Plutão sai de férias

23dez2008

PlutaoSaiDeFerias-03
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BaseadoNissoCapaMiragem-01aEste conto integra o livro Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha,
de Ricardo Kelmer

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PLUTÃO SAI DE FÉRIAS

O baseado acontecedor é aquele que provoca acontecimentos inusitados. Alfredo fumou um desses e reencontrou um amigo que acha que sua mulher está traindo-o.

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ALFREDO ABRIU O ESTOJINHO, olhou, olhou e escolheu o baseado acontecedor. Era uma noite de terça-feira e havia lhe batido uma vontade de fazer algo diferente. Para isso, nada mais apropriado que um fumo acontecedor.

Sim, porque existiam diversas qualidades de fumo, ele sabia disso. Existia o fumo energético, que servia perfeitamente para jogar bola, por exemplo. Existia o fumo musical, ideal para escutar Pink Floyd, Frank Zappa, Renascence, Cristiano Pinho, Érico Baymma… Havia também o namorador, o leitor, o Warner Bros, o bom-dia, o digestivo etc. Bom maconheiro que era, Alfredo sabia das melhores plantações e comprava direto na fonte, controlando assim a exata origem do fumo. Com o tempo, aprendera a catalogá-los, cada um na sua especialidade.

O acontecedor atraía situações insólitas, era essa sua especialidade. Situações nem sempre positivas, é verdade, mas esse era um risco que se corria. Fumo ideal para quem gostava de novidade, e de um certo risco. Pois bem, pensou Alfredo, acendendo o cigarro, vamos ver agora o que é que acontece. Eram sete horas da noite.

Alfredo sentou no sofá e ligou a TV. Já sentia o efeito do fumo, os sentidos e o raciocínio prolongando-se além dos próprios limites, descortinando novos horizontes de possibilidades. Procurou algo nos canais, zap-zap, mas não encontrou. Então pegou o jornal, começou a folhear. No caderno de variedades, entre as mesmices de sempre, encontrou algo curioso: uma palestra sobre astrologia cármica.

– Mas que porra é essa?

Meia hora depois lá estava Alfredo no Olimpo Center, ficava pertinho de sua casa. Sala 14, no fim do corredor. Escolheu uma cadeira nos fundos da sala e sentou-se, observando as pessoas. Um bando de esotéricos malucos, pensou, desses que conhecem profundamente os segredos da vida e principalmente da morte. Esse povo que à noite sai do corpo para ajudar desencarnados a deixar de vez o corpo físico. Esse povo que alardeia suas vidas passadas como quem exibe conquistas sexuais ou fala do carro novo. O fumo acontecedor o fizera ir a uma palestra sobre astrologia cármica, fosse lá o que isso significasse, em plena noite de terça-feira. Agora era relaxar.

Mas que nada. Não suportou a palestra muito tempo. Como é que em pleno século 20, ele se perguntava, ainda havia pessoas que se deixavam influenciar pelos astros? Então levantou e saiu da sala. No corredor, parou para beber água.

– Fala, Alfredo! Tá lembrado de mim?

Pronto, gente conhecida. Numa palestra de astrologia cármica. Ô mundo pequeno.

– Ahnn… Plínio.

Era o Plínio, amigo da faculdade, uns dez anos que não se viam.

– Não sabia que você se interessava por esses assuntos.

– Na verdade, não muito – disse Alfredo, enxugando a boca com a manga da camiseta.

– Dois amigos que se encontram. Anos sem ser ver. Numa palestra de astrologia cármica. O que é que isso quer mostrar, heim?

– Não sei. O quê?

– Então, tô dizendo. O que é que isso quer mostrar, heim? Quer mostrar que isso é um Acontecimento. Com A maiúsculo. A… contecimento – repetiu Plínio, desenhando no ar a letra A.

– Entendi.

Plínio sempre gostara daqueles temas. Pelo jeito, continuava o mesmo, ingênuo e acreditando em tudo. Em tudo que não existia.

– Já tá saindo, Alfredo? Eu também. Tá indo pra onde?

– Tomar uma cerveja.

– Tem um bar aqui na esquina.

– É lá mesmo.

– Vou com você. Eu já vi essa palestra.

– Já?

– Sete vezes.

Chegaram no bar, sentaram e pediram uma cerveja. Enquanto Plínio enchia os copos, Alfredo admirava a bunda de uma mulher que levantara da mesa vizinha. Foi quando escutou Plínio comentar algo.

– Desculpa, cara, o que é que tu falou?

– Sexo anal, Alfredo.

– O que é que tem?

– Não é recomendável, sabia?

– Ora, e por quê?

– Infesta o mundo astral. O astral fica que é um fedor só.

– Que papo, Plínio… Só se for os que tu anda pegando por aí.

– É sério. Se quiser, lhe mostro um livro que explica isso.

– Depois. Tô com muita coisa pra ler.

– Então um brinde pra comemorar.

– Ao nosso encontro.

– E também porque Plutão está mais próximo do Sol que Netuno.

– Não sabia. Está, é?

– Está.

– Ora veja. Então precisamos mesmo comemorar – Alfredo ergueu o copo. Comemorar que Plutão estava mais próximo do Sol. Isso sim era um pretexto.

PlutaoSaiDeFerias-03Soubera um tempo desse que o Plínio terminou casando com a Nisa, a gostosa da Letras. A mais gostosa e também a mais danadinha de todas as meninas do Centro de Humanidades. Grande Nisa. Pensando bem, até que os dois tinham algo a ver, o Plínio sempre fora chegado em astrologia e a Nisa botava tarô nos intervalos, cobrava cinco pilas, lembrava bem. Tinha uns peitões maravilhosos, grandes e filantrópicos – ela os oferecia em decote todos os dias, como numa bandeja, generosíssimos. A sabedoria popular, aliás, juntando seus dotes físicos e espirituais, alcunhou-a oportunamente Peitonisa. Pois bem, a Peitonisa casada com o Plínio. Que coisa. Bem, melhor deixar de pensar na mulher do amigo.

– Mas por que Plutão está mais próximo do Sol que Saturno? – perguntou Alfredo. Quase dissera peitão em vez de Plutão.

– Saturno não, Netuno.

– Netuno.

– Por causa de sua órbita. É mais elíptica – explicou Plínio, gesticulando a órbita de Plutão. – Entendeu? Mais elíptica, ó… – e repetiu o gesto. – Faça aí pra ver se entendeu mesmo.

– Entendi, pode continuar.

– Isso faz com que às vezes Plutão se aproxime mais do Sol que Netuno, que normalmente está mais próximo.

– Ahh.

Uma vez, aconteceu. A Nisa lhe concedera o prazer de chafurdar o rosto entre os peitos dela, por trás da cantina da faculdade. Ficou maravilhado, que nem menino em parque de diversão que não sabe qual brinquedo escolher. E só não chegaram às vias de fato porque tinha gente por perto. Então o curso terminou e nunca mais teve outra chance. Nisa e seus peitos impossíveis sumiram de sua vida. Essa era a grande falha de seu currículo universitário. Reprovado em Introdução a Peitonisa.

– Mas por que brindar a isso? – perguntou Alfredo, afastando as lembranças. Estava pensando muito na mulher do amigo, que coisa feia.

– Ora, porque essa situação só vai durar até 1999. Um nove nove nove.

– Que situação?

– Plutão estar mais próximo do Sol que Netuno. Começou em sete nove e vai até nove nove.

Não mudara nada. Era o mesmo chato de antigos tempos, com seus planetas, suas órbitas, a simbologia, aquele jeito de explicar as coisas. Tomaria três cervejas com ele, divertiria-se um pouco com suas histórias mirabolantes e pronto, depois iria para casa rastrear alguma coisa na tevê e fumar o velho dorminhoco. O acontecedor já fizera sua parte: encontrar o Plínio depois daqueles anos todos era realmente um acontecimento. Um Acontecimento. O Plínio às vezes se tornava um pouco chato, é verdade, mas também era um sujeito engraçado.

– E o que é que tem de tão importante numa coisa dessa, Plínio?

– Você não percebe?

– Perceber o quê?

– Isso são as férias de Plutão. Plutão vai à praia.

– Ahhhh…

Plutão vai à praia. Alfredo imaginou o planeta Plutão de calção e chinelas havaianas, segurando uma boia, o jornal debaixo do braço.

– Vai, por que não? Os deuses também têm direito a férias.

– Sem dúvida.

A mitologia! Esquecera da mitologia greco-romana. Quantas vezes, no intervalo das aulas, o Plínio o puxara para falar das eternas confusões que Mercúrio aprontava, e de como Juno descobriu que a ninfa Eco favorecia as infidelidades de Júpiter ao distraí-la com longas histórias, e, por isso, Juno a puniu, condenando-a a não mais falar sem que fosse interrogada e a só responder às perguntas com as últimas palavras que lhe fossem dirigidas. Daí seu nome, Eco.

– Quando Plutão vai à praia, sabe o que acontece?

– Juro que não sei, Plínio.

– Plutão é irmão de Júpiter e Netuno, todos filhos de Saturno, o deus que devora seus filhos. Eles se rebelam contra o pai e dividem os reinos. Júpiter fica com o Céu, Netuno com o Mar e Plutão com o Inferno. Plutão é o deus do Inferno, lugar pra onde vão todas as almas depois da morte, pra serem julgadas. Pois olha só: quando Plutão tira férias, o Inferno vira uma bagunça: falta funcionário, o serviço acumula, o barqueiro que faz a travessia do rio cobra mais caro, morto volta porque não tem ninguém pra receber, é uma confusão. O que é que isso quer dizer, heim? Quer dizer que…

– O que quer dizer?

– É isso que eu tô dizendo. O que é que quer dizer? Quer dizer que mesmo que você morra, corre o risco de não poder entrar no Inferno. Aí o que é que acontece?

– O que acontece?

– Deixa eu dizer, você é muito impaciente. O que é que acontece, heim? Acontece que muitos que morrem ficam por aí vagando, sem saber pra onde ir, alma penada zanzando de lá pra cá… – e ele mostrava com as mãos como as almas penavam, de um lado para o outro – Todas esperando que Plutão volte de férias e reorganize o Inferno pra poder enfim recebê-las.

– Pros romanos não havia paraíso depois da morte?

– É que o Inferno tem várias partes. Olha só, vou explicar. A primeira parte é o Érebo, onde tem um rio tenebroso chamado Cocito, feito das lágrimas dos maus. Caronte, o barqueiro do Inferno, é o encarregado de levar as almas ao julgamento, no Campo da Verdade. Mas Caronte se recusa a levar as almas dos que não tiveram sepultura, e então eles vagam pela margem do rio a implorar por cem anos até que o barqueiro canse de recusá-los.

– Que coisa horripilante.

– Muitíssimo. Depois vem o Inferno dos maus, um lugar absolutamente terrível, pra onde vão os condenados. Tem rios de lava, pântanos lamacentos e fedorentos, lagos gelados onde as almas são mergulhadas e outras barbaridades. Depois vem o Tártaro, onde fica o palácio de Plutão e a prisão dos antigos deuses expulsos do Olimpo. Por último vêm os Campos Elísios, o paraíso.

– E quem julgava os mortos?

Até que aquele assunto não era assim tão desinteressante, pensou Alfredo. Ou então era o fumo acontecedor que o deixara mais paciente com as doidices do outro…

– Três juízes: Éacos, Minos e Radamanto. Quem é condenado vai pro Inferno dos maus. Permanece lá o tempo que for necessário. O que é que isso tudo significa, heim? Significa… Peraí, deixa eu falar, significa que durante esses vinte anos em que Plutão saiu de férias, muita alma ficou penando por aí pelo meio do mundo. Isso é muito sério.

– Sério mesmo?

– Sério mesmo.

– Tu viu alguma?

– Eu não vejo espírito, mas minha mulher vê. Casei com a Nisa, que fazia Letras, lembra dela?

‒ Eu soube ‒ Alfredo respondeu com a expressão mais neutra que lhe foi possível.

‒ Pois foi. Uma noite a Nisa levantou pra beber água e deu de cara com um espírito. Agora esse espírito aparece lá toda sexta, logo na noite em que eu dou plantão na empresa.

‒ E aí, o que o espírito faz?

‒ A Nisa diz que ele espera ela ir beber água. Por causa disso, pusemos uma geladeirinha no quarto, lá o espírito não entra. Mas mesmo assim, a Nisa tem medo. Por isso, o Elísio está indo lá toda sexta, pra ela não ficar sozinha com esse espírito.

– Elísio?

– É o primo dela.

‒ O primo dorme na tua casa toda sexta? Na noite do teu plantão?

‒ Sim. Ele é de confiança, e não tem medo de espíritos.

PlutaoSaiDeFerias-03Alfredo tomou um gole e lembrou… Um dia, alguns anos antes, encontrara a Nisa no shopping. Continuava gostosa, os mesmo peitos se oferecendo para o mundo. E já estava casada com o Plínio. Olharam-se maliciosamente, e ela lhe piscou um olho. Ele ficou muito atiçado, e só não foi lá ter com ela porque estava acompanhado. Porém, naqueles poucos segundos toda a cena lhe passou novamente no pensamento, Nisa subindo a camiseta, os peitões mais desejados da Humanas. Durante aqueles segundos sentiu-se novamente encostado à parede da cantina, sentiu inclusive o cheiro oleoso do velho sanduíche de queijo que sempre comia no intervalo. Peitonisa… Pelo jeito, continuava safada. E agora certamente estava dando para o primo, nas barbas do marido. E o coitado acreditando em espíritos.

– Ô, Plínio…

– Diz. Garçom, mais uma estupidamente.

– Tu que é mais entendido que eu nesses assuntos, me diz uma coisa. Por que essas almas, já que não podem entrar no Inferno, não fazem como Plutão e vão pegar uma praiazinha também? Tanta coisa melhor pra fazer do que ficar assustando a mulher dos outros no meio da madrugada enquanto o marido trabalha…

– Não sei. Acho que elas não podem frequentar a mesma praia dos deuses. Nunca tinha pensado nisso. Vou consultar.

– Faz isso.

– Pode deixar.

– Ô, Plínio…

– Do que é que você está rindo?

– Desculpe – Alfredo não sabia se devia dizer. – Posso ser bem franco?

– Claro. Qual é a graça?

Alfredo coçou a cabeça. Talvez fosse mais sensato não se meter naquele assunto de marido e mulher. Plínio sempre fora um ingênuo, e com mulher era um boboca de marca maior. E casara logo com quem? Com a Nisa. Chapéu de otário era marreta mesmo. Mas, coitado, ele não merecia aquilo.

– Plínio, por favor. Um homem do teu tamanho, querer me convencer de que Plutão sai de férias e vai se bronzear no Sol, e o Inferno vira uma bagunça, e por isso enche de alma penada por aí porque não pode entrar no Inferno? Ô, Plínio…

– Mas é sério! Se quiser, eu lhe mostro um livro…

– E essa história aí, rapaz, da tua mulher com o primo dela…

– O que é que tem?

– Onde já se viu uma coisa dessa, Plínio? O cara ir dormir na tua casa porque tem um espírito perseguindo tua mulher…

– O que é que tem?

– O que é que tem? Não acredito…

– Você por acaso está insinuando que minha mulher e o Elísio…

– Deixa pra lá – Alfredo deu com a mão, impaciente. Não conseguia entender como ainda havia pessoas, dois mil e quinhentos anos depois de Platão, que ainda acreditavam que seus destinos eram comandados pelos deuses.

– Não, não. Agora eu quero que você diga o que está pensando.

– Deixa pra lá.

– Pô, Alfredo, você é ou não é meu amigo? Amigo com A maiúsculo.

– Plínio… – Alfredo segurou o braço do outro. – Desculpe a sinceridade, mas pelo que tu me falou, a tua mulher tá te corneando com esse primo, rapaz! Tu tá levando um baita de um chifre e só tu não percebe. Fica aí com essa história de Plutão saindo de férias…

– Você não acredita, não é?

– Em ti ou na Nisa?

– Nos deuses.

– Plínio, eu…

– Pois eles existem.

– Tá bom.

– Sempre existiram. Estão todos ainda por aí, influenciando nossas vidas, aprontando todos os dias. Nós é que não acreditamos mais, só acreditamos na ciência. Pois eu acredito nos deuses e sei do que eles são capazes. Se você não acredita, lastimo.

– Tá bom, Plínio, respeito tua crença. Mas tu pelo menos podia ir averiguar direitinho a história desse espírito aí. Tá muito mal contada, rapaz, não percebe? Vai lá, conversa com a Nisa sobre isso, mostrar pra ela que tu não é trouxa de acreditar numa armação absurda dessa.

Alfredo respirou fundo. Pronto, falara. Como um homem podia ser tão ingênuo? Se contasse, ninguém acreditaria. E logo com a Nisa… Enquanto o amigo ia ao banheiro, vieram-lhe mais uma vez as lembranças, a cantina e o shopping se misturando. Peitonisa…

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PlutaoSaiDeFerias-03DIAS DEPOIS, ALFREDO estava em casa, era uma sexta-feira, oito da noite. Acabara de fumar novamente do baseado acontecedor. Então o telefone tocou. Era o Plínio. Ele estava no mesmo bar da outra semana e precisava conversar. Pela voz do amigo, Alfredo percebeu que ele estava preocupado. Encontraram-se quinze minutos depois.

‒ Que bom que você veio, meu amigo ‒ disse Plínio, recebendo Alfredo com um abraço. ‒ Vamos sentar naquela mesa do canto. Não posso demorar, hoje dou plantão na empresa.

‒ Ah, sim, hoje é sexta. Mas que cara é essa? O que aconteceu?

– Conversei com a Nisa ‒ ele falou discretamente enquanto sentavam. ‒  Ela me contou tudo.

– Ah… ‒ Alfredo pediu uma cerveja e dois copos.

‒ Não, obrigado. Não posso chegar lá com bafo de bebida.

‒ Claro. Mas e então, eu tinha razão?

– Não.

– Não?

– Não. Ela não tem nada com o primo.

Alfredo olhou sério para o amigo.

– Quer dizer que tu fica trabalhando na empresa a noite toda e o primo dela vai dormir lá na tua casa porque um espírito inventou de toda sexta…

– É Plutão ‒ interrompeu Plínio.

– Heim?

– É ele, Plutão, Senhor do Tártaro.

– Como assim?

– O espírito. É o próprio Plutão. A Nisa está tendo um lance com ele. Ela confessou.

– Com Plutão.

– Com Plutão.

– O irmão de Saturno.

– Filho.

– O deus do Inferno.

– O próprio.

Alfredo suspirou. A coisa era mais séria, bem mais séria.

– E tu, o que é que fez?

– Eu, nada. Vou me meter com um cidadão desse?

– E ela?

– Ela disse que não pode fazer nada, que ele é mais forte que ela, o que é verdade, claro. Sem dizer que ele tem um cão terrível, com três cabeças, dentes enormes e serpentes enroladas pelo pescoço. Cara, eu tenho pavor mortal de cobra. Imagina dar com um bicho desse na minha frente de madrugada.

Alfredo suspirou. Era inútil, o homem era um caso perdido. Um prato de batatinhas fritas pousou no balcão.

– Gosta de molho tártaro, Plínio?

– Não, não. Tártaro não.

– Ah, claro… 

Com marido traído, sempre bom ter cuidado com as palavras.

– Plínio.

– Diz.

– Não fica com essa cara, rapaz. A vida é boa.

– Você diz isso porque não é com você.

– Não, eu não tô zombando não.

– Tudo bem.

– Tá com raiva de mim?

– Claro que não.

– Então esta é pelo meu amigo Plínio – Alfredo ergueu o copo e bebeu.

E abraçou o amigo. De repente, sentia compaixão por aquele sujeito que acreditava piamente que os deuses governavam sua vida. Olhando-o, como diferenciá-lo daqueles hominídeos primitivos que se moviam por meros instintos? Não havia diferença. Nele, a humanidade não evoluíra.

– Alfredo.

– O que foi?

– Você não tem medo de espírito, né?

– Não.

– Sabe o que é…

– Pode dizer.

– Você sabe quem é Prosérpina?

‒ Quem?

‒ É filha de Júpiter. Um dia, ela foi buscar água na fonte e Plutão se apaixonou por ela. E a raptou. Os dois se casaram e ela virou rainha do Inferno.

‒ E daí?

‒ Daí que ele talvez deseje fazer o mesmo com a minha mulher.

‒ Raptar a Nisa.

‒ Isso.

Tinha bom gosto esse Plutão, pensou Alfredo.

‒ Andei pensando numa saída para esse problema. Será que você poderia dormir hoje lá em casa?

Alfredo quase engasgou com a cerveja.

– Eu?

– Sim. Talvez Plutão escute você.

– Peraí. Tu quer que eu converse com Plutão?

PlutaoSaiDeFerias-03– Ele veria que você não o teme. E escutaria.

– E eu diria o quê pro deus do Inferno?

– Diria pra ele parar de…você sabe, pra ele deixar de importunar minha mulher. Talvez ele proponha um trato. Você escuta e depois me diz, a gente vê o que pode fazer. Os deuses também negociam.

Era demais, pensou Alfredo. Onde fora se meter? Não, aquilo não estava acontecendo.

– Você faz isso?

– Plínio, tu sabe que eu não acredito nessas coisas.

‒ Não precisa acreditar. É só pro caso de Plutão aparecer. Ah, vamos, você é meu amigo, não é? E minha mulher já está sabendo.

– Tu contou pra ela sobre essa ideia?

– Contei.

– E ela?

– Achou uma boa. Ela disse que você sempre foi um cara compreensivo. No que eu concordo. E eu confio mais em você que no primo dela, que, aliás, não vai lá em casa hoje. Nisa está sozinha.

Alfredo olhou novamente para o copo, refugiando nele o constrangimento que sentia. Seu amigo propondo que dormisse com a mulher para protegê-la das investidas de Plutão, o deus do Inferno, que estava aproveitando as férias para ir lá chafurdar nos peitos da outra. E a mulher do amigo concordava que ele fosse, ele, Alfredo. A Peitonisa. Dessa vez, o fumo acontecedor exagerara…

– Ô, Plínio.

– Diz.

– Que ano terminam mesmo as férias de Plutão?

– 1999. Um nove nove nove.

– Ano que vem?

– Exato.

– E depois?

– Depois ele volta pro Inferno. E só tira férias de novo daqui a 200 anos. Dois zero zero.

Um alvoroço se manifestando no baixo ventre, Alfredo podia senti-lo. Um alvoroço se espalhando pelo resto do corpo, se intrometendo no pensamento. Nisa sozinha…

Mas não, não podia, não era tão cafajeste assim…

– Quer um conselho, Plínio?

– Quero.

– Não mexe com o homem, rapaz. Esse pessoal tem muita influência. Melhor ser corno com espírito do que com gente. Pelo menos a fofoca fica só lá no astral. Tu sabe, né, o pior do chifre são os comentários.

– Você acha? – Plínio coçava o rosto, pensativo.

Alfredo sentia o alvoroço se espalhar rapidamente por seu corpo, por sua mente… Já não conseguia controlá-lo. Um animal enjaulado querendo sair a todo custo. Concentrava-se para falar, mas por dentro era o desejo louco que gritava.

Mas não, não podia fazer isso com o amigo…

– Sim, claro. E além do mais é só um ano, rapaz. Depois acabam as férias de Plutão, ele volta pro batente e esquece a tua mulher. Aguenta mais um pouquinho.

Nisa sozinha…

Não, não, precisava resistir. Melhor deixar aquela história com o tal do primo, mais prudente não se meter na confusão…

‒ Mas… e se Plutão raptar a Nisa? Você tem que ir, Alfredo. Vá, por favor, ela está esperando por você.

A Peitonisa… esperando… Alfredo sentia agora uma imensa coceira pelo corpo inteiro. Um ano… toda sexta… Olhou para o céu, tentando se concentrar nas estrelas, qual delas seria Plutão? Não, Plutão não era visível a olho nu. Ele atuava escondido, nos confins do sistema solar, lá onde a vista não alcançava. A vista… Visa… Nisa…

As grades da jaula enfim se romperam, um estalido que vibrou por todo seu ser. Alfredo virou a cerveja de um gole e bateu o copo na mesa, por pouco não o quebrou. Bem que tentara, disso depois não lhe poderiam acusar, bem que tentara.

– Hoje é sexta, né? – perguntou, virando-se de repente, agarrando o braço do amigo.

– É.

– Então aquele safado do Plutão vai lá hoje.

– Não fale assim, tenha respeito. Ele é um deus.

– Qual é o endereço?

Os olhos do amigo brilharam. Plínio puxou do bolso papel e caneta e anotou enquanto explicava:

– Fica ali na praça Pilos, dá pra ir a pé. No jardim do prédio tem uns ciprestes – Plínio ainda anotava o endereço, mas Alfredo já puxava o papel, ansioso, quase bufando. – Vou ligar agora pra ela avisando que você está indo.

– Ah, isso é importante, isso é importante.

O touro saltou da jaula. Um touro que acabou de cheirar dois quilos de cocaína. Ao lado, Plínio terminava de falar com a mulher pelo celular.

– Sim, amor, ele está indo. Tchau. Também te amo – Plínio desligou e virou-se para Alfredo. – Tudo ok, Alfredo, ela está aguardando.

– Pode deixar – bufou Alfredo.

– Na estante da sala tem um CD de música instrumental, uma lira na capa. O nome é Clássicos de Orfeu. Ponha pra tocar logo que chegar. Se Cérbero estiver com Plutão, somente essa música é capaz de amansá-lo.

– Cérbero? É pra dar porrada nele também?

– Não, é o cão de Plutão. Aquele de três cabeças, com as serpentes no pescoço. Você não tem medo de cobra, né?

– O cão de Plutão, o cão de Plutão – repetiu Alfredo enquanto levantava da mesa. Precisava decorar aquilo tudo. Botar para tocar o CD de Carlos Lira. Clássicos de Cérbero. Não, clássicos de Morfeu.

‒ Confio em você – disse o amigo com emoção na voz. – Sei que vai fazer um bom trabalho.

O touro ciscava a terra, a cabeça baixa, as narinas botando fogo… Nada no mundo importava agora a não ser fazer o que o amigo tanto lhe pedia. E, além do mais, aquela moleza terminaria no ano seguinte, quando findassem as férias de Plutão.

– Esqueci de lhe dizer uma coisa – Plínio chamou-o para perto. Alfredo aproximou-se, ofegante, os primeiros botões da camisa já saltando fora. – Plutão tem um capacete que o torna invisível. Foi presente dos Ciclopes. Mas mesmo sem vê-lo, você pode falar com ele.

– Claro, os Ciclopes. Eu pego eles também. Bajuladores!

Alfredo arrastou uma pata no piso do bar, uma, duas, três vezes, e saiu a toda velocidade. Atravessou a rua correndo e bufando, as patas mal tocando o chão, e sumiu entre os carros. Nem pagou a cerveja.

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Ricardo Kelmer 1998 – blogdokelmer.com

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Comentarios01COMENTÁRIOS
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01- Eu já li. Adorei. Parabéns. Vânia Cavalcante, Fortaleza-CE – set2010

02- Quase morro de rir lendo. Adorei! Ligia Eloy, Lisboa-Portugal – jul2015

03- Muito bom. Ivonesete Zete, Fortaleza-CE – set2010

One Response to Plutão sai de férias

  1. […] Plutão sai de férias O baseado acontecedor é aquele que provoca acontecimentos inusitados. Alfredo fumou um desses e reencontrou um amigo que acha que sua mulher o está traindo. […]

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