16dez2021

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Nessa história de fé, amor e traição, com toques de erotismo e suspense, Fátima é uma famosa cantora cristã, com milhões de discos vendidos e agenda repleta de apresentações. Seu empresário, Miltinho, rege sua carreira com dedicação e respeito. Porém, há segredos delicados nessa relação, e um acontecimento inesperado faz surgir novos e estranhos segredos.
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O SEGREDO DE FÁTIMA
Traída por Deus, no amor vingada
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Igreja da Pomba Sagrada do Paraíso. Ou Pomba Sagrada, como era mais conhecida. Funcionava no térreo de um prédio de salas comerciais. Foi lá onde Miltinho conheceu Fátima, ela na desabrochada flor de seus dezoito anos, ele nove anos mais velho. Ela no palco, linda e angelical, encantando a todos à frente do grupo musical da igreja. Foi paixão ao primeiríssimo olhar.
Na verdade, foi mais que isso. Naquele dia, enquanto Fátima cantava no momento do ofertório, Miltinho sentiu-se tomado por um sentimento avassalador, e ele compreendeu que aquilo era amor, o amor mais puro e sincero que um filho de Deus poderia ter. Enquanto regozijava-se, inundado de amor, ele viu um raio de luz fosforescente entrar pelo teto e iluminar a garota, e soube, por uma voz que ecoava dentro dele, que ela seria uma grande estrela da música, para a glória do Senhor. Tomado de êxtase, teve outra revelação divina, que o fez tremer por dentro: aquela mulher seria sua.
Quando terminou o culto, ele, ainda atordoado, saiu apressado em direção ao ponto de ônibus, nem se despediu dos irmãos e irmãs da igreja. No caminho para casa, repetiu cem vezes em pensamento a verdade que lhe fora revelada: Uma grande estrela… minha mulher…
Como, ainda na adolescência, fizera voto de castidade, Miltinho não tinha experiência com mulheres, era tímido. Simplesmente não sabia agir diante delas. Como se comportar com aquela que seria sua futura mulher?
Dias depois, na saída do culto, foi ela mesma quem deu uma mãozinha ao destino.
‒ Oi! Você é o Miltinho, né?
Ao vê-la caminhando bem ao seu lado, quase tocando-o, ele tentou responder, mas a voz não saiu.
‒ Prazer, Fátima.
Ele conseguiu apenas sorrir.
‒ Você é mudo?
‒ Na-não… ‒ ele conseguiu responder, gaguejando.
‒ É gago?
‒ Também-bém não…
Ela riu, achando graça do jeito dele. Muito simpática, perguntou se era verdade que trabalhava num estúdio de gravação. Miltinho confirmou, balançando a cabeça e sentindo uma gota de suor escorrendo pelo pescoço. Ela explicou: tinha o sonho de ser cantora profissional e queria gravar um disco, mas não tinha dinheiro. Ele, procurando controlar o nervosismo, perguntou se ela já havia falado com o pastor Genilson, talvez ele pudesse ajudar.
‒ O pastor disse que a igreja não tem dinheiro, mas vai orar por mim.
Após pensar um pouco, Miltinho falou que veria o que podia conseguir para ela.
Uma semana depois, a boa notícia para Fátima: Miltinho lhe informou que a dona do estúdio, uma mulher generosa e temente ao Senhor, concordara em não cobrar nada, desde que a produção se mantivesse numa faixa de preço razoável, e nem era necessário divulgar a marca do estúdio. Fátima ficou radiante de felicidade e o abraçou agradecida. Nessa noite, Miltinho não conseguiu dormir, ainda envolvido pelo abraço daquela que estava predestinada pelos céus a ser sua mulher.
Nas semanas seguintes, encontraram-se quase diariamente no estúdio para gravar as músicas, e nos intervalos tomaram café juntos. Ela lhe contou que era órfã e que morava com uma tia que não gostava dela, e que o que mais queria na vida era ser cantora profissional e espalhar a palavra de Deus pelo mundo. Contou também de seu voto de castidade, e nesse momento Miltinho teve ainda mais certeza de que estava diante de sua futura mulher, e que os dois findariam juntos seus votos de castidade, para a glória do Senhor.
O disco ficou pronto e o lançamento foi na Pomba Sagrada, e nesse dia Fátima deu-lhe um beijo no rosto. Em casa, em sua cama, Miltinho repassou a cena pela centésima vez, e a sensação dos lábios de Fátima tocando sua pele era como um fogo a lhe queimar por dentro, provocando-lhe desejos inconfessos que o impediam de dormir.
Fátima vendeu, ela mesma, seu disco para os fiéis da igreja e também nas praças e pontos de ônibus, e até apresentou-se em alguns programas de rádio e na tevê. Admirado com sua determinação, Miltinho torcia fervorosamente pelo sucesso da amada e até conseguiu vender alguns discos para os amigos.
Um dia, porém, Fátima descobriu a verdade e telefonou para ele.
‒ Você mentiu pra mim.
Do outro lado da ligação, Miltinho nada respondeu.
‒ Eu já sei, Miltinho.
‒ Sabe… o quê?
‒ Que o estúdio não patrocinou meu disco.
‒ Ahn… bem…
‒ Não minta, por favor.
‒ Na verdade… o estúdio fez um preço razoável pra mim… e o meu serviço não cobrei.
‒ Então… você pagou tudo?
‒ Bem… Não.
‒ Não minta, Miltinho, é pecado.
‒ Eu… ainda estou pagando.
‒ Por que fez isso?
‒ Desculpa… eu…
‒ Eu sei que você não ganha tanto assim.
‒ É que eu… tive uma revelação.
‒ Que revelação?
Miltinho respirou fundo. Já não podia mais esconder a verdade de sua amada.
‒ Fátima, você será uma grande estrela da música, para a glória do Senhor.
‒ Eu? Você está falando sério?
‒ Sim, pelo sangue derramado de Cristo.
Fátima estava pasma. Não sabia o que falar.
‒ Alguém precisava… apostar em você. Foi por isso que fiz o que fiz.
Não era uma mentira, era apenas uma meia-verdade, ou melhor, um terço da verdade. Os outros dois terços é que ele a amava e que ela seria sua mulher, estava escrito.
Fátima agradeceu por sua generosidade, e disse que o reembolsaria com o dinheiro dos próximos cachês e da venda do disco. Ele, porém, propôs que ela pagasse de outra forma.
‒ Como assim? ‒ ela perguntou, desconfiada.
Ele respirou antes de falar.
‒ Me deixe ser seu empresário.
‒ Você?
‒ Olha… eu… lá, no estúdio, converso muito com empresários de artistas ‒ ele prosseguiu, e agora não tinha outro caminho senão seguir ir em frente. ‒ Sei que posso conduzir bem sua carreira. Eu tenho todos os seus programas gravados, sabia?
‒ Sério?
‒ Sim. Sei o que você pode melhorar. Voz, postura, figurino, marketing…
Aquilo era interessante, pensou Fátima. E ele parecia sincero.
‒ O Senhor sabe que eu sou seu admirador número um. Desde o primeiro dia em que vi você cantando na igreja.
Fátima falou que pensaria no assunto. Nessa noite, Miltinho novamente não conseguiu dormir, o coração ribombando no peito.

A agonia durou apenas até o dia seguinte: para a imensa alegria de Miltinho, Fátima aceitou a proposta. E ela logo veria que fizera a escolha acertada. Dedicando-se totalmente a ela quando não estava no estúdio, Miltinho ajudou-a, entre outras coisas, a organizar a agenda de compromissos e as redes sociais, e ele mesmo vendia o disco nas apresentações que ela fazia. E foi dele a ideia de mudar seu nome artístico: agora, ela era Anja Fátima. Sua determinação em fazer-se cumprir o grandioso destino de sua amada só não era maior que a própria determinação dela de realizar seu sonho dourado.
Um ano depois, veio o segundo disco e as vendas aumentaram, e Anja Fátima começou a ficar conhecida não apenas na cidade, mas no país inteiro. A Pomba Sagrada ficou pequena para a multidão que comparecia só para ver a linda cantora da voz angelical. Logo, a agenda estava bastante movimentada e o cachê subindo mês a mês, e Miltinho precisou deixar o estúdio para dedicar-se integralmente à carreira de sua amada. Depois, veio o contrato com uma grande gravadora, o terceiro disco, mais shows, entrevistas, capas de revistas, o quarto disco…
Estamos agora na varanda de um belo apartamento. É a cobertura que Fátima comprou, com vista para o mar. Passaram-se cinco anos desde aquele dia na igreja em que ela o abordara. Fátima ofereceu um jantar para os amigos mais íntimos e, após todos irem embora, sobraram ela e Miltinho. Ele não bebia, mas ela insistiu, é só hoje, e é só uma tacinha… Então, na varanda, olhando a cidade dali do vigésimo andar, eles brindaram ao sucesso, ao novo apartamento e ao programa de tevê que ela apresentava, que estreara dias antes. Aos 23 anos, Anja Fátima era uma estrela.
Então, levado pelo vinho, Miltinho finalmente decidiu abrir seu coração para Fátima. Falou que a amava, amava em silêncio, mas muito, profundamente, como jamais amara ou amaria outra mulher na vida, e que naqueles cinco anos não deixou de desejá-la nem por um dia sequer, nem por um milésimo de segundo.
‒ Nem quando eu namorava o Cléber?
Cléber era o baixista da banda.
‒ Não.
‒ Nem quando eu namorei o Luizão?
Luizão era o baterista.
‒ Não. E nem quando você namorou o pastor Genilson.
Fátima estava impressionada. É verdade que foram namoros curtos, que sempre acabavam quando ela revelava que casaria virgem para a glória do Senhor, mas, mesmo assim, aquela declaração de amor merecia seu respeito.
‒ Agora, você sabe da verdade ‒ Miltinho prosseguiu. ‒ Se quiser me despedir, eu entenderei perfeitamente.
Ela olhou para ele emocionada. Sempre vira Miltinho como um grande amigo, um empresário amigo, e sempre entendera as suas atenções e cuidados para com ela como profissionalismo de sua parte, nada além disso. Mas, agora, sabedora de seus sentimentos, já não podia vê-lo com os mesmos olhos de antes. Agora, de repente, via-o como um homem muito especial.
‒ Miltinho, eu realmente nunca pensei que você sentisse isso por mim.
‒ Disfarcei bem, não?
‒ Muito bem.
‒ E então, estou despedido?
‒ Não sou louca de largar o melhor empresário do mundo.
Fátima tomou a taça de sua mão e a pôs sobre a mesa. E o abraçou.
‒ Esse amor bonito, que agora sinto bater em seu peito, é uma divina dádiva para mim ‒ ela prosseguiu, abraçada a ele. ‒ E eu prometo que saberei retribuí-lo com a minha melhor amizade e todo o meu respeito, para a glória do Senhor.
E assim ficaram, abraçados, até ela se afastar.
‒ Agora, um brinde a nós dois.
Miltinho olhou para a mulher à sua frente a lhe estender a taça. O vermelho vivo do vinho era a cor do seu desejo, que naquele momento fazia volume sob a calça. Ah, como desejava aquela mulher… Tantas e tantas noites acordado na madrugada, revirando-se na cama, lutando contra os pensamentos pecaminosos que o invadiam… Uma vez, num momento de fraqueza, quase quebrou seu voto de castidade com Lurdinha, uma irmã da igreja, e doía lembrar que chegaram a ficar nus na cama… Felizmente, no último instante, veio-lhe socorrer a certeza de que a mulher a quem entregaria a sua primeira vez não era Lurdinha, era outra, e ele venceu a tentação, para a glória do Senhor.
Agora, sua amada estava ali, dizendo que gostava dele apenas como amigo e parceiro profissional, sem nem imaginar o que ele passou naqueles cinco anos, o quanto lutou contra seus próprios desejos…
Agora, Fátima sabia de seu amor por ela. E se soubesse que estava destinada a ser sua mulher? Talvez isso facilitasse as coisas…
‒ A nós dois ‒ ele enfim falou, estendendo sua taça. E o tilintar dos vidros selou a continuação do compromisso iniciado cinco anos antes. Aquilo que só Miltinho sabia seguiria com ele, apenas com ele.
* * *
A vida, entretanto, reservava uma grande surpresa. E ela começou com sensações de fraqueza, câimbras e espasmos. Durante um ano inteiro, Fátima consultou vários médicos, até descobrir que era vítima de uma doença degenerativa rara, que não prejudicaria suas capacidades mentais, mas afetaria seus músculos e dificultaria cada vez mais os movimentos. Havia opções de tratamento, mas a cura era incerta.
O diagnóstico deixou Fátima muito abalada, e Miltinho mais ainda, embora tenha conseguido se controlar. Ele sabia que agora ela necessitaria dele mais que nunca. Então, mesmo com a resistência de Fátima, que não aceitava deixar de trabalhar, ele cancelou todos os compromissos profissionais, inclusive a gravação do quinto disco, para que se dedicassem totalmente à recuperação de sua saúde. Nas redes sociais, Anja Fátima anunciou ao seu querido público que interromperia por um tempo a carreira para fazer um retiro espiritual.
Dois anos após os primeiros sintomas aparecerem, de tentarem variados tipos de tratamento e verem que a doença evoluía ainda mais rapidamente, eles compreenderam que não havia mais o que pudesse ser feito. Então, decidiram mudar de ares e compraram uma casa na serra onde morariam juntos e ele poderia cuidar dela longe da imprensa bisbilhoteira e dos falsos amigos.
Fátima já estava com os movimentos do corpo bastante reduzidos e se cansava facilmente. Para Miltinho, assistir diariamente e de pertinho à decadência física da mulher que tanto amava era a maior das torturas, e à noite, após ela adormecer, ele ia para a varanda e permitia-se chorar, e rezava por horas, agarrado ao último fiozinho de esperança.
Um dia, ela o chamou ao quarto, onde, deitada na cama, via o vídeo do último show que fizera antes de interromper a carreira, um ano antes.
‒ Anja Fátima… É um bonito nome, não é, Miltinho?
– Sim, é lindo. Combina com você.
– Pena que não passa de uma ilusão.
Miltinho procurou algo para dizer, mas ela prosseguiu:
– Por que ele me deixou viver essa ilusão? ‒ ela perguntou, olhando a tela da tevê.
‒ Você sabe que não foi uma ilusão.
‒ Você sabe que foi, sim. Anja Fátima confiou nele, seguiu o caminho que ele indicou, um caminho de sonho, de felicidade… Pra quê? Pra, de repente, acordar nesse pesadelo real.
Miltinho entendia a revolta que ela sentia, e todos os dias rezava para que o Senhor a perdoasse por aquelas blasfêmias que ela dera para dizer.
‒ Mas eu gosto de rever as imagens dessa ilusão ‒ ela falou, e lhe apontou o controle remoto. ‒ Põe de novo, por favor.
Ele pegou o controle e pôs o vídeo no início. Mas ela já havia adormecido. Então, ajeitou sua cabeça no travesseiro e saiu para a varanda, onde as estrelas do céu o aguardavam para iluminar seu pranto.
Na semana seguinte, era aniversário dela, e ele pensou em comprar um bolo, e também trocar a cortina do quarto por uma mais alegre, mas Fátima o proibiu de falar ou fazer qualquer coisa que a fizesse lembrar da data. E ele obedeceu, agindo como se fosse um dia qualquer. E à noite, na varanda, chorou como jamais chorara em toda a sua vida.
No último dia do ano, após ajudá-la a tomar banho, vestiu-a e a pôs na cama. Cobriu-a com um lençol e ajustou a temperatura do ar-condicionado.
‒ Miltinho, vem cá.
Ele se aproximou e sentou ao seu lado.

‒ Você tem sido maravilhoso comigo, e eu tive muita sorte de ter você em minha vida. Quero te agradecer por tudo, mais uma vez. Obrigado.
‒ Não tem o que agradecer. Fiz tudo por amor.
‒ Espero que faça bom uso dessa casa, ela é ótima. E de todo o resto que vai herdar. Ainda tem um bom dinheiro na conta.
‒ Não vamos falar disso, por favor. Amanhã é ano novo e…
‒ Eu sei ‒ ela o interrompeu. ‒ E tenho um pedido especial pra fazer.
‒ Posso saber qual é?
‒ Deve, pois é pra você mesmo.
‒ Qual é?
‒ Eu não quero morrer virgem.
Miltinho achou que não escutara direito.
‒ Não entendi.
‒ Entendeu, sim. É o meu último desejo. Não seja cruel de negar.
Ele simplesmente não soube o que dizer.
‒ Ouviu, Miltinho? Sua amada não quer morrer virgem.
‒ Está na hora do lanche, vou pegar ‒ ele falou, levantando-se.
‒ Foda-se o lanche. Senta e me escuta.
‒ Fátima, você…
‒ Senta!
Ele suspirou e obedeceu.
‒ Tudo que eu quero é isso, não morrer virgem. E só você pode me ajudar. Entendeu?
Miltinho fechou os olhos, sentindo o coração disparar no peito.
– Você seria tão desumano a ponto de negar o último desejo de uma moribunda? Você quer ir pro Inferno?
Ele suspirou. Ele conhecia bem aquela determinação.
‒ Fátima, você está muito fraca, não percebe?
‒ Isso não vai me exigir muita força.
‒ Mas…
‒ Ficarei quietinha, é só abrir as pernas.
Ele virou o rosto, sem acreditar naquele diálogo.
‒ Miltinho, eu não quero e não vou virgem pro Céu. Pro Inferno, que seja. Não vou. Entendeu?
‒ Não fale assim, por favor…
‒ Então diga que vai me ajudar. E que vai guardar nosso segredo.
‒ Não posso… É pecado.
‒ Pecado foi eu ter economizado a buceta por todos esses anos pra glória do Senhor, isso sim. E o cu também. Porque você sabe que lá na igreja tinha muita irmã que era virgem só na frente, né? Faziam voto de castidade pela metade. Pois sim, agora que eu vou morrer, de que adiantou tanto sacrifício, heim?
Ele levantou e caminhou até o outro lado do quarto. A vontade do Senhor, afinal, se cumpria. Não exatamente da forma que ele imaginava, mas quem pode adivinhar os desígnios divinos?
‒ Tudo bem. Amanhã mesmo vou naquela igreja, eu conheço o pastor de lá.
‒ Fazer o quê?
‒ Vamos nos casar, ora. Pra que se cumpra a vontade do Senhor.
‒ Bem, isso era outra coisa que eu tinha pra dizer.
‒ Como assim?
‒ Não quero que seja com você.
Ele ficou olhando para ela, sem acreditar no que ouvira. Ela estava brincando, só podia estar.
‒ Estou falando sério. Quero que seja com outro homem.
‒ Mas… como assim?
‒ Outro homem. Você, não.
‒ Mas… por que não eu?
‒ Bem, não há outro modo de dizer isso. Eu quero que seja com um homem… do pau grande.
Ele sentiu-se desmoronar.
‒ Desculpa trazer a sua intimidade para essa conversa, mas foi o jeito. Eu sei do que estou falando. Lembra da Lurdinha, da igreja? Ela me contou.
Miltinho não sentia o chão. Precisou puxar a cadeira e sentar.
‒ Pague o que for necessário, entendido?
Miltinho já não escutava. Aquilo era um pesadelo.
‒ Você vai fazer isso por mim, não vai?
* * *
Miltinho foi ao balcão da cozinha, serviu uma dose de uísque e entregou o copo ao homem que o aguardava na sala, sentado no sofá. E sentou de frente para ele.
‒ Não vai me acompanhar? ‒ o homem perguntou.
‒ Eu não bebo.
Precisara ir a um prostíbulo na cidade vizinha para pedir informações às mulheres que lá trabalhavam. Indicaram aquele homem. Devia ter a sua idade, boa aparência, parecia ser confiável.
‒ Não sei se entendi bem a proposta. Você quer que…
‒ É exatamente o que falei ‒ Miltinho o interrompeu, um tanto impaciente. ‒ Quero que você seja o primeiro homem da minha mulher. Você só tem que ser cuidadoso com ela. E não estranhe se ela não se mexer muito, ela tem um problema muscular, mas está perfeitamente ciente da situação.
‒ Isso não vai me trazer complicação depois, né?
‒ Nenhuma, eu garanto. Aqui está o pagamento ‒ Miltinho entregou ao homem um envelope. ‒ E nessa sacola tem preservativo e lubrificante.
O homem abriu o envelope e conferiu. Ainda não acreditava que estava sendo pago para fazer aquilo. Bem, o que importava é que era tudo de comum acordo. E dentro daquele envelope tinha mais dinheiro do que o que ganhava no mês inteiro como garçom da pizzaria.
‒ Ela está aguardando ‒ disse Miltinho, levantando-se. ‒ É a terceira porta à esquerda. Não precisa bater.
Os trinta minutos seguintes demoraram mais que a eternidade inteira para Miltinho. Ele preferiu esperar no jardim, regando as plantas e tentando se entreter com as borboletas para não pensar no ciúme que naquele momento o corroía por dentro feito a lava ardente do Inferno.
Quando o homem surgiu na varanda, ele se dirigiu ao portão da casa e o abriu. O homem desceu o batente, caminhou até o portão e parou.
‒ Fique tranquilo, não foi minha primeira vez com uma virgem.
Miltinho fechou o portão e entrou na casa. Suas pernas levavam todo o peso do mundo.
Na penumbra do quarto, Fátima o aguardava na cama. Ela tinha os olhos fechados e respirava calmamente. Ele ligou o abajur e viu uma mancha escura no lençol.
‒ Não precisa me levar pro banheiro agora ‒ ela disse, sem abrir os olhos. Em seus lábios Miltinho percebeu um sorriso. ‒ Quero ficar assim mais um pouco. Por favor.
‒ Você está bem?
‒ Então era isso…
‒ Isso o quê?
O sorriso em seus lábios abriu-se como uma flor.
‒ O que eu estava perdendo.
* * *

‒ Aceita um uísque?
‒ Não, obrigado.
Miltinho sentou-se em frente ao homem, que o olhava curioso.
‒ Como já expliquei, quero que você transe com a minha mulher. Você tem apenas que ser cuidadoso. Se ela não se mexer muito, não estranhe, ela tem um problema muscular. Mas está perfeitamente ciente do nosso acordo.
‒ Entendido.
‒ Aqui está seu pagamento. Na sacola tem preservativo e lubrificante. É a terceira porta à esquerda. Ela o aguarda.
No jardim, regando as plantas, Miltinho suspirou. Ainda não acreditava que aquilo tudo estava realmente acontecendo. Seis meses antes, realizara o desejo de Fátima, do jeito que ela lhe pedira. Felizmente, tudo correu bem. Aliás, bem demais, pois Fátima melhorou, ficando mais disposta. Até voltou a sorrir. Ele, obviamente, ficou aliviado, e pensou que talvez aquilo não fosse, afinal, um pecado tão grande. O problema é que, três dias depois, ela disse que queria mais.
E assim foi que ele teve de especializar-se naquele novo ramo de atividade: selecionar homens do pau grande para satisfazer o desejo da mulher amada. Como ela mudara muito fisicamente após a doença, não havia risco de a reconhecerem. E quanto ao ciúme, acostumou-se com ele, fazer o quê?
Enquanto eram dois por semana, até que era tranquilo, mas logo depois eram três, depois quatro, e por fim, Fátima precisava de visitas diárias, pela manhã e à tarde, o que o obrigou a manter uma agenda muito bem organizada para revezar os visitantes ao longo do mês e não agendar por engano dois para o mesmo horário, embora desconfiasse que Fátima iria gostar disso.
Não era o pior trabalho do mundo. Os visitantes eram muito respeitadores e mantinham total discrição, até porque não é todo dia que se podia conseguir uma boa grana tão fácil. Alguns indicavam amigos e parentes para o serviço, o que Miltinho apreciava, pois lhe poupava trabalho.
– Sim, aceito indicações – ele respondia, pegando o caderno para anotar. – Só precisa ter o negócio grande.
* * *
Naquele domingo, Miltinho regava as plantas no jardim enquanto pensava no tempo. Um ano. Até o médico com quem conversou outro dia ficou surpreso. Um ano era uma sobrevida excepcionalmente longa para um paciente no estado em que Fátima se encontrava. Um caso raríssimo. Se eu fosse religioso, diria que é um verdadeiro milagre, dissera o médico. E ao ser perguntado se estava experimentando algum novo tipo de tratamento, Miltinho respondeu que não, que tinha certeza de que aquilo era um milagre, um lindo milagre para a glória do Senhor.
O que importava é que sua amada estava feliz, e isso lhe bastava. Mesmo muito magra, quase um graveto, precisando de ajuda para as mínimas tarefas e já sem conseguir falar, comunicando-se por sinais, Fátima estava feliz, e vê-la sorrir todos os dias era, para Miltinho, o sinal de que ele fizera o que devia fazer. Realizara o último desejo de sua amada. Bem, na verdade os últimos desejos. Para ser preciso, 576 desejos até aquele exato momento, o que significava que o saldo da conta estava pela metade do que era um ano antes.
Pensava nisso quando o homem surgiu à porta da varanda. Era a décima-quinta vez dele.
‒ Acho bom você ir ver sua mulher ‒ ele falou, sério.
Miltinho fechou o portão e foi para dentro da casa. Entrou no quarto devagar, como sempre fazia para não acordar Fátima. Ela estava deitada, os braços estendidos ao longo do corpo. E sorria. Ele já conhecia seu sorriso de felicidade, mas aquele era diferente. Era o sorriso da mais pura paz.
Ajeitou seu corpo magro em seus braços e foi com ela para o banheiro. Limpou-a bem, enxugou e a levou de volta para a cama, deitando-a com cuidado e acomodando a cabeça sobre o travesseiro. Observou aquele fiapo de corpo nu por algum tempo, enquanto uma lágrima escorria por seu rosto. Depois, estendeu a mão e fechou os olhos que ainda o olhavam sorridentes. E se despiu, sem qualquer pressa, posicionando-se a seguir sobre o corpo imóvel, com muito cuidado.
O domingo anoitecia quando Miltinho afastou as pernas de sua amada e fez cumprir-se a vontade divina.
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Ricardo Kelmer 2020 – blogdokelmer.com
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ILUSTRAÇÃO: Omnia Vanitas (“Tudo é vaidade”), 1848, de William Dyce (1806 – 1864)
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DICA DE LIVRO
Indecências para o Fim de Tarde
Ricardo Kelmer – contos
Uma advogada que adora fazer sexo por dinheiro… Um ser misterioso e sensual que invade o sono das mulheres… Os fetiches de um casal e sua devotada e canina escrava sexual… Uma sacerdotisa pagã e seu cavaleiro num ritual de fertilidade na floresta… A adolescente que consegue um encontro especial com seu ídolo maior, o próprio pai… Seja provocando risos e reflexões, chocando nossa moralidade ou instigando nossas fantasias, inclusive as que nem sabíamos possuir, as indecências destes 23 contos querem isso mesmo: lambuzar, agredir, provocar e surpreender a sua imaginação. > saiba mais
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Quarentena Erótica
Ricardo Kelmer – contos
Nos contos de Ricardo Kelmer, o erótico pode vir com variados temperos: romantismo, humor, misticismo, bizarro, horror… Às vezes, vem doce e sutil, ou estranho e avassalador, e às vezes brinca com nossas próprias expectativas sobre o que seja erótico. Explorando fetiches, fantasias, delírios e tabus, e até mesmo experiências reais do autor e de seus leitores, as estórias deste livro acabam de chegar até você para apimentar seus dias, e suas noites, de quarentena. > saiba mais
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COMENTÁRIOS
01- Muito bom! Clea Fragoso, Fortaleza-CE – dez20221
02- Dale, Kilmito, bacana o conto, a gente fica na expectativa de como vai finalizar, me lembrou algo de Ondas do destino, do Lars von Trier, mas claro q noutra pegada autoral, abç. André de Sena, Recife-PE – dez2021
03- Do caralho, o texto! Roberto Maciel, Fortaleza-CE – dez20221
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