01jul2022
O MISTÉRIO DA VIÚVA NEGRA
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Verdadeiro homem de família, fiel à esposa, de casa para o trabalho, do trabalho para casa. Assim era o Nicolau. Por isso, foi uma grande surpresa quando, em seu enterro, aquela bela mulher apareceu, pele alva e cabelos negros, vestido preto longo e decotado, sombrinha e óculos escuros. Sozinha e um pouco afastada, ela acompanhou a cerimônia, semblante sem expressões, aqui e ali enxugando uma lágrima, enquanto o vento soprava em seu vestido fendido, oferecendo, por um instante, a visão de sua perna esguia.
A viúva Valdete até parou de chorar. Os filhos Fabinho e Joca murmuraram em pensamento: Você, heim, Papai… Parentes e amigos, sem exceção, todos se indagaram, curiosos, sobre quem poderia ser. Em meio aos cochichos, nem o padre Jarbas resistiu a uma olhadela por cima do ombro, antes de postar-se à frente e enaltecer as qualidades do finado. O coveiro Maurição, coitado, errou o passo e quase despencou na sepultura. E, nem bem descido o caixão, tão misteriosamente quanto surgiu, aquela gótica aparição se foi, seu vulto negro sumindo para sempre nos vãos das lápides…
Uma hora depois, já em casa, Virgínia guarda o traje no armário, serve um licor e senta ao sofá. Abre o caderno de capa preta, risca o nome Nicolau e confere os outros nomes agendados. Impossível saber quem seria o próximo. Pela idade, provavelmente Napoleão, mas ele estava bem de saúde. Cliente especial, ela pensa, sorrindo. Contratou seus serviços quinze anos atrás, e ainda lhe conseguiu cinco clientes em sua turma do futebol, todos já idos.
O primeiro deles que se foi, Henrique, propôs pagar o dobro para que ela, além de comparecer ao enterro, derramasse solenemente um vinho sobre seu caixão, mas ela não aceitou, seria obviamente arriscado. Ao segundo, Walber, prometeu usar a peruca ruiva (homens e seus funéreos caprichos…) e, sim, cumpriu a promessa. O terceiro, Sávio, ofertou-lhe a camisa do time de coração para que ela usasse ‒ ela agradeceu, achou linda, mas não poderia usar, pois não combinava com o figurino. O quarto, Ayres, perguntou, assim como quem não quer nada, se ela por acaso fazia algo mais além de semear o caos em enterros, ao que ela, elegantemente, respondeu que isso já era muito. O derradeiro, Demétrio, nada pediu, mas perguntou qual era a garantia do serviço, e ela, sem titubear: A mesma da vida.
Virgínia fecha o caderno, bebe o resto do licor e vai preparar algo para comer. Enterro sempre lhe dá uma fome do outro mundo.
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