Minha Doce Vida Perdida

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Minha Doce Vida Perdida

Ricardo Kelmer – Miragem Editorial, 2023 – 11,5 x 18cm – 132 pag
ISBN: 978-65-5556-701-4

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RESUMO 1

Em meio a problemas no casamento, Téssio é transportado para o passado e lá encontra a si mesmo e a sua mulher Ariane, aos vinte anos de idade. Envolvidos numa conflituosa relação a três, eles precisarão lidar com novos e antigos sentimentos enquanto Téssio tenta retornar à sua vida oficial.

RESUMO 2

Antigo na literatura, o tema do duplo foi utilizado por muitos autores em suas obras. Neste romance, o tema é retomado, inspirado no mito grego do labirinto do Minotauro e trazendo a curiosa história de Téssio e Ariane, que se encontram e desencontram nos cruzamentos de seus destinos.

Ao deparar-se consigo mesmo no passado, Téssio é forçado a ver-se verdadeiramente, como jamais o fizera, e a enfrentar dilemas cruciais, enquanto reavalia sua vida e o amor que sente pela mulher e pela filha.

Explorando as possibilidades do fantástico numa narrativa com o ritmo ágil das comédias românticas, Minha Doce Vida Perdida oferece bons momentos de entretenimento e oportunas reflexões sobre o tempo, o amor e o amadurecimento.

Capítulos 1, 2 e 3 (mais adiante)

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OPÇÕES PARA LER E COMPRAR

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APRESENTAÇÃO

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A primeira versão desta história, de 1997, é o conto O Strip-tease, que é todo feito de diálogos diretos e integra o livro Guia de Sobrevivência para o Fim dos Tempos, lançado no fim daquele ano. Em 2005, reescrevi-a em forma de roteiro de filme. Depois, reescrevi novamente, adaptando a história para a linguagem literária, mas mantendo a estrutura narrativa do roteiro, priorizando as cenas. Isso significa que se, um dia, alguém desejar transformá-la em filme, parte do trabalho já está feita.

Foram dezoito anos a testar as possibilidades da história de Téssio, Ariane e Dorinha, deixando-a dormir por um tempo e retomando o trabalho, sem pressa. Eu não sabia o que faria com ela ‒ sabia apenas que precisava finalizá-la. Nesse processo, eu envelhecia, e isso influenciava o modo de compreender e contar a história. Em 2023, enfim, ela ficou pronta e desejosa de ser revelada ao mundo. Desejo satisfeito.

Quem fomos nós e em quem nos tornamos? Quem poderíamos ter sido? Esta história é isso, uma aventura de encontro consigo mesmo, que é o que acontece quando nos é dada a oportunidade de envelhecer.

Ricardo Kelmer – Fortaleza, mai2023

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FALARAM DO LIVRO PELAÍ

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>Jornal O Povo (Fortaleza-CE), 31.07.23 – Romance de Ricardo Kelmer explora o conceito de multiverso. Matéria da jornalista Lara Montezuma

> Viagem a Creta (por Nirton Venâncio, 14.09.23) – E tudo é labirinto nessa excursão mítica do ontem com o contemporâneo: a autor na destreza e manobras dos contornos do enredo, os personagens se espelhando e se compartilhando em dois tempos e o leitor imantado com a reflexão e o entretenimento

> Entrevista no Programa Autores e Ideias (17.10.24) – Rádio Assembleia FM, Fortaleza-CE. Produção e apresentação: Lilian Martins. Para ouvir no Spotify
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LEIA OS PRIMEIROS CAPÍTULOS

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Minha Doce Vida Perdida CAPA 3D 3a PNGCAPÍTULO 1

Na tela da tevê, cenas de filmes e documentários se alternavam. Deitado no sofá da sala, controle remoto na mão e lata de cerveja ao lado, Téssio procurava algo para assistir. No tapete, a filha pequena se divertia com um cãozinho.

– Papai já pediu pra você ir brincar com Apolo no quarto, não foi?

Ele deu um gole na cerveja e pôs novamente a lata no chão. De olho na tela, sua busca prosseguia: mais um filme bobo, outro filme idiota, outro mais idiota ainda. Téssio esfregou os olhos, impaciente. De que valia pagar por uma assinatura com mil canais se não havia nada que prestasse?

Num movimento brusco, o cãozinho bateu na lata e derramou a cerveja sobre o tapete.

– Que merda, Dorinha. Vou prender esse cachorro.

– Não, pai, por favor…

– Então vai brincar lá no quarto.

Enquanto Dorinha saía com Apolo, Téssio foi à cozinha, pegou outra cerveja e voltou para o sofá. Estava muito irritado. Após uma exaustiva semana de trabalho, tudo que desejava era uma noite de sexta-feira tranquila, sem afobações.

– Oi, amor.

Era Ariane, que chegava da academia. Ele não respondeu, olho fixo na tevê.

‒ Adoro a academia na sexta, sempre tem pouca gente ‒ ela comentou e, em seguida, foi até o sofá e beijou o marido. – E essa barba, não vai tirar nunca mais na vida?

Ele novamente não respondeu. Ariane foi para a sacada ver as plantas de que cuidava com tanto esmero.

‒ Você viu? A orquídea vai ganhar florzinha.

‒ Temos que devolver esse cachorro, Ariane. Ele continua cagando por todo canto.

‒ O Apolo é filhote, Téssio, vai aprender. E o seu celular, foi pegar na oficina?

‒ Só fica pronto na segunda-feira.

‒ Um fim de semana inteiro sem celular? Acho que vai te fazer bem. Mas, se precisar, usa o meu. Agora, vou tomar banho e depois jantamos, tá?

‒ Tô sem fome.

‒ Dorinha, mamãe chegou!

Um tempo depois, Téssio foi à cozinha e abriu outra cerveja. Ariane e Dorinha já haviam comido e, agora, sentadas ao balcão que dividia a cozinha da sala, brincavam de ler um livro infantil de poesia.

‒ Viver é um sonho…

‒ Um vento que passa… ‒ completou Dorinha.

‒ Vida sem poesia…

‒ É tempo sem graça!

Téssio encostou-se na ponta do balcão, observando-as. Dezessete anos de casamento…, pensou, tomando um gole. Lembrou de como conheceu Ariane na universidade. Era 1995 e tinham 20 anos. O início do namoro, ele morando com o amigo Heitor e ela com uma amiga. Depois de oito anos, o casamento. Ele a amava e a admirava por seu equilíbrio, sua determinação e sua força discreta, sempre a apoiá-lo nos momentos difíceis. Desde o início, sentiu que com ela poderia viver pela vida inteira.

Seus ganhos como publicitário, somados ao salário de Ariane como professora de português, lhes permitiam uma vida com certo conforto. Após o nascimento da filha, que tinha agora 6 anos, viram-se forçados a trabalhar mais, o que não foi um problema para ela, que amava o que fazia, ao contrário dele, que já não sentia tanto prazer no trabalho. Estava cansado de criar campanhas para fazer as pessoas gastarem seu pouco dinheiro comprando coisas de que não necessitavam. Isso o fazia sentir-se culpado e inútil.

Estavam agora em 2020 e tinham 45 anos, e, ultimamente, surgiam alguns desentendimentos. Ele reclamava que ela gastava muito com supérfluos e que fazia todas as vontades da filha. Ela queixava-se que ele estava cada vez mais irritadiço e impaciente, que às vezes a tratava com grosseria e que descuidava da saúde.

Enquanto tomava mais um gole de cerveja, Téssio reparou nos ímãs na porta da geladeira, vários bichinhos simpáticos que todo ano ele trazia para celebrar os aniversários de casamento.

‒ Não lembro de ter comprado essa girafa ‒ ele estranhou, pondo o óculos para ver melhor.

‒ Fui eu quem comprei, este ano.

‒ Você?

‒ Sim. Porque você esqueceu.

Ele ficou em silêncio.

– Vou ler um pouco ‒ Ariane falou, beijando o marido e a filha. ‒ Você põe Dorinha pra dormir?

Téssio assentiu com a cabeça, girando a lata de cerveja na mão. Da geladeira, a girafa parecia olhar para ele com desaprovação.

*   *   *

Ariane saiu do banheiro, vestiu uma camisola e apagou a luz do quarto. Sentindo-se relaxada, acendeu o abajur e deitou-se na cama. Pegou na cabeceira o livro de Fernando Pessoa, seu poeta preferido, e abriu numa página qualquer, como gostava de fazer. Seu deleite, porém, durou pouco tempo.

– Que merda!

Era Téssio, entrando no quarto e acendendo a luz.

‒ O que houve?

‒ Aquele cachorro idiota cagou bem na entrada do quarto.

Saltando numa perna só, Téssio seguiu em direção ao banheiro.

– Você quem insistiu em comprar esse cachorro. Eu avisei que não ia dar certo.

– Calma, meu amor, vamos resolver isso.

Ariane largou o livro, saiu do quarto e logo retornou trazendo material de limpeza.

– É a última noite desse cachorro aqui – Téssio anunciou enquanto ligava o chuveiro para lavar o pé.

– Dorinha já tá afeiçoada ao Apolo.

– Mas não é ela quem limpa a bosta dele.

– Nem você ‒ respondeu Ariane, calmamente.

Téssio deixou o banheiro e caminhou até o guarda-roupa. Vestiu uma camiseta preta surrada e uma calça jeans, que abotoou com dificuldade. Talvez fosse hora de roupas novas, pensou, irritado.

– Vai sair?

– Vou lá no Heitor.

‒ Não tá tarde?

‒ Ele tá em casa. E lá não tem bosta de cachorro espalhada pelo chão.

– Não acho isso legal. Mês passado você fez a mesma coisa, só porque tivemos aquela discussão sobre a conta de energia.

Ele vestiu uma camisa e pôs a carteira no bolso.

‒ Se precisar falar comigo, liga pro Heitor.

– Se eu fosse você, pensaria melhor.

‒ Por quê? O que você vai fazer? Vai me processar por abandono do lar? ‒ perguntou ele, irritado. Mas ela não respondeu.

No corredor, ele aguardava o elevador, acompanhando os números dos andares no visor. Então, ouviu a voz de Dorinha:

– Papai…

Ela estava na porta do apartamento, olhando para ele.

– Filha, isso não é hora de uma menina de 6 anos estar acordada.

‒ Não quero que você vá embora.

Ela tinha o olhar tristonho.

– Vem cá, dá um abraço…

Ele se agachou e ela o abraçou. O contato com o corpo da filha o inundou de ternura.

– Minha bonequinha… Amanhã papai tá de volta, viu?

‒ Mamãe vai fazer risoto de camarão.

Ele riu da artimanha da filha. Era sua comida predileta.

‒ Eu sei. O risoto da mamãe é imperdível.

Ela o abraçou mais forte.

– Quando você casar, vai entender certas coisas.

Téssio percebeu que a filha tinha na mão uma foto. Ele a pegou e sorriu. Era uma foto antiga de Ariane, ela num vestido do tipo indiano, descalça, dançando. Fora ele mesmo quem tirara a foto, em seu aniversário de 20 anos, ele encantado com o jeito de dançar da graciosa estudante de Letras… Naquela noite, começaram a namorar.

– Mexendo nas coisas do papai de novo, né? – Ele beijou a cabeça da filha e a abraçou novamente. – Agora, volte pro seu quarto, tá?

Após Dorinha retornar ao apartamento, Téssio entrou no elevador. Enquanto descia os andares, olhou a foto outra vez, revivendo a sensação daquele momento, ele e Ariane felizes, todo um belo futuro diante deles…

*   *   *

No apartamento de Heitor, Téssio serviu-se de uma dose de uísque. Depois, pegou outro copo e começou a servir.

– Não posso beber hoje, cumpade ‒ falou Heitor. ‒ Amanhã tenho campeonato de salsa.

‒ Advogado e dançarino de salsa. O mundo tá perdido.

– Porém… deixar o velho amigo bebendo sozinho é muito deselegante.

– Ah! Esse é o Heitor que eu conheço.

Brindaram e beberam. Téssio sentou-se no sofá, e Heitor numa cadeira à frente.

‒ E essa barbona aí? Tu já foi mais cuidadoso com a aparência, cumpade.

‒ Preguiça de aparar.

‒ Ariane e Dorinha estão bem?

‒ Sim.

Téssio tomou um gole.

‒ Eu e Ariane é que estamos mais ou menos.

‒ Como assim?

‒ Não sei bem explicar.

‒ Aconteceu alguma coisa?

‒ Não. Mas, às vezes, acho que… não tenho mais a mesma admiração que eu tinha por ela.

‒ Numa relação de longo tempo, os sentimentos mudam. Isso pode deixar o casal confuso, é natural.

Téssio riu:

– Falou o solteirão que nunca casou.

– Verdade. Mas de casamento dos outros eu entendo. Lá no escritório quase todo dia aparece caso de separação.

– Às vezes penso que eu viveria melhor sem ela. Mas não sei se é o que quero.

– E terapia de casal, o que acha?

‒ “Trago seu casamento de volta…” Acho ridículo. Quem sabe o que eu vivo sou eu.

‒ O velho Téssio orgulhoso…

Téssio ficou calado, mexendo o gelo do uísque.

‒ Ariane é uma mulher incrível, cumpade. Mãe maravilhosa, boa professora… E tá ótima pra uma mulher de 45 anos, viu?

‒ Eu sei.

‒ Falando nisso, é hora de cuidar desse corpinho aí. Recomendo duas aulas de salsa na semana.

Téssio não respondeu.

‒ E esses grisalhos? Podia pintar, pra dar uma rejuvenescida. A tintura que eu uso é ótima.

‒ Mais alguma dica de estética?

Heitor percebeu que o amigo estava ficando irritado.

‒ Talvez outros problemas estejam te afetando ‒ ele prosseguiu. ‒ Outro dia, você me disse que não suporta mais publicidade, que queria mudar de ramo, não foi?

‒ Eu ainda gosto. Mas me sinto péssimo quando vejo que contribuo pra alimentar essa paranoia de consumismo. Vamos mudar de assunto?

Téssio tomou outro gole. Heitor compreendeu, e a conversa virou para outros temas. Falaram da situação política e dos problemas mundiais. Viram um show de rock na tevê. Lembraram de como se conheceram, ainda adolescentes.

‒ Trinta anos de amizade ‒ comentou Téssio.

‒ É muito tempo te aturando.

Recordaram os tempos de faculdade, Téssio na Publicidade e Heitor no Direito.

‒ Naquela época, te chamavam de TJ ‒ lembrou Heitor.

‒ Foi você quem começou a me chamar assim.

‒ TJ Cara de Xoxota.

‒ Caramba, o apelido tinha até sobrenome!

E riram, como velhos amigos riem de velhas piadas.

Quando o relógio marcou uma da madrugada, Heitor foi ao quarto e voltou com lençol e travesseiro, jogando-os no sofá.

– Amanhã acordo cedo, cumpade. Se quiser dormir aqui, fique à vontade.

Após Heitor sair para seu quarto, Téssio continuou na sala, bebendo uísque, ouvindo música e pensando na vida. Um tempo depois, levantou-se do sofá para servir mais uma dose, mas sentiu uma dor na cabeça tão forte que ficou tonto e sentou-se novamente. Era uma dor aguda, como se sua cabeça fosse atravessada por uma grande lâmina. A vista escureceu e ele deitou-se no sofá. Assustado, quis chamar por Heitor, mas a voz não saiu. Tentou se mover, mas não sentia o corpo. Imóvel e envolto em escuridão, teve medo de morrer.

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CAPÍTULO 2

Minha Doce Vida Perdida CAPA 3D 3a PNGO dia estava claro quando Téssio acordou. Ele recordou da noite anterior, mas não do momento em que adormecera. Deitado no sofá, olhou o relógio e tomou um susto: três horas da tarde.

Apanhou o óculos no chão, pôs no rosto e levantou-se, enfrentando a ressaca. Sobre a mesa, a garrafa de uísque quase vazia. Chamou por Heitor, mas ele não estava em casa.

Após caminhar as poucas quadras que o separavam de seu prédio, chegou em casa, parando antes do portão para tomar fôlego. Quando abriu a porta do apartamento, não compreendeu o que viu. A sala estava uma bagunça, móveis fora do lugar, caixas de papelão pelo chão.

– Ariane?

Ninguém respondeu. Silêncio total no apartamento. Ele caminhou para o quarto de Dorinha, pressentindo o pior.

– Dorinha!

Com exceção do armário embutido, o quarto da filha estava vazio. A cama não estava lá, nem os brinquedos. Nem sinal de Dorinha.

Angustiado, correu para seu quarto. Viu a cama de casal, o guarda-roupa… mas faltavam o abajur e os quadros na parede. Abriu a porta do guarda-roupa. E lá não estavam as roupas de Ariane.

Não, ela não fez isso…, pensou, revoltado.

– Você vai se arrepender, Ariane.

*   *   *

Acomodada à sua mesa, a delegada Têmis aguardou que o escrivão finalizasse o texto no computador e imprimisse. Depois, repassou as folhas impressas para o homem sentado à sua frente. Encostou-se em sua cadeira e o observou enquanto ele lia. O homem estava com tanta raiva que suas mãos tremiam. Despenteado, a roupa amassada e um bafo de bebida terrível… Mais um marido com problemas com a esposa, deduziu a delegada, com a experiência dos seus 70 anos.

– Se concordar com tudo que está aí, é só assinar, senhor Téssio.

– Eu falei rapto. Por que ele não escreveu rapto? Ela raptou minha filha!

– Por enquanto, oficialmente, sua filha e sua mulher deixaram sua casa e o senhor não sabe onde elas estão. Isso não pode, neste momento, ser configurado rapto.

– Eu sei que foi.

– É o que iremos averiguar.

Contrariado, Téssio assinou os papéis e os entregou de volta. Ao se levantar da cadeira, desequilibrou-se e caiu no chão.

– O senhor está bem? ‒ indagou o escrivão, oferecendo a mão. Téssio não respondeu, erguendo-se sozinho.

– O senhor está abalado, senhor Téssio, e eu compreendo. Sugiro que vá para casa, tome um banho…

– Além de delegada, a senhora é conselheira de higiene? – Téssio interrompeu, irritado.

A delegada Têmis sorriu, paciente. E indagou:

– O senhor conhece a cidade de Quimera, na serra?

‒ Conheço ‒ ele respondeu, sem entender a mudança de assunto.

‒ Mês que vem, me aposento e vou morar lá, numa casa que meu marido e eu construímos. Vou curtir a Natureza e brincar muito com meus netos. Tenho oito, e a mais nova nasceu este ano, chama-se Helena. Se um dia o senhor for em Quimera, está convidado para um café conosco. ‒ A delegada fez uma pausa. ‒ Mas sugiro ao senhor moderar esse seu temperamento, senão poderá estar legalmente impedido de viajar, se é que me entende.

Téssio não respondeu. Percebeu que a delegada tentava ser amigável. Mas entendera o recado.

*   *   *

Já era noite quando, após deixar a delegacia e caminhar sem rumo por alguns minutos, entrou num botequim para descansar um pouco. Sentou-se ao balcão, pediu cerveja e um petisco qualquer para comer. Sentia-se aliviado por ter feito o que fizera. Agora, Ariane teria que comparecer à delegacia e se explicar.

Pôs cerveja no copo e virou de uma vez. Da parede, num calendário, uma bela mulher de biquini lhe sorria, e por trás dela o ano de 2020 brilhava em fogos de artifício. Ela se parecia com Ariane, o jeito doce de olhar, uma mecha de cabelo sobre o rosto… Aquela estética otimista, porém, não o seduziu. O que precisava mesmo era de um bom advogado. Pediu para usar o telefone do bar e ligou para o velho amigo.

– Heitor? É o seguinte. Ariane raptou minha filha e eu quero o divórcio. E você vai ser meu advogado. Tô num bar aqui no Centro, nem sei o nome. Não, não tô bêbado. Pô, Heitor, eu tô falando sério! Ariane raptou minha filha e… Heim? Tudo bem, não vou atrapalhar teu sábado. Ok, amanhã passo na tua casa. Combinado. Tchau.

Téssio virou a cerveja e pediu outra.

*   *   *

Chegou em casa de madrugada. Estava muito bêbado. Na sala, viu as caixas de papelão pelo chão. Tudo parecia estar do mesmo jeito de quando saíra, à tarde. Pelo jeito, Ariane separara algumas coisas e ainda não voltara para pegar. Talvez fosse uma boa ideia trocar a chave da porta… Sim, amanhã faria isso.

Só então percebeu algo estranho: as paredes estavam diferentes. Aproximou-se e viu que a pintura era recente. Mas, como podia ser? Por que Ariane fizera aquilo?

Abriu uma das caixas. Dentro, latas de tinta e pincéis. Na outra caixa, mais latas, folhas de jornal, material de pintura e outras ferramentas. Aquilo estava muito estranho. Uma ideia lhe ocorreu: errara de apartamento. Estava tão bêbado assim? Abriu a porta e conferiu o número. Estava correto. Mas que diabos…

Na porta do apartamento vizinho, meio corpo para dentro, uma senhora idosa o observava, desconfiada.

– Boa… noite ‒ ele a cumprimentou, em meio a um soluço.

– Boa noite – ela respondeu, séria.

– A senhora, por acaso, viu minha mulher hoje? Ou minha filha?

Por um instante, perdeu o equilíbrio e teve que apoiar-se na parede do corredor.

– O senhor me disse que era solteiro.

– Eu? Quando?

– Ontem, quando chegou.

– Ontem?

Ela o observou por alguns segundos, séria. Então, entrou e fechou a porta.

– Eu, heim? Velha doida…

Voltou para o apartamento e foi direto para o quarto. Sentou-se na cama e tentou tirar os sapatos, mas a tontura não permitiu. E adormeceu, de roupa e tudo.

*   *   *

Após um longo bocejo, Téssio virou-se para o outro lado e ajeitou o travesseiro. Então, abriu os olhos, assustado, lembrando que combinara de encontrar Heitor.

No banheiro, após passar água no rosto, percebeu que o ambiente estava diferente, faltavam vários objetos. Na cozinha, o fogão e a geladeira também estavam diferentes. Ou ele é que ainda estava bêbado?

Caminhou num passo rápido pelas ruas silenciosas. O domingo estava nublado, ideal para ficar na cama até tarde. Mas não teria esse privilégio, precisava iniciar o processo de divórcio o mais rápido possível.

Foi então que viu. Entrando numa farmácia. Ariane!

Ele correu e entrou também. Ariane conversava com uma funcionária. Ele aproximou-se.

– Raptoras de crianças agora se escondem em farmácias, é?

Ariane virou-se.

– Como?

– Pra onde você levou minha filha?

Ele percebeu o olhar desconfiado da funcionária e disfarçou, fingindo que olhava os produtos.

– Cadê a Dorinha, Ariane?

Ela olhou para ele com mais atenção.

‒ Téssio? É você?

‒ Cadê a Dorinha??!! ‒ ele gritou, chamando a atenção das outras pessoas.

Assustada, Ariane afastou-se. Ele tentou pegá-la pelo braço, mas ela correu para fora da loja. Na perseguição, Téssio escorregou e caiu sobre a prateleira, derrubando os pacotes de fraldas. Um funcionário ofereceu ajuda, mas ele recusou. Com dificuldade, conseguiu erguer-se e saiu da farmácia. Na calçada, foi barrado por dois policiais, que o seguraram.

‒ Algum problema, senhor?

Téssio olhou ao redor e viu que Ariane o observava a distância. Observou a identificação no peito do militar.

‒ Tenente Almino, o senhor tem que prender aquela mulher.

– Calma. Explique o que está acontecendo.

‒ Ela raptou minha filha!

– Ela quem?

– Aquela cínica ali ‒ Téssio respondeu, apontando para Ariane.

– Você conhece esse senhor, meu amor? – tenente Almino perguntou para Ariane.

– Meu amor? – Téssio não entendeu. – Que brincadeira é essa?

– A mulher que o senhor está acusando é a minha esposa.

– Que papo é esse? Ela é minha mulher. Quer dizer, em breve vai ser minha ex-mulher, eu tô pedindo o divórcio.

– É o Téssio, Almino. – falou Ariane, aproximando-se. – Fomos colegas na faculdade. Muitos anos que eu não via.

Téssio sentiu a raiva tomar conta de cada célula de seu corpo. Avançou para cima de Ariane e segurou-a pelos braços.

– Pare com essa encenação ridícula! Quero minha filha de volta!

Os policiais o seguraram novamente, afastando-o de Ariane.

– O senhor está preso por agressão – informou o tenente Almino.

– Ariane, sua falsa! Conte a verdade! Você raptou nossa filha!

Téssio resistiu, mas não adiantou, e os policiais o levaram para a viatura, estacionada ao lado.

– Ariane! – ele gritou lá de dentro. – Diga pra esses idiotas quem sou eu!

O tenente Almino passou por Ariane, fez sinal que estava tudo bem e entrou na viatura com o outro policial.

– Ariane! – Téssio gritava, desesperado. – Ariane!!!

Na calçada, entre os curiosos que observavam a cena, Ariane estava pasma.

– Que coisa… o Téssio…

*   *   *

Na delegacia, de paletó e gravata, Heitor olhava para o amigo, reparando em sua roupa suja, o cabelo despenteado, a barba crescida, a cara de ressaca… Controlou-se para não rir.

– Escute, senhor Téssio ‒ a delegada falou. ‒ Seu advogado me explicou que o senhor sofre de transtornos mentais.

Téssio esfregava as mãos, nervoso.

– Farmácia deixa meu cliente nervoso, delegada, aqueles remédios todos…

– O senhor tem sorte – prosseguiu a delegada, olhando firme para Téssio. – A esposa do tenente Almino preferiu não formalizar a queixa. E ele esqueceu que o senhor o desacatou, não é, tenente?

Tenente Almino assentiu com a cabeça. Depois, pediu permissão e saiu. Téssio seguiu-o com o olhar. Mal conhecia o policial, mas já o detestava.

– Muito obrigado, delegada – Heitor agradeceu, profissionalmente.

– E quanto à queixa de rapto que o senhor fez ontem, nós verificamos que o senhor é solteiro, nunca foi casado, não tem nenhuma esposa chamada Ariane e também não tem filhos. Falsidade ideológica é crime, senhor Téssio.

– Meu cliente está passando por problemas, delegada. Ele é muito sensível e…

– Mais uma coisa – interrompeu a delegada Têmis. – Aconselho o senhor a não se aproximar mais da esposa do tenente Almino.

– Ele seguirá seu conselho, não se preocupe.

Heitor levantou-se, tomando Téssio pelo braço.

– Um último conselho, senhor Téssio.

Eles viraram-se para a delegada.

– Tomar banho faz bem à saúde.

Téssio sentiu vontade de responder, mas Heitor falou antes:

– Excelente conselho, delegada. Obrigado.

Enquanto observava os dois homens indo embora, a delegada Têmis pegou seu cordão com a imagem de sua santa e beijou.

– Minha santinha do Sinai, de doido e cobrador me livrai…

*   *   *

Na sala do apartamento de Téssio, Heitor abriu a sacola e retirou o lanche que compraram após deixar a delegacia. Do outro lado da mesa, Téssio olhou para o sanduíche, sem fome.

– Quer dizer que até anteontem você era casado com aquela Ariane da Letras? ‒ perguntou Heitor, dando a primeira mordida em seu sanduíche. ‒ E vocês tinham uma filha e, de repente, nada disso é mais verdade. E, duas noites atrás, você discutiu com Ariane e foi dormir lá em casa.

‒ Exato.

Téssio deu uma pequena mordida no sanduíche.

– Olha, cumpade, nós somos amigos desde a adolescência, faz trinta anos. Você é publicitário, e eu advogado. Você nunca casou, nem eu. Você nunca namorou nenhuma Ariane. E não tem nenhuma filha chamada Dorinha. Até semana passada, você morava comigo. Aí você alugou este apartamento e fez a mudança. Olha essas caixas. Olha a parede que eu mesmo te ajudei a pintar. Lembra disso?

– Não.

‒ Lembra que tá me devendo dez mil?

‒ Eu?!

‒ Brincadeirinha… De que você lembra?

– Lembro da vida que eu tinha. Algumas coisas não mudaram, mas outras, sim.

– Sua vida é esta.

‒ Não. Isso deve ser um sonho. Um pesadelo.

– Então, por que você não acorda?

– Não sei. Esse é o problema.

Téssio apoiou as costas no encosto da cadeira, sentindo vontade de chorar.

– Pô, Heitor, me ajuda…

Heitor tocou o ombro do amigo.

– Calma, vamos resolver isso. – Heitor pegou o celular. – Vai comendo aí que eu vou falar com a Creusa.

‒ Que Creusa?

‒ Aquela minha amiga psiquiatra, não lembra?

‒ Não.

‒ Não se preocupe, ela é de confiança. Creusa? É o Heitor. Desculpa ligar num domingo, mas é um caso urgente.

Enquanto Heitor falava com a amiga, Téssio tentava organizar as ideias. Se o que Heitor dizia era verdade, então todas as lembranças de sua vida eram falsas lembranças? Não, aquilo não fazia sentido.

– Ela concordou em te atender hoje, às quatro ‒ informou Heitor. ‒ Creusa é uma profissional competente, vai te ajudar. Eu vou te deixar lá no consultório e depois volto pra te pegar. Certo?

– Será que eu tô enlouquecendo?

Heitor olhou para o amigo. Por um instante, teve pena dele. Seu olhar mostrava claramente que estava confuso e amedrontado. Algo acontecera, de repente, para ele ficar assim. Mas o que poderia ser? Téssio sempre fora um cara de comportamento normal, e não havia doidos na família. É verdade que costumava perder a paciência com facilidade, às vezes tinha uns rompantes de raiva, mas não eram atitudes preocupantes. Agora, porém… aquele comportamento estranho, aquela história de outra vida…

– Talvez você esteja cansado, cumpade, trabalhando muito. Precisa descansar.

– Eu só preciso da minha vida.

Heitor pegou o sanduíche sobre a mesa e o entregou ao amigo.

‒ Se isso tudo for um sonho, Creusa pode te ajudar a acordar. Mas é melhor ir alimentado.

*   *   *

– E sobre Ariane, o que o senhor sente por ela?

Deitado no divã, Téssio percebeu que havia um quadro na parede. Limpou as lentes do óculos e pôs no rosto. Era o desenho de uma mandala, muito colorida, feita de quadrados e círculos concêntricos. Sem se dar conta, deixou-se conduzir pelos detalhes das formas geométricas, seu pensamento avançando rumo ao centro do desenho, para, então, descobrir que havia um centro mais profundo, e depois outro…

– Senhor Téssio? ‒ a psiquiatra o chamou, sentada próximo. ‒ O que o senhor sente pela Ariane?

‒ Não sei mais.

– O senhor disse que quer o divórcio.

– Sim, quero.

– Nesse seu sonho, o senhor é casado com ela, mas não quer continuar casado. Como o senhor…

– Vida – interrompeu Téssio.

– Como?

– A senhora falou sonho. Não foi um sonho. Era a minha vida. Que eu vivia até anteontem.

– Sim, claro, sua vida. Nessa outra vida, senhor Téssio, na qual…

– A senhora não acredita, né?

– Não é isso.

– Sei que não acredita. Ninguém acredita.

– Estou aqui para ajudá-lo. Juntos, vamos compreender o que…

Ele não quis ouvir. Levantou-se e abriu a porta.

– Para onde o senhor vai?

Ele não respondeu. Já descia as escadas do prédio. A psiquiatra, rapidamente, fez uma ligação.

– Heitor, seu amigo interrompeu a consulta e saiu sem dizer para onde ia. Não, não está nada bem.

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CAPÍTULO 3

Minha Doce Vida Perdida CAPA 3D 3a PNGJá entardecia quando Téssio saiu do caixa eletrônico. Para se prevenir em relação ao que Ariane poderia fazer, sacara uma considerável soma em dinheiro da conta bancária e alterara a senha.

Atravessou a avenida e chegou a uma praça. Heitor, certamente, estava tentando encontrá-lo, mas ele sabia que o amigo não podia ajudá-lo. A psiquiatra também não. Estava sozinho naquele pesadelo.

Sentou-se num banco da praça e tentou se acalmar. Próximo, um casal brincava com uma criança. Era uma linda e alegre garotinha. Téssio lembrou da filha. A lembrança de Dorinha, porém, não se sustentou em seu pensamento, parecia querer fugir…

– Problemas, cavalheiro?

Um sujeito estranho. Vestindo calça branca e camisa florida. Barrigudo, o cabelo negro, preso numa longa trança caindo às costas. Devia ter a sua idade.

– Ela foi embora, cierto?

O homem estava sob uma árvore, sentado atrás de uma mesinha de madeira com uma toalha roxa. Numa plaquinha, ao lado de um pequeno vaso com flores, estava escrito: “Javier Viegas resolve problemas do além e do aquém”.

Até nos sonhos existe chato, pensou Téssio, voltando o olhar para o casal e a criança. E ainda tinha sotaque espanhol.

– E o cavalheiro não consegue entender, cierto?

Téssio olhou novamente para o homem. Havia um baralho sobre a mesa.

– As cartas dirão o que fazer. Venga, por favor.

O homem indicou a cadeira do outro lado da mesa. Téssio continuou em silêncio.

– Senta logo, criatura. Eu não mordo, não. Pelo menos não em público… ‒ o homem brincou, e riu da própria piada.

Mais por cansaço que por vontade, Téssio saiu do banco e sentou-se na cadeira. À sua frente, o homem pegou as cartas, embaralhou e lhe entregou.

– Agora, você corta.

Téssio hesitou. Obviamente, era um desses charlatães que ludibriam os angustiados, que falam exatamente o que eles desejam ouvir. Eram tão previsíveis… Mesmo assim, cortou o baralho. O homem pegou de volta e começou a desvirar as cartas.

– Hummm… Crise no casamento… Um filho… Ou filha? Hummm… Filha. Sim, uma filhinha. Mas… no comprendo…

O homem olhava as cartas impressionado.

– Porra, fala logo! ‒ Téssio quase gritou. ‒ Tá vendo o quê aí?

No comprendo…

‒ Ah, vá se foder ‒ Téssio ergueu-se, irritado, pronto para ir embora.

– Sua vida está misturada… com outra vida.

Ele, parou, surpreso.

– Como?

– Senta aí, que o babado é forte.

Téssio olhou para os lados. Havia poucas pessoas na praça. Sentou-se novamente.

– Me dá a mão.

‒ Pra quê?

– Não se preocupe que eu não vou lhe pedir em casamento. Dá a mão, criatura.

Ele esticou a mão. O homem a pegou, fechou os olhos e pareceu se concentrar. Téssio observava, incomodado. O homem começou a estremecer. Téssio tentou puxar a mão, mas o homem a segurou com força, e, por fim, abriu os olhos. Parecia assustado. Téssio aproveitou e puxou a mão, pondo-a sob a mesa.

– Nunca achei que fosse pegar um caso desse… A propósito, ainda não nos apresentamos. Javier Viegas.

– Téssio.

– Pronto, já podemos deixar de lado as formalidades. Agora, preste muita atenção ao que vou dizer. Quando eu terminar, você terá duas opções: levantar e ir embora, achando que sou um charlatão, ou então vai aceitar minha ajuda.

Só falta dizer que o destino está em minhas mãos, pensou Téssio.

‒ O destino está em suas mãos ‒ falou Javier.

Téssio balançou a cabeça, sem conter um sorriso de ironia. Ainda não acreditava que estava ali, conversando com um tipo daquele.

‒ Adoro essas frases de efeito, sabe? Mas vamos ao que interessa, Tasso.

‒ Téssio.

‒ Desculpe, Téssio. Agora, escute bem ‒ Javier recomeçou. ‒ Todos nós vivemos, ao mesmo tempo, em muitas realidades, mas só conseguimos estar cientes de uma por vez. As realidades se formam no momento em que tomamos uma decisão importante, e elas vão se ramificando. Se você não tivesse vindo aqui quando chamei, isso provavelmente teria criado outra realidade pra você, automaticamente, uma outra vida que seguiria paralela a esta, numa outra dimensão da existência.

Javier parou e aguardou.

– Tô ouvindo ‒ falou Téssio, curioso, mas desconfiado.

– As muitas vidas que vivemos seguem paralelas, mas, às vezes, por algum motivo, se cruzam. Quando isso acontece, a pessoa não sabe mais em que vida está. É tipo uma… colisión!

Javier bateu forte uma mão na outra, assustando Téssio.

– As cartas mostram que duas vidas suas se cruzaram, Telmo.

‒ Téssio.

‒ Desculpe, Téssio. Não se preocupe que até o fim do capítulo eu decoro seu nome.

Javier riu, mas Téssio continuou sério.

‒ Como eu dizia, duas vidas suas se cruzaram, e agora você está nesta realidade. Isso faz sentido para você?

Téssio não respondeu.

‒ E você lembra da outra vida, não é?

– Como sabe dessas coisas?

– Só sei o que as cartas mostram, mi querido.

– E o que preciso fazer pra voltar pra minha outra vida?

– Confie nas cartas.

– Claro. E quanto me custaria essa confiança?

Javier pôs a mão no bolso da camisa e puxou uma pequena calculadora.

– Vamos ver… Duas realidades paralelas, cem mais cem. Quantos aninhos você tem?

– Quarenta e cinco.

– Mais quarenta e cinco… Que dia é hoje?

– Quinze.

– Vezes quinze…

– Vezes?! Por que não é mais quinze?

– Você tem dinheiro na poupança, aplicação?

– Não.

‒ E se tivesse, não me diria, né? Tudo bem. Menos cem. Pronto.

Javier mostrou o resultado: zero.

‒ A conta deu zero? ‒ perguntou Téssio.

– É seu dia de sorte. Não vai lhe custar nada.

– Por quê?

– Uma vez por mês, faço um serviço sem cobrar. Caridades de Javier. Para me manter alinhado à bondade cósmica, comprende? E eu gostei de você. Por isso… zero.

Téssio esfregava as mãos, desconfiado.

– Porém, tem um porém. O serviço tem que ser feito esta noite, senão você nunca mais conseguirá deixar esta realidade. Você já está se tornando parte dela, não sente? As lembranças de sua outra vida devem estar sumindo.

Téssio lembrou de Dorinha, da dificuldade de fixar sua imagem. Uma súbita angústia lhe invadiu, um medo de nunca mais poder abraçar a filha.

– E o serviço tem que ser feito no lugar certo – Javier interrompeu seus pensamentos. – Lembra onde tudo começou a ficar estranho?

– Ahn… Eu cheguei em casa ontem de manhã… Ariane não estava, nem Dorinha.

– E antes disso? Onde acordou nesse dia?

– No apartamento do Heitor.

– Então, é para lá que vamos. Ligue para ele.

Javier levantou-se e começou a recolher as coisas na mesa.

– Tô sem meu celular.

‒ Tome, ligue do meu.

‒ Mas o que vou dizer pra ele?

– Criatura, invente qualquer coisa. Ele só não pode saber o que realmente estamos fazendo. Mas, antes, vou em casa pegar o material. Moro naquele prédio ali da esquina.

Javier guardou o vaso e a toalha numa bolsa, pendurou-a no ombro com a alça atravessada sobre o peito e saiu em direção ao prédio.

– E a mesa e as cadeiras?

– Ficam aí. Para os vigilantes jogarem dominó. Tudo hoje é parceria, mi querido.

Téssio hesitou. Estava mesmo seguindo as ordens de um charlatão?

‒ Camarão que dorme, a onda leva ‒ falou Javier, atravessando a rua. ‒ É um antigo provérbio egípcio, conhece?

Téssio suspirou, sem forças para lutar contra a própria desconfiança, e seguiu atrás de Javier. Quando chegaram, reparou que era um prédio simples, sem portaria, precisando de manutenção. Javier abriu o portão e entrou. Téssio aproveitou e telefonou para Heitor.

Logo depois, Javier retornou, com a mesma bolsa a tiracolo. Téssio lhe entregou o celular.

‒ Falei com ele, podemos ir. É perto daqui.

‒ Que horas você almoçou?

‒ Nem almocei ainda.

‒ Ótimo. É melhor que esteja em jejum.

– Seja discreto lá, ok? Ou é pedir muito?

– Como se eu fosse uma pessoa espalhafatosa – respondeu Javier. ‒ Que injúria!

Téssio acompanhou o passo rápido de Javier. Era forçoso admitir que não sabia o que estava fazendo. Seguindo um vidente maluco e espalhafatoso. Levando alguém que não conhecia para a casa de seu melhor amigo. Talvez não estivesse mesmo muito bem da cabeça. Mas que escolha tinha?

– Vamos aproveitar esse belo passeio para você me contar sobre sua outra vida – falou Javier. – Lá você também tem essa barba horrorosa?

*   *   *

Heitor cruzou a sala e abriu a porta. À sua frente, estavam Téssio e um sujeito estranho, barrigudo, de camisa florida, o cabelo comprido numa trança…

– Heitor, esse é o Javier de quem te falei.

– Teu primo espanhol ‒ falou Heitor, olhando para Javier.

– Primo terceiro. Tô mostrando a cidade pra ele.

Es una ciudad muy hermosa… – falou Javier, simpático.

– Não sabia que você tinha parente na Espanha – Heitor falou para o amigo, desconfiado.

– Nem eu ‒ respondeu Téssio, entrando na sala. ‒ Surpresas da árvore genealógica.

– Prazer, Javier. Entre, por favor.

Con placer es más caro – respondeu Javier, entrando e recebendo o olhar reprovativo de Téssio.

– Vou pegar água pra você, cumpade, deve estar com sede ‒ falou Heitor, dirigindo-se à cozinha. ‒ O primo quer água também?

No, gracias, estoy bien ‒ respondeu Javier, observando os quadros na parede.

Heitor voltou logo depois. Entregou o copo para Téssio e o puxou pelo braço para mais distante de Javier. E sussurrou:

– Creusa me falou que você…

– Tá tudo bem agora ‒ interrompeu Téssio. ‒ Muito trabalho, isso afeta a mente, sabe como é. Minha vida é esta, como você mesmo disse. Sempre foi.

Heitor continuava desconfiado. Téssio bateu no ombro do amigo:

– Obrigado pela força. Você é amigão mesmo.

– Bem, como te falei no telefone, preciso sair. Vocês já comeram?

– Não se preocupe. Vamos só descansar um pouco e depois vou deixar Javier no hotel.

– Se precisar de qualquer coisa, me liga, tá ouvindo? – disse Heitor, pegando as chaves do carro. ‒ E beba água, você precisa se hidratar.

Téssio fez sinal de positivo. Heitor caminhou para a porta. Javier o seguiu.

– Algum problema? ‒ indagou Heitor, parando à porta.

Javier apontou para a camisa de Heitor.

‒ O que é que tem?

Esa camisa no combina con los pantalones.

Heitor olhou para a camisa, depois para a calça.

– Prefiro assim, obrigado ‒ ele respondeu, olhando desconfiado para Téssio, que sorriu, sem jeito. E saiu.

Téssio foi até Javier, irritado.

– Você disse que ia se comportar.

– Foi só uma consultoria estética. Sem cobrar. Agora, vamos trabalhar.

Javier pôs sua bolsa sobre uma cadeira e caminhou para a cozinha. Téssio o seguiu.

*   *   *

Heitor saiu do elevador com o celular ao ouvido. No térreo do prédio, caminhou em direção ao seu carro.

– Ele está em meu apartamento, Creusa, e veio acompanhado de um sujeito estranho. Tô muito preocupado. Você ligou pra clínica? Ótimo. Vou agora pegar os enfermeiros e passo aí pra pegar você. Escuta, não quero que machuquem meu amigo, viu? Sim, diluí o comprimido no copo dágua, ele já deve ter bebido. Tem certeza que ele vai ficar apenas grogue, né? Então, tá bom.

*   *   *

Javier pôs água para esquentar no fogão e depois tirou da bolsa dois potinhos de vidros contendo ervas. Ao seu lado, Téssio observava, segurando o copo com água que Heitor lhe entregara.

– Quer dizer que esse chá me levará de volta à minha vida oficial?

– Exatamente.

‒ Simples assim?

‒ Como simples assim? Isso é resultado de milênios de sabedoria acumulada dos pajés da Amazônia. Peça já desculpas a eles.

‒ Me desculpem, pajés da Amazônia.

‒ Melhorou.

‒ Você já fez isso muitas vezes?

Obviamente, ele dirá que é superexperiente e coisa e tal, pensou Téssio. Pergunta idiota.

‒ Nunca fiz.

– Ahn?! Como assim?

– Já falei, é a primeira vez que pego um caso desse. ‒ Javier misturou as ervas numa xícara. ‒ Espero acertar na dosagem.

– E se não acertar?

Javier pôs o restante das ervas num saquinho de plástico, fechou e entregou a Téssio.

– Guarde no bolso. Se não der certo, você toma o chá novamente. E voltará para cá.

‒ E aí?

‒ E aí tentaremos outra vez.

– Acho que você tá me usando como cobaia.

– Seja positivo. Veja-se como um felizardo que pode desvendar los secretos cósmicos.

Secretos cósmicos.

‒ Isso mesmo.

– Foda-se, Javier. Não vou ser um ratinho pros seus experimentos com os secretos cósmicos.

– Que pena. Bem, nesse caso, fique para sempre nesta realidade. Posso desligar o fogo?

Téssio ficou parado, olhando firme para Javier, enquanto na chaleira a água borbulhava.

– Decida logo, muchacho, senão o gás acaba.

Ele suspirou, aceitando a situação.

‒ Não tenho outra opção, né?

‒ Ótimo ‒ respondeu Javier, tomando o copo com água que Téssio segurava.

‒ Ei! Ainda não bebi.

‒ Você só precisa beber o chá.

*   *   *

Na sala, sentado na cadeira, Javier observava Téssio deitado no sofá a tomar o chá.

– Não estou sentindo nada, Javier.

– Nadinha?

– Nada.

– Não está vendo macaquinhos coloridos dançando cancan?

– É pra ver isso?

Javier deu uma gargalhada.

– Relaxe, deve fazer efeito logo. O saquinho com as ervas está no bolso?

– Sim.

Téssio tomou o resto do chá e deu a xícara para Javier. Acomodou-se no sofá, ajeitando a almofada sob a cabeça. E inspirou profundamente.

– Está com medo?

– Um pouco.

‒ Vai dar tudo certo, confie.

‒ Tô com saudade da minha filha.

– E Ariane? Ainda com raiva dela?

‒ Não. Se esta é uma outra vida, ela não estava encenando lá na farmácia. Mas…

‒ Mas o quê?

– Não me conformo que ela tenha se casado com aquele policial idiota. Ela podia ter escolhido alguém melhor.

– Deixe-me adivinhar. Alguém… como você, eu suponho.

Téssio pensou um pouco.

‒ Não. Quer dizer… Talvez alguém… como eu poderia ser.

De repente, a dor, aquela mesma dor forte e aguda, lâmina a atravessar a cabeça. Enquanto se contorcia no sofá, tentou avisar a Javier sobre o que sentia, mas não conseguiu falar. E apagou.

Por um tempo, Javier olhou para o homem adormecido à sua frente. Então, estendeu o braço e lhe penteou o cabelo.

– Adorei conhecê-lo, Téssio. Você é uma pessoa boa, apenas perdeu o rumo. Isso acontece com as melhores famílias da Via Láctea.

Javier levantou-se e pegou sua bolsa.

– Boa sorte, mi querido.

E saiu, fechando a porta.

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COMENTÁRIOS

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01- Comecei ontem à noite e continuei pela manhã, quando acordei. O problema é que não consegui fazer nada enquanto não terminei. Lido e aprovado. Muito bom! O livro será um sucesso, com certeza. Luciano Dídimo, Fortaleza-CE – abr2023

02- O livro me tocou muito, por razões diversas. Porque Téssio é um tipo de homem que eu conheço muito bem, já tive meu Téssio. Só que o tempo não foi generoso conosco. Mas, enquanto estivemos juntos, foi muito, muito bom. Obrigada pelo livro, me fez muito bem ver o final feliz. Eloísa Liz, Lisboa-Portugal – abr20223

03- Adorei seu livro. Uma bela história. Li todo no mesmo dia. Parabéns, meu querido primo. Mirza Galvão, Rio de Janeiro-RJ – abr2023

04- Li teu livro, Ricardo. O que me pareceu é que é um roteiro de comédia romântica. Tem todos os elementos, as personagens, a trama, o conflito, a resolução do conflito, o clímax. Tu não tem contato com o mundo do cinema? O roteiro está praticamente pronto. Marcelo Pereira, Fortaleza-CE – abr2023

05- Teu livro é um clássico! Leve, intrigante, divertido, saboroso, atemporal, universal e sem fim, proporciona reflexão existencial tão necessária nesses tempos sem falta de tempo. Um carinho aconchegante nas relações afetivas. Parabéns e muito obrigado. Kelsen Bravos, Fortaleza-CE – abr2023

06- Sabe aquelas obras que você começa a ler e não consegue parar? Assim é “Minha doce vida perdida”. Excelentes descrições, com ações transcorrendo em ótima cadência fazem a leitura desse livro uma experiência bastante agradável. Recomendo para todas as idades e públicos! Cliente Kindle, Amazon – abr2023

07- Olha, nem sei o que falar. Que livro maravilhoso. Pena que ele tem fim. Fiquei tão emocionado e mexeu com tantos sentimentos (bons e alguns sentimentos de saudade também), que resolvi procurá-lo nas redes sociais. Li o livro em três dias, mas eu trabalhava esperando a hora de chegar em casa para ler no tablet. Parabéns pelo livro especial. Otávio Jardim Ângelo, Campos dos Goytacazes-RJ – mai2023

08- Show de história. Uma bela comédia romântica, divertida e engraçada. Superrecomendo. Virei fã. Áureo Mazza, Fortaleza-CE – jun2023

09- Leitora assídua das obras kelméricas, recomendo! Leitura leve que me fez viajar nos tempos das vidas vividas ou imaginadas… Enquanto lia, eu podia sentir a angústia de Téssio tentando recuperar o futuro e aconselhando seu eu no passado, tentando controlar suas próprias escolhas… Nessa viagem, ele passeia por possibilidades do vir a ser numa espécie de déjà-vu ampliado ou sonho lúcido alucinante.

Eu exercitei na imaginação essa oportunidade de fazer ajustes no futuro indo me visitar no passado. Não há muito o que corrigir. Com tudo que deu certo ou errado até aqui, eu não queria estar em outro lugar ou ser outra eu que não esta. Das vezes que “rompi tratados e traí os ritos” foi sempre porque eu precisava me mudar de algum jeito, e “se mudar” as vezes dói muito… mas somos sempre o que decidimos SER. Só tentaria convencê-la a ser mais vaidosa e primorosa com alimentação. Mas como a conheço bem, ela não me obedeceria. Suas prioridades sempre foram as coisas profundas, onde a aparência não conta mais do que a alegria de ser.

Guardei uma fala do Téssio: “Não basta amar: tem que cuidar.” Obrigada, querido amigo, pela divertida capa personalizada em meus plenos 20 aninhos. O livro é uma viagem. Zete Rodrigues, Fortaleza-CE – jul2023

10- Parabens sempre, adorei essa estoria! Ana Claudia Domene, Fortaleza-CE – jul2023

11- Ótima leitura como as outras, com porções de irreverência, realidade, fantasia e humor! Parabéns, KELMER!!! Vilma Torres, Fortaleza-CE – ago2023

12- Uma leitura leve e divertida. Engraçada em diversos pontos, mas também reflexiva. Se eu pudesse voltar no tempo, me encontrar comigo mesmo. Confesso que não sei bem o que me diria. Talvez fizesse tudo de novo, só que mais descontraído… Cliente Kindle, Amazon – set2023

13- Li de um gole, de um fôlego. Sua literatura é leve de estilo, bem humorada, engraçada. Pesada de conteúdo, séria, muito séria. Gostei muito dessa vida doce e encontrada. Muito contemporâneo, seu livro poderia ter sido escrito por um escritor de qualquer metrópole cosmopolita do mundo e do Brasil. Fala da classe média, com suas dores e delícias, traídas e novamente pactuadas. Obrigada! Tuty Osório, Fortaleza-CE – out2023

14- Leia. Especialmente se você for cearense, para valorizar nossa literatura – o autor é daqui. A história é deliciosa. No prêmio Jabuti, há a categoria de Romance de Entretenimento, que leio habitualmente. Garanto: não deve nada aos premiados. Falei até para o Ricardo – ele é meu amigo – que ele deveria inscrever o livro no prêmio. Clavius Tales, Fortaleza-CE – dez2023

15- Eu li, e é um barato. Li outros livros na mesma vibe (tipo Matéria escura), mas o teu é o mais bem humorado, e centrado no que é humanamente interessante, tanto na construção do contexto do casal, dos personagens que se relacionam com eles, quanto nas angústias (tratadas com leveza) do nosso “herói”. Ana Virgínia Montezuma, Fortaleza-CE – fev2024

 
 
 
 

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