperam, um estalido que vibrou por todo seu ser. Alfredo virou a cerveja de um gole e bateu o copo na mesa, por pouco não o quebrou. Bem que tentara, disso depois não lhe poderiam acusar, bem que tentara.

– Hoje é sexta, né? – perguntou, virando-se de repente, agarrando o braço do amigo.

– É.

– Então aquele safado do Plutão vai lá hoje.

– Não fale assim, tenha respeito. Ele é um deus.

– Qual é o endereço?

Os olhos do amigo brilharam. Plínio puxou do bolso papel e caneta e anotou enquanto explicava:

– Fica ali na praça Pilos, dá pra ir a pé. No jardim do prédio tem uns ciprestes – Plínio ainda anotava o endereço, mas Alfredo já puxava o papel, ansioso, quase bufando. – Vou ligar agora pra ela avisando que você está indo.

– Ah, isso é importante, isso é importante.

O touro saltou da jaula. Um touro que acabou de cheirar dois quilos de cocaína. Ao lado, Plínio terminava de falar com a mulher pelo celular.

– Sim, amor, ele está indo. Tchau. Também te amo – Plínio desligou e virou-se para Alfredo. – Tudo ok, Alfredo, ela está aguardando.

– Pode deixar – bufou Alfredo.

– Na estante da sala tem um CD de música instrumental, uma lira na capa. O nome é Clássicos de Orfeu. Ponha pra tocar logo que chegar. Se Cérbero estiver com Plutão, somente essa música é capaz de amansá-lo.

– Cérbero? É pra dar porrada nele também?

– Não, é o cão de Plutão. Aquele de três cabeças, com as serpentes no pescoço. Você não tem medo de cobra, né?

– O cão de Plutão, o cão de Plutão – repetiu Alfredo enquanto levantava da mesa. Precisava decorar aquilo tudo. Botar para tocar o CD de Carlos Lira. Clássicos de Cérbero. Não, clássicos de Morfeu.

‒ Confio em você – disse o amigo com emoção na voz. – Sei que vai fazer um bom trabalho.

O touro ciscava a terra, a cabeça baixa, as narinas botando fogo… Nada no mundo importava agora a não ser fazer o que o amigo tanto lhe pedia. E, além do mais, aquela moleza terminaria no ano seguinte, quando findassem as férias de Plutão.

– Esqueci de lhe dizer uma coisa – Plínio chamou-o para perto. Alfredo aproximou-se, ofegante, os primeiros botões da camisa já saltando fora. – Plutão tem um capacete que o torna invisível. Foi presente dos Ciclopes. Mas mesmo sem vê-lo, você pode falar com ele.

– Claro, os Ciclopes. Eu pego eles também. Bajuladores!

Alfredo arrastou uma pata no piso do bar, uma, duas, três vezes, e saiu a toda velocidade. Atravessou a rua correndo e bufando, as patas mal tocando o chão, e sumiu entre os carros. Nem pagou a cerveja.

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Ricardo Kelmer 1998 – blogdokelmer.com

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BaseadoNissoCapaMiragem-01a> Este conto integra o o livro Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha

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01- Eu já li. Adorei. Parabéns. Vânia Cavalcante, Fortaleza-CE – set2010

02- Quase morro de rir lendo. Adorei! Ligia Eloy, Lisboa-Portugal – jul2015

03- Muito bom. Ivonesete Zete, Fortaleza-CE – set2010


Questão de dias

23/12/2008

23dez2008

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a.

Este conto integra o livro Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha, de Ricardo Kelmer

QUESTÃO DE DIAS

A mãe de Luís Carlos encontrou maconha no armário do filho. Ele prometeu que pararia de fumar e agora o pai quer que ele marque o dia

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– E AÍ, FILHÃO, já marcou o dia? – perguntou seo Tavares, sorridente, dando um leve tapinha na cabeça do filho, como fazem os amigos camaradas.

– Ainda não, pai – respondeu Luís Carlos, terminando a sobremesa do almoço. – Mas não tá longe não.

– Certo, certo… Mas você não acha que esse dia tá demorando muito, meu filho?

– Ah, pai, tem que ser um dia especial, não pode ser qualquer dia.

– Tá certo, tá certo – concordou seo Tavares. – É mesmo um dia especial. Mas não demore muito. O tempo costuma enterrar as decisões que a gente toma e demora a realizar.

– Beleza, pai.

Luís Carlos limpou a boca no guardanapo, pediu licença e levantou-se, tinha que voltar à loja. Beijou a mãe e o pai e saiu para o ponto de ônibus. No caminho para o trabalho ia pensando no absurdo da situação. O pior é que não tinha ideia de como sair da enrascada.

Tudo começara naquela noite de segunda-feira. Ele chegou da loja à noite, tomou banho e jantou normalmente com os pais. Não desconfiou de nada. Depois do jantar foi ao quarto, tendo antes o cuidado de fechar a porta. Abriu o guarda-roupa, foi na última gaveta e retirou a velha caixinha de madeira. E levou um susto: não havia nada na caixinha. Puta merda, cadê a parada?, pensou enquanto procurava por entre as cuecas e as meias. Nada. O fumo havia sumido. Por um instante, imaginou que houvesse deixado em algum outro lugar. Mas não, era ali mesmo que guardava, sempre foi. Sentou-se na cama e remoeu o pensamento atrás de alguma pista. Foi nesse instante que dona Leonor bateu na porta.

– Filho, a gente pode conversar um pouco?

Ih, sujou…, ele pensou, já imaginando tudo. Abriu a porta e a mãe entrou. E contou que fora procurar um par de meia do marido no guarda-roupa do filho quando se deparou com aquela caixinha.

– E o que a senhora fez com o que tava dentro, mãe? – Luís Carlos queria saber.

– Meu filho, você não jurou pra mim e pra seu pai que tinha parado com esse vício?

Luís Carlos sentiu o coração gelar, aquilo não podia estar acontecendo, que merda… Vamos, Luís Carlos, pense rápido, vamos… Precisava encontrar um meio de se safar de mais aquela. Mas agora a coisa era séria: ela havia descoberto a parada e não adiantaria dizer que não era dele, que não sabia que diabo aquilo fazia ali em seu guarda-roupa. Não dava mais para continuar nas velhas desculpas.

– Meu filho, você é um menino tão bonito, inteligente. Tem um emprego bom, tem pais que adoram você… Maconha é coisa pra marginal, meu filho, e você não é marginal. Ô, Luís Carlos…

Dona Leonor já ameaçava chorar. Era preciso pensar rápido.

– Mãe, o que a senhora fez com a…

– Você nunca pensou que um dia pode ser preso, meu filho? Ô, Luís Carlos, isso é uma coisa tão triste…

– Desculpe, mãe. Mas não chore não, tá? Não chore que dessa vez eu prometo que vou parar. Dessa vez é sério.

– Você jura, meu filho?

– Juro pelo meu glorioso alvinegro.

– Ah, Luís Carlos, isso não é jura que se faça! Jure por uma coisa séria.

– Mas mãe, você quer coisa mais séria que…

– Seu glorioso foi rebaixado. Não vale mais nem jura.

– É, mas a senhora viu que naquela última partida…

– Não mude de assunto.

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04aEle calou-se. Dessa vez a situação extrapolara. Tinha que dizer algo certeiro. Mas o quê?

– Está bem, mãe, está bem.

Vamos, Luís Carlos, pense em algo, pense.

– Está bem, mãe.

Isso, continue.

– Ok, mãe, ok.

Algo mais criativo, Luís Carlos.

– Eu lhe peço desculpas, mãe, pela tristeza que eu possa estar lhe causando. Desculpe, viu?

Bom começo. Continue, está indo bem.

– Olhe, mãe, eu vou ser sincero com a senhora…

Essa era sempre uma boa frase. Boa para ganhar tempo. Mas perigosa, porque agora tinha de ser sincero mesmo.

– Isso é só uma fase, mãe. Eu sei que é só uma fase e que um dia vai passar. A senhora não pensa, por acaso, que eu quero passar o resto da minha vida fumando maconha, né? Isso não tem cabimento. Um dia eu sei que isso vai perder a importância e eu vou parar, eu sei disso, do fundo do meu ser.

Ele percebeu um leve brilho de esperança no olhar da mãe e isso o animou a continuar:

– Eu só preciso de um tempo, mãe. Lembra quando eu tomava aqueles porres de rum todo fim de semana e ficava passando mal, acabado no sofá? Lembra, né? Foi uma fase braba. Mas passou, não foi? Da mesma forma agora, mãe. Eu sei que um dia eu vou olhar pra um baseado e dizer assim pra ele: Quer saber de uma coisa, meu chapa, não tô mais a fim de fumar você não. E aí acabou, não fumo mais. Acabou.

Bela argumentação. Digna de um tribunal. Às vezes se surpreendia consigo mesmo. Bem que o pai tentara fazê-lo advogado, herdar o escritório, ele é que não quis. Dona Leonor olhou para o filho e o abraçou emocionada. Luís Carlos sentiu-se aliviado. Teria sido perfeito se o pai não surgisse à porta do quarto.

– Tudo bem, filho, mas se você quer mesmo parar, então precisa levar a coisa a sério e marcar logo a data.

– Marcar a data? – Luís Carlos soltou-se da mãe, surpreso.

– Claro. Marque a data que no dia eu prometo que faço uma grande festa.

– Festa? – Luís Carlos tentava ganhar tempo. – Festa?

– Claro. O pai não fez uma grande festa pro filho pródigo que voltava ao lar? Então a gente também vai fazer uma.

– Ahnn… Não, não, pai. – Aquele papo estava ficando estranho. – Esquece esse negócio de festa. Acho que não pegaria bem.

– Ô Tavares, eu também acho que isso…

– Deixe comigo, Leonor. – O pai, do alto de sua convicção, acenou para que a esposa não se metesse. – Eu insisto, meu filho. Você faz sua parte e eu a minha. Amanhã mesmo vou comprar a cerveja. Vamos tomar um porre pra comemorar. Pode chamar todos os seus amigos.

– Chamar… os meus amigos? Ahnn… eu…

– Você só precisa dizer o dia.

– Que dia, pai?

– Que dia, Luís Carlos? O dia que você vai parar de fumar droga. Não é disso que estamos falando?

– É… mas… também não precisa… marcar um dia.

– Como não precisa? Quando a gente vai casar, a gente marca o dia do casamento, não é?

– Eu não vou me casar, pai – disse Luís Carlos, se sentindo perdido e ridículo.

– Você quer ou não quer parar?

Luís Carlos respirou fundo. Já havia ido longe demais, não dava mais para voltar.

– Quero – ele respondeu, desesperançado, não vendo a hora de ficar sozinho.

– Então? É só marcar o dia. Sexta-feira está bom?

– Sexta?!

– Sim, sexta.

– Esta sexta?

– Sim, esta sexta.

– Ahnn… Vou pensar, pai. Prometo.

– E precisa pensar numa coisa simples dessa, Luís Carlos? Não é, Leonor?

Dona Leonor apenas olhava para o filho, acariciando-lhe a mão.

– Não gostou do dia? – prosseguiu seo Tavares. – Então no sábado.

– Não, sábado é o aniversário do Foca.

– Ah, o aniversário do Foca. Ele não pode fazer no domingo?

– Tavares, não pressiona o menino!

– Então semana que vem.

– Semana que vem tem o feriadão, pai, eu vou viajar com a galera. Olhe, pai, deixe eu…

– Então quando, meu filho? Quando?

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04aLuís Carlos podia perceber que o pai se esforçava por parecer compreensivo e camarada. Soava um pouco artificial, mas reconhecia que poucas vezes na vida vira o pai tão cordial e paciente.

– Pai, vamos fazer o seguinte… Me dê um tempo pra pensar. Não quero marcar um dia qualquer e quando chegar esse dia eu não estar preparado pra tomar uma decisão importante assim. Quero fazer a coisa direito, o senhor entende?

– Seu pai entende sim, meu filho – disse a mãe, tomando a vez. – A gente só quer que você pense bem no que é melhor pra você e sua família, tá? Não é, Tavares?

– Por mim, a gente marcava logo esse dia e…

– Seu pai concorda comigo, meu filho.

Então ficaram combinados. Luís Carlos pensaria num dia para parar de fumar maconha e avisaria aos pais.

Quando eles já deixavam o quarto, Luís Carlos pediu para falar a sós com a mãe.

– Por que só com ela?

– Sai, Tavares. Deixa eu conversar com o menino.

Dona Leonor empurrou o marido para fora e fechou a porta. Luís Carlos pegou a mãe pela mão e a levou até o outro lado do quarto, longe da porta, e falou baixinho:

– Mãe, o que a senhora fez com aquela parada?

– Com o quê, filho?

– A maconha, mãe. O que é que a senhora fez?

– Ah, Luís Carlos, eu fiquei apavorada, né? Imagina se a polícia descobre uma coisa daquela aqui em casa, imagina a vergonha pro seu pai…

– Mas e aí, o que a senhora fez? Enterrou no quintal?

– Joguei no aparelho.

– No aparelho?

Luís Carlos ainda pensou em correr para o banheiro.

– E dei descarga. Três vezes.

Luís Carlos fechou os olhos. A última esperança fora embora. Pelo esgoto. Ele sentou na cama.

– Pô, mãe, isso é caro, mãe, isso é caro… – foi tudo que encontrou para dizer, balançando a cabeça, sem acreditar.

Um ano depois, lá está Luís Carlos lendo jornal na sala.

– E aí, filhão, já marcou o dia? – pergunta seo Tavares, com toda a naturalidade que consegue.

– Ahnn… Que dia, pai?

– O dia, meu filho…

E o pai, dando uma de moderninho, junta o polegar e o indicador no gesto típico, como se fumasse um baseado, os dedos indo e vindo da boca em biquinho. Mas com todo o mau jeito possível de um pai que nunca sequer viu um cigarro de maconha na vida.

– Tô marcando, pai, tô marcando…

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Ricardo Kelmer 1998 – blogdokelmer.com

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Os revolta

23/12/2008

23dez2012

BaseadoNissoCapaMiragem-01a.

Este conto integra o livro Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha, de Ricardo Kelmer

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OS REVOLTA

Pais maconheiros e filhos caretas. Isso pode dar certo?

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TARDE DE SÁBADO no shopping. Na saída do cinema, Rosinha escutou seu nome:

– Rosinhaaaaaaaaa!!!

Era a Neusa, amiga das antigas, anos e anos que não se viam. Rosinha cutucou o marido.

– Olha só, Roberto! A Neusa e o Charles. Lembra deles?

– Será que ainda são muito chatos?

– Pelo menos se comporte. Eles sempre gostaram muito de você.

– Como é mesmo o nome dos filhos deles? São uns nomes assim bem babacas…

– Oi, Neusa! Quanto tempo!

Abraço para cá, abraço para lá, como vão as coisas, e os meninos, cadê o resto da turma. Neusa propôs sentarem um pouco, tomar um chope. Sentaram, pediram os chopes e lembraram os velhos tempos. Charles lembrou um carnaval em que ele e Roberto saíram de mulher pela rua e um sujeito quase os atropelou. Apesar de não terem se ferido, decidiram ir à delegacia prestar queixa e os policiais simplesmente não conseguiam levar a sério a situação, um vestido de odalisca e outro de coelhinha com cenoura e tudo.

– Hoje, com essa barriga aí, Roberto, você ia ter que sair no bloco das grávidas.

– Verdade, Charles. Tô com mais barriga, mas em compensação tô com menas bunda…

E Roberto riu, satisfeito e vingado com a própria piada.

– E os meninos, Neusa? – quis saber Rosinha. – Já devem estar grandes, né?

– Enormes!

– Como é mesmo o nome deles? – perguntou Roberto.

– Charles Junior e Anna Priscylla.

– Isso mesmo – falou Roberto, tentando se manter sério. – Anna com dois enes, né?

– Dois enes, um ípsilon e dois eles.

– Dois enes, um ípsilon e dois eles – repetiu Roberto. –Bem original. Mas o ípsilon é no lugar do primeiro i ou do segundo i?

– Do segundo.

– Bem pensado – Roberto falou, esforçando-se para não parecer irônico. – No lugar do primeiro ficaria estranho.

– Ela tem treze, e ele quinze.

– Nossa, como o tempo passa, Neusa… – comentou Rosinha. – Peguei os meninos no colo.

– E vocês?

– Eu e Roberto decidimos não ter filhos. Mas temos dois gatos maravilhosos, a Xana e o Xexéu.

– Xexéu? Isso é nome de gato? – perguntou Charles.

– E Charles Junior? – perguntou Roberto.

– Que é que tem ele? – perguntou Charles.

– Já decidiu o que vai ser? – Rosinha perguntou.

– Ainda não. O negócio dele é computador. Se deixar, passa o dia lá.

Duas rodadas de chope depois, Charles inclinou-se para o centro da mesa e jogou a indireta:

– Mas por falar nisso, e vocês, ainda curtem um… – e fez o tradicional gesto, juntando os dedos indicador e polegar.

– Não acredito! – respondeu Rosinha, surpresa. – Vocês ainda fumam maconha?! Nós também!

– Psiu, Rosa! – reclamou Roberto, beliscando a mulher. – Quer que o shopping todo saiba?

– Fumamos, sim. Não como naquele tempo, né, que ali também já era exagero. Mas vez em quando o Charles consegue uma coisinha. Vocês não estão a fim?

– Eu estou – respondeu Rosinha, animada. – Estamos, né, Roberto?

– Estamos.

Pagaram a conta e rumaram todos para o apartamento de Neusa e Charles.

– Psiu! Os meninos já podem ter chegado – avisou Charles, abrindo a porta do apartamento. – Esperem aqui na sala que eu vou conferir.

E sumiu apartamento adentro, pisando no chão de mansinho, pé ante pé. Voltou logo depois.

– Ainda não chegaram, dá tempo a gente fumar – Roberto comunicou, falando baixinho. – Entrem, entrem, fiquem à vontade. Eu vou buscar.

– O Charles deixa logo os cigarros apertados – explicou Neusa, sussurrando. – É mais prático, né?

– E por que a gente tá falando tão baixo se não tem ninguém no apartamento? – perguntou Roberto.

– Dá pra escutar tudo do corredor. Se os meninos chegarem, eles escutam direitinho.

– Pronto, vamos lá – falou Charles, voltando com o baseado.

– Vamos fumar na varanda? Tem uma vista boa.

– Não, não, Roberto – respondeu Neusa. – A gente fuma na área de serviço. É aqui, vem.

Neusa foi na frente, seguido por Rosinha, Roberto e Charles.

– Área de serviço? Por quê?

– Porque dá pra gente escutar o barulho do elevador chegando. Se os meninos chegarem, a gente sabe logo e dá tempo apagar.

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– E a gente vai fumar assim, em pé, no meio dessas roupas todas penduradas?

– Roberto! – Rosinha cutucou o marido. – Pare de reclamar, que coisa feia…

– Lá em casa a gente fuma na varanda, olhando pro parque…

– Roberto!

Roberto calou-se. A baseado dado não se olha os dentes, pensou enquanto analisava o ambiente ao redor. Havia dois lençóis pendurados, três cuecas, uns sutians e uma camisa do Ferroviário Atlético Clube.

– Só uma perguntinha, Neusa… – ele falou, entre uma e outra tragada. – Os meninos são caretas?

– São.

– E eles não sabem que vocês fumam?

– Sabem sim.

– Mas então… Por que essa paranoia toda?

– Eles sabem mas fingem que não sabem.

– Como assim?

– Desde pequenos eles sabem que a gente fuma, mas não gostam. E nem tocam no assunto.

– E a gente finge que não sabe que eles sabem – completou Charles.

Roberto não se aguentou. Explodiu num riso incontido, tossindo fumaça para todo lado. Rosinha o cutucou mais uma vez. Aquilo era demais, pensava Roberto no meio do riso. Como uma família podia ser tão paranoica? Os filhos fingiam que não sabiam que os pais fumavam maconha e os pais sabiam que os filhos sabiam mas também fingiam que não sabiam. Era demais…

– Quer dizer que eles não dizem nada? – falou Roberto, conseguindo enfim uma trégua com o próprio riso.

– Até dizem – respondeu Neusa. – Mas indiretamente. Por exemplo, quando passa notícia sobre droga na tevê, eles dizem: devia era prender esse bando de maconheiro sem-vergonha!

– Sério?! – e Roberto explodiu novamente em gargalhada, trégua desfeita.

– Roberto! – ralhou Rosinha, envergonhada diante do marido que se contorcia entre os lençóis, se equilibrando para não cair.

– E vocês, não respondem nada? – ele ainda encontrou forças para perguntar.

– O Charles faz que não escuta. Mas eu concordo, digo que tem mais é que botar tudo na cadeia mesmo.

– Inacreditável… – murmurou Roberto, respirando fundo, tentando parar de rir.

– Mas você não sabe da melhor – prosseguiu Neusa. – Dia desses a gente descobriu como é que eles se referem à gente e aos nossos amigos que também fumam.

– Como é? – quis saber Roberto, já pressentindo que vinha mais coisa.

– “Os revolta”.

– “Os revolta”?

– Sim. Quer dizer os revoltados da vida. Engraçado, né? Vocês querem uma pastilha?

Pronto. Roberto não mais conseguiu se controlar e caiu no chão da área de serviço. Ainda tentou se segurar num lençol, mas terminou quebrando o cordão e as roupas todas despencaram por cima deles, derrubando-os. Enquanto Rosinha pedia desculpas e tentava ajudar Neusa a se levantar, Roberto rolava de rir pelo chão, as lágrimas escorrendo. E uma cueca na cabeça.

– O elevador! – avisou Charles. – São eles! Vou pegar o aromatizador.

– Levanta, Roberto, tá sujando a roupa lavada.

– “Os revolta”… – Roberto segurava a barriga enquanto a mulher tentava livrá-lo dos lençóis. – É demais…

Anna Priscylla e Charles Junior abriram a porta da sala e entraram.

– Oi, pai! Oi mãe!

Neusa correu para a sala, para encontrar os filhos. Charles chegou depois, acompanhado de Rosinha e Roberto.

– Meninos, esses são dois velhos amigos da gente, a Rosinha e o Roberto. A gente se encontrou no shopping e eles vieram pra conhecer vocês.

– Mas como cresceram! – exclamou Rosinha, impressionada.

– Oi, Charles Junior… Oi, Anna Pris… – tentou falar Roberto. Mas não se aguentou e caiu novamente na gargalhada, um acesso incontrolável que o fez se encostar na parede e ir descendo até sentar no chão.

Rosinha puxou-o pelo braço com uma cara horrível. Mas Roberto não conseguia parar de rir. Neusa sorria sem jeito, sem saber o que dizer, enquanto Charles fechava a porta da cozinha para os meninos não sentirem o cheiro. Esses, por sua vez, olhavam meio rindo, meio assustados para o homem que gargalhava e se contorcia no chão.

Por fim, Rosinha conseguiu erguer o marido e, desculpando-se, explicou que ele bebera demais e que já iam, estava tarde, foi um prazer conhecer os meninos…

Somente na rua, já dentro do carro, foi que Roberto conseguiu parar de rir.

– Ai, minha barriga… Há tempos eu não ria tanto.

– Há tempos eu não passava uma vergonha tão grande, isso sim.

– “Os revolta”… Ai, Rosa, é demais. Ainda não acredito nisso. E a cara do menino, você viu, com aquele boné pra trás da cabeça? Tinha mesmo cara de Charles Junior. Que nome horroroso! Como é que se batiza um filho com o nome de Charles Junior?

– Ah, coitado, Roberto…

– Já pensou, Rosa, quando esse menino arrumar uma namorada e ela precisar dizer eu te amo: Eu te amo, Charles Junior… Não, não, é impossível amar alguém chamado Charles Junior. E a outra, como é mesmo? Anna Priscylla. Com dois enes, um ípsilon e dois eles. É mole? E o pai ainda é torcedor do Ferroviário. E fuma tampando o nariz, você viu?

– Vi.

– Que família paranoica! Você viu a cara dos meninos, dois demoniozinhos repressores… Uns tiranos. Qualquer dia vão entregar os pais à polícia, você vai ver: Filhos denunciam pais maconheiros…

– Que exagero, Roberto.

– Como é que um pai e uma mãe chegam a esse ponto, de ser chamado de revolta pelos próprios filhos? Ei, revolta, telefone. Ei, revolta, cadê minha mesada? Pra mim, isso é falta de chinelada, isso sim.

Rosinha teve vontade de rir, mas ainda estava envergonhada pelo papelão do marido. Não podia dar o braço a torcer.

– Minha irmã olhava praqueles pôsteres do Che Guevara no meu quarto e me chamava de revoltado – lembrou Roberto. – Mas chamar os pais de “os revolta”?… É o fim do mundo mesmo. Sua mãe não vive dizendo que o mundo está acabando? Pois taí.

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