Crônica de um romance não fumante

13/04/2011

13abr2011

Se vejo o cigarro entre os dedos, já sei: mesmo que haja interesse mútuo, jamais seríamos felizes juntos

CRÔNICA DE UM ROMANCE NÃO FUMANTE

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Nada contra os vícios, por favor, também cultuo os meus. E não me interessa o que os outros fazem ao próprio corpo e espírito, a gente é livre pra viver e morrer. Mas comigo não dá. Não dá mesmo. Tô falando de mulheres fumantes. Me desculpe se você fuma, mas sabe como é, essa nossa convivência, tantas crônicas, acho que posso ser franco.

Dizem que homem, quando conhece uma mulher, sempre pensa em sexo: transaria ou não com ela? Mas sempre pensa. Bem, admito que tal hábito não me é estranho. Mas vou além. Como sou um cara meio romântico, às vezes penso em romance: será que eu e ela, um dia, nós dois… No entanto, se ela fuma, ah, que pena, desanimo no terceiro segundo do primeiro encontro, antes do quarto. Se vejo o cigarro entre os dedos, já sei: mesmo que haja interesse mútuo, jamais seríamos felizes juntos, a vida não é perfeita, beibe. Dividir algumas noites, talvez, anda mesmo fazendo frio. Mas compartilhar o dia a dia? Impossível. No máximo, um romance de mentirinha. Porque sei que não vai dar certo nunca, melhor não nos iludirmos.

E não me acuse de radical, pois eu já tentei, bem sei do que falo, ela tá de prova. Quando a conheci, ela estava fumando – ainda assim me apaixonei pela moça. Felizmente a paixão é cega, senão ninguém se apaixonaria. Mas depois a visão volta e a gente tem que lidar com a realidade. O que aconteceu? Não demos certo, é óbvio. Como que dá certo se não aguento a fumaça, me sinto sufocado, espirro, arde o olho… Por favor, não preciso de mais um risco de câncer. E ela responde: e eu não preciso de mais um chato. E você tá comigo por quê? Pronto, começou, a velha discussão.

Já reparou? Fumante sempre acha que controla a direção da fumaça: estica o braço, abana o ar, bafora pra cima, vai pra janela… E o fedor horroroso que fica na roupa dela, na pele, no cabelo? E no outro dia até eu tenho que pendurar minhas roupas ao sol. Exagero seu, não tô sentindo nenhum fedor, ela diz, magoada. Claro que não sente, com esse olfato comprometido. Ah é, e essa sua mania ridícula de arrotar, heim? Ridículas são as guimbas que você deixa por aí. Tô jogando no vaso sanitário, seo idiota! Mas não dá descarga, sua burra!

Tá vendo? Não dá, minha linda, melhor não insistir. Por mais que você evite fumar quando comigo ou que fume escondido e depois passe o bom-ar, uma hora bate a secura. Aí eu já sei o roteiro da tragicomédia: saio de perto pra você fumar tranquila, vou dar uma volta, você se chateia e, pronto, estragou a noite. Isso tudo sem falar no maldito hálito. Beijo com gosto de cinzeiro, francamente… Pra encarar, só misturando muito desejo com cinco doses pra anestesiar a língua. Sem falar que você vai acabar se chateando de tanto que vou lhe oferecer ráus extra-forte. Enfim, não dá, não dá.

Há mulheres que se irritam com não fumantes, chegam a insultar nossa masculinidade, que coisa feia. E há amigos que dizem que isso é frescura, pô, mermão, botou no sol e fez sombra, a gente traça. No meio dos extremos só me resta dar de ombros, fazer o quê se com a idade a gente se valoriza mais e fica mais seletivo? Bem, é verdade que, biologicamente falando, não sou nenhum representante exemplar da raça pra botar tanta banca. Sem falar que sou viciado em futebol, desses que colam a tabela de classificação na parede – coisa que muita mulher jamais entenderá. Mas mesmo com todos os meus defeitos, acho que também tenho direito a uma exigenciazinha, né?

Semana passada conheci uma fumante. Ela é tão linda… O olhinho, o jeitinho… Ai, ai. Pena que a vida não é perfeita. Durante um tempão fiquei olhando, admirando… Até que tomei coragem e fui lá. Oi, você já ouviu falar das realidades paralelas? Não? Ah, então deixa eu explicar, posso sentar aqui do teu lado? Obrigado. Garçom, uma vodca, por favor. Tripla. Onde a gente tava mesmo? Isso, os deuses. Poizentão, os deuses que criaram essa realidade também criaram outras. E numa delas você deixou de fumar, sabia? Sim, definitivamente. Sério que você anda pensando em largar? Que bom. Então. A gente invade o prédio dos deuses, acessa o arquivo e faz a substituição da realidade. Eles nem vão perceber, andam muito preocupados com o Oriente Médio. Tem que ser à noite, claro. Hoje é um dia bom. Você tem compromisso?

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Ricardo Kelmer 2004 – blogdokelmer.com

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Queremos mulher carnuda – Infelizmente muitas de vocês estão tão paranoicas que se excitam mais com dieta que com sexo

Cerejas ao meio-dia – Linda e poética, ela dá a volta no carro e todas as buzinas se calam. Claro, um poema de cereja em plena avenida, não é todo dia

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 COMENTÁRIOS
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01- Oi, Ricardo, gosto muito do jeito como vc escreve! Em especial, este trecho de crônica sua mexe muito diretamente comigo pq sou fumante. Já deixei várias vezes e volto sempre qdo alguma coisa me aperreia. Fazer o quê? Esquecer de beijar e esperar deixar de fumar. Vich, tá parecendo o filme “Confidências Muito Íntimas”! Só que aqui, peguei foi um desavisado escritor para analista. Me perdoe. Abraço. Maria Juraci, Fortaleza-CE – ago2005

02- Concordo em gênero, número e grau: perderia facilmente o grande amor da minha vida no terceiro segundo do encontro, bastaria que ele acendesse o cigarro. Poderia ser o Brad Pitt. E Free Light. Ana Karla Dubiela, Fortaleza-CE – ago2005

03- Olá Ricardo! Já li todos os seu livros, sou sua admiradora. Amo o seu jeito inteligente e leve de escrever. Adorei a crônica de um romance não fumante, só ficou faltando especificar que o gosto do beijo é de cinzeiro é sujo. Quem já beijou sabe disso hahahahahahaha… Atualmente não tenho este problema, tb não agüentaria. Bj p/ vc genial escritor, Jussara Santana, Salvador – BA – ago2005

04- Kelmer, Gostei muito da crônica e, inclusive, me identifiquei. É osso mesmo agüentar, por mais que haja a própria mulher, é claro, + chiclete, pastilhas, whysky, incenso, bom-ar etc e tal… Um dia a fumaça entra, e onde há fumaça…., no caso, apaga o fogo! Abraço. Ronald de Paula , Fortaleza-CE – ago2005

05- Olá Rk, Bom dia. Somos um pouco parecidos em relação aos fumantes, mas se for só fumante de Cannabis não me incomoda… Você já sabe que adoro seus artigos, crônicas, textos, etc e tal, sempre que quiser me escreve tá? Se cuida e que o Universo te proteja! Com carinho e paz. Marúsia, Fortaleza-CE – ago2005


Xamanismo de vida fácil

11/03/2011

11mar2011

A tradição xamânica dos povos primitivos experimenta uma espécie de retorno, atraindo o interesse de pesquisadores e curiosos – e desvirtuando a essência da coisa

XamanismoDeVidaFacil-03

XAMANISMO DE VIDA FÁCIL

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– Lembra do Xamanismo? Pois é, caiu na vida fácil. Dia desses ele estava lá na Vênus Lilás, todo se oferecendo!

Quem diria… O antigo sistema das sociedades primitivas, que girava em torno do xamã e sua técnica do êxtase, é o novo xodó dos místicos de fim de semana. Agora, espaços esotéricos oferecem cursos de xamanismo e muitos até formam xamãs. É como fazer um curso para tornar-se gênio.

O xamanismo, a rigor, é um fenômeno religioso originário de sociedades primitivas da Ásia central e siberiana e que tem no xamã o centro da vida mágico-religiosa da comunidade. Por dominar as técnicas do êxtase e ser capaz de acessar mais facilmente estados especiais de consciência e, com isso, transitar com fluidez pelas dimensões da realidade, aos xamãs era atribuída a competência de intermediar os mundos físico e espiritual, usando o conhecimento adquirido nas incursões ao além para ensinar, curar, realizar atos milagrosos e entreter os membros da comunidade. O xamã encarnava em si as funções de professor, sacerdote, feiticeiro, médico e até mesmo poeta e artista.

Nessas sociedades não havia curso de fim de semana para formação xamanística. Excluindo-se raras exceções, alguém se tornava xamã por vocação natural: o indivíduo era simplesmente compelido a aceitar o fato, mesmo a contragosto. Era comum também a transmissão hereditária do ofício. Em qualquer das vias, antes de ser reconhecido como xamã, o indivíduo (em geral homem) inevitavelmente passava por um delicado e doloroso processo de iniciação, que podia ser desencadeado naturalmente por uma doença ou sistematicamente ritualizado sob orientação de um xamã experiente. Isso permitia ao futuro xamã efetuar uma notável reintegração psíquica, aflorando suas potencialidades e preparando-se convenientemente para as funções que desempenharia.

Não pense que essa preparação era algo festivo. Longe disso. Como todo verdadeiro processo de iniciação, nesse também havia dúvidas, temores e sofrimentos difíceis de suportar. O futuro xamã experimentava a morte e a ressurreição místicas, padecendo sob os horrores de seu inferno íntimo para depois emergir à vida cotidiana sobrevivido e triunfante, mais sábio e mais forte. Somente se submetendo a todos os rigores desse processo de morte e renascimento pessoal é que o indivíduo podia se tornar um xamã.

Para nós, ocidentais civilizados, entendermos melhor o que se convencionou chamar xamanismo, é preciso ter sempre em mente que os antigos compreendiam a Terra como um ser vivo, dotado de uma espécie de inteligência e vontade próprias, e os seres humanos, assim como animais, plantas e minerais, eram parte integrante do imenso organismo planetário, todos igualados em importância. Mais que um ser vivo, entretanto, a Terra era a Grande Mãe, que gera e nutre todas as suas criações com amor, ensinando e guiando os seres humanos vida afora. Assim sendo, a Natureza inteira era algo sagrado, e desrespeitar suas leis era atentar contra a própria vida, contra toda a comunidade e contra a Sagrada Mãe.

O xamã, nesse contexto de espontânea interação com a Natureza, é alguém dotado de poderes especiais para manter-se num contínuo estado de comunicação com o espírito da Terra, a quem jurou obedecer e defender até o último de seus dias. Como se possuísse antenas hiper-sensíveis, o xamã está intimamente conectado à alma da Terra, e por isso vive em si mesmo o equilíbrio vital do planeta, imperceptível à maioria: se a Terra adoece, ele adoece também.

Em reconhecimento à sua lealdade e reverência, a Grande Mãe põe à disposição do xamã segredos do mundo animal, vegetal e mineral, para onde ele, em espírito, vai frequentemente em busca de informações úteis ao bem-estar da comunidade. Quanto mais ele sabe, mais servo se torna. Quanto mais se anula, mais ele pode.

Em contraste com a humildade espiritual desses antigos guardiães da tradição xamânica, muitos dos que hoje se dizem xamãs ostentam o título feito um estandarte, anunciando as maravilhas que têm para oferecer. Se de fato entendessem o que significa a função a que tanto se pretendem, jamais vestiriam a antiga tradição com roupas tão vistosas e muito menos a exibiriam em poses tão constrangedoras nas vitrines coloridas de seus cursos.

xamanismo moderno

Esse milenar sistema místico-filosófico-religioso existiu e ainda existe em inúmeras sociedades de todo o planeta, inclusive na América e no Brasil, onde os pajés são os xamãs. O advento da civilização, invadindo e exterminando as culturas nativas, empurrou as tradições xamânicas para os escombros do que restou de suas sociedades, onde mantiveram um fio de vida suficiente para chegar aos dias de hoje.

Atualmente, a cultura xamânica dos povos primitivos experimenta uma espécie de retorno, atraindo o interesse de pesquisadores e curiosos. Apesar de atrair também, como não poderia deixar de ser, os mesquinhos interesses comerciais da mentalidade consumista, por trás disso tudo pode-se captar um legítimo anseio das pessoas em religar-se a antigos valores esquecidos por nosso mundo civilizado: uma vida mais simples e fluida, em harmonia com as leis e os ciclos da Natureza e respeitando todas as formas de vida. Num mundo onde a racionalidade impõe sua ditadura aos pensamentos e a tecnologia nos torna escravos de máquinas cada vez mais autônomas, essa busca por resgatar tradições ligadas à Terra é uma reação natural da espécie humana, que começa a entender, finalmente, o imenso perigo que criamos ao nos mantermos desconectados da alma do planeta e unilateralizados em nosso racionalismo, que despreza a sabedoria natural da vida.

É um anseio genuíno, sim, que faz com que as pessoas, na melhor das intenções, busquem satisfazê-lo em livros, cursos e vivências. É uma boa notícia. Infelizmente, se a facilidade das comunicações possibilitou a disseminação rápida e maciça da informação, trouxe também a tendência à banalização de todos os temas. Bilhões de informações circulam a todo instante, mas o conteúdo da maioria não enche uma colher. É como estar numa imensa feira de produtos, cercado de vendedores, ofertas e promoções por todo lado: na urgência de adquirir algo, as pessoas não têm discernimento suficiente para ver além da embalagem.

Com o xamanismo ocorre algo parecido. Confusas na imensa feira da salvação, as pessoas tendem a comprar qualquer produto que lhes prometa coisas diferentes e sensações excitantes, e, assim, vão a vivências, frequentam cursos, batem tambor, visualizam seu animal de poder e se dizem praticantes de xamanismo quando, na verdade, estão apenas saltitando pelos aspectos mais superficiais da antiga tradição, feito alguém que molha os pés nas ondinhas da praia e nunca experimenta, de fato, o que é o mar.

Sei que é impossível reproduzir atualmente as condições em que floresceram as milenares tradições xamânicas. O mundo mudou, as circunstâncias são diferentes. Nossa cultura se desfez dos antigos ritos de passagem e a maioria dos que ainda mantemos perdeu o significado mais profundo. A mentalidade civilizatória nos desconectou do espírito da Terra e hoje parecemos um bando de zumbis a vagar pela vida à procura do sentido que um dia tanto enriquecia e guiava nossa existência. Não temos que voltar ao passado: precisamos é reencontrar o caminho perdido e vencer o atual impasse evolutivo.

Atualmente, as festas chamadas raves, que se proliferam em países do mundo inteiro, parecem incorporar aspectos da antiga tradição xamânica, ainda que distante do contexto original. Embalados pela música eletrônica que remete às hipnóticas batidas tribais e pelo êxtase provocado pelas drogas sintéticas, as pessoas alteram o funcionamento ordinário da mente e do corpo e vivenciam intensas experiências, dançando e se abraçando a noite inteira. Por proporcionar isso, os DJs que controlam a trilha sonora das festas aceitam o rótulo de tecno-xamãs ‒ mais uma ridícula deturpação da tradição.

As raves são um fenômeno recente, merecedor de análises mais aprofundadas. Porém, à primeira vista, me chamam a atenção o êxtase grupal provocado pela combinação de música e droga, a presença de fogueiras e o fato de serem comumente realizadas longe dos edifícios das grandes cidades, mais próximas à Natureza. Parecem ser uma manifestação atual das antigas tradições, feito uma necessidade que emerge, espontânea mas distorcida, das profundezas da psique coletiva.

A antiga tradição está de volta. É uma boa notícia. Mesmo deturpada pela maioria das pessoas, ela ressurge, atravessando os séculos, para nos lembrar que precisamos urgentemente integrar em nossa consciência os antigos valores e, com isso, nos tornarmos seres mais inteiros. Precisamos nos reconectar ao espírito da Terra, voltando a tratá-la com reverência e gratidão, antes que atinjamos o fatídico ponto onde a Grande Mãe, exaurida em suas forças, já não pode mais nutrir seus filhos.

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Ricardo Kelmer 2002 – blogdokelmer.com

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Minha noite com a JuremaNessa noite memorável fui conduzido para dentro de mim mesmo pelo próprio espírito da planta, que me guiou, comunicou-se comigo, me assustou, me fez rir e ensinou coisas maravilhosas

A Jurema e as portas da percepção (VIP) – Relato detalhado da experiência narrada em Minha Noite com a Jurema. Exclusivo para Leitor Vip. Basta digitar a senha do ano da postagem

A vida na encruzilhada (filme: O Elo Perdido) – Essa percepção holística da vida é que pode interromper o processo autodestrutivo que nos ameaça a todos

O novo salto quântico da consciência – Por qual razão tantas pessoas ousam se submeter a uma experiência incerta, largando a segurança de sua mente cotidiana e desafiando o desconhecido de si mesmo?

O trem não espera quem viaja demais – Alguns captam o recado da planta, entendendo que a trilha da liberdade existe, sim, mas deve ser localizada no cotidiano de suas vidas e, mais precisamente, em seu próprio interior

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DICA DE LIVRO

BaseadoNissoCapaMiragem-01aBaseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha
Ricardo Kelmer – contos + glossário

Os pais que decidem fumar um com o filho, ETs preocupados com a maconha terráquea, a loja que vende as mais loucas ideias… RK reuniu em dez contos alguns dos aspectos mais engraçados e pitorescos do universo dos usuários de maconha, a planta mais polêmica do planeta. Inclui glossário de termos e expressões canábicos. O Ministério da Saúde adverte: o consumo exagerado deste livro após o almoço dá um bode desgraçado.

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DICA DE FILME

Carlos Castaneda – Especial da BBC sobre o polêmico antropólogo que estudou o xamanismo no México, escreveu vários livros e tornou-se um fenômeno do movimento Nova Era. Legendado.

O Elo Perdido (Missing Link) – Homem-macaco tem sua família dizimada por espécie mais evoluída e vaga sozinho pelo planeta, conhecendo e encantando-se com a Natureza. Ao comer de uma planta, tem estranha experiência que o faz compreender o que aconteceu.

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ALMA UNA
música de Ricardo Kelmer e Flávia Cavaca

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01– Sou fã dos seus escritos, inclusive vi hoje matéria no jornal O POVO fazendo um paralelo entre as raves e o xamanismo, muito legal. Em 2001 fiz um artigo publicado no antigo site do UNDERGROOVE, sobre Musica Eletrônica vs Xamanismo, e me identifiquei com o que vc expôs na matéria. Um abraço. Angel, Fortaleza-CE – ago2007

02- Olá Ricardo, já havia lido seu texto, em abril ou maio deste ano, qdo estava pra entrar num desses cursos de xamanismo, promovidos pela Paz Géia no meu caso. Hj este texto saiu no Jornal O Povo em Fortaleza e por algum motivo uma amiga me mostrou dnovo via msn. Tenho a dizer q dos “10 Pilares” (ou módulos) que eles propunham no curso, apenas 3 eram iniciáticos e os outros se tratavam de reproduções de técnicas de livros como Medicina Vibracional, A Cura pela Energia e outras obras que já tenho certa prática efetiva em consultório como terapeuta integral (sou psicólogo, iniciado em Reiki e na tradição Rosacruz, trabalho com 4 tradições em massoterapia, Qi Gong e técnicas de visualização – este último recurso terapeutico rotulado de técnica neo-xamanica pela Paz Géia). Concordo com suas críticas, mas pondero sempre extremos e, pelo preço pago pelo curso, até que não foi tão ruim. De fato haviam os tais místicos de fim de semana, muito loucos por sinal… alguns narcisistas entusiastas… poderia me perder nessa crítica rotulando cada um que convivi no curso, inclusive algumas instrutoras não tão iniciadas… Mas tb conheci uma ou outra pessoa de grande valor, não por serem “esotéricas”, mas pela simplicidade e humildade com que buscava conhecimento e evolução espiritual em meio a tantos “escombros de nossa solidez”, em meio a evolução da mentalidade instrumental do último século, que parece “progredir” para uma vida ciborgue que transforma nosso potencial inato em dependencia material (por exemplo atrofiando potencial telepático para depender de satélites e toda cultura de virtualidade que cá em baixo se massifica nesse meio material de “comunicação em tempo real”; ou numa metáfora mais simples o de não precisarmos desenvolver nosso raciocínio fazendo contas de cabeça pela dependencia material de uma calculadora)…

Em sendo experimento vivo de seu texto, tenho a dizer (com conhecimento de causa) que a existência desses cursos tem sim um apelo material de grana para os que promovem (como qq promoção de culturas q convivem com dinheiro) mas quem investe nisso pouco se importa com esse apelo, pois tb estão investindo em algo maior. Acredito q certos cursos e pessoas têm agido de má fé, mas não são grupos peçonhentos como grupos políticos, pois têm outras “conduções” ou “influências” que os fazem preparar com dedicação tanto material. Além disso existem sim ritos iniciáticos que se adequam a nossa cultura nada pajé de ser… não haveria como sermos xamãs sem sermos “índios”, nativos de culturas q convivem com a natureza! Mas algumas culturas, fraternidades esotericas e outros grupos como UDV e Santo Daime tentam há muito, com algum sucesso (dependendo do interesse efetivo de quem se propõe adentrar conscientemente em outras dimensões) auxiliar os que sentem alguma ancestralidade nisso tudo… pajés, assim como toda comunidade humana, me parecem ser outros de nós mesmos… com grau e função evolutiva diferenciada certamente… O que vejo é que esses aparentes conflitos “de idade média” entre oq é sagrado e profano têm sido menos tumultuado q antes. Isso me soa como uma evolçução lenta, gradual e de quem realmente se interessa mais em buscar sua conecção com a unidade do universo do que em ser ou não alvo de gente oportunista afim de ganhar dinheiro. Não está em meu poder julgar a ingenuidade de quem perde dinheiro com oq não sabe utilizar, como pessoas q se abarrotam de coisas inuteis mas não conseguem parar de comprar… penso mais no ganho que cada ser humano, no limite de seu conhecimento de si, recebe ao investir num grupo e dele partilha oq lhe apraz, com quem se sente convidado à partilhar.

Agradeço de coração pela oportunidade que sua reflexão me despertou em repensar este momento de minha vida. Espero que aceite meus adendos com ternura. Lembremos que o Criticismo significa em sua origem “lançar luzes” e não meramente uma vã oposição pelo desperdício do gozo pela discussão. E foi justamente por sentir um bom equilíbrio crítico em seu texto q resolvi escrever. Meu adendo é apenas com referência aos “místicos de fim de semana”, que em nosso contexto evolutivo não merecem ser infantilizados por nosso inconsciente coletivo, pois pelo que vi (testemunho), alguns deles estão melhores que muita gente. Cordialmente. Rodrigo Sol, Fortaleza-CE – ago2007

03- kkkkkkkkkkkkkkkkkkkk ÓOOOOTIMO!!!!!!!!!!!!!!! Mônica Torres, Macaé-RJ – ago2011

04- Eita Kelmer… é de doer…rsrsrrs. Maria Sá Xavier, Niterói-RJ – ago2011

05- Passou da hora de alguém falar isso kkkkkkkkkkkkkkkkmaravilhoso seu texto, adorei!!!!!!! Silmara Oliveira, São Paulo-SP – ago2011

 


Só o crack salva

25/07/2010

25jul2010

Se os problemas relacionados ao crack ficassem restritos às camadas pobres da população, os ricos jamais se incomodariam e o horário nobre da tevê nem tocaria no assunto

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SÓ O CRACK SALVA
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Em maio assisti a um documentário que me trouxe, ao mesmo tempo, preocupação e esperança. Ele foi exibido no prédio da Fiesp, a Federação da Indústrias do Estado de São Paulo, que fica na avenida Paulista, o coração financeiro do país. Documentário sobre as modernas indústrias paulistas? Não. Sobre a retomada do ritmo industrial após a crise financeira? Não. Era um documentário chamado Selva de Pedra  A Fortaleza Noiada e mostrava a terrível realidade que envolve os usuários de crack na cidade de Fortaleza.

Após a exibição, Preto Zezé, que dirigiu o documentário com Edmar Jr., falou sobre a problemática do crack em Fortaleza e no Brasil. Fiquei agradavelmente surpreso com ele. Preto Zezé, coordenador da CUFA-CE (Central Única das Favelas), demonstrou ter uma rara abrangência de visão em relação à questão do crack mas também em relação a drogas em geral e justiça social. Não é à toa que ele já foi convidado a vir a São Paulo para falar sobre a problemática das drogas, inclusive para policiais. Dessa vez foi a Fiesp que o convidou.

Pela primeira vez tive real noção do problema  e vi que ele é monstruoso. O crack já é considerado uma epidemia nacional e a quantidade de usuários, hoje aproximadamente um milhão e meio de pessoas, aumenta velozmente, como nunca antes ocorreu com nenhuma droga. Se os problemas relacionados ao crack ficassem restritos às camadas pobres da população, os ricos jamais se incomodariam e o horário nobre da tevê nem tocaria no assunto. O problema, porém, já chegou às classes média e alta que, além de também contarem com usuários, sofrem com o aumento nos índices de roubo, assalto e assassinatos ligados ao crack, tanto nas capitais como em pequenas cidades.

Um orgasmo de quinze minutos  você já teve um? Nem eu. Mas é disso que falam os usuários de crack. A pedra é queimada, inalada e o prazer proporcionado é tão intenso mas tão intenso que, uma vez experimentado, tudo que se quer é ter de novo, e imediatamente, e mais uma vez, e mais uma. Nada contra orgasmos longos, muito pelo contrário. O problema é que o crack é altamente nocivo ao organismo, deixa sequelas terríveis e não raramente mata após poucos anos de uso. Por isso, ao contrário de outras drogas, é impossível usar crack ocasionalmente e de modo recreativo  o usuário é sempre um viciado e em nome desse vício ele perderá qualquer senso moral e será capaz de enganar, roubar, assaltar, agredir e matar. Muitos abandonam a família e os amigos, recorrem à prostituição, contraem dívidas e acabam engrossando a massa de farrapos humanos a perambular pelas ruas, adoecendo e morrendo à míngua. O baixo preço, o altíssimo nível de dependência e a degradação física, psicológica e familiar que o crack ocasiona fazem o cigarro, o álcool, a maconha e até mesmo a cocaína parecerem brincadeirinha de criança.

A sociedade, perplexa, não sabe o que fazer. Tirar das ruas os noias, como os usuários são chamados, não resolve pois eles logo retornam. Prisão também não resolve pois o problema não é apenas de contravenção mas principalmente de saúde pública. Nos Estados Unidos o crack afugentou os usuários de drogas mais rentáveis e causou tantos problemas ao tráfico que ele próprio baniu a droga do mercado. Especialistas consideram que no Brasil somente o próprio tráfico teria o poder de acabar com a epidemia. Aliás, em São Paulo o PCC não permite o crack nas cadeias, tamanho seu poder de destruição.

Mas… e quanto a tratamento? Sim, é possível tratar o viciado mas não é fácil pois primeiramente ele deve querer. Há também discordâncias sobre a metodologia do tratamento pois não há pesquisas suficientes. No entanto, todos concordam que, além do apoio de família e amigos, é necessário que o indivíduo em recuperação encontre em sua própria comunidade as condições que lhe permitam manter-se abstinente e isso envolve escola, emprego e atividades sociais, esportivas e artísticas que possam substituir o prazer do crack. Isso, porém, é impossível se não há investimentos na melhoria de qualidade de vida nos bairros pobres.

É justamente por isso que o documentário Selva de Pedra, ao mesmo tempo que me preocupou, também me deixou esperançoso pois deixa claro que o problema do crack é de responsabilidade de toda a sociedade. Além disso, o fato dele ter sido exibido num lugar como a Fiesp mostra também que as classes sociais estão dispostas a dialogar na busca por uma saída para o problema. A ironia é que seja o crack que esteja finalmente aproximando ricos e pobres e nos obrigando a discutir honestamente o tema da desigualdade social e também a questão do uso de drogas, sem ingenuidade e hipocrisia. É a salvação que vem do inferno.
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Ricardo Kelmer 2010 – blogdokelmer.com

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> Mais textos sobre DROGAS

Treiler do documentário Selva de Pedra

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Preto Zezé fala na TV sobre o crack

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Governo não sabe como tratar craqueiro, diz Drauzio Varella
(Folha de São Paulo, 21.05.2010)

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Ricardo Kelmer

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Minha vida com Jim Morrison

25/07/2010

25jul2010

Acordar e pegar logo uma cerveja, pois o futuro é incerto e o fim estará sempre por perto

MINHA VIDA COM JIM MORRISON

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Em julho de 1991 arrendei uma danceteria e fiz uma homenagem a Jim Morrison: A Noite do Rei Lagarto (ou Como Jim Morrison comemoraria em Fortaleza os 20 anos de sua morte). Assim mesmo, com toda a incoerência semântica, afinal Jim também não era lá de muitas coerências. Casa lotada, clima anos 60, modelitos paz e amor, sósias da Pamela Courson, cinco da manhã e Light my Fire tocando pela décima vez… Ai, ai, eu não imaginava tanta festa para um defunto. Não sei se ele gostou. Mas eu sim, e enchi o bolso.

Jim Morrison e sua urgência desatinada de viver foram meu guru por essa época. Álcool, música e literatura, sexo e poesia. Acordar e pegar logo uma cerveja, pois o futuro é incerto e o fim estará sempre por perto. A ordem era experimentar-se pelo caminho dos excessos.

Sexta-feira, onze da noite. Meus 25 anos tinham um rito sagrado de iniciação noturna. Um bom banho acompanhado de uma dose de vodca pura, um poema vagabundo na velha Remington, mais uma vodca, L.A. Woman no volume máximo, mais uma dose e pronto, eu podia sair para a noite dengosa da cidade, atrás de lucky little ladies ou lost angels para acender meu fogo. Ai, ai. Não sei como o próprio Jim não surgiu noite dessas na rua a me pedir carona para o Badauê.

Depois dediquei-lhe um livro de contos que não publiquei, fiz outra festa para ele e, como performer da Intocáveis Putz Band, recitava o Manifesto das Bem-Aventuranças, onde distribuía bênçãos a putas, travestis, músicos, garçonetes e outros personagens da noite, declaradamente inspirado em Jim. Uma porra-louquice urbano-apocalíptica, dark e herética – demais para a cabeça de Fortaleza, tão sol e forró, a bichinha.

Se um dia Jim chutou o rock’n’roll e foi refugiar-se em Paris, eu um dia enchi o saco de tudo e vim atrás de mim aqui na cidade do Rio de Janeiro. Dei de presente o pôster da festa e não trouxe meus discos dos Doors. Até agora ainda não morri na banheira. Mas já não tenho mais intestino para velhos excessos.

Confesso que se qualquer noite dessas Jim aparecer pedindo carona para o Hipódromo Bar, ele, uma garrafa de Jack Daniel’s e três amigas barulhentas, eu… bem, eu lhe explicaria honestamente que foi bom enquanto durou, sabe como é, ando meio recolhido…

Ok, Jim, você venceu. Mas deixa eu dar uma olhada nas amigas. Você sabe, não dá para confiar muito em gosto de bêbado.

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Ricardo Kelmer 1996 – blogdokelmer.com

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Este texto integra o livro A Arte Zen de Tanger Caranguejos
Fotos da ilustração: Ricardo Batista (Cadinho)

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IntocaveisPutzBand1994-201aA celebração da putchéuris – A história fuleragem da Intocáveis Putz Band

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Ser mulher não é pra qualquer um – É dada a saída, lá se vai o trenzinho. Num vagão as Belas, abalando nos modelitos, no outro as Madrinhas, abalando com o isopor e o estojinho de primeiro-socorro

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O dia em que Jim Morrison voltou do túmulo (em breve)

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Clipe: LA Woman (7:51)

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01- kkkkkkkkkkk, Kelmer Querido, Saudades dos seus contos e inspirações nostalgicas, é sempre bom lembrar!!!! e Viva o Lagarto Rei!!!! Abraço Querido lunático!!!! Lua Ahau Cândido, Fortaleza-CE – dez2013

02- E tu está no Rio? Fábio Campos Morais, Fortaleza-CE – dez2013

03- Muito bom, mano! Carlos Carlos, São Paulo-SP – dez2013

04- essa festa foi sensacional, eu fui de pamela morrison. fiz tanta putaria que quase fui expulso. Moacir Bedê, Fortaleza-CE – dez2013

05- Fala kelmer !!! outro dia eu vi um doc. sobre o the doors muito legal!!! Ouvir the doors na estrada e fantastico ! Luciano Hamada, São Paulo-SP – dez2013

06- Olha só que coisa..estava ouvindo hoje ainda,e m deparo com esse post..com sempre maravilhoso!Boa noite meu amigo! http://www.youtube.com/watch?v=AMCl9eOBlsY. Thais Guida, Rio das Ostras-RJ – dez2013

07- As portas de uma lembrança boa!! Hyara Ougez, São Paulo-SP – dez2013

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RK na Fundação Gol de Letra

07/06/2010

Ricardo Kelmer 2010

Em abril estive na Fundação Gol de Letra, criada pelos ex-jogadores de futebol Raí e Leonardo, convidado a falar num fórum sobre narcotráfico. Participamos eu e a psicóloga Vanessa Abdo, da ong Sou da Paz, que mostrou dados interessantes sobre jovens e narcotráfico. O tema do fórum, dirigido aos alunos adolescentes da Fundação e aberto à comunidade, foi escolhido pelos próprios alunos, que são moradores do bairro Vila Albertina, zona norte de São Paulo, onde fica a sede paulistana da Gol de Letra.

Recebi o convite com muita honra mas fiquei a me perguntar: o que alguém como eu poderia oferecer de útil a esses adolescentes, eles que vivenciam diariamente a realidade da violência ligada às drogas, dos toques de recolher impostos pelos traficantes, da triste omissão do Estado e da falta de boas oportunidades profissionais? Eu é quem tinha a aprender com a experiência deles.

Isso é verdade. Porém, o que eu levava praqueles adolescentes poderia ser útil. E eu levava pra eles a força do mito. E foi isso que tentei lhes mostrar, que o envolvimento com o narcotráfico pode ser emocionante, sim, mas o custo é alto e não raramente o custo é a própria vida. Falei que há uma outra aventura, ainda mais emocionante: a aventura da autorrealização, aquela em que seguimos nosso caminho mais honesto e verdadeiro, lutamos por nossos sonhos e realizamos a quem somos de verdade e não a quem os outros querem que sejamos. Aceitar essa aventura é viver, na própria vida, o mito da Jornada do Herói.

Não sei se fui realmente compreendido. Mas conheço bem a força do mito. Sei que ele pode, de repente, no meio de uma frase, começar a transformar pra sempre uma vida.

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Ricardo Kelmer – blogdokelmer.wordpress.com

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Fundação Gol de Letrawww.goldeletra.org.br
Reconhecida pela UNESCO como instituição modelo, a Fundação Gol de Letra desenvolve programas de Educação Integral para mais de 1.200 crianças, adolescentes e jovens de 7 a 24 anos. Com uma proposta pedagógica associada à assistência social, promove ainda atendimento às famílias e o fortalecimento das comunidades.
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DICA DE LIVROS

O poder do mito (Joseph Campbell, com Bill Moyers) – Editora Palas Athenas
A jornada do herói – Joseph Campbell vida e obra (org. Phil Cousineau) – Editora Ágora
Para viver os mitos (Joseph Campbell) – Editora Cultrix
O herói de mil faces (Joseph Campebll) – Editora Cultrix/Pensamento
Matrix e o despertar do herói (Ricardo Kelmer) – Miragem Editorial
O feminino e o sagrado – Mulheres na jornada do herói (Beatrix Del Picchia e Cristina Balieiro) – Editora Ágora

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Glossário de termos e expressões canábicos

31/05/2010

31mai2010

BaseadoNissoCapaMiragem-01a

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BaseadoNissoCapaMiragem-01aEste glossário integra o livro Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha,
de Ricardo Kelmer

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PARA COMPRAR

> E-book – Na Amazon

> Livro impresso e PDF

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GLOSSÁRIO DE TERMOS E EXPRESSÕES CANÁBICOS

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Por envolver algo proibido por lei, o universo cultural dos usuários de maconha é feito de comunicações sutis e muitas vezes codificadas. A necessidade de segurança os leva a serem criativos, e a espirituosidade e o bom humor são uma constante. Como ocorre com a língua de modo geral, os termos e expressões canábicos variam de acordo com os contextos social, temporal e geográfico do usuário, mas há aqueles de uso geral, e a todo momento surgem novos termos. Este trabalho, portanto, representa uma ínfima parcela da vasta cultura linguística da maconha no Brasil.

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A

Acontecedor. Fumo que atrai acontecimentos inusitados ou interessantes. Da última vez que fumei do acontecedor, peguei o mesmo elevador que o Clodovil e o Tiririca…

Algum. Cigarro de maconha. Tem algum aí?

Alguém vai? Discreta indagação ou convite para fumar. Vocês aí, alguém vai?

Alto. Pessoa que está sob razoável efeito da maconha. Quando ela começa a querer tirar a roupa, já sei que tá meio alta.

Apertar. Preparar o cigarro. Muitos usuários consideram isso uma arte. Vou apertar mas não vou acender agora…

Apresentar. Oferecer maconha para que outros possam também usufruir. Pô, ninguém vai apresentar nada?

Aquele. Cigarro de maconha. Cadê aquele?

Asilado. Pessoa que está ou é desesperada para fumar. A gata tá asilada!

Avião. Aquele que faz a intermediação da compra ou que compra a maconha onde ela é vendida e leva ao usuário. Aquele nosso avião da Rocinha dançou!

Azucrinado. Sob forte efeito da maconha. Cara, fiquei azucrinado aquele dia que esqueci meu próprio nome.

B

Baculejo. Revista feita por policiais à procura de drogas. O mesmo que geral. Porra, tão dando baculejo até na saída da missa!

Bagana. Resto do cigarro de maconha. Apesar de apreciada devido a uma maior concentração de THC, apresenta o inconveniente de proporcionar prova material para um possível flagrante. O mesmo que beata, bia ou guimba. Ih, rapaz, esqueci a bagana na caixa de fósforo do papai.

Bagulho. Maconha. E aí, quem trouxe o bagulho?

Bahia. A pessoa de quem se espera que tenha maconha e que não tem (em oposição a salvador). Usado também para saber se a pessoa tem ou não maconha. Tu é Bahia ou Salvador?

Bala. Pequena porção de maconha vendida nas bocas de fumo. O mesmo que dólar. Também usado no diminutivo balinha. Vai uma bala aí, bacana?

Balão. Ato de pagar pela maconha e não receber. Naquela boca mauricinho leva balão.

Bandeira. Ação comprometedora que permite que se perceba que alguém está sob efeito, falando sobre, manuseando ou qualquer coisa relacionada à maconha. Segura tua gata aí que ela tá dando a maior bandeira.

Bandeiroso. Aquele que dá bandeira. Nunca vi ninguém mais bandeiroso!

Banzo. Estado causado pela maconha, que deixa a pessoa lerda e sem ação. Semelhante a morgação. Essa coisa me deu um banzo desgraçado.

Barato. Denominação clássica para o efeito da maconha. Esse cigarrinho aqui é daquele tipo que dá barato?

Baseado. Denominação clássica para cigarro de maconha. Deixa de papo, Íris, e aperta logo esse baseado!

Bater. Acontecer (o efeito da maconha). Fumei faz meia hora e agora que a lombra bateu.

Bater uma bola. Fumar maconha. Vamos bater uma bola antes ou depois?

Baurete. Cigarro de maconha. Termo cuja criação é comumente atribuída ao músico Tim Maia. Ô, Nelson Mota, não vai rolar um baurete?

Beata. Resto do cigarro de maconha. O mesmo que guimba. Joga fora que em viagem a beata é sempre da estrada.

Beatriz. Resto do cigarro de maconha. Também utilizado na forma abreviada: bia. Por falar nisso, quem é que tá atualmente com a Beatriz?

Beque. Cigarro de maconha. Wanessinha adora um beque antes de transar.

Beise. Cigarro de maconha (derivado de baseado). O papo tá muito bom, mas e o beise, tá com quem?

Berlota. Cada inflorescência da planta de maconha no ponto para ser preparada para fumar. Aquela coisa tem cada berlota!

Besteirinha. Pequena quantidade de maconha. Só consegui uma besteirinha.

Bia. Resto do cigarro de maconha. Não acredito! Não sobrou nem a bia?

Boa-noite. Tradicional cigarro que se fuma antes de dormir. Também conhecido por dorminhoco. Vamos fumar o boa-noite?

Bobeira. 1. Ação involuntária que permite que outros percebam que alguém está sob efeito da maconha. O mesmo que bandeira. Quando o Marquinhos fuma, fica dando bobeira! 2. Bobagem que se faz ocasionada pelo efeito da maconha. Da última vez que fumei e bebi, fiz cada bobeira…

Boca. Local onde é vendida a maconha (também usado de forma abreviada: boca). Aquela boca tá a maior sujeira.

Bode. Indisposição momentânea causada pela maconha. Não vou sair mais não, me bateu um bode…

Bola. Ver Dar uma bola.

Bolar. Fumar maconha. Será que a gente vai pro inferno se bolar um aqui na igreja?

Boldinho. Maconha. Originado de boldo, planta da qual se faz chá terapêutico. Pra dor de estômago, indico um boldinho…

Bomba. Maconha de forte efeito. Tenho uma bomba aqui que vai te deixar de quatro.

Bom-dia. Tradicional cigarro que se fuma após acordar. Também conhecido por despertivo. Quem é que vai no bom-dia?

Boqueiro. Aquele que é dono de boca de fumo ou negocia com maconha. Eu nunca ia desconfiar que a dona Juju era boqueira.

Braço-de-Judas. Cigarro muito grosso. Em referência à madeira da qual é feito o braço do boneco que é queimado nas festas juninas. Eita que hoje só tá rolando braço-de-Judas!

Brancão. Desmaio passageiro ocasionado por forte efeito da maconha. Originado do fato de que se vê tudo branco logo antes do desmaio. Deu um brancão na coitada e ela caiu no meio do velório.

Brau. Clássica denominação para cigarro de maconha. Melhor deixar o brau com o Vitinho que ele tem cara de santo.

Braúlio. Designação discreta para brau. O Braúlio tá gordo!

Braulito. Entidade sobrenatural considerada o espírito da maconha, e que surge quando se fuma. Também conhecido, de modo mais solene, como Grande Braulito. Ver Mescalito. Ó Grande Braulito, mostre-nos onde conseguir mais dessa marofa.

Brisa. Efeito da maconha de pouca intensidade. Pra assistir o culto, recomendo só uma brisa, senão dá crise de riso.

Brocado. Sob efeito do apetite acentuado que surge após se fumar maconha. O mesmo que laricado. O cara tá brocado!

C

Cabeça. 1. Cada inflorescência da planta de maconha já preparada e pronta para tratar. O mesmo que berlota e camarão. Essa maconha só tem cabeça… 2. Cada pessoa que vai participar do cigarro de maconha. Só essa tripinha pra estas três cabeças?!

Cabeça feita. Sob efeito da maconha. Não, muito obrigado, já tô de cabeça feita.

Cabeça-feita. Aquele que é usuário. Geralmente utilizado de forma elogiosa, no sentido de que a pessoa é inteligente, de opiniões formadas e/ou de bem com a vida. Pode referir-se também à relação tranquila que se tem com a maconha. Nessa roda só tem cabeça-feita.

Cabeça grande. Motivo (ou pretexto) pelo qual certos maconheiros fumam bastante, pois é necessário muita fumaça para encher sua cabeça, ao contrário de quem tem a cabeça pequena (cabecinha). Vou fumar esse sozinho porque minha cabeça é muito grande…

Cabeção. 1. Aquele que adora fumar maconha. Só tem cabeção nesse show. 2. Conotação depreciativa para aquele que está sempre querendo fumar maconha e não perde uma rodada, podendo não raro adquirir fama de chato oportunista. Fuma logo que lá vem o cabeção!

Cabelo de punk. Maconha de baixa qualidade por ser proveniente da folha e não da flor da planta. Os pedaços das folhas lembram os cabelos espetados dos punks e podem atrapalhar a confecção do cigarro. Esse cara só traz cabelo de punk.

Cachimbo da paz. Designação solene para cigarro de maconha. Em referência ao hábito indígena de se fumar coletivamente em eventos importantes. Tenho a honra de comunicar aos nobres colegas que o cachimbo da paz vai rolar lá na casinha do motor.

Cadê? Discreta indagação que se faz para saber se alguém tem maconha. Esse papo tá muito bom mas… cadê?

Caixão. Maconha de forte efeito, que deixa a pessoa atordoada (originado de onda caixão, que derruba e atordoa o banhista). Pega leve que esse fumo é caixão.

Camarão. Inflorescência da planta de maconha que lembra um camarão. O mesmo que cabeça. Tu vai ver como só tem camarão.

Canabis. Denominação para maconha ou cigarro de maconha. Originada do termo científico Cannabis sativa. Ah, nada como uma canabis pra relaxar…

Canal. Pessoa que sabe onde encontrar a maconha ou que faz a intermediação da compra. Eu sei de um canal que nunca falha.

Carburar. Fumar. Até a professora de ginástica carbura um antes da aula.

Careta. 1. Aquele que não fuma, não gosta, se incomoda com usuários e/ou é contra o uso da maconha. Lá em casa todo mundo é careta. 2. Cigarro comum, que não é de maconha. Acende agora um careta pra disfarçar. 3. Estado do usuário quando não está sob efeito da maconha. Vou apertar outro que eu já tô careta de novo.

Careta esperto. Aquele que não fuma mas não se incomoda de ter amigos usuários nem condena o uso da maconha. Minha irmã é careta esperta, mas meu irmão é careta careta mesmo.

Cavidade bucal. Discreta denominação para boca de fumo. Abreviação (mais discreta ainda): cavidade. Descobri uma cavidade numa rua atrás da delegacia.

Cecília. Semente de maconha. Não esquece de tirar as cecílias.

Cemitério. Lugar reservado para guardar as guimbas do cigarro, geralmente uma caixa de fósforo ou similar. Muitos maconheiros, quando estão sem maconha, procuram o cemitério e desmancham as guimbas para formar quantidade suficiente para fazer um novo cigarro. Estratégia utilizada também quando se quer fumar uma maconha com maior quantidade de THC, pois o mesmo se concentra nas guimbas. Guarda a bia aqui no cemitério.

Cera. Maconha da melhor qualidade. Uau, essa aqui é uma cera!

Chapação. Estado provocado por forte efeito da maconha. Menina, foi uma chapação geral!

Chapado. Aquele que está sob forte efeito da maconha. Cheguei chapadão lá no batizado!

Chapar. Ficar sob forte efeito da maconha. Putz, chapei total, vou dormir.

Charlie Brown. Cigarro de maconha, em referência ao famoso personagem de quadrinhos e TV. Tá na hora do Charlie Brown.

Charo. Cigarro de maconha. Libera o charo aí.

Chia. Resto do cigarro de maconha. Onde mesmo que eu deixei a chia?

Cigarro de carnaval. Cigarro de maconha. Variações: cigarro de artista, cigarro do capeta e cigarro de índio. Comumente usado no diminutivo. Cerveja não tem, mas eu trouxe um cigarrinho de carnaval…

Cinquinho. Pequena porção de maconha no valor aproximado de cinco reais. Porra, cara, tu não salva nem cinquinho não?

Cocô. Pequenos pedaços de maconha desprendidos devido ao manuseio de pedaços maiores. Geralmente é usado no diminutivo. Boa notícia: ainda sobraram uns cocozinhos…

Coice de mula. Efeito atordoante da maconha. Menino, que coice de mula que eu levei ontem…

Coisa. Maconha. E a coisa, quem é que tem?

Coisero. Pessoa que ganha a vida negociando com maconha. Originado de coisa. Pois é, o Gilmar é coisero.

Coisinha. Pequena quantidade de maconha. Essa coisinha aí não faz nem um baseado.

Confeccionar. Preparar o cigarro de maconha. O mesmo que apertar. Me apaixonei quando te vi confeccionando um brau enquanto com a outra mão passava batom.

Cortar o rabo. Ato de iniciar alguém a fumar maconha, muitas vezes revestido de caráter cerimonial por ser considerado um momento antológico que o usuário nunca esquece (como o primeiro porre). Devidos a diversos fatores, como o nervosismo e a expectativa, que impedem o relaxamento, a primeira vez nem sempre ocasiona uma viagem. Paulinha cortou o rabo de todas as amigas lá em Canoa.

Cuspindo bala. Estado muito comum causado pela maconha, logo após fumar, caracterizado pela secura na boca e falta de saliva para cuspir. Pede logo duas cervejas que eu tô cuspindo bala.

D

BaseadoNissoCapaMiragem-01aDa Jamaica. Maconha ou cigarro de boa qualidade, em referência à maconha jamaicana. Ah, esse é da Jamaica!

Da lata. Maconha da melhor qualidade. Referência à maconha encontrada embalada em latas, jogada ao mar por tripulantes de um navio estrangeiro para se livrar da prova do delito, fato ocorrido em 1989 no litoral do estado do Rio de Janeiro. Quarta-feira vai chegar uma da lata!

Danada. 1. Maconha. Cadê a danada? 2. Maconha de boa qualidade. Essa é danada!

Dançada. Ato de dançar. Não passa por aquela estrada que é dançada certa.

Dançar. Ser pego em flagrante com maconha ou fumando, pela polícia, pais ou outras pessoas comprometedoras. Vocês souberam que o Zenon dançou?

Dar uma bola. Fumar maconha. Variações: dar um dois, dar um pau e dar um pega. E aí, vamo dar uma bola pra comemorar que hoje é segunda?

Dar uma goma. Passar saliva no cigarro de maconha para que ele queime por igual e/ou para que não levante chama. Dá uma goma no tcheuris senão o vento vai fumar tudinho!

De baixo. Qualidade de quem não tem maconha. Quando eu tô de baixo, nunca tem blitz na rua.

De bobeira. Estado de silêncio e quieta concentração causado pela maconha. Variação: de bobs. Ih, a Andrea tá de bobeira…

De bode. Estado de lerdeza ou preguiça física e mental causado pela maconha ou pelo término do efeito. O mesmo que morgado. Ele fumou um e ficou lá na rede, de bode.

Debulhar. Preparar a maconha para ser fumada, picotando-a e separando galhos e sementes. O mesmo que tratar e destrinchar. Que beleza, já tá debulhada.

De Cabrobó. Maconha da melhor qualidade. Referência ao município pernambucano de Cabrobó, conhecido produtor de maconha. Vai chegar uma remessa de Cabrobó pra Semana Santa!

De cara. Estado daquele que não se encontra sob efeito da maconha ou não pretende fumar. Hoje eu tô de cara.

Dechavar. O mesmo que destrinchar e debulhar.

De cima. Qualidade de quem tem maconha. Não ande de cima por aqui que é sujeira.

Defumar. Fumar em um ambiente ou lugar pela primeira vez ou em homenagem a algo. Vamos defumar o carro novo da Ticiane!

Delegado. Pessoa que, numa roda de fumo, retém, consciente ou não, o cigarro para si. Ei, delegado, tu tá prendendo o brau.

Delírio. Colírio. Usa-se colírio para eliminar a vermelhidão dos olhos, comum após fumar maconha. Alguém tem um delírio aí?

Descolar. Conseguir maconha. Vou lá no morro ver se descolo uma coisinha.

Despertivo. Tradicional cigarro de maconha que se fuma após acordar. Também conhecido por bom-dia. E aí, o despertivo rola antes ou depois do café?

Destrinchar. Preparar a maconha para ser fumada. O mesmo que debulhar e tratar. Deixa que eu destrincho, tu demora muito.

Detonado. 1. Sob forte efeito da maconha. Dei só dois pauzinhos e fiquei detonado! 2. Diz-se do fumo que já acabou. Tem mais nada, foi tudo detonado ligeirinho.

Detonar. 1. Acender o cigarro para ser fumado. Detona o brau!!! 2. Fumar muito ou rapidamente. A turma detonou duzentos gramas naquele fim de semana.

Dezinho. Porção de maconha no valor aproximado de dez reais. Quero muito não, só dezinho mesmo.

Diamba. Maconha. Cadê a diamba?

Dichavar. O mesmo que dechavar. Tu dichava e eu aperto.

Dificultar. Dizer ou fazer algo que ponha obstáculos ou impedimento ao ato de comprar, fumar ou qualquer coisa relacionada a maconha. Qualé, maninha, vai dificultar mesmo?

Digestivo. Tradicional cigarro de maconha que se fuma após as refeições. Né por nada não, mas um digestivo agora caía bem…

Dispensar. Jogar fora a maconha ou a guimba do cigarro. A dispensa ocorre geralmente para evitar o flagrante ou porque o que sobrou do cigarro é pouco. Pode dispensar que eu já tô doidão.

Doidaço. Ver doido.

Doidão. Ver doido.

Doideira. 1. Efeito da maconha. Me deu uma doideira tão grande que eu fiz cinco músicas só no intervalo da novela. 2. Diz-se daquilo que é estranho ou interessante. Aquela viagem foi uma doideira!

Doido. 1. Sob efeito da maconha. Fiquei doido só com aquele pauzinho. 2. Usuário de maconha. Nunca imaginei que a Tetê fosse doida. 3. Qualidade daquilo que é estranho ou interessante. Esse conto do Kelmer é doido!

Dólar. Pequena porção de maconha vendida nas bocas de fumo. Também usado no diminutivo dolinha. Porra, o cara quer me vender o dólar a vinte reais!

Dorminhoco. Tradicional cigarro de maconha que se fuma antes de dormir. Também conhecido por boa-noite. Agora é sério, vamos fumar o último dorminhoco!

Douglas. Maconha. É provável que uma quantidade incontável de nomes de pessoas sejam usados com este nobre fim. O Douglas mandou avisar que infelizmente não vai poder vir.

Dragão. Aquele que quando fuma maconha, fuma bem mais que todos. Fuma logo antes de chegar o dragão.

E

E aí? Clássica e discreta indagação dos usuários que objetiva saber se alguém tem maconha ou se está no momento de fumar. E aí?

Emaconhado. Sob efeito da maconha. Também usado na forma maconhado. Esse povo só pode estar emaconhado.

Empapuçar. Enjoar por fumar em excesso. Não quero mais, tô empapuçada.

Encarar uma social. Ver social.

Encaretar. 1. Diz-se do efeito da maconha que passou, repentinamente ou aos poucos. Fiquei tão nervoso que encaretei. 2. Tornar-se careta. Depois que casou, a Gigi encaretou de um dia pro outro.

Encomenda. Designação discreta para maconha. Pode vir que a encomenda já chegou.

Engolir. Último recurso do usuário na iminência de ser flagrado. Ih, sujou! Engole, engole!

Enrolar. Preparar o cigarro, acondicionando a maconha na folha de papel. Deixa de papo e enrola logo esse negócio!

Entregação. Qualidade de pessoa, lugar, situação ou objeto que compromete o usuário. Esse livro que tu tá lendo é a maior entregação.

Entregar. 1. Comprometer, intencionalmente ou não, quem fuma ou está fumando ou manuseando maconha. Te abaixa aí, Fernandinho, ou tu ainda vai entregar a gente… 2. Denunciar quem fuma maconha. Foi a vizinha aqui de cima quem me entregou.

Envernizar. Atingir certo ponto onde, por ter fumado demais, a maconha não faz mais efeito. Pode se referir a períodos de algumas horas ou anos. Depois do quinto eu envernizei.

Envernizado. Aquele que se envernizou. A Vaninha não precisa fumar porque já tá envernizada.

Erva. Clássica denominação para maconha. Variação: erva maldita. O melhor lugar pra queimar erva é lá no meio do chuchuzal.

Esconder o jogo. Não se manifestar ou dizer que não tem maconha quando na verdade tem e há pessoas querendo fumar. Ih, ó o cara, escondendo o jogo…

Esperto. 1. Aquele que fuma. Fica frio que aqui todo mundo é esperto. 2. Estado de atenção e segurança quando se fuma ou em qualquer situação relacionada a maconha. Fica espertinha aí que agora a gente vai passar pela Rodoviária. 3. Cigarro de maconha. Tem um esperto aí?

Estandarte. Ação exageradamente comprometedora por parte do usuário que permite que outros saibam sobre sua condição. Olha o estandarte passando na avenida!

Estojinho. Recipiente utilizado pelos usuários para guardar maconha e objetos úteis como seda, pilão, tesourinha, colírio e outros. Como bom virginiano, eu trouxe meu estojinho…

Estudantil. Cigarro de pequenas proporções. Tenho aqui um estudantil, só pra dar uma ligadinha.

F

BaseadoNissoCapaMiragem-01aFalsa-lombra. Aquele que finge ou exagera o efeito da maconha. Que nada, isso é coisa de falsa-lombra.

Fazer. Forma abreviada de fazer a cabeça. E aí, fez?

Fazer a base. Fumar antes de alguma situação específica, para vivê-la sob efeito da maconha. Antes de sair a gente faz a base lá em casa.

Fazer a cabeça. Clássica designação para fumar maconha. Vamos fazer a cabeça que o filme já vai começar.

Fazer a canoa. Ato de preparar o papel no qual o cigarro de maconha será feito. Consiste em friccionar as bordas do papel uma contra a outra, deixando-o no formato similar ao de uma canoa. Faz a canoa pra eu apertar o brau.

Fazer a social. Ver social.

Fazer uma sauna. Fumar maconha junto com outras pessoas em local pequeno e fechado. Ver sauna. Fecha a porta que a gente vai fazer uma sauna.

Fechar. Preparar o cigarrro de maconha. O mesmo que apertar. A fissura era tão grande que fecharam o brau num papel de embrulhar pão.

Fedorento. Cigarro de maconha. Ô Luciano, cadê o fedorento?

Finélio. Ver fino.

Finólio. Ver fino.

Fino. 1. Cigarro de maconha (comparativamente ao cigarro comum). Tem um fino aí pra gente?  2. Cigarro muito pequeno. Variação: finélio, finólio, finório e fino de cadeia (em referência aos pequenos e discretos cigarros de maconha conseguidos pelos presos nas cadeias). Também utilizado no diminutivo fininho. Pô, Alexandre, tanta maconha aí e tu faz um fino de cadeia!

Fissura. Desejo intenso de fumar maconha. A fissura era tão grande que ele comeu ela só pra fumar um brau.

Fissurado. Indivíduo que tem fissura. Esse cara vive fissurado.

Fumacê. 1. Ato de fumar. Tá rolando um fumacê lá na cozinha. 2. Fumaça do cigarro. Fecha a janela que o fumacê tá no mundo!

Fumo. O mesmo que maconha. Também utilizado no diminutivo “fuminho”. Ultimamente só tem pintado fumo ruim.

Fumódromo. 1. Local apropriado para fumar maconha. O fumódromo é lá atrás, debaixo do cajueiro. 2. Tradicional ponto de uma localidade aonde os usuários costumam ir para fumar ou passam fumando. Aquela rua é o melhor fumódromo da cidade.

Futum. Cheiro forte de maconha que fica no ar, em parte do corpo ou em um objeto que foi manuseado enquanto se fumou ou que é manuseado constantemente pelo usuário. Traz um Bom Ar que aqui tá o maior futum.

G

Game. O mesmo que jogo (originado do inglês). Toma aí meus vinte pra fazer um game.

Ganja. Maconha (do sânscrito ganjica). Uma das exigências da palestrante é uma ganja da boa antes de começar a palestra.

Garantir. 1. Assegurar a maconha. Deu pra garantir o do fim de semana. 2. Demonstrar eficiência em relação à maconha, como preparar, fumar, fazer comércio, manter-se discreto etc. Pô, meu irmão, se garanta aí!

Garantido. Certo, assegurado. Refere-se geralmente ao ato de conseguir maconha. Fique tranquilo que comigo é garantido.

Gelar. Ato de apagar, sem querer, o cigarro de maconha. Ih, o cara deixou o brau gelar.

Geral. Revista feita por policiais. Esconde bem que a gente vai passar por uma geral.

Goma. Saliva. Usada para umedecer o papel do cigarro para que ele queime por igual e/ou para que não acenda chamas. Passa uma goma no baseado.

Grande Braulito. Ver Braulito.

Guimba. Resto do cigarro de maconha. O mesmo que bia. O baseado era tão grande que a guimba ficou do tamanho de uma caneta!

H

Haxixe. Resina extraída da planta de maconha. Vamos fumar um com haxixe pra comemorar que hoje é terça.

História. 1. Conjunto de fatos e/ou ações marcantes no universo dos usuários. Aquela festa foi a maior história! 2. Maconha. Também utilizado no diminutivo. Só sobrou uma historinha aqui…

I

Impregnar. Insistir o tempo todo para fumar maconha. Leva essa menina que ela já tá impregnando!

Impregnado. Indivíduo, ambiente ou objeto que está com um forte cheiro de maconha. Esse teclado tá impregnado!

Intera (é). Pequena porção de maconha que será juntada a outra para formar quantidade suficiente para um cigarro. Alguém tem uma intera aí?

Intoca. Local onde a maconha está escondida. A parada tá numa intoca ali que só eu sei.

Intocar. Esconder a maconha. Ih, eu intoquei mas agora não sei mais onde foi…

Iracema. Apetite exagerado que surge após fumar. O mesmo que larica. Tô na maior iracema!

J

Jererê. Forma clássica para designar cigarro de maconha. Muito utilizado numa conhecida cantilena em carnavais ou ocasiões festivas. Ê, jererê, je-rê-rê-rê-rê-rê-rê… Viva a maconha!

Joana. Designação para maconha. Abreviado de marijuana. Como é, a Joana vem ou não vem?

Jogo. Transação que envolve o comércio da maconha. Vamos fazer um jogo legal pro fim de semana.

L

BaseadoNissoCapaMiragem-01aLarica. Apetite exagerado comum após fumar. Me deu uma larica tão desgraçada que eu comi feijão frio com sorvete.

Laricado. Com muito apetite após fumar maconha. Tranca a geladeira que tá todo mundo laricado!

Lariquento. 1. Diz-se do fumo que desperta a fome. A gente fumou aquele lariquento e depois foi direto pro supermercado. 2. Aquele que costuma ter muita fome depois que fuma. Fumar em casa com esse lariquento é o maior preju, minha geladeira não aguenta.

Laura. Forma discreta para larica. Pronto, chegou a Laura.

Leda. Discreta denominação para seda, o papel usado para confeccionar o cigarro. Não acredito que vamo deixar de fumar porque ninguém tem uma leda…

Lei seca. 1. Falta de maconha momentânea. A cidade tá numa lei seca horrível. 2. Impossibilidade de se fumar maconha. Quando meu irmão tá aqui, rola a lei seca.

Liberado. Livre para fumar tranquilamente. Vai na boa, galera, que aqui no escritório é liberado.

Liberar. Fornecer maconha. Pô, libera aí, Aninha, tá todo mundo na fissura…

Ligar. Acontecer (o efeito da maconha). O mesmo que bater. Ah, agora ligou.

Ligadeira. Efeito da maconha, oposto à morgação. Me bateu uma ligadeira que eu fiquei quatro horas jogando gamão sem nem piscar.

Ligado. Sob efeito da maconha. Silvana só gostava de transar ligada.

Light. Maconha que não é muito forte. Esse fumo é light, Luíza, pode dar até pra tua mãe…

Limpeza. Qualidade da pessoa, lugar, objeto ou situação em que é permitido fumar, falar sobre maconha e afins. Pode ficar despreocupado, todo mundo aqui é limpeza!

Livrar. Oferecer maconha para quem não tem e está com muita vontade de fumar. Se o Mazinho não tivesse livrado, eu tinha ficado o fim de semana de cara.

Livrar a cara. Fumar um cigarro de maconha. Diz-se em referência a de cara. Tem unzinho aqui pra gente livrar a cara.

Lombra. Efeito da maconha. Essa música é resultado de uma lombra que a gente teve subindo a serra.

Lombra torta. Ação estranha, sem sentido, inconveniente ou prejudicial a si próprio ou a outros causada pela maconha. Que lombra torta… O cara foi embora a pé!

Lombrado. Sob efeito da maconha. A Carmem tava tão lombrada que dizia que tinham mudado o mar de lugar.

Louco. Sob efeito da maconha. Eu fiquei tão louca que sentia cada nota da música na minha pele…

Luz. Fraco efeito da maconha. É, deu uma luz…

M

Maconhado. Sob efeito da maconha. Também usado na forma emaconhado. Quando ele trepa maconhado, fica me chupando por duas horas.

Maconheiro. 1. Usuário de maconha. Maconheiro é sempre o filho dos outros, nunca o seu. 2. Pé de maconha. Abacate vem do abacateiro, mamão do mamoeiro, maconha do maconheiro.

Maconheiro sem-vergonha. Designação genérica usada por antipatizantes da maconha para depreciar usuários. Variação: maconheiro safado. Isso é coisa de maconheiro sem-vergonha!

Mal-com-ele. Discreta designação para maconheiro. Aqui só tem mal-com-ele!

Malhação. Diminuição deliberada de uma porção de maconha em quantidade e/ou qualidade. Esse fumo tá a maior malhação.

Malhar. Ato de fazer com que a porção de maconha que está sendo negociada, perca em quantidade e/ou qualidade sem que a outra pessoa perceba. Vou malhar o fumo desse otário.

Maloca. Local onde se esconde a maconha. O mesmo que intoca. Eu tenho uma maloca lá no quintal.

Malocar. Ato ou ação de esconder a maconha. O mesmo que intocar. O cara malocou a maconha pra poder fumar sozinho!

Maluco. Usuário de maconha. O mesmo que doido. Todo ano a gente faz o racha: bebum contra maluco.

Manga rosa. Maconha da melhor qualidade. Tem uma cor avermelhada característica. O feriadão tá salvo, chegou da manga rosa!

Maquininha. Engenhoca própria para confeccionar cigarros de tabaco, também utilizada pelos usuários de maconha. Comprei esta maquininha numa feira esotérica.

Maresia. Fumaça do cigarro de maconha, que pode causar efeito também em quem não fumou. É comum que o usuário desenvolva uma alta capacidade de sentir o cheiro da fumaça, por menor que seja ou por mais longe de onde venha, e que isso lhe proporcione uma imediata e rápida sensação de esperança e felicidade. Vovó ficava doidona só com a maresia que vinha do quarto.

Mareado. Estado de quem fumou passivamente e ficou sob leve efeito da maconha. Ih, o gato ficou mareado…

Maria Joana. Maconha. Originado de marijuana. Faz tempo que eu não falo com a Maria Joana.

Marica. Piteira própria ou improvisada para fumar o cigarro, por conta da dificuldade de se fumar a guimba ou para não deixar cheiro forte nos dedos. Na sex-shop eu vi uma marica com o formato de uma piroca.

Marijuana. Clássica denominação para maconha (do espanhol). Tá chegando a marijuana!

Marofa. Maconha. Cadê a marofa?

Marola. Efeito de pouca intensidade da maconha. Ver onda. Foi só uma marola, mas valeu.

Massa. 1. Maconha. Tá na hora de servir a massa! 2. Maconha da melhor qualidade. O cara tem uma massa!

Matar. Fumar a guimba do cigarro de maconha até não sobrar mais nada. Às vezes dá-se a alguém a honra de matar a guimba, outras vezes é algo disputado. Pode matar que eu já tô doidão.

Matinal. O primeiro baseado do dia. O mesmo que despertivo ou bom-dia. Agora vai rolar o matinal que é pro dia nascer feliz.

Mato. Maconha. Geralmente utilizado no diminutivo. Ouvi dizer que você tem um matinho aí pra melhorar essa festa…

Merreca. Porção de maconha considerada insuficiente. Olha a merreca que sobrou daquele patuá todo.

Mescalito. Entidade sobrenatural considerada o espírito do cacto peiote, que produz a substância psicoativa mescalina. O termo popularizou-se nos anos 1960-70 pelos livros do antropólogo Carlos Castaneda e ganhou destaque nas histórias em quadrinhos dos Freak Brothers. O Mescalito seria primo do Braulito, e também pode aparecer para usuários de maconha, o que revelaria a interconexão dos universos das entidades psicobotânicas. O Mescalito tá dizendo que devemos apertar outro.

Mesclado. Cigarro de maconha preparado com pasta de cocaína. O efeito é uma mistura dos dois. Lá em Manaus rola muito mesclado.

Metro. Unidade de medida de maconha: 1 quilo = 1 metro. Tá chegando um metro pro carnaval.

Mike Tyson. Maconha ou cigarro de maconha de fortíssimo efeito. Em referência à potência do soco do famoso pugilista. Cuidado que esse aqui é um Mike Tyson.

Moçada. Amigos usuários. O mesmo que galera, rapeize etc. A moçada tá fumando demais, cara…

Mofado. Diz-se do fumo que mofou pela ação do tempo. Por conta disso ele perde o princípio ativo THC e causa pouco ou nenhum efeito. Galera, ontem encontrei uma paradona atrás do armário. Calma, calma… Tava mofada.

Monopolizar. Reter o fumo ou o cigarro de maconha, geralmente com fins egoístas. Como é, vai ficar monopolizando mesmo?

Morgação. Estado de lerdeza e preguiça causado pela maconha. Também pode se referir a uma situação. Essa festa ficou a maior morgação.

Morgado. Lerdo, com preguiça e/ou sem vontade para fazer qualquer coisa, em decorrência da maconha. Ele fuma, fica morgado e vai dormir.

Muito doido. 1. Sob forte efeito da maconha. Vai atrás que ela tá muito doida. 2. Aquele que fuma muito. Aqui nesse bar só tem muito doido. 3. Diz-se de algo estranho ou muito interessante. Este poema é muito doido.

Muito louco. O mesmo que muito doido. Também usado no espanhol mucho loco.

Muqueca. Considerável porção de maconha. O mesmo que parada. A Rose tá com uma muqueca!

Mutema. Sobrenome que se aplica a quem tem maconha quando ninguém mais tem. Referência a Sassá Mutema, famoso personagem da novela da Globo, O Salvador da Pátria. Acaba de chegar o André Mutema.

Mutuca. Porção razoável de maconha. Guardei uma mutuca bacana e ela mofou todinha.

N

Narguilê. Artefato adaptado dos narguilês comuns para ser usado por usuários de maconha, muitas vezes improvisado a partir de vários objetos, dependendo do espírito inventivo do usuário. Esse aqui merece a gente fazer um narguilê!

Nas internas. Situação em que o cigarro de maconha é oferecido somente para algumas pessoas e consumido discretamente, seja porque há pouco ou para privilegiar a alguns. Vai lá no estacionamento que tá rolando um nas internas.

Negócio. Maconha. Vai pintar um negócio de primeira pro reveiôm.

Noia. 1. Viagem ruim. Forma resumida de paranoia. Aquele fumo me deu a maior noia. 2. Estado continuado em que fica o usuário por fumar demais. O cara nem sai mais de casa, tá na maior noia.

Noiado. Pessoa que está com noia. Passei um tempão noiado por causa daquela dançada.

O

Onda. Efeito da maconha. Agora bateu uma onda legal!

Osvaldo. Denominação discreta para maconha ou cigarro de maconha. Só faltava o Osvaldo aqui…

O vento fuma. Expressão usada quando alguém demora a fumar, desperdiçando maconha. Alguns usuários entendem que o vento também merece ficar doidão, mas a maioria não gosta dessa ideia. Pô, Mariana, assim o vento vai fumar o bagulho todinho.

P

BaseadoNissoCapaMiragem-01aPagar uma social. Ver social.

Paia. Maconha de péssima qualidade. Mas que maconha paia!

Pala. O mesmo que bandeira. O Amaury tá dando pala.

Paludo. Pessoa que está dando pala. A Sandra hoje tá paluda que é uma beleza!

Parada. Porção de maconha. O cara ficou tão noiado que jogou a parada na privada e deu descarga.

Paranga. Porção considerável de maconha. O mesmo que mutuca. O Dudu mandou avisar que garantiu uma paranga pro feriado!

Passar a bola. Passar o cigarro de maconha. É comum pedir para passar a bola à pessoa que fica fumando o cigarro e não dá vez para que os outros também fumem. Pode ser complementado com o nome de algum jogador de futebol com fama de individualista, em evidência ou de nome folclórico, como Pelé, Mirandinha, Cafu, Ronaldinho, Edmundo, Maradona, Mazolinha etc. Passa a bola, Mirandinha!

Patuá. Razoável porção de maconha. Passei três meses fumando aquele patuá.

Pau. Cada trago que se dá no cigarro de maconha. O mesmo que tapa. Também utilizado no diminutivo. Só dei um pauzinho…

Paula. Forma abreviada de paulista.

Paulista. Modo característico de se fumar maconha com outras pessoas onde se dá apenas um trago e passa-se imediatamente o cigarro a quem está do lado. Fuma-se na paulista para um maior aproveitamento do cigarro. Sua origem pode estar ligada ao ritmo de vida apressado da capital paulistana, ou porque fumar em plena avenida Paulista é algo que requer rapidez e agilidade. Vamos fumar na paulista senão não vai chegar aqui.

Pegar. Fumar o cigarro de maconha. Ver dar um pega. Vamos pegar unzinho?

Perturbado. Sob razoável efeito da maconha. Aquele brau me deixou tão perturbada que eu falei duas horas com ela achando que era a Bebel.

Peruana. Modo característico de se fumar maconha que consiste em encher a boca de fumaça, sem tragar, e liberá-la devagar e aos poucos pelo nariz. Já fumou à peruana?

Picárdia. Mesquinhez. Usa-se geralmente quando o comprador sente-se lesado no negócio. Originado de picardia. Ah, maninha, deixa de picárdia.

Pilão. Qualquer objeto que se possa usar para socar o cigarro de maconha, geralmente um palito de fósforo, uma tampa de caneta ou similar. Alguém tem um pilão aí?

Pilar. Ato de socar cuidadosamente o cigarro de maconha. O baseado era tão grande que usaram um pincel atômico pra pilar.

Pilora (ô). Mal-estar ou leve desmaio causado pelo efeito da maconha. O mesmo que brancão. Deu uma pilora no coitado bem na hora de dizer sim.

Ping-pong. Monopolização do cigarro por duas pessoas, impedindo o restante de fumar. Como é, vão ficar mesmo nesse ping-pong aí?

Pitada. Rápida tragada no cigarro de maconha. Vou dar só uma pitadinha porque eu parei de fumar.

Poeira. Maconha transformada em pó devido ao manuseio. Não é apreciada por conta do fraco efeito. Só tem poeira naquela parada!

Ponta. Guimba do cigarro. O mesmo que bia. Vai dar pra fazer dois baseados com essas pontas.

Por falar nisso. Insinuação usada por maconheiros discretos quando desejam fumar ou para saber se alguém tem maconha. Sim, mas por falar nisso…

Prego. Pessoa muito chata quando está sob efeito da maconha. Equivale ao bêbado chato. Pense num cara prego: é o Dedé!

Pren-pren. Apelido carinhoso para prensado. Tive que cair com cinquentinha pros ômi e ainda levaram meu pren-pren.

Prensado. Fumo que é acondicionado em porções compactas para que ocupe menor espaço. Por esta razão ele normalmente é mais forte e mais caro. Tá chegando um prensado semana que vem.

Prensar. Acondicionar a maconha em quantidades compactas. Não é pouco não, é porque tá prensado.

Presença. Porção de maconha que se pede a outra pessoa. Dá pra arrumar uma presença?

Pressão. Ato de tragar e segurar a fumaça nos pulmões por muito tempo para conseguir um efeito maior. Dê um trago e faça pressão!

Preto. Maconha. Em comparação com a cocaína, que é branca. Deixei a branca, agora tô só no preto.

Produto. Maconha. Apareça lá que eu tenho um produto de primeira pra você experimentar.

Puxar fumo. Fumar maconha. O sobrinho da senhora toda noite puxa um fuminho na esquina com a filha do coronel.

Q

420. Número representativo do universo folclórico dos usuários, adotado a partir dos anos 1970. A origem, segundo a versão mais conhecida, estaria no fato de um grupo de jovens estadunidenses se reunirem frequentemente para fumar às 4:20 da tarde. O número foi usado para marcar o 20 de abril como data representativa e para a realização de eventos alusivos à maconha em todo o mundo. Também é caracterizado como uma espécie de código semissecreto de usuários, sendo usado em diversos contextos da vida cotidiana, assim como em obras artísticas e insinuações referentes à maconha. Quatro e vinte no terraço, beleza?

Queimar. Acender o cigarro. Queima logo esse brau que eu já tô me coçando todinho.

Quem vai? Discreto convite que se faz para saber quem vai participar do cigarro. E aí, quem vai?

Quem se habilita? Pergunta que se faz para saber quem pode preparar a maconha ou apertar o cigarro. E aí, moçadinha, quem se habilita?

R

Regular. Sujeitar a regras ou reprimir o uso de maconha. Qualé, meu irmão, tá regulando o brau?

Regulão. Aquele que regula o uso de maconha. Fumar junto com regulão é foda!

Resenha. Demora (para passar o baseado). Chegou na Shirlene, é uma resenha…

Rodada. 1. Passeio rápido para fumar. O mesmo que rolê ou rolé. A gente dá uma rodada e volta logo. 2. Giro completo que o cigarro faz num grupo que está fumando. Era tanta cabeça que só deu uma rodada!

Rodar. Passar o cigarro de maconha entre os que estão fumando. Esse negócio não roda não?

Rolar. Acontecer (a maconha). Vai rolar o baseado ou não vai?

S

Salvador. Pessoa que tem maconha e que oferece a quem não tem e está ávido para fumar. Pode ser complementado com “da pátria” em referência à novela da Globo O Salvador da Pátria. Chegou o nosso salvador!

Sauna. Diz-se do ambiente pequeno e fechado onde se reúnem pessoas para fumar. Esse carro tá a maior sauna!

Scud. 1. Maconha ou cigarro de maconha de excelente qualidade. Referência ao famoso míssil utilizado na Guerra do Golfo, em 1990-91. Tudo que eu queria agora era fumar um scud daqueles pra dormir. 2. Cigarro grande. Vai ver o tamanho do scud que tá rolando lá em cima da casa.

Se tocar. Aperceber-se de algo relacionado à maconha, geralmente comprometedor. A Dani tava com o baseado na orelha e nem se tocou.

Secura. 1. Forte desejo de fumar. Passei a semana toda na secura. 2. Falta de maconha. A cidade tá uma secura desgraçada. 3. Estado de baixa salivação causado pela maconha logo após fumar. Tem uma água aí pra matar essa secura?

Seda. Papel especial ou apenas mais apropriado para preparar o cigarro de maconha. Não acredito que a gente vai ter de parar numa lanchonete pra conseguir uma seda!

Segurar. Adquirir maconha. O cara segurou uma da massa!

Segura a coisa. 1. Expressão muito utilizada quando se quer fazer referência ao ato de fumar ou incentivar alguém a fumar. Vambora, menino, segura a coisa! 2. Bloco carnavalesco de Olinda que faz referências à maconha. O Segura a Coisa já tá saindo.

Social. Situação de caráter formal, geralmente envolvendo um ou mais não usuários, com a qual aquele que está sob efeito da maconha tem de lidar. Uma social costuma ser vista como algo incômodo e indesejado pelo fato de nela não se poder aproveitar devidamente o efeito da maconha, mas há usuários que apreciam lidar com tais situações e até se divertem. Usa-se: fazer a social, encarar uma social ou pagar uma social. A gente passa lá no velório, faz a social e vai embora.

Solto. Diz-se da maconha que não é prensada. Também usado no diminutivo. Ô saudade de um soltinho…

Só por causa disso. Expressão utilizada, por si só, como pretexto para se fumar. Só por causa disso eu vou apertar um.

Sugesta (é). 1. Susto desnecessário ou infundado que se leva por estar portando ou fumando maconha. Aquele carro da polícia me deu a maior sugesta! 2. Ação comprometedora por parte do usuário. Ei, Celsinho, te liga aí que tu tá dando a maior sugesta.

Sujar. 1. Comprometer. Para de andar com a Carol que tu vai te sujar rapidinho. 2. Ser flagrado com maconha, com usuários ou em situação afins. Ih, sujou!

Sujeira. Qualidade de pessoa, lugar, situação ou objeto comprometedor. Não acende agora que é sujeira!

Sugestivo. Cigarro de maconha. Vou apertar um sugestivo em homenagem à beatificação de Madre Paulina.

Sujo. 1. Qualidade da pessoa ou lugar ou objeto que possui caráter comprometedor e que por si só pode denunciar o usuário. Aquele bar já tá sujo. 2. Aquele que já teve problemas legais com relação a maconha. Metade dessa turma tá suja com a polícia. 3. Aquele que, por seu comportamento, não é bem visto entre os usuários e/ou entre os não usuários. Léo já fez tanta besteira que tá sujo em todos os bares daqui.

T

BaseadoNissoCapaMiragem-01aTapa. Cada tragada que se dá em um cigarro de maconha. Muitas vezes usado no diminutivo. Vou dar só um tapa e vocês fumam o resto.

Tapa na cascavel. Tragada no cigarro de maconha. O mesmo que tapa na pantera. Vou ali dar um tapa na cascavel e já volto.

Tarugo. Cigarro de maconha de grandes proporções. A Bel fumou sozinha um tarugo do tamanho do meu braço!

Tchauris. Cigarro de maconha. O mesmo que tcheuris. Quem foi que trouxe o tchauris?

Tchauri-tchuri. 1. Cigarro de maconha. Cadê o tchauri-tchuri? 2. Expressão vaga para se referir à maconha ou ao efeito da mesma, ou ainda sem qualquer significado específico, geralmente utilizada quando sob efeito.Tchauri-tchuri, cumade!

Tcheuri-tchuri. O mesmo que tchauri-thcuri.

Tcheuris. O mesmo que tchauris.

Tchonga. 1. Maconha. A pergunta que não quer calar: cadê a tchonga? 2. Cigarro de maconha de tamanho considerável. A gente carburou uma tchonga da grossura de um coqueiro.

Texto. Designação discreta para maconha. Passa aqui que eu tenho um texto bacana pra você ler.

THC. Tetrahidrocanabinol. Principal substância psicoativa da maconha. Nas aulas de ciência política, a melhor coisa que aprendi foi que THC é melhor que FHC.

Tirar a cara. Fumar um cigarro para sair do estado de cara, em que não se está sob efeito da maconha. O mesmo que livrar a cara. Informo à Vossa Majestade que os Beatles foram ao banheiro do palácio tirar a cara.

Tó. Forma resumida de toma, muito utilizada quando o usuário, ao fumar, quer passar o cigarro mas não quer deixar escapar a fumaça pela boca. Tó…

Toco. Cigarro grosso de maconha. Vou apertar um toco em homenagem às formigas.

Tora. Cigarro de grande proporção. Vai precisar de duas pessoas só pra acender essa tora.

Torpedo. Cigarro de grande proporção. A especialidade da Luíza é apertar torpedo.

Tragar. Engolir a fumaça do cigarro e fazê-la sair, a maior parte, pelo nariz. Bill Clinton fumou mas não tragou.

Trago. Ato de fumar maconha. O mesmo que pega e pau. Ah, relaxa, só esse trago e a gente sai.

Tratar. Preparar a maconha para a confecção do cigarro. Consiste em picar em pequenos pedaços após retirar galhos e sementes. O mesmo que triturar, debulhar e destrinchar. Você trata e eu aperto.

Tripinha. Pequeno e fino cigarro de maconha. Não se empolgue não que é só uma tripinha.

Triturar. Ver tratar.

Troncho. Aquele que fumou e ficou de tal modo que o corpo parece torto e a expressão aparvalhada. A Juliana tá toda troncha, olha lá.

Trouxinha. Pequenino embrulho de maconha em forma de trouxa. Um fim de semana inteiro pela frente e só tem essa trouxinha?!

U

Um. Cigarro de maconha. Alguém tem um?

Unzinho. Denominação carinhosa para o cigarro de maconha. Variação: unzito. Vai rolar unzinho lá no banheiro, quem vai?

Usuário. Denominação de caráter mais social para quem fuma maconha. Em certos contextos distingue quem fuma de quem trafica. Nas pesquisas eu sou usuário, nos programas policiais eu sou maconheiro.

V

Vacilão. 1. Aquele que comumente age sem cuidado em sua relação com a maconha. Nunca vi um cara mais vacilão! 2. Aquele que diz ou faz bobagens quando fuma, permitindo que outros percebam que ele está sob efeito da maconha. Olha a vacilona lá, estirada na grama!

Vacilar. Agir sem cuidado, de forma a comprometer-se em relação à maconha. Paulinha tá vacilando demais, daqui a pouco dança.

Vela. Cigarro de maconha comprido. Olha o tamanho da vela!

Veneno. Maconha da melhor qualidade. Às vezes é complementado com de rato, em referencia à potência do veneno. Pô, mas que veneno!

Viajandão. Aquele que se encontra inteiramente absorto no efeito da maconha, geralmente em estado de contemplação. Fui assistir The Wall e só tinha viajandão na plateia.

Viajar. 1. Usufruir plenamente do efeito da maconha. Vou fumar um e viajar naquele livro! 2. Dizer ou fazer algo estranho, interessante, engraçado ou sem sentido, por ter fumado. Esquece o que eu disse, viajei.

Voyage. O mesmo que viagem (originado do francês). Ih, ó o cara… Na maior voyage!

X

Xavier. Aquele que regula o fumo. Oriundo de Regulador Xavier, famoso preparado à base de extratos vegetais para distúrbios da menstruação. Ei, Xavier, aqui também tem gente querendo fumar, viu?

Z

Zé. Maconha ou cigarro de maconha. Ah, se o Zé estivesse aqui…

Ziquizira. Efeito incômodo da maconha. Saí no meio do filme porque me deu uma ziquizira…

Zoado. Sob efeito da maconha, levemente confuso e/ou atordoado. Ainda tô zoado.

Zoeira. Confusão sonora ou de ideias causada pela reunião de pessoas sob efeito da maconha. Putz, mas que zoeira!

Zumbi. Pessoa sob forte efeito da maconha, de gestos lentos ao modo de um zumbi. Variação: zumbizado. O bagulho era tão bom que ficou todo mundo zumbi.

Zureta. Sob efeito da maconha. Não me pergunte coisa difícil que eu tô zureta.

Zuruó. Sob efeito da maconha. Equivale a zoado e zureta. Tá dando pra notar que eu tô zuruó?

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Ricardo Kelmer 1998 – blogdokelmer.com

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Este texto integra o livro
Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha

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Comentarios01COMENTÁRIOS
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01- Oi Ricardo Cara, eu ri demais “No Dia em que papai e mamãe ficaram muito doidos” hahahaha… isso já valeu o meu domingo. Beijos. Ana Cristina Souto, Fortaleza-CE – jan2006

02- Adorei o Mingo! Ele só destruiu todos os meus ídolos de infância, mas…tudo bem!Beijos Kelmérico. Cinthia Azevedo, Fortaleza-CE – mar2006

03- Pois eu ganhei o Baseado Nisso de presente de um amigo, na realidade ele sempre me mandava alguns textos seu por email e eu curtia muito então no meu aniversário ele me deu… inclusive está assinado … hehehehe Adorei dimais… a ponte dos pergaminhos metálicos… pirei… ahahahahaha. Julia – mai2006

04- bom pra começar o livro é da minha irmã e eu por mta curiosidade por conta do título não resisti… confesso que as histórias são fascinantes de modo que não se consegue parar de ler… bom eu acho q ela comprou na net… não sei bem Parabéns pelo sucesso…. Nycka, São Paulo-SP – mai2006

05- passei para lhe dizer que adorei ter lido um de seus livros foi a minha cunhada que me deu esta ai da sua lista de amigos a Rildete, ela virou fã mesmo e consequentemente eu também… (rsrs) abraços. Nanda Vasconcelos, Fortaleza-CE – mai2006

06- Terminei de ler “O Último Homem do Mundo” e confesso que eu me senti agradavelmente surpresa com o final. Na verdade, eu me encantei com toda esta estória que me parece tocar em sentimentos profundos de uma maneira simples e bem humorada. Acho que neste conto vc descreveu muito bem o horror e a solidão que podem acompanhar o prazer sem limites. Interessante que “ao acordar” o Agenor sentiu necessidade de pedir desculpas para a Dorinha. Muito meigo e belo…, sabia?! Bj_. Kátia Regis Albuquerque, João Pessoa-PB – out2006

07- beleza, muito bom o baseado! Cesar de Cesário, Campina Grande-PB – out2006

 


A profecia

18/05/2010

18mai2010

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a.

Este conto integra o livro Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha, de Ricardo Kelmer

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A PROFECIA

A maconha terráquea, melhor da galáxia, está faltando no mercado. Os culpados são os mulgélicos, fanáticos religiosos que tomaram o poder no planeta. O Conselho Galático precisa decidir o que fazer
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A SRA. ZIEGR, PRESIDENTA do Conselho da Confederação Galática, entrou na sala e ocupou sua poltrona à grande mesa. Ela trazia o semblante sério e nas mãos alguns envelopes.

– Conselheiros, bom dia. Convoquei-os a esta reunião extraordinária porque acabo de receber o relatório do Centro de Registros. Como é de conhecimento de todos, fatos preocupantes estão acontecendo no planeta Terra. Por causa deles seremos obrigados a cortar o suprimento da canabis terráquea a todos os planetas confederados por tempo indeterminado.

O rumor na sala foi geral.

– Silêncio, por favor, silêncio!

Mas os rumores cresciam e a presidenta Ziegr teve de bater na mesa. Ela entendia perfeitamente o porquê da indignação. Todos já haviam protestado em reuniões anteriores pela diminuição da cota de canabis terráquea para seus planetas e alertavam para o perigo do corte definitivo.

– Eu sabia que isso ia acontecer! – protestou o conselheiro Baqt. – Todos sabiam. Menos o Centro de Registros.

– Por favor, conselheiros. Deixem-me mostrar o relatório antes de discutir o que faremos.

As vozes se calaram e a presidenta Ziegr passou a ler o relatório. Ele dizia que a canabis já não podia ser encontrada com facilidade no planeta Terra e que já se estudava a possibilidade de pesquisar outros planetas para o plantio.

– Bobagem! – levantou-se Baqt, irritado. – Todo mundo está cansado de saber que, exceto a Terra, nenhum planeta desta zona da galáxia reúne condições perfeitas para o plantio da canabis!

– Isso mesmo! – complementou uma conselheira. – Por que gastar verbas com pesquisas inúteis? Precisamos intervir antes que a canabis terráquea seja totalmente extinta.

– Exatamente! Minha família, por exemplo, não fuma um baseado que preste faz mais de um ano disse Reuzaramon, o mais velho dos conselheiros.

Ziegr escutou com paciência mais algumas considerações. Estavam todos revoltados. Então prosseguiu:

– Conselheiros, a canabis terráquea é material estratégico para a galáxia, todos nós sabemos. Foi ela que propiciou o desenvolvimento ecológico dos planetas confederados e lhes permitiu superar a delicada fase do término dos combustíveis fósseis. Para isso, no entanto, durante milênios as naves da Confederação abordaram a Terra e, na calada da noite, de lá retiraram a canabis para abastecer nossos mundos.

– Eram os deuses astronautas? Não. Eram os deuses maconheiros – sussurrou Reuzaramon para o colega ao lado.

– Agimos assim porque precisávamos da canabis, claro, mas também porque os terráqueos não estavam preparados para nos conhecer – continuou Ziegr. – Agora, porém, grandes mudanças operam naquele planeta e exigem que tomemos uma posição.

– São os mulgélicos, aposto!

– Eles mesmos – respondeu Ziegr.

– Calhordas! – gritou Baqt, erguendo-se. – Por causa deles só estou fumando maconha de Fens, aquela porcaria.

– Conselheiros, semana passada a nave da Monitoria 54 resgatou, da órbita da Terra, uma pequena cápsula contendo informações valiosas. São textos e imagens sobre o momento atual da Terra e que confirmam as informações do relatório do Centro de Registros.

Ziegr entregou a cada um dos conselheiros um óculos projetor, pediu que cada um assistisse com atenção e encerrou a reunião, avisando que prosseguiriam à tarde.

Reuzaramon, o mais velho dos conselheiros, rumou para o jardim dos fundos do prédio, lá era mais agradável. Sentou-se num banco, pôs o óculos projetor e ligou. Enquanto as imagens tridimensionais se formavam à sua frente, ele escutava…

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A Ecologia toma impulso no planeta Terra no fim do segundo milênio da era cristã com a constatação de que a sociedade industrial e tecnológica produzia riqueza e conforto, mas também gerava um enorme perigo ao planeta e a todas as formas de vida. A partir daí uma crescente conscientização ecológica desenvolveu-se e direcionou os rumos de uma nova noção de desenvolvimento para o planeta: o desenvolvimento sustentável, onde a prioridade é manter os avanços tecnológicos sem abrir mão do equilíbrio ambiental.

No primeiro século do terceiro milênio um acontecimento crucial vem somar-se a toda essa revolução: a canabis, até então criminalizada em quase todo o planeta, é reconhecida oficialmente pela maioria dos blocos geopolíticos como matéria-prima estratégica para a sociedade. O baixo custo, a alta performance produtiva, a não necessidade de agrotóxicos e o seu caráter limpo e renovável a credenciam como a grande alternativa ecológica para a crise dos combustíveis fósseis que se instalara no mundo.

Assim, sob recomendação da ONU, os blocos geopolíticos mudam suas leis e legalizam a canabis. Cultivar, comercializar e consumir maconha deixa de ser crime, e as leis referentes a ela se inspiram nas leis que regulamentam outras drogas legalmente aceitas como o álcool. Dessa planta altamente estratégica extraem-se milhares de produtos essenciais ao dia a dia da sociedade, permitindo que o mundo respire aliviado após décadas de medo e incertezas quanto à saúde do planeta. A planta mostra-se eclética a ponto de ser utilizada também, e com muita eficácia, na medicina terapêutica.

Junto à canabis, outros recursos naturais também passam a ser utilizados dentro dos princípios do desenvolvimento ecológico. A canabis, porém, logo apresenta-se como carro-chefe dessa transformação, pois à sua intensa utilização industrial vem juntar-se o tema das liberdades individuais, gerando providenciais discussões sobre a relação do ser humano com as drogas e a questão do tráfico, da violência e dos interesses econômicos, além de questionar a eficácia dos programas de saúde pública e o tratamento policial dispensado ao usuário.

Nem todos, porém, concordam com isso. Ocorrem protestos em vários setores da sociedade e uma nova organização político-religiosa surge para combater o que ela entende por “exageros da democracia”, como o uso livre da maconha. São os autodenominados mulgélicos (multidões angelicais), fanáticos religiosos de caráter ultraconservador que cultuam a tecnologia máxima e defendem o terrorismo como forma de garantir seus valores. A eles se juntam todos aqueles que discordam da legalização da canabis, e assim a organização cresce e promove atos terroristas por todo o mundo, utilizando tecnologia química e biológica contra a população. Com discurso sedutor às mentes religiosas e amedrontando a muitos com sua política ultrarradical, tomam o poder em alguns blocos e aos poucos conseguem exterminar os principais líderes democráticos.

Estamos sob domínio dos mulgélicos há uma década. Eles governam o mundo globalizado, convocando todos a se entregar aos braços de seu deus, que em breve, creem eles, voltará para carregar os abençoados consigo rumo ao Paraíso, abandonando na Terra os seguidores de Satanás. Os mulgélicos perseguem aqueles que não comungam da crença de seu deus e castram as liberdades individuais conquistadas. Para eles, a canabis é a personificação do Mal e precisa ser combatida com toda a força e métodos possíveis. De nada adiantam os argumentos médicos e sociológicos, de nada valem os direitos humanos: os usuários passam a ser perseguidos pelo mundo inteiro e mortos com crueldade. E o cultivo da canabis, novamente proibido, abre caminho para o retorno de antigas, caras e poluentes formas de produção industrial, intoxicando novamente o planeta e pondo em risco o equilíbrio ambiental.

O culto exacerbado da tecnologia torna cegos os mulgélicos e eles não percebem que estão conduzindo a espécie humana ao seu extermínio. Contra esses argumentos, e até mesmo contra todos os fatos, eles respondem que seu deus está chegando para resgatá-los e assim ficará provado quem está certo.

Hoje, vivemos num planeta praticamente esgotado de recursos naturais e a grande alternativa foi bloqueada pela política repressora dos mulgélicos. O ar, os rios e os oceanos estão sujos. A preservação da fauna e da flora não é mais importante – importante é tentar converter os infiéis. Catástrofes naturais acontecem todos os dias, mas os mulgélicos veem nisso o legítimo cumprimento de suas profecias, o sinal dos últimos dias que antecedem a tão esperada chegada de seu deus.

A única possibilidade que nós, os resistentes dessa ditadura teocrática, vislumbramos foi pedir ajuda a outros planetas. Certamente, há vida em outros mundos, e talvez eles tenham passado por problemas semelhantes aos nossos. Talvez seus habitantes possam ajudar a Terra a reencontrar o caminho das liberdades individuais e do desenvolvimento autossustentável.

Isso é um pedido de socorro interplanetário. Talvez ainda haja tempo de salvar este planeta que já foi tão belo. Ainda podemos reaprender a respeitar as liberdades que pertencem ao ser humano. Clandestinamente, ainda cultivamos os últimos exemplares da canabis em plantações disfarçadas, o que nos proporciona raros momentos de prazer e a esperança de que ainda podemos retomar o crescimento interrompido. Mas tudo está por um fio, pois não sabemos até quando o planeta suportará.

Nosso plano é soltar esta mensagem no espaço, feito uma mensagem de náufrago. Talvez consigamos. É uma operação arriscada e com poucas chances de sucesso. Mas talvez alguma nave a recolha e esta mensagem alcance boas mãos.

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Reuzaramon retirou o óculos projetor e olhou para o céu. Terra…, sussurrou ele. Era realmente um belo planeta. Lembrou que seu planeta natal vivera problemas semelhantes aos que os terráqueos agora viviam e que a história da evolução das espécies era sempre marcada por momentos cruciais onde velhos e novos valores protagonizavam o dramático teatro do mito do Juízo Final. Antes da criação da Confederação Galática muitos planetas morreram, e com eles o seu povo, por não saber encontrar seu próprio caminho de democracia e desenvolvimento sustentável. Hoje, a Confederação, ciente de que a morte de um planeta empobrece o Universo, estava sempre atenta para tentar ajudar – mas somente quando isso representava a última chance, pois o sagrado princípio da soberania dos mundos regia a Constituição Galática.

O velho conselheiro levantou-se do banco, guardando o óculos no bolso. Olhou mais uma vez para o céu e depois seguiu para a sala. Talvez fosse mesmo o momento da Confederação intervir.

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BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– MUITO BEM, CONSELHEIROS – falou a presidenta Ziegr, contando os votos. – A maioria considerou que o Conselho deve intervir no planeta Terra. E que não podemos mais continuar roubando maconha de lá.

– Exatamente. O que está em jogo são os interesses da Galáxia.

– Isso mesmo! Os desvarios de um grupo de fanáticos religiosos não podem interromper a evolução do Universo.

– Mas como interviremos no planeta sem desrespeitar sua soberania? – insistiam os que não concordavam com a intervenção.

Reuzaramon pediu a palavra.

– Conselheiros, nenhum planeta é autônomo no último sentido do termo. Sabemos que todos os mundos estão ligados numa interdependência sutil, mas vital, e o que é feito a um repercute em todos. A Terra é apenas um dos elos dessa imensa corrente que se chama galáxia, que por sua vez é apenas um dos elos do Universo, que por sua vez é apenas um dos muitos universos possíveis. Quanto mais abrangemos nossa compreensão da realidade, mais percebemos o quanto tudo está ligado. O que acontece na Terra está influenciando o destino de outros mundos, e por isso a Confederação deve intervir.

– Você fala assim porque não é o seu mundo que será invadido!

– Conselheiros, por favor, deixem-me terminar. A espécie humana já está madura o suficiente para compreender que não está sozinha no Universo. Além disso, a canabis da Terra é a melhor de todas e ela é indispensável à evolução do planeta. Sem ela, não haverá desenvolvimento autossustentável. Sem ela, a Terra corre o risco de se destruir. E sem a Terra, senhoras e senhores deste Conselho, a Via Lactea enfrentará um grave desequilíbrio.

Reuzaramon foi aplaudido pela maioria. E mesmo os reticentes quanto à intervenção viram sentido em seus argumentos.

– A intervenção já foi decidida – falou Ziegr. – Mesmo assim, resta uma dúvida. Como faremos? Não podemos atacar os mulgélicos, nem podemos plantar canabis no planeta às escondidas.

– Que tal envolver o planeta numa grande baforada de maconha? – brincou alguém. – Assim todos finalmente experimentarão e tirarão suas próprias conclusões…

– O verdadeiro efeito estufa!

– Ou podemos fornecer armas com balas de canabis para os resistentes atirarem nos mulgélicos…

– Conselheiros, por favor. Precisamos de um plano de intervenção pacífica, sem comprometermos nossa carta de princípios. E não dispomos de muito tempo.

– Talvez possamos convencer os mulgélicos a retomar o crescimento ecológico – propôs uma conselheira. – Eles têm de entender que não há outra saída para o planeta deles.

– É inútil, minha senhora – falou Reuzaramon. – Para um fanático religioso, quem não está com ele, está de mãos dadas com o Mal.

Chegaram ao incômodo impasse. A intervenção se fazia necessária, mas parecia não haver maneira de realizá-la sem ferir os princípios éticos da Confederação. Até que Reuzaramon ergueu o braço.

– Amigos, acho que vislumbrei a saída do labirinto.

Todos olharam curiosos para ele.

– Nós sabemos o que pensam os terráqueos, sabemos sobre suas crenças e suas profecias. Isso é tudo que precisamos.

– Explique melhor, Reuzaramon – pediu Ziegr.

– Muitas profecias terráqueas falam do Juízo Final. Parte dos terráqueos já entendeu que a linguagem das profecias é simbólica, que “fim do mundo” é só o fim de uma fase, uma espécie de renascimento para a nova fase, tanto no âmbito individual quanto num âmbito social. Mas outros entendem ao pé da letra e acham que a salvação virá de fora. Estes se acham os eleitos e creem que seu deus, de fato, irá resgatá-los.

Todos ouviam atentos, curiosos por ver onde o velho conselheiro queria chegar.

– Ora, ora… As profecias se realizam porque no fundo as pessoas creem nelas. Se existe a profecia, então ela deve ser realizada.

– Sábias palavras, Reuzaramon. Mas quem vai realizar a profecia? E de que modo?

– Conselheiros… Esqueceram que quem acredita em deuses, precisa de deuses para viver?

Reuzaramon sorriu ao perceber que finalmente começava a ser compreendido.

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BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04aNAQUELA MANHÃ, as nuvens do planeta Terra se abriram e dos céus desceram naves gigantescas, milhares delas, espalhadas por todos os países. Trombetas soaram ensurdecedoras, para todos ouvirem, em todos os cantos do mundo. De cada uma delas saiu um anjo com roupa prateada e grandes asas reluzentes para avisar que o grande dia chegara e que os eleitos seriam levados.

– Aí está! – berravam os líderes mulgélicos com lágrimas nos olhos. – Aí está o Deus Todo Abençoado que veio resgatar seu rebanho querido!

A imprensa do mundo inteiro transmitia o fim do mundo. Nas residências, nas repartições, nas academias, todos se mantinham em frente à TV. Audiência total. Até os botequins estavam lotados.

– Ô, seo Manel! O fim do mundo chegou. Desce aí a saideira.

– Só se você primeiro pagar o que deve.

Os mulgélicos atenderam ao chamado e ocuparam rapidamente os assentos das naves, emocionados, gratificados por sua fé finalmente recompensada. Muitos tentaram se converter de última hora, mas não havia mais lugar nas naves.

– Eu até que queria ir, mas os cambistas estão explorando!

– Que dia pro fim do mundo! Deus podia pelo menos esperar passar o réveillon.

Ao fim da manhã, as naves partiram, levando todos os mulgélicos ao paraíso prometido. Uma nave, porém, a maior de todas, permaneceu no pátio da sede da ONU. Suspense. Bilhões de pessoas acompanhando pela TV. Uma voz ecoou, vinda da nave:

– Amigos terráqueos. Ouviremos agora o pronunciamento da excelentíssima presidenta do Conselho da Confederação Galática, sra. Ziegr.

A presidenta surgiu à porta da nave, de microfone à mão. Pigarreou discretamente e começou a falar:

– Serei breve, amigos terráqueos.

Ela fez uma pausa, juntou as mãos como quem implora, e perguntou:

– Alguém tem unzinho aí?

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Ricardo Kelmer 1998 – blogdokelmer.com

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BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a> Este conto integra o o livro
Baseado Nisso
– Liberando o bom humor da maconha

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O dia em que papai e mamãe ficaram muito doidos

18/05/2010

18mai2010

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a
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Este conto integra o livro Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha, de Ricardo Kelmer

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O DIA EM QUE PAPAI E MAMÃE
FICARAM MUITO DOIDOS

Juninho está preocupado. Seus pais decidiram experimentar um baseado para saber o que o filho via de tão bom nisso
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– Juninho, eu e sua mãe decidimos fumar um baseado com você.

O menino ficou olhando para os pais, sem acreditar no que escutava. Depois de tantos anos insistindo em conselhos, castigos e orações, seu pai e sua mãe resolveram experimentar para saber o que afinal o filho tanto via num cigarro de maconha. O importante era a união da família.

Juninho ficou tão surpreso, atordoado mesmo, que quando deu-se conta já havia entregue o baseado e seus pais estavam sentados em sua cama, fumando e tossindo. Juninho recusou-se a fumar também, inventou uma desculpa qualquer. Mas a verdade é que alguém tinha de ficar careta para segurar a onda.

– Não tô sentindo nada – reclamou a mãe.

– Calma, Vanda, demora um pouco – explicou o pai com ar de entendido. – Não é, Juninho?

– Você tá bem, mãe?

– Tô ótima, quer dizer, tô normal. Normalíssima – respondeu a mãe, rindo.

– Eu também – disse o pai. – Aliás, nunca me senti tão normal em toda a minha vida.

– Mãe, qualquer coisa tem leite na geladeira, viu?

– Vanda, há algo errado com minhas orelhas?

– Suas orelhas? – ela olhou curiosa para o marido. – Não, Afonso, por quê?

– Elas estão maiores, não?… – Ele apalpava as orelhas, intrigado.

– É normal, pai. É viagem.

– É normal as orelhas crescerem? – perguntou o pai, indo conferir no espelho do banheiro.

– Pois eu continuo normalíssima – observou a mãe, rindo. – Eu e minhas orelhas.

– Tem gente que não viaja da primeira vez, mãe.

– Vanda!!! Vem aqui correndo!

A mãe correu assustada. Chegou ao banheiro e deu com o marido se observando atentamente ao espelho.

– Eu sempre fui assim, Vanda? Sempre?

– Assim como? – Ela não compreendia. Juninho, atrás dela, muito menos.

– Como você pôde aturar essa barba horrorosa durante todos esses anos? Heim?

– Ué? Você sempre disse que era o seu charme…

– Sei não, acho que eu ficaria melhor sem barba.

– Pai… – Juninho começava a se preocupar.

– Não acredito! – exclamou a mãe, erguendo as mãos. – Minhas preces foram ouvidas!

– Mãe, não deixe… – pediu Juninho, assustado com o rumo das coisas. – Isso é viagem, mãe, é viagem…

– Então não se meta na viagem de seu pai – ralhou a mãe.

– Vanda, faz quantos anos que você não solta seu cabelo? – perguntou o pai de volta do banheiro, retirando de repente a fivela da cabeça da mulher. Ela tentou impedir, mas foi tarde.

– Afonso! Dá aqui, dá!

– Não fica melhor assim, filho? Sempre falei, mas ela nunca escutou.

– Pai, eu acho que… será que… vocês…

– Juninho, você tem algum CD aí pra eu dançar com sua mãe? O que é isso aqui?

– É rap. Acho que vocês não vão gostar muito não…

– Tá vendo, Vanda? Precisamos comprar uns CDs pra nós dois.

– Pai, bota um pouco desse colírio aqui…

– Afonso… – disse a mãe, o tom da voz levemente lânguido, como havia muito tempo ela não experimentava. – A noite está ótima… Bem que a gente podia ir dançar. Inaugurou um barzinho aqui perto…

– Sabe que você teve uma grande ideia?

– Não precisava pingar tanto, pai. Mãe, você tem certeza que…

– Vou tomar logo meu banho. Será que ainda sei dançar?

– E por que a gente não toma banho junto? Economiza água…

– Economiza água… Ahahahah!!! Economiza água… – repetiu a mãe, morrendo de rir.

Naquela noite, eles voltaram para casa às três da manhã. Juninho ainda rolava na cama, preocupado. Não conseguira dormir e muito menos estudar para a prova. Escutou abrirem a porta e experimentou um alívio imenso, que bom que estavam de volta. Os dois entraram se esforçando para não fazer barulho, mas não conseguiram.

– Afonso, você ficou um gato sem a barba…

– Aqui não, Vanda, vai acordar o Juninho…

Juninho virou para o outro lado. Não devia ter permitido, sabia que não devia. E se tivessem realmente gostado? E se ficassem viciados, o que podia acontecer? Seu pai tirara a barba depois de vinte anos, ficou tão estranho, não conseguiu olhar direito para ele. E se chamassem os amigos para fumar, o que eles achariam? E o trabalho deles, não podia prejudicar? E a mãe então, nunca vira a mãe rir tanto, parecia uma… uma louca. E se dessem muita bandeira e a polícia descobrisse, a vergonha que seria… Não podia fazer mal à saúde deles? Não era perigoso fumar e sair por aí?

Juninho puxou o lençol, fechando os olhos, tinha de acordar muito cedo. Bem, talvez fosse só empolgação, ele pensou, primeira vez é assim mesmo, pai e mãe são muitos inexperientes para fumar maconha.

Do corredor, ainda chegavam as vozes, abafadas:

– Afonso, onde será que ele guarda?
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Ricardo Kelmer 1998 – blogdokelmer.com

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01- Oi Ricardo Cara, eu ri demais “No Dia em que papai e mamãe ficaram muito doidos” hahahaha… isso já valeu o meu domingo. Beijos. Ana Cristina Souto, Fortaleza-CE – jan2006

02- adorooooooooooo muito bom…rs. Magna Mastroianni, São Paulo-SP – abr2011

03- Adorei!!! Aliás, tenho lido vários, e tá difícil não gostar de algum, viu?rsrs. Bjão!! Simone Marini, São Paulo-SP – abr2011

04- Esse Ricardão!!! ahahahah :* Gisela Symanski, Porto Alegre-RS – abr2011



Lolita, Lolita

03/09/2009

03set2009

A calcinha desce suave pelas coxas finas, beija os joelhos, pousa nos pezinhos… Engulo seco. Diante de mim a luz dos meus dias, fogo em minha alma

LolitaLolita-04

LOLITA, LOLITA

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A cena sempre me extasia, sua língua faceira saltando três vezes… Olho em silêncio enquanto ela lambe o papel, fecha o baseado e acende, segurando na ponta de seus dedinhos finos. Ela puxa a fumaça devagar, os olhinhos fechados, tão linda… E eu amo sua boca enquanto ela solta a fumaça. A boca. Que ela sempre esquece entreaberta, na medida exata, meio dedo, ela faz de propósito, sabe que não resisto. O que essas colegiais andam aprendendo no recreio?

Vai, fuma, minha amiga quem me deu, você vai gostar. Hoje não, meu anjo, obrigado. Ah, é, pois só de mal não vou fazer aquilo. Então cumpro minha parte no trato, dou uma tragadinha, o suficiente para que a doce chantagista se satisfaça. Ela me mostra a língua, me chama de velho careta. Entendam, quero sóbrios os meus sentidos, para depois passar todas as imagens, uma por uma, e recordar… e recordar… até que seja novamente terça-feira.

Trancada a porta da suíte. Cerradas as cortinas. Os pequenos cuidados de sempre. Mas as cortinas, eu sei, ela depois abrirá para olhar a cidade, ela e seu prazer de me desobedecer. E eu paciente a puxarei para dentro, perigoso ficar na sacada, meu anjinho, eu já disse, principalmente assim de calcinha. Ela protestará, claro: Seu chato, parece meu pai! E citará probabilidades, uma chance em mil de alguém reconhecê-la ali no vigésimo andar. Mas vocês hão de convir, já foi sorte demais encontrá-la, não tenho mais idade para abusar do destino.

No frigobar, ela se diverte: iogurtes, suquinhos e chocolates que devora e guarda na mochila, levará para a amiga. Na TV, vibra com os clipes musicais, essas bandas modernas com nomes estranhos e garotos idiotas que ela adora, e zomba do meu ciúme cantarolando em seu inglês vacilante, o que me faz lembrar de seu curso, justamente onde ela deveria estar agora. Mas vocês vão entender, as terças são minhas.

Ela vem para a cama, lânguida e relaxada. Tira minha camisa e brinca com os pelos brancos do meu peito, me aperta as sobras da barriga. Com meu cinto, brinca de me chicotear, rindo como se fosse a coisa mais engraçada do mundo. Depois, salta da cama: Me dispa, escravo, é uma ordem. Sim, minha princesa.

Fico na ponta da cama, ela à minha frente. Tiro seu uniforme com cuidado, da outra vez rasguei a saia. Desabotoo a camisa e os seios pequenos me olham. Pergunto se estão com saudade e ela os move para cima e para baixo: Siiiim, estamos… E outra vez morre de rir. As meias brancas mantenho no lugar, quase no joelho, gosto assim. A fita no cabelo também. Ela ergue a saia plissada e surge a calcinha, hoje é azul claro, combina com a tarde. A vontade é de arrancá-la, me controlo, o coração quer sair do peito. A calcinha desce suave pelas coxas finas, beija os joelhos, pousa nos pezinhos… Engulo seco. Diante de mim, a luz dos meus dias, fogo em minha alma.

É nas curvas de seu corpo quase infantil que eu me desgoverno: tento dirigi-la, mas ela faz o que tem vontade e minhas juntas sofrem para segui-la. Ela geme sob o peso de meu corpo, dança sobre ele, senta em meu rosto, vira de costas, sim, sou tua Lolita, para sempre, siiiim… Lembro do trato e ela cumpre a promessa, bebendo-me até a última gota, adora observar minhas reações. Depois, na telinha da máquina, ela apaga as fotos em que está feia e zomba da minha expressão apaixonada, manda por e-mail, pliiis, você nunca manda, malvado. Ela me oferece chiclete, e diz que a amiga quer um dia participar também… Paro, sem acreditar no que ouço. Você não devia ter contado, nossa felicidade não precisa de mais ninguém! Mas ela é minha amiga… Foda-se sua amiga, já falamos disso, quer estragar tudo, tem merda na cabeça?!

Vamos em silêncio até o shopping, uma lágrima escorre de seu olho. Que eu não vejo porque não ouso olhar, mas sei, porque é a mesma lágrima que tremula no meu. Paro e ela sai do carro, fecha a porta. Três passos e retorna, e emoldura o rosto na janela, e sussurra: Fica assim não, desculpa… A boca. Por favor, não quero que acabe, pliiis… A boca entreaberta, meio dedo. Meu coração se derrete. Entrego-lhe o dinheiro do cinema e do lanche, mais um pouco para gastar com bobagens. Te amo, ela diz sorrindo, e eu respondo eu também. Ela conta orgulhosa que verá seu primeiro filme de catorze anos e, como se revelasse um segredo mortal, diz que a amiga entrará com carteira falsa. Não precisa correr, meu anjo, tem tempo. Mas ela já se virou. E lá se vai minha Lolita, correndo estabanada pelo estacionamento, mochila às costas, as pernas, as meias brancas. Tão linda em seu prazer de me contrariar.

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Ricardo Kelmer 2005 – blogdokelmer.com

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– Este conto integra o livro Vocês Terráqueas – Seduções e perdições do feminino
– Este conto integra o livro
Indecências para o Fim de Tarde

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LOLITA E VLADIMIR NABOKOV

VladimirNabokov-01Vladimir Nabokov nasceu em 22 de abril de 1899 em São Petersburgo, na Rússia. Morou na Inglaterra, Alemanha e a partir de 1940 viveu nos Estados Unidos. Morreu em 1977, na Suíça. Seu romance Lolita, publicado originalmente em 1955, é seu livro mais conhecido. A história do amor entre o quarentão desequilibrado e sua enteada de doze anos foi traduzida em dezenas de línguas, gerou duas versões cinematográficas (1962 e 1997) e deu origem aos termos lolita e ninfeta, significando meninas adolescentes ou menores de idade sexualmente precoces.

> Covering Lolita – Sessão do site do estudioso alemão de literatura Dieter Zimmer, que reúne capas de edições de Lolita, publicadas desde 1956 em dezenas de países.

A menina que teria inspirado “Lolita” – Um novo livro aprofunda a relação entre o romance de sucesso de Nabokov e a história real de Sally Horner, de 11 anos, sequestrada e maltratada por um pedófilo em 1948
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O PRIMEIRO PARÁGRAFO de Lolita é considerado por muitos como uma das mais belas introduções da literatura ocidental.  Eu, particularmente, concordo.

“Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta. Pela manhã ela era Lô, não mais que Lô, com seu metro e quarenta e sete de altura e calçando uma única meia soquete. Era Lola ao vestir os jeans desbotados. Era Dolly na escola. Era Dolores sobre a linha pontilhada. Mas em meus braços sempre foi Lolita.”

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MAIS SOBRE SEXUALIDADE FEMININA

OIncubo-06O íncubo – Íncubos eram demônios que invadiam o sono das mulheres para copular com elas – uma difundida crença medieval. Mas… e se ainda existirem?

A gota dágua – A tarde chuvosa e a força urgente do desejo. Ela deveria resistir, mas…

A torta de chocolate – Sexo e chocolate. Para muita gente as duas coisas têm tudo a ver. Para Celina era bem mais que isso…

O mistério da cearense pornô da California – Uma artista linda e gostosa, intelectual e transgressora, que adora perversões e, entre uma e outra orgia, luta pela liberação feminina

Bettie Page, nós te amamos – Ela é um ícone da moda, da arte erótica e também do universo BDSM, inspirando artistas e fetichistas

Vocês Terráqueas – Seduções e perdições do feminino – Livro de contos e crônicas sobre a mulher

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DICA DE LIVRO

IFTCapa-04aIndecências para o fim de tarde
Ricardo Kelmer, contos eróticos

Uma advogada que adora fazer sexo por dinheiro… Um ser misterioso e sensual que invade o sono das mulheres… Os fetiches de um casal e sua devotada e canina escrava sexual… Uma sacerdotisa pagã e seu cavaleiro num ritual de fertilidade na floresta… A adolescente que consegue um encontro especial com seu ídolo maior, o próprio pai… Seja provocando risos e reflexões, chocando nossa moralidade ou instigando nossas fantasias, inclusive as que nem sabíamos possuir, as indecências destes 23 contos querem isso mesmo: lambuzar, agredir, provocar e surpreender a sua imaginação.

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01- Rica, Lolita merece todas as homenagens. Amor de perdição, amor de redenção – e não é sempre assim? Mas você ainda vai demorar para virar um Humbert Humbert, um velhinho tarado. Quarenta anos é uma idade ótima, ótima! Ana Beatriz Nogueira, Brasília-DF – jul2005

02- Caraca , mermão! Fiquei zonzo. Sem saber o que pensar. Sem saber o que dizer. Mas cheio de imagens retidas na retina da memória. Se eu fosse fazer algum comentário, arriscaria um que é um grande lugar-comum, eu sei, mas foi o que me bateu: senti falta de conhecer um pouco mais essa Lolita, de perscrutar algumas de suas motivações, ainda que difusas, próprias de uma adolescente, uma adolescente que já é muito diferente das adolescentes de quando estávamos no segundo grau, quanto mais em relação àquela criada por Nabokov. Acho que o amigo fez uma crônica-conto, que deixa no leitor a sensação de que há muito mais pra contar. Aliás, percebo que já estava entregue ao prazer do conto, tanto é que nas linhas finais já me via na expectativa de alguma surpresa, alguma reviravolta típica de conto. Mas o final teve sabor de crônica-poesia. Como diria Leminski, a vida é mesmo crônica. O que “ falta ” neste texto provavelmente só atesta sua qualidade. Marcelo Pinto, Rio de Janeiro-RJ – jul2005

03- Tá ótimo! Deu bem a idéia da estória toda numa página só! Eu não li o livro mas vi o primeiro filme e o remake. E gostei, é muito perverso porém. Isabella Furtado, Modena-Itália – jul2005

04- Quarentão, careca, e agora perdido por garotinhas! Esse não é o Ricardo Kelmer que conheci. Um beijo saudoso, e lembre-se de que, ao meu lado, voce sempre serah o garoto… Clotilde Tavares, Natal-RN – jul2005

05- Bela… Lolita. Bjo. Graça Carpes, Rio de Janeiro-RJ – jul2005

06- He,he,he, As Lolitas de hoje não são “tão puras” como a do nosso nobre Nabokov, né? Sinal dos tempos … Álvaro de Paula, Fortaleza-CE – jul2005

07- Oi, Ricardo. Bem que poderia haver a versão homo de lolita..já pensou eu iria adorar e se eu fosse o lolito seria melhor ainda…rsrsrsrr. Abraços. Fabiano, Fortaleza-CE – jul2005

08- Adorei a crônica, achei bem sensual, mas talvez incentive o assedio a jovens meninas. Cacilda Luna, Fortaleza-CE – jul2005

09- Primoroso… Nelson Neraiel, Rio de Janeiro-RJ – jul2005

10- Uma menina, só mesmo uma menina. Pobres velhinhos…kkkkkkkk! Muito bom. Adorei. Mas uma pergunta cretina: o texto é só uma homenagem mesmo? Desculpa, não resisti 🙂 Luana Patrícia, Fortaleza-CE – jul2005

11- Olha, adorei essse texto da Lolita…Parabéns! Pela sua criatividade!!! Clécio Rhustem, Crateús-CE – jul2005

12- O filme é maravilhoso. Já vivi um amor louco desse. Lisa Mary, Fortaleza-CE – jul2005

13- oi, ricardo. li o teu texto “lolita, lolita”. gostei muito. escrevi algo num clima parecido. talvez queiras ver: http://www.fotolog.net/daimon/?photo_id=8958936 . abraço. Paulo Amoreira, Fortaleza-CE – jul2005

14- Oi Ricardo, Adorei o texto da ninfa (Nabokov ‘2005) principalmente o ” beija os joelhos e pousa…”. Puta tesão,,,. Agora que já tô quase acabando as 130 ou mais páginas da minha tese (parece ridículo pelo número!) talvez possa te devotar a atenção devida… a merecida, jamais!!!. Beijos. Valmir Menezes, Lisboa-Portugal – ago2005

15- Tornei-me sua fã recentemente desde que li um texto seu na página do IG. semanalmente abro seu site para ver as novidades. Você parece ser um estilo raro de homem não o conheço,mas mesmo assim me identifiquei algumas de suas produções,outras fiquei um pouco cismada como no caso de “lolita” me senti agredida não se foi porque já pasei dos trinta, ou se porque como mãe de duas garotas e ainda mais sendo professora tive a impressão de que estava lendo uma apologia ao sexo com menores de idade. De qualquer forma voltei outras vezes para desfrutar de suas idéias,li e vi sua revelação nos quarenta anos,Adorei seu texto suas fotos então…. bjs e muito sucesso!!!! Sua fã. Diva645 – Rio de Janeiro-RJ – out2005

16- li um texto seu (Lolita, lolita) e gostei muito… Trabalho com produção cultural, sou apaixonada por literatura e bons textos sempre me impedem de ficar calada, porisso tive que fazer essa pequena invasão pra lhe trazer as minhas congratulações! realmente é um texto polemico, mas gostei do seu jeito de escrever sobre um assunto tão polemico tornando a coisa assustadoramente natural… Um grande beijo! Wania Alvarez, Santos-SP – mar2006

17- Caramba, que realismo!Deus me vi quando ainda aos treze… Tanbém escrevo e deveras fiquei anestesiada, o comportamento de uma ninfeta é esse mesmo! Parabéns! Nádia Rosa de Castilho, São Francisco do Sul-SC – jul2006

18- O primeiro conto q li foi sobre a Lolita… sorriso… fiquei um pouco incomodada, sabe aquela coisa hipócrita de achar a menina mto nova, mas no fundo sentindo maior tesão pela coisa??? Pois é, lembrei também q sempre tive uma queda, não, um TOMBO, por homens assim 15, 20 anos mais velhos (e hj isto me é complicado… rsss). Ilde Nascimento, São Luís-MA – abr2009

19- E-S-P-E-T-A-C-U-L-A-R! sensacional!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Literatura pura, com romance, erotismo e poesia. Camila Briganti, São Paulo-SP – mai2011

 


Lei antifumo, eu te amo

07/08/2009

Ricardo Kelmer 2009

Na verdade os fumantes, com sua deselegância, acabaram criando uma severa lei contra eles próprios. Não deixa de ser irônico

Fumo-02Jurei a mim mesmo que no primeiro minuto do dia 7 de agosto de 2009 eu publicaria uma crônica sobre uma das leis mais gritantemente óbvias que podem existir. Promessa cumprida.

A lei número 13.541/09, sancionada pelo governador José Serra, proíbe a partir de 07.08.09, em todo o Estado de São Paulo, fumar em locais fechados de uso coletivo, públicos ou privados. A fiscalização, que ficará a cargo dos agentes sanitários, não será feita sobre os fumantes mas sobre os estabelecimentos, que, caso não mantenham o ambiente totalmente livre de tabaco, serão multados e poderão ser fechados.

Várias experiências em outros países inspiraram a lei paulista e elas mostram que a sociedade lucra com a medida. Os donos de bares, boates e restaurantes estão naturalmente apreensivos com a possível queda de faturamento e ela certamente ocorrerá mas será pequena e por pouco tempo, o que desmentirá os terroristas da fumaça, que pregam o risco de demissões em massa.

A classe dos fumantes se adaptará à lei, saindo pra fumar, passando a fumar menos ou até mesmo aproveitando o embalo pra largar o vício. Os funcionários não mais serão obrigados a trabalhar respirando o ar poluído dos estabelecimentos. E os estabelecimentos poderão ter problemas com fumantes fissurados mas isso fará parte das raras exceções pois nem esses desejarão que seja fechado o lugar que frequentam.

Inegavelmente, a turma dos não-fumantes tá muito feliz: a lei lhes soa como uma espécie de justiça tardia. Assim como fumar é uma opção, não fumar deveria também ser. Mas infelizmente nunca foi pois os não-fumantes sempre foram obrigados a fumar por causa de fumantes que acham que seu vício deve afetar não só a eles mas também a quem estiver por perto, o que, convenhamos, é um comportamento no mínimo deselegante, pra não dizer estúpido. Na verdade os fumantes, com sua deselegância, acabaram criando uma severa lei contra eles próprios. Não deixa de ser irônico.

Tenho ouvido queixas curiosas dos fumantes em relação à lei. Um amigo vegetariano, justificando sua discordância, me disse que a presença de pessoas comendo carne o incomodava bastante mas que isso não justificaria uma lei que as proibisse de comer carne. Uma outra, inconformadíssima, lembrou que os fumantes não podem pagar por terem sido ludibriados pela indústria do fumo, que os enganou ao vender cigarro com clima de status e glamur. Ainda teve outra que jogou uma praga: o governador terá de pagar o tratamento dos que, no inverno, vão se resfriar por terem de sair à rua pra fumar. São queixas que, de tão descabidas, nem merecem resposta.

A indústria tabagista? É claro que odeia a lei e já tentou derrubá-la várias vezes, patrocinando ações movidas por associações de bares, restaurantes e hotéis. Felizmente a lei continua de pé e pelo andar da fumaça, cada vez mais países a adotarão, fortalecendo a tendência mundial de se investir em qualidade de vida ainda que isso signifique contrariar fortes interesses comerciais.

Recordo agora, particularmente falando, de que, por conta dos ambientes poluídos de cigarro, precisei abandonar meus bares preferidos. Agora poderei voltar a eles, ô maravilha, e beber com os amigos sem o incômodo dos olhos irritados, da tontura e da dor de cabeça que a fumaça me traz. Assim como eu, muita gente se sentirá mais à vontade pra sair e isso trará novos clientes à noite da cidade. E todo mundo ficará aliviado por não ter mais de chegar em casa com pele, roupa e cabelo fedendo a cigarro.

Decerto nem todo não-fumante sofre como eu por causa do cigarro alheio. Eu sou desses que precisa beber pra anestesiar olfato e paladar e, assim, poder beijar com prazer uma mulher que fuma. Outro dia o suor da moça fedia tanto a nicotina, mas tanto, que bati o recorde mundial de sexo sem respirar. O que a gente não faz… Mas como eu dizia, nem todo não-fumante sofre como eu – mas todos eles a partir de agora não sofrerão mais os males do fumo passivo, o que lhes trará mais saúde, com exceção, é claro, dos que vivem com fumantes pois a lei não se aplica ao ambiente particular das residências. Bem, cada um sabe onde o pulmão lhe aperta.

Em breve as novas gerações comentarão com assombro de um tempo em que as pessoas discutiam a obviedade da proibição de se fumar em ambientes públicos. Tempo estranho. Que já vai tarde.

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Ricardo Kelmer – blogdokelmer.wordpress.com

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LeiAntiFumo-09Dúvidas sobre a lei antifumo paulista?

Visite o site Lei Antifumo, do governo de SP

Denuncie estabelecimentos que descumprem a lei.
Ou ligue
0800-771.3541

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Saiba mais:

> Lei contra o tabagismo no mundo (ago2009)
> Lei antifumo tem 88% de aprovação em SP (Folha OnLine, 16.08.2009)
> Lei antifumo em outras cidades brasileiras (UOL, 19.08.09)

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ENQUETE

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Essa piscina dá onda

29/07/2009

Ricardo Kelmer 2009CartumMaconha-01

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Malíngua e suas maledicências… Agora ela anda dizendo poraí que Michael Phelps não é mais aquele imbatível nadador depois que parou de fumar maconha.

Bem, se a queda de rendimento do Michael tem a ver com a falta de maconha, isso eu não sei. Nem sei também se maconha melhora rendimento de nadador. Mas uma coisa é fato: a dona da cantina do centro de treinamento anda meio borocoxô. Diz que o faturamento baixou pra caramba. Também, pudera. Imagina a larica que dava num galalau daquele tamanho depois de fumar um e nadar dez mil metros…

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Ricardo Kelmer – blogdokelmer.wordpress.com

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ParceiroJuniorLopes2009-01a> A ilustração é do Junior Lopes, um cartunista que quando era pequeno caiu dentro de um tonel de tacacá e ficou eternamente viajandão. Sacaqui o trabalho do maluco:
juniorlopesillustrator.blogspot.com


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Observatório 08.03.09

08/03/2009

Ricardo Kelmer 2009

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O QUE A PAIXÃO NÃO FAZ

danielamercury,camillepaglia01Que grande chance de ficar calada perdeu a escritora feminista estadunidense Camille Paglia. Numa recente entrevista pra revista Veja, Camille revelou estar desapontada com a música pop e especialmente com Madonna. Até aí tudo bem. O negócio pegou quando Camille passou a descarregar um caminhão de confetes sobre a cantora Daniela Mercury:

“Ela é a Madonna brasileira. Faz música pop mas possui outra dimensão incrível que Madonna não tem: um grande conhecimento sobre folclore, sobre os grupos étnicos brasileiros e sobre a história da Bahia”.

Grande conhecimento sobre folclore e grupos étnicos? A Daniela Mercury? Putz… Será que precisou vir uma intelectual lá dos Estados Unidos nos mostrar, a nós ignorantes brasileiros, quem realmente é Daniela Mercury?

Não, claro que não. Mas vamos relevar, por favor. Camille se apaixonou pelo tempero da baiana e, você sabe, a paixão nos faz ver coisas que não existem. Não sei se Daniela retribuiu os confetes da gringa empolgada mas uma coisa eu sei: é bom ela fazer urgentemente um intensivão sobre etnografia e folclore brasileiro antes que algum repórter mais curioso invente de querer comprovar a tese de Camille.

Depois dessa o precedente tá aberto pro Noam Chonski publicar um ensaio apaixonado sobre a Tati Quebra-Barraco. É, dona Orestina, é o fim do mundo.

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A DISCUSSÃO TÁ ACESA

cacomaconha2A revista Época, edição 561, de 16fev2009, teve como matéria de capa a reportagem Maconha – Por que é preciso debater a legalização do uso da droga. A matéria, assinada por Ruth de Aquino, que é diretora da sucursal da revista no Rio de Janeiro, tem como imediata inspiração o atual movimento de um grupo de pessoas que defende a legalização do consumo pessoal de maconha.

Até aí nada demais. A maconha sempre teve seus defensores, principalmente entre artistas, estudantes e hippies. A novidade é que o tal grupo que inspirou a matéria é formado por políticos, intelectuais e especialistas de vários países, entre eles ex-presidentes como Fernando Henrique Cardoso, do Brasil, Cesar Gaviria, da Colômbia, e Ernesto Zedillo, do México. Pra eles, a sociedade tem mais a perder que ganhar com a proibição do consumo da erva. Ou seja: a bandeira da legalização agora é empunhada por gente chique de gravata, diploma e respeito internacional. A maconha agora deve estar se sentindo a rainha da bocada, ops, da cocada.

Mais cedo ou mais tarde isso teria mesmo que acontecer. Na verdade até que demorou muito pois é indiscutível que falhou estrondosamente a atual política de repressão dos governos em relação à questão da droga. Tudo o que se conseguiu foram bilhões de dinheiro gastos à toa, milhões de mortes e o fortalecimento do crime organizado. A tal guerra às drogas é uma guerra perdida desde o início pelo simples fato de que é impossível vencer algo que é natural à espécie humana: o anseio por estados especiais de consciência.

Sejamos realistas: as pessoas DESEJAM alterar o funcionamento cotidiano da mente, seja com álcool, nicotina, THC, cocaína, ecstasy, LSD, lança-perfume ou remédios. Elas querem, sempre quiseram e continuarão querendo usar drogas, sejam legais ou ilegais. E elas usarão, nem que precisem se envolver com o tráfico e arriscar serem presas.

Diante disso, a atitude mais sensata da sociedade seria trocar a política de guerra às drogas pela política de redução de danos, onde admite-se que os consumidores sempre existirão e que, assim sendo, o melhor não é prendê-los mas ajudá-los a lidar com a droga da melhor forma possível. Tentar proibir as pessoas de usarem drogas funciona tanto quanto tentar acabar com a aids proibindo o sexo.

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Ricardo Kelmer – blogdokelmer.wordpress.com

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>> Mais sobre este tema: Rio Droga de Janeiro – Série de 3 artigos sobre a questão da legalização das drogas

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Viajando com Marsicano

27/12/2008

Ricardo Kelmer 2008

Gostei do cara: artista genial, visionário lisérgico, maluco da paz

enc2007albertomarsicano001.
Meu primeiro contato com Alberto Marsicano foi pelo livro Jim Morrison por Ele Mesmo, que li no começo dos anos 90. Marsicano foi o organizador da obra, que integra uma coleção da Martin Claret sobre ídolos do rock.

Alguns anos depois dou de cara com o cara em Campina Grande, no Encontro da Nova Consciência, um festival multicultural mucholoco que rola lá durante o Carnaval desde 1992. Marsicano foi um dos convidados e tocou sua cítara, encantando a plateia do evento. Gostei do cara: artista genial, visionário lisérgico, maluco da paz. A partir daí passamos a nos encontrar lá, renovando anualmente a celebração da amizade, da vida e da poesia, eu, ele e outro poeta-músico maluco, o jornalista André de Sena. Longos papos sobre Rimbaud, Doors, Blake, Baudelaire, rock, drogas, deusas e diabas… E Marsicano sempre surpreendendo, tocando cítara até com os roqueiros do evento, com os forrozeiros, os emboladores…

Marsicano formou-se em Filosofia pela USP e é um grande conhecedor e tradutor de poesia inglesa. Morou em Londres, onde estudou cítara com o maestro indiano Ravi Shankar. Na Índia, graduou-se em Música Clássica pela Benares Hindu University da Índia e hoje é considerado o maior citarista do Brasil. Seu disco Sitar Hendrix, que foi indicado ao Grammy 2009, é uma releitura de Jimi Hendrix sobre a cítara, misturando rock, blues e baião sensacional! Pra quem não sabe, Hendrix era aluno de cítara (confira a faixa Cherokee Mist de seu disco Axis Bold as Love) e tinha um projeto de gravar um disco tocando o instrumento. Marsicano realizou o sonho do guitarrista. Valeu, cumpade!

Quando escuto esse disco, a imagem de Marsicano aparece no holograma esfumaçado da minha memória: ele no palco, sentado no chão, abraçado à sua cítara, os longos cabelos loiros, o corpo sacudindo com a música, a expressão de êxtase… Adoraria saber o que ele sente nesses momentos em que viaja por sua música louca, por onde vai sua alma andarilha na carona das melodias estranhas e belas que borbulham de seu instrumento. Mas isso só ele sabe. A mim, me compete apenas escutar. E fazer minha própria viagem, claro.

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Ricardo Kelmer 2008 – blogdokelmer.com

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> Para baixar o disco Sitar Hendrix (zip, 68 mb)

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São Paulo, 19.08.13 – O domingo de São Paulo nublou para se despedir de Alberto Marsicano. E eu aqui continuo nublado, chorando a partida do meu amigo amado. Obrigado, Marsica, por termos caminhado juntos, pela sua música, pelas cachaças, pelos momentos incríveis. Vou sentir tantas saudades suas, cara…
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RK201202Mathew,Marsicano-01DESPEDIDA MARSICÂNICA

Pra mim, não é fácil usar este espaço pra falar da morte de Alberto Marsicano, meu amigo querido que partiu no domingo 18.08.13. Mas vai me servir pra dividir e aliviar a dor.

Marsicano era a arte em divino estado de possessão demoníaca. A música e a literatura brilhavam nele a todo momento como explosões psicodélicas de insanas estrelas multicoloridas. Como aguentar um cara possuído vinte e quatro horas por dia pelos demônios criativos da arte? Nem todo mundo aguentava. Mas eu o amava assim mesmo como ele era, tresloucado, verborrágico, viajandão, inconformado, aquele infalível figurino em cor branca, e o humor, ah, o humor marsicânico, aquelas tiradas impagáveis que ele de repente sacava do bolso de sua mente sempre em ebulição e fazia a alegria de quem estivesse em volta.

Nunca mais isso. Nunca mais Marsicano de repente surgindo na Augusta que nem uma entidade cósmica a reclamar do preço da cerveja. Nunca mais vê-lo em êxtase a voar no tapete mágico de sua cítara. Nunca mais suas piadas sobre eu ser afilhado de Padre Cícero e protegido de Virgulino Lampião. Nunca mais aquele caminhar balançante, a gargalhada contagiosa, o olhar infantil de quem sempre fora velho.

Tchau, amigo. Escrevo essas coisas ainda chorando mas logo voltarei a rir. Como eu e você sempre rimos, como sempre ri muito de você. O riso que se fez música, é isso que você é. O som-riso marsicânico.

Ricardo Kelmer, 20.08.13

(Foto: com Marsicano e Mathew, num boteco de Campina Grande-PB, durante o Encontro da Nova Consciência de 2012)

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O VOO ETERNO DO PÁSSARO PSICODÉLICO
Ricardo Kelmer 2014
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Feito um satélite desorbitado
Nos céus da nova consciência
Lá se vai o pássaro psicodélico
Com seu bêbado voar poético
E sua alva cabeleira

Mas na cantiga certeira da cítara alucinante
A vida é um sonho andante que não segue planos…

Ouçam! Estão ouvindo? Vocês viram?
O pássaro psicodélico passou por perto
Ouçam! Nas asas do transe o som se chama Alberto

E sobre as mentes da plateia consciente
Seu voo sagrado flutua eternamente
E a música estremece de prazer insano
O gozo do voo se chama Alberto Marsicano

(Poema criado no camarim, antes do número em homenagem a Alberto Marsican0, com a banda Cabruêra e os músicos Waldemar Falcão, Baixinho do Pandeiro e Vitor Harres, em Campina Grande, fev2014, no 23o Encontro da Nova Consciência. Vídeo abaixo, feito por Antonio Carlos Harres, o Bola.)

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Cítara, tabla e pandeiro
Encontro da Nova Consciência, 2013

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Alberto Marsicano no programa Provocações (2012)

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01- Dor profunda, Ricardo Kelmer, ficamos todos órfãos. Já falei com André, e ele está desolado, como todos. Eu fiquei literalmente tonto quando soube, sem chão, atônito. Me encontrarei com André na sexta, faremos isso, sim, e sintonizaremos com vc, meu querido, assim como manteremos em mente esse querido e único Profeta que tivemos a honra de conhecer – e digo, sem medo de errar: conhecemos o Marsicano “de camarote”, de perto, com um acesso privilegiadíssimo, como poucos. Forte abraço, meu brother Kelmer. Rógeres Bessoni, Recife-PE – nov2013

02- Lindo texto, Ricardo! À altura do homenageado. Bração saudoso. Waldemar Falcão, Rio de Janeiro-RJ – nov2013

03- Puxa, Ricardo, eu aqui, sem saber o que dizer e você deitando memória e carinho com o seu melhor lado, louvando o que vai e confortando quem fica. Valeu mesmo, querido amigo. Pedro Camargo, Rio de Janeiro-RJ – nov2013

04- Há pessoas que passam na vida e deixam um rasto de pura luz. Alberto Marsicano era um desses. Tento encarar a morte como uma passagem natural, e há muito não choro quando alguém querido vai pro lado de lá. Mas hoje, aqui em Paris, não deu pra segurar. Um beijo querido Marsicano. Levou a cítara com você? Luis Pellegrini, São Paulo-SP – nov2013

05- Hoje fez um lindo amanhecer que me surpreendeu diante do frio. Um lindo ceu azul com nuvens redondinhas e cheinhas brincando no ceu e uma cor rosa salmon liiinndaaaa de se ver..Tinha tanta alegria no ceu que imaginei Marcinano Chegando e sendo recepcionado-tocando a sua citara, claro….Faz parte do Show,…Serve apenas pare lembrar que fisica ou virtualmente devemos ser verdadeiros, apaixonantes e intensos no aqui agora e amorosos e gentis nos relacionamentos. Porque depois não existe! Paz e Luz! Anosha Prema, São Paulo-SP – nov2013

06- fiquei de cara, muito triste perder uma pessoa tao proxima. Felipe Maia, São Paulo-SP – nov2013


O último homem do mundo

24/12/2008

24dez2008

O Ultimo Homem do Mundo CAPA 2a.

O sonho de Agenor é que todas as mulheres o desejem. Para isso, ele está disposto a fazer um pacto com o diabo. Mas há um velho ditado que diz: cuidado com o que deseja, pois você pode conseguir…

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Este conto integra os livros Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha e o livreto O Último Homem do Mundo.

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O ÚLTIMO HOMEM DO MUNDO

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Agenor cumpriu todo o ritual, direitinho. Colhera o fumo num dia seis, e seis dias depois o debulhara, fumo plantado no sítio Inferninho, na sexta noite após a sexta lua do ano. Não contara nada a ninguém. Tudo dentro dos conformes do ritual.

Eram onze e meia da noite. Ali, no alto do morro, o céu parecia mais próximo e a pouca lua permitia às estrelas brilharem à vontade. Agenor sentia medo, mas estava decidido. Apenas meia hora o separava do momento mais importante de sua vida.

Tirou o cigarro da bolsa e acendeu. O nervosismo fez o cigarro cair duas vezes. Deveria fumá-lo sozinho, era o que pregava o ritual. Agenor fumou e, aos poucos, foi se acalmando. Tinha de estar tranquilo para dizer as palavras certas, não podia errar. Subiu numa pedra mais alta e lá encostou-se. E relaxou. Era realmente um excelente fumo, diferente de qualquer um que já houvesse experimentado. Diziam que, de tão especial, não estragava nunca.

Agora, as estrelas pareciam mais brilhantes, mais próximas. Lá embaixo, dava para ver as luzes da cidade de Jubá, a torre da matriz, o estádio. Quase dava para ver a casa onde morava e o restaurante onde trabalhava Dorinha…

Então, escutou um ruído vindo do mato. Olhou para o relógio. Onze e quarenta e cinco. Não, não devia ser ele ainda, pensou. Talvez algum bicho. Deu a última tragada e apagou o cigarro. Começava a fazer frio. Agenor tirou da bolsa um cobertor e se cobriu inteiro, encolhido à pedra.

Durante meses, estudara seu pedido como quem retoca uma pintura, ajeitando aqui e ali os detalhes das miudezas semânticas. Segundo o ritual do Encontro, o pedido tinha de ser formulado corretamente, as palavras exatas, o sentido perfeito. Não podia haver qualquer erro. Os diabos eram espertos, e se as palavras dessem margem a qualquer outra interpretação, eles não perdoavam a falha.

Agenor olhou o relógio: meia-noite. O diabo chegaria a qualquer momento. Meia-noite e dez. Talvez o relógio estivesse adiantado, pensou. Meia-noite e vinte. Teria falhado em algum ponto do ritual?

À meia-noite e meia, quando já começava a cochilar, Agenor percebeu que alguém chegava, vindo de dentro do mato, caminhando devagar entre as folhagens. Sentiu medo. Pensou em desistir daquela história de pacto… mas as pernas não obedeceram e ele continuou ali em pé, esperando.

Quem chegou foi um velhinho de barbicha branca, de sobretudo e botas pretas, chapéu e bengala. Agenor estranhou. Não se parecia com um diabo.

– Boa noite – o velho o cumprimentou, erguendo o braço e tocando seu chapéu. – Desculpe a demora, sexta-feira sempre tem muito serviço. Você é o Agenor, não é? Sou Soloniel, o mais astuto dos diabos. Certamente, já ouviu falar muito de mim.

– Ahn… não… – Agenor olhava para a figura à sua frente. Aquilo era um diabo? Parecia mais com aqueles velhos aposentados que jogavam dominó na praça.

– Devia ler mais, meu jovem – disse o diabo, apontando-lhe um dedo acusador. – É nisso que dá ficar vendo esses filmes idiotas da tevê. Deixa de saber quem foram os grandes nomes da História.

Agenor concordava com a cabeça, sem compreender aquela espécie de sermão. Aquilo era mesmo um diabo?

– Ainda duvidando de mim?

Ele lia pensamentos! – assustou-se Agenor.

– Desculpe… é que… eu…

– Já sei, já sei – o diabo o interrompeu, dando com a mão, resignado. – Esperava um diabo mais moço. A culpa é da moda, que agora exige diabos jovens e bonitões. Por isso que eles querem me aposentar. Nem um diabo velho é mais respeitado hoje em dia. O mundo está perdido.

– Desculpe, eu não quis…

– Pois saiba, rapaz, que toda a juventude deles não serve nem para lustrar as botas da experiência de Soloniel, estas aqui!

Agenor olhou para as botas. Eram bonitas e brilhosas. Talvez um pouco grandes.

– Eu emagreci e elas ficaram um pouco folgadas. Mas não comprarei outras. Sabe por quê? Porque estas botas estiveram em muitos lugares e muitos tempos, tantos que os números já não contam – Ele batia nas botas com a ponta da bengala, tum-tum-tum. – Estas botas já pisaram em cavernas, tendas, palácios… Em castelos, campos de batalha, escritórios, alcovas mal iluminadas… Presenciaram acontecimentos cruciais da história humana. Não só presenciaram como também ajudaram a determiná-los. Entende?

– Sim, sim… – balbuciou Agenor.

– Com estas botas, realizei vontades ardentes e inconfessáveis. Elas são testemunhas das confissões dos desejos mais profundos da humanidade. Tem um pano aí?

– Um pano? Este serve?

Agenor estendeu-lhe o cobertor. O diabo agachou-se e limpou o bico da bota com o cobertor.

– Obrigado. Vamos lá, qual é mesmo o seu pedido?

Agenor respirou fundo.

– Bem, eu… O senhor pode mesmo realizar qualquer desejo?

O diabo deu um risinho de impaciência.

– Diga logo o que quer, meu jovem. O diabo Soloniel ainda tem quatro encontros esta noite.

– Eu… eu…

De repente, Agenor sentiu um medo imenso. Valia mesmo a pena um pacto com o demo?

– Volte para a sua mamãe, jovem – disse o diabo, virando-se e afastando-se. – Pacto com o diabo não é para gente fraca como você.

– Ei, espere! – gritou Agenor, nervoso. – Vou fazer o meu pedido. Agora.

O diabo parou e voltou-se. E aguardou, apoiado em sua bengala.

– Eu…

– Sim?

– Eu quero que todas as mulheres…

– Estou ouvindo.

– Eu quero que todas as mulheres do mundo me desejem.

Pronto, dissera. Estava feito. E uma vez formulado, o pedido não podia mais ser mudado, ele sabia.

Agenor aguardava, a respiração suspensa, as palavras ecoando em seus ouvidos: todas as mulheres… do mundo… me desejem… Naquele instante, pela primeira vez, seu desejo lhe pareceu ridículo e despropositado. Era como se as palavras, enfim pronunciadas, concretizadas solenes no ar, tivessem o poder de lhe abrir os olhos.

– Hummm… Bom pedido, bom pedido – disse o diabo, balançando a cabeça e coçando a barbicha branca. – Fazia tempo que eu não topava com um desse. Deixe-me ver…

O Ultimo Homem do Mundo CAPA 2aAgenor aguardava, o coração batendo forte. Teria sido um pedido difícil demais? Zombaria dele? Estaria estudando suas palavras, procurando brechas para poder enganá-lo?

– Fazer todas as mulheres do mundo desejarem um cara feio, pobre e desengonçado como você não é tarefa fácil. Por outro lado, é o tipo de coisa que pode consagrar um diabo pela eternidade inteira. Sabe o que significa a eternidade inteira, meu jovem?

A eternidade?, pensou Agenor. Sim, claro. Quer dizer, não, não sabia.

O diabo continuava coçando a barbicha, apoiado na bengala, olhando para as estrelas… Eram segundos que para Agenor pareciam séculos.

– Teve muita sorte de pegar um profissional como Soloniel, meu jovem. O que você pediu requer a experiência que só eu possuo, acredite. Pois muito bem. Dê-me o documento.

Agenor puxou do bolso uma folha de papel dobrada. Nela estavam a frase exata de seu pedido, data, local e a assinatura.

– Perfeito – falou o diabo, guardando o papel no bolso do sobretudo. – Então, estamos combinados. Toque aqui.

Apertaram-se as mãos.

– Na hora certa virei buscar o pagamento pelo serviço. Adeus.

Agenor viu o diabo sumir mato adentro. Então, suspirou. Fizera o pacto. O diabo realizaria seu desejo, era isso que importava. Ele conseguira. Não era um fraco.

Quanto à sua alma, pensou, já descendo o morro a caminho da cidade, perdê-la seria um preço pequeno diante do grandioso futuro que o aguardava.

*     *     *

O dia seguinte foi normal como todos os outros dias do carteiro Agenor. Envelopes, encomendas, campainhas que não funcionavam, cães que detestavam carteiros. Entregas e entregas sob o sol da manhã e da tarde. Nada demais. Mas, nesse dia, pela primeira vez, o feio, tímido e desengonçado Agenor olhou as mulheres com certa segurança. Na lanchonete, olhou para a moça que servia e lhe piscou um olho. Mas a moça não correspondeu e virou o rosto. Ele sorriu tranquilo: Deixe estar…

O dia terminou sem novidades. Após o jantar, pediu bênção à mãe, dona Fafá, e se recolheu. Antes, porém, olhou-se no espelho. Nada mudara em seu rosto, em seu corpo, ele continuava igual. Mas era apenas o primeiro dia, explicou a si mesmo. Estava esperançoso.

No segundo dia, as coisas também não foram diferentes. A mesma caminhada diária, a mesma rotina, tudo igual. E as mulheres de Jubá também. Nenhuma lhe pareceu mais simpática. Continuavam todas em seu mundo distante, princesas inalcançáveis de um reino a ele não permitido. Nem Dorinha, pela qual era secretamente apaixonado, mostrou-se mais acessível. Uma pena, pois Dorinha era bonita, prendada, trabalhadeira. Poderia ser sua mulher…

O terceiro dia também não trouxe novidades. O quarto dia também. Passou-se uma semana e nada aconteceu. Agenor olhava-se ao espelho e via, decepcionado, que continuava feio e desajeitado. E a vida também era a mesma, ele suando de endereço em endereço, e as mulheres limpas e perfumadas a ignorá-lo.

A segunda semana também correu igual, assim como a terceira. Um mês e nada, nenhuma mudança em sua vida.

Naquela noite, Agenor virou-se na cama e sentiu-se imensamente triste por seu desejo não ter sido realizado. O diabo bem que avisara que era um pedido difícil.

Talvez houvesse errado na formulação do pedido, será? Talvez não houvesse escolhido as palavras exatas, isso era comum nas histórias dos pactos com o demo. Mas onde errara? De todas as que pensara, aquela era a melhor frase. Não podia dizer “Quero todas as mulheres”, pois o diabo poderia, simplesmente, deixá-lo continuar querendo. Listar as mulheres que queria que o desejassem também não era uma boa ideia, pois terminaria deixando alguma de fora e, além do mais, está sempre nascendo mulher, né?

“Quero que todas as mulheres do mundo me desejem” era a melhor maneira de pedir. Não importariam sua pobreza, sua feiura e sua falta de jeito se elas o desejassem. E sendo “todas as mulheres do mundo” não haveria risco de deixar nenhuma de fora, entrariam todas, da mais feia à mais linda, da mais pobre às milionárias, da mais insignificante à mais famosa e cobiçada. Todas o desejariam e a ele caberia apenas escolher quem delas teria o privilégio de ficar com ele.

Súbito, lembrou-se de um detalhe, algo que havia lhe escapado durante todo aquele tempo: sua mãe. Dona Fafá, viúva, que tão bem cuidava do filho único. Sua mãe era uma mulher e, sendo assim, também o desejaria. E agora?

Agenor percebia, sobressaltado, que a formulação não fora perfeita. O que fazer com o desejo de sua mãe? Ou ela, por ser mãe, estaria automaticamente excluída das possibilidades? O diabo Soloniel seria razoável, entenderia a questão? E se seu pai fosse vivo, o que não acharia de uma marmota dessa?

Agenor puxou o lençol e se cobriu, como se assim pudesse se esconder daqueles tantos pensamentos. Demorou uma eternidade para pegar no sono.

*     *     *

Primeiro, foi o Chico da Magnólia, velho amigo. Era domingo e tomavam uma cachacinha à beira da lagoa quando Chico, já bêbado, confidenciou a Agenor, sem jeito, que estava acontecendo com ele uma coisa terrível. E a muito custo foi que conseguiu dizer que ficara broxa, já não conseguia fazer nada com as mulheres, o dito cujo não funcionava mais, uma desgraça. Na noite anterior, por sinal, fora ter com as raparigas lá do Siribó, elas que sabiam como ninguém alegrar o cidadão. Mas que nada, não teve jeito que desse jeito. Tentou com a Paizinha, com a Chiquinha Piassaba e a Neide Peixeirão. Nenhuma delas conseguiu levantar-lhe o moral um centímetro que fosse. Tentou até umas pilulazinhas que um primo trouxera da cidade grande, diziam que levantava até bigorna. Mas nem elas deram jeito. No desespero, chamou a Paloma, a espanhola dos peitões, a mais cara daquelas bandas do sertão, disposto a gastar cinquenta contos, o salário da semana inteira. Pois nem a Paloma, veja você, nem ela.

Agenor consolou o amigo, dizendo que procurasse um médico, não devia ser coisa muito séria. Mas Chico respondeu que já havia ido ao médico e este, sem detectar nada de anormal, falou que algum problema devia estar preocupando-o. Mas não tinha problema algum, explicou Chico, a não ser esse, esse era o problema, o pinto não queria mais subir e pronto. Uma vergonha que o cidadão trabalhador e pagador dos seus impostos não merecia passar.

Agenor, sensibilizado, encheu um copo e tomou. Que uma desgraceira daquela nunca se abatesse sobre ele, jamais.

Depois, foi a vez do seo Ribamar da bodega, que se chegou para perguntar se ele, Agenor, não conhecia um pai de santo bom, bom mesmo, que entendesse de mandinga de mulher malamada, pois ele tinha certeza: foi mulher, sim, que lhe jogara aquele trabalho desgostoso, para descompensar sua rola, foi mulher sim.

Agenor ficou impressionado. Seo Ribamar era homem forte, de saúde, viúvo e namorador. Difícil crer que tão cedo deixasse de dar nos couros. Sim, ele sabia de um pai de santo muito bom, lá para as bandas do Paredão, fosse lá que ele com certeza anularia aquele encosto de mulher ruim. Seo Ribamar agradeceu e saiu. Agenor viu o homem se afastar e bateu três vezes na madeira.

Então, começaram a chegar as notícias. O atendente da farmácia, rapaz novo, não tinha vinte anos, também andava com o mesmo problema, como podia? E o cabo Nonato, famoso pela ruma de namorada que tinha, também havia ido ao Paredão se consultar com o pai de santo para se curar de uma desgraceira repentina que o deixara inutilizado para as artes da agarração.

O Ultimo Homem do Mundo CAPA 2aDe um dia para o outro, boa parte dos homens de Jubá estava broxa e o assunto era o preferido nas rodas de conversa. As beatas nas janelas invocavam Esaú aos Filisteus, capítulo 2, versículo 14: “E o peso da descrença pesará sobre a virilidade dos ímpios, e estes serão marcados pelo Anjo com o castigo de não poderem mais dar filhos às suas mulheres e a Terra os amaldiçoará.” Benza Deus.

Autoridades evitavam se pronunciar sobre o assunto porque o fato provocava risinhos e constrangimentos. O que estava acontecendo, afinal? Ninguém possuía explicação convincente para o fato e os médicos da cidade se debatiam entre teorias diversas, sem chegar a conclusão alguma.

A cada notícia, Agenor se assustava e corria para o banheiro para se investigar, munido de algum recorte de revista. Não, com ele não, felizmente. Com ele tudo corria normalmente, conforme a natureza estabelecera. E com as mulheres, tudo normal também: elas continuavam distantes como sempre.

Alguns forasteiros, atraídos pela notícia de que as mulheres de Jubá estavam que nem lagartixa, subindo pelas paredes, decidiram descer por lá e averiguar se a história tinha mesmo cabimento. Resultado: os hotéis da cidade agora estavam lotados. Se a broxação geral representava um golpe no orgulho dos machos jubaenses, a receita do turismo fechava os olhos dos donos de hotéis.

Os homens sérios de Jubá não gostaram nem um pouco dessas novidades, lógico, e exigiram posição firme das autoridades. Uma equipe médica da capital foi designada para estudar a estranha epidemia e, após muitos exames, constatou que, com exceção de uns gatos pingados, toda a população masculina da cidade fora afetada. Uma tragédia.

Apesar de todos os esforços, a equipe deixou a cidade sem qualquer explicação para o fenômeno. Bem ao contrário de outras coisas na cidade, o mistério continuava de pé.

Receitas, simpatias, promessas e orações, tudo foi usado contra a desgraceira. A Ladainha Milagrosa dos Sete Pingos, ou Ladainha da Bengala Poderosa, como também é conhecida, que diz que é tiro-e-queda, reapareceu por esses dias com força total, circulando pelas banquinhas da feira e até mesmo em farmácia, veja o desmantelo da situação. Ela dizia que o cidadão, pouco antes de começar a peleja do amor, devia acender uma vela branca nunca antes usada e, ajoelhado na direção de Juazeiro do Norte, deixar cair sete pingos sobre o dito cujo desmilinguido enquanto rezava:

Com minha fé e humildade, eu trago aberto o coração
E rogo pela intercessão de quem escuta o meu pedir
Que me ajude nessa prece para expulsar o malefício
Acabando o meu suplício nos sete pingos a cair

Minha bengala poderosa, acuda logo sem demora
Que é urgente essa hora de dor, espanto e aflição
Minha bengala poderosa, cancele a lei da gravidade
Para que suma a maldade e suba logo o cacetão

O estojinho contendo vela e folheto vendeu que nem bolacha. Só não ensinava para que lado ficava exatamente a cidade de Juazeiro, indesculpável falha que, certamente, deve ter inviabilizado muita reza, pois ninguém viu melhora alguma na situação.

Um jornalista da capital, que acompanhava o trabalho dos médicos, levou as informações para o seu jornal, e pronto: no outro dia, os leitores estavam cientes da desgraça da pequena Jubá. No mesmo dia, chegaram repórteres de rádio, jornal e tevê, e a cidade se transformou em notícia obrigatória em todo o estado. Até um laboratório farmacêutico, que produzia as tais pilulazinhas milagrosas, andou distribuindo amostras grátis, farejando na desgraceira alheia uma boa oportunidade de negócios. Mas deu com os burros nágua: para os homens de Jubá, as pilulazinhas e nada eram a mesma coisa.

Foi então que começaram a chegar notícias de outras localidades próximas: nelas também estava ocorrendo a mesma coisa! Tudo o que acontecera em Jubá estava nelas se repetindo, o mesmíssimo drama. E poucos dias depois, soube-se dos primeiros casos na capital e fora do estado ‒ era uma epidemia, desconhecida e assustadora. Logo depois, cidades do país inteiro exibiam alarmadas seus casos de impotência. Daí a mais uns dias e o mal já havia alcançado os outros países. A desgraça atingira nível de pandemia.

Cientistas se esforçavam por explicar, políticos exigiam verbas, empresários se mobilizavam, organizações formavam passeatas… O mundo inteiro não falava em outra coisa. Da Europa aos recônditos da África, de Santiago a Vladvostock, os homens, pretos, brancos, índios e amarelos, ricos e pobres, sucumbiam ao mal sem que ninguém entendesse por que diabos aquilo acontecia.

*     *     *

Desde o primeiro caso notificado em Jubá tinham se passado quase seis meses, e as estatísticas mostravam que noventa por cento da população mundial masculina fora afetada pela repentina impotência, e os casos seguiam aumentando, sem poupar nem os adolescentes, coitados, mal entrados no assunto. Podia-se realizar inseminação artificial nas mulheres, é claro, mas isso não resolvia o problema. Muito menos explicava.

Enquanto isso, médicos e terapeutas faturavam alto com o desespero, líderes religiosos engordavam a conta bancária, pomadas e sprays milagrosos surgiam às centenas e os vibradores viraram itens obrigatoríssimos no comércio inteiro, fazendo surgir inclusive um projeto de lei que incluía o vibrador na cesta básica.

Enquanto o mundo vivia seu terrível pesadelo, naquele domingo Agenor acordou sorridente. Após dois sorvetes na lanchonete e três noites de conversa mole na porta de sua casa, Dorinha aceitara seu pedido e agora estavam namorando, ela que já fazia algum tempo comprovava, nas despedidas ao portão, que aquele romance tinha, literalmente, onde se segurar. E, para comemorar o namoro, ela conseguira folga no restaurante e passaram o sábado na lagoa bebendo vermute. No fim, já noite escura, ela o puxou para si e ali mesmo sacramentaram o nheconheco, ele alegríssimo, ela em desesperado ardor, como se havia muito não soubesse como era um homem, coitada. Embora não houvesse muitas estrelas no céu, Dorinha viu uma constelação delas, todas brilhando só para si.

Quando as amigas de Dorinha souberam que ela estava namorando Agenor e andava cantarolando alegre e vistosa, chegaram à mais óbvia das mais óbvias das conclusões. Assim foi que a partir desse dia, Agenor pôde perceber uns olhares mais insinuantes pela rua e por onde quer que fosse.

Belo dia, ao receber a correspondência entregue por Agenor, a moça da butique, de nome Carmela e apelido Botinha, que por sinal era prima da Dorinha, mas, ao contrário da prima, nunca se prestara a saliência na frente do portão, perguntou mui delicadamente a Agenor se por um acaso ele não faria a gentileza de matar uma barata voadora que teimava em não querer deixar o depósito lá atrás, ela que tinha pavor de barata, quanto mais voadora. Agenor, muito solícito, dispôs-se. Quando chegou ao depósito foi que percebeu que era outra a barata. Embora a moça não fosse lá muito bem dotada de atributos físicos, tendo, inclusive, de usar bota ortopédica, daí o apelido, por causa de uma perna maior que a outra, sem falar num braço seco que furou no prego, Agenor foi solidário, ah, foi, sim, e fez com que a danada da barata se aquietasse. E voltou para a rua de ânimo revigorado, nem ligando para os cães que detestavam carteiros.

Mas em cidade pequena as notícias correm que nem fogo morro acima. Dois dias depois, elas foram dar no ouvido de Dorinha que, depois de largar meia dúzia de mãozada na cara da prima Botinha traidora, tratou logo de tomar providências contra o perigo que corria seu patrimônio. O que fez: botou as amigas, todas de altíssima confiança, para acompanhar a trajetória do namorado pelas ruas da cidade, olheiras a bem dizer, uma vez que ela mesma não podia fazê-lo, já que pegava no batente o dia inteiro no restaurante.

Uma semana depois, Agenor já havia sido requisitado para matar duas dezenas de baratas pela cidade, inclusive na casa das tais olheiras, algumas delas crentes, irmãs em Cristo, sim, que Cristo, bom que se diga, não tem nada a ver com certas agonias femininas que costumam dar no fim da tarde, quando o sol desce em Jubá e sopra um ventinho fresco que se intromete por baixo das saias.

Dorinha, de sangue quente por causa da crescente fama do namorado, agarrou-o pelo cangote no meio da praça e deu o ultimato: ou ela ou as baratas, que ela não era mulher de dividir com as outras aquilo que de direito era só dela.

Agenor pensou um pouco. Não era sua intenção magoá-la, Dorinha era mulher boa e ele gostava muito dela. Mas é que as baratas… Bem, elas lhe acenavam com um horizonte bem mais amplo de possibilidades, digamos dessa forma. Andava até pensando em montar uma firmazinha de dedetização, o mercado era promissor.

Ficaria com elas, as baratas. Foi o que respondeu.

O Ultimo Homem do Mundo CAPA 2aQuem estava na praça viu quando o tabefe de Dorinha estalou no pé da orelha do carteiro, tabefe daqueles de ficar zunindo por três dias. Ela virou as costas e saiu, o passo ligeiro, a tromba desse tamanho, deixando Agenor de quatro a recolher as correspondências caídas ao chão.

Na mesma noite, porém, ela haveria de cair em si e se arrepender, tentar reconciliação, haja vista a carência horrorosa de homem na cidade. Melhor dividir o prato que não ter o que comer, coisa mais óbvia, né?

Mas nada feito. Agora era Agenor, ainda com a orelha ardendo, coitado, quem não queria. Dorinha chegara atrasada à obviedade.

No dia seguinte, um conhecido repórter da rádio local, de modos muito delicados, e que fazia reportagem sobre a pandemia, cismou de querer entrevistar algum homem que ainda estivesse com suas funções de macho normais. Perguntando daqui e dali, o repórter soube do carteiro Agenor. Animado com a descoberta, alcançou-o no momento em que, fim de expediente, trabalho terminado, o moço se encaminhava para matar uma barata lá para o lado do açude. Porém, tímido como era, Agenor nem deixou que o repórter lhe explicasse o motivo da entrevista e saiu correndo.

Naquela mesma noite, a reportagem foi ao ar. Não continha a entrevista de Agenor, claro, mas falava dele. E bem.

Dez minutos após terminada a reportagem, já tinha gente em frente à casa do carteiro Agenor, homens e mulheres. Um pouco assustada, Dona Fafá lhes informou que o filho não estava, mas que não demoraria a chegar. Todos resolveram aguardar, enquanto outros chegavam.

Do outro lado da cidade, Agenor pediu que a moça parasse um pouquinho com o vai e vem sobre seu corpo porque ele acabara de escutar seu nome no rádio.

– Preciso ir pra casa – falou, afastando a moça. – Mamãe deve tá preocupada.

– Ah, só mais um pouquinho…

Era a terceira vez que escutava aquela frase naquele dia.

Alguns minutos depois, Agenor dobrou a esquina de sua rua e tomou um susto. Havia um bando de gente em frente à sua casa. Ele se escondeu atrás de uma árvore, com medo. Decidiu entrar pelos fundos.

– Filho, aquilo que saiu no rádio é verdade? – Foi a primeira coisa que a mãe perguntou, ao abrir a porta do quintal para ele entrar.

– Mãe, a senhora viu? Tem uma ruma de gente lá fora.

– Na sala também. O Chico da Magnólia, seu tio Ferreirinha… Suas primas também estão aí. Até o prefeito veio.

– Pode dizer pra todo mundo que eu viajei.

– Mas…

– Vai, mãe. Vou esperar aqui.

‒ Já jantou?

‒ Não tô com fome. Vai, mãe.

Agenor escondeu-se no quartinho dos fundos enquanto dona Fafá voltava à sala.

– Foi um custo, mas foram embora – ela disse, retornando. – Agora me conte direito essa história.

Agenor falou que não sabia o que estava acontecendo. Mas estava muito preocupado com tudo aquilo.

– Então, vá dormir, filho, que é melhor. Estou vendo que você está cansado. Trabalhou muito hoje, né?

Agenor pediu a bênção e foi para o quarto. Mas sono que é bom, não teve, não conseguiu pregar o olho. Sem falar que, perto da meia-noite, uma vizinha conseguiu entrar pela janela e se atracou com ele, quase que não consegue se soltar, a moça pedindo pelo amor que ele tinha a Nossa Senhorinha que também desse uma chinelada em sua barata, que ela andava muito precisada. E, já perto de amanhecer, foi a Jaciara, filha do dono do cartório, que todo mundo desconfiava ser meio destrambelhada do juízo. Pois ela provou que era mesmo: trepou-se no telhado da casa, e ficou lá em cima, peladinha da silva, berrando para toda a cidade ouvir que estava grávida de Agenor. Mentira, claro, Agenor nunca nem tocara na moça, e ela antes nunca nem tinha olhado para ele.

Assustado e exausto pela noite em claro, Agenor decidiu que o melhor era ir embora.

– A gente pode mudar de endereço.

– Não vai adiantar, mãe.

– O mundo lá fora é tão perigoso, filho. Essas mulheres todas se enxerindo pra você…

Agenor olhou para a mãe e sentiu uma pontada de tristeza magoar seu coração. Súbito, percebeu o quanto estava sendo egoísta. Como podia pensar em abandonar sua mãe querida, deixá-la sozinha? Pensava apenas em si mesmo.

Então, se achegou no colo da mãe, que o abraçou forte, abraço sentido, apertado, seu corpo envolvendo o do filho amado. Agenor fechou os olhos e deixou-se levar por aquele abraço gostoso, o mormaço aconchegante dos seios de dona Fafá, que o apertava forte contra si, mais forte, mais forte…

Agenor abriu os olhos. O rosto afundado entre os seios grandes da mãe, quase não conseguia respirar. Um terror repentino se apossou de sua alma. O que estava fazendo?

– Tenho que ir embora, mãe… – balbuciou, levantando. – A senhora me perdoa?

– Eu sabia que um dia você ia partir, filho.

Ela foi ao quarto e voltou com umas notas que tirara do fundo da gaveta.

– Guardei esse dinheirinho pra você. É muito não, mas ajuda. Tome, leve. Vou ligar para minha irmã, em Bocariús. Zulmira vai lhe receber.

Na rodoviária, enquanto Agenor esperava o ônibus, foi surpreendido pela equipe de tevê da capital, que acabara de chegar a Jubá à sua procura. Ele não quis dar entrevista, mas mesmo assim o filmaram entrando no ônibus.

Na estrada, a caminho de Bocariús, foi que atinou: o pacto com o diabo! E ficou pasmo, os olhos arregalados. Tudo aquilo seria o pacto funcionando?, ele se perguntava, a mão sobre o coração agitado. Talvez o diabo estivesse realizando seu desejo, embora por vias que ele jamais pudesse atinar. Todo o tempo pensou que ficaria mais bonito, ou que o diabo lhe forneceria um perfume irresistível… Mas não, não foi nada disso.

Se era realmente o pacto funcionando, então lamentava que os outros homens estivessem pagando tão caro pela sua felicidade. Mas talvez fosse só por um tempo, logo voltariam ao normal. Mas se voltassem ao normal, como ficaria ele?

O ônibus chegou a Bocariús no fim da manhã. Agenor estava faminto, pensava somente num prato de comida. Encostou-se no balcão da lanchonete e pediu arroz, feijão, bife e ovo. Na tevê, passava uma reportagem, mostrando o último homem de Jubá entrando no ônibus, seguindo para… Bocariús.

Todos na lanchonete pararam ao ouvir o nome da cidade. Agenor nem respirava. A garçonete foi a primeira a reconhecê-lo.

O Ultimo Homem do Mundo CAPA 2a– Gente, é ele! O homem de Jubá!

No instante seguinte, estavam todos à sua volta, queriam perguntar coisas, tocá-lo. Os homens imploravam que divulgasse a receita milagrosa, as mulheres o abordavam, eufóricas. Agenor se desvencilhou como pôde e saiu. Mas as pessoas o seguiram. É o gostosão de Jubá!, uma garota gritou da janela do ônibus que passava na rua. Ele vai morar aqui!, gritou a outra. E a terceira completou: E vai casar comigo!!!

Em dois minutos, uma multidão o acompanhava pelas ruas, parecia uma procissão. O comércio fechou para vê-lo passar. Agenor correu e a multidão correu atrás. Finalmente, chegou à casa da irmã de sua mãe, ofegante, a roupa rasgada, um sapato faltando. Tia Zulmira, noventa e cinco quilos de gordura e macheza, abriu rápido a porta e botou para dentro o sobrinho escangalhado. Depois, brandindo a carabina velha, gritou que o primeiro que chegasse perto ia ficar que nem peneira. E atirou para o alto, espalhando a multidão.

Porém, a cidade inteira já sabia quem havia chegado e não o deixaram em paz nem por um minuto. Eram populares, radialistas, comerciantes, religiosos, vereadores e toda classe de gente interessada em ter com o último homem de Jubá. A tia trancara portas e janelas e desligara o telefone. Mas lá fora a multidão alvoroçada gritava seu nome, e tarde da noite ainda tinha gente rondando a casa.

Agenor estava cada vez mais assustado. A tia, porém, lhe garantiu que ali dentro ele estava seguro.

– Obrigado, tia. Vou ficar em dívida com a senhora pro resto da vida.

De madrugada, outra noite sem conseguir dormir, Agenor viu a tia entrando no quarto.

– Ô, meu filho, acuda sua tia, acuda… Não é só lá em Jubá que tem carestia de homem não…

Foi assim que Agenor pagou a dívida.

Antes que amanhecesse, ele aproveitou a escuridão, correu para a estrada e pegou carona num caminhão. Sorte que o motorista não o reconheceu. Desceu numa cidadezinha que nem sabia o nome. Mas lá as pessoas também sabiam quem ele era, e havia homens revoltados, se arregimentando para capá-lo, e as mulheres, revoltadas, tentando impedir. Quando a polícia chegou, ele precisou correr bastante para não ser preso por incitar a desordem.

Pobre Agenor. Já não havia mais onde se esconder. Sua imagem fora divulgada pela tevê para todo o planeta, o planeta sabia seu nome, todos conheciam detalhes de sua vida. Para onde fosse, seria reconhecido. Podia ser preso, podia ser morto.

Mas… havia um lugar, sim, lembrou Agenor, a esperança de repente renascida. A capital. Lá tinha muita gente, parecia formigueiro. E as pessoas estavam sempre ocupadas demais para reparar nas outras.

Foi assim que Agenor, pela primeira vez na vida, pisou o chão da cidade grande. Escondendo o rosto com boné e óculos escuros. Na primeira lixeira, jogou fora todos os seus documentos. Não era mais Agenor. Era um ninguém.

*     *     *

O mundo inteiro continuava buscando a explicação e, principalmente, a solução para o problema da impotência generalizada. Jubá, a pequenina cidade interiorana, virara atração internacional, por ter sido lá onde a estranha pandemia começou. Assim foi que os jubaenses, de repente, se viram entre autoridades de diversos países, toda uma espécie de gente ávida por saber o que havia naquela cidade que pudesse ter causado o que causou. Jubá, a cidade celebrizada pela desgraça.

– Dizem que só sobrou um homem sadio em Jubá – explicou o prefeito na coletiva de imprensa. – Mas ele fugiu, ninguém sabe onde se meteu. Aproveitando a ocasião, gostaria de dizer que inauguraremos um monumento comemorativo dessa pandemia que projetou para todo o planeta o nome da próspera cidade de Jubá e…

Pelos quatro cantos do mundo os jornais ofereciam anúncios de mulheres, e homens também, que pagavam fortunas por uma noite, uma noite apenas com qualquer um que houvesse escapado da broxação geral. Na tevê, os cientistas, olheiras profundas, imploravam que se apresentassem aqueles que ainda podiam ser preservados da pandemia. Nas ruas, os semblantes seguiam tristes. Nas igrejas, os sermões falavam de castigo divino, de Sodoma e Gomorra revividas, era o fim do mundo das profecias.

Parecia que o sombrio e previsível fim havia finalmente chegado: o mundo não tinha mais homens dignos do nome.

*     *     *

Seis meses após chegar à capital, lá estava Agenor, ao lado do ponto de ônibus, sentado na calçada, a mão estendida. Era o seu ponto de pedir esmolas. O local não era muito movimentado, mas pelo menos não tinha dono para cobrar aluguel, como os outros pontos. A barba crescida, o boné e as roupas sujas faziam-no apenas mais um entre os tantos mendigos que compunham a cena decadente da cidade grande.

O que ganhava era o suficiente para não morrer de fome e de frio. Dormia num velho prédio que fora abandonado no meio da construção, onde também dormiam outros mendigos, com os quais evitava maiores contatos. Não era um lar, era um esconderijo. As pouquíssimas coisas que possuía levava sempre consigo numa bolsa de pano, que um dia fora branca. E tomava banho, quando era possível, usando a torneira da praça, na discrição da madrugada.

A vida na clandestinidade era muito difícil, claro, mas era melhor ser ninguém que ser reconhecido na rua e ir parar sabe-se lá onde, nas mãos de sabe-se lá que tipo de gente. Emprego, então, nem pensar. Mesmo que conseguisse empregar-se sem documentos, isso seria arriscar-se demais.

Não tinha amigos, não podia confiar em ninguém. A solidão era a companheira, ela e a saudade da mãe e dos amigos. Sua vida chegara a uma rua sem saída, onde ele não podia seguir em frente e, muito menos, voltar. Estava condenado a viver aquela subvida até o último dia, quando finalmente o diabo voltaria para receber sua alma como pagamento pelo serviço. A não ser que…

A não ser que descobrissem a cura para a impotência generalizada. Quando isso acontecesse, Agenor finalmente poderia deixar de ser ninguém para ser novamente… Agenor. Ou seja, continuaria a ser ninguém, mas, pelo menos, teria um lar e não precisaria pedir esmolas.

Que grande ironia…. Obtivera a realização do seu maior desejo e, no entanto, não podia usufruir nem um pouco dele. Era ardentemente desejado por todas as mulheres, era o último homem do mundo – e não havia nenhuma vantagem nisso.

Às vezes, tomava coragem e caminhava pelas ruas, ia aos parques, mas sempre surgia algum guarda ou policial para importuná-lo. Outras vezes, percebia uns certos olhares desconfiados… Pronto, era o bastante para fazê-lo voltar imediatamente ao esconderijo. Estava bem diferente da imagem que o tornara famoso, sim, mas todo cuidado era pouco.

Pelos jornais que pegava no lixo ou pela tevê do botequim, Agenor acompanhava as notícias da pandemia. Sabia que tudo continuava do mesmo jeito. E sabia que o mundo inteiro prosseguia a busca pelo último homem do mundo, como ele ficara conhecido. Seu desaparecimento gerara uma série de hipóteses, desde as que afirmavam que ele fora assassinado às que sustentavam que ele era mantido preso nos subterrâneos de um laboratório enquanto cientistas tentavam decifrar seu segredo. Corria a notícia que o último homem do mundo fugira para uma ilha distante e montara um harém só para ele, mandando buscar as mulheres mais lindas do mundo…

Agenor até ria desses absurdos, era mesmo incrível a imaginação do povo. Mas não dava para rir quando via seu rosto surgir na tela da tevê, o que acontecia quase todo dia. Nessas ocasiões, ele baixava ainda mais o boné sobre o rosto e saía de mansinho, tremendo de medo.

Tão grande quanto o medo de ser descoberto, porém, era a angústia que lhe faziam sentir… as mulheres. Ah, as mulheres da cidade grande… Eram lindas, carnudas, bem aprumadas, vestiam-se com elegância, a pele fresquinha, o cabelo bem tratado, o jeito de andar… Elas enfeitavam todos os lugares, as ruas, as lojas, os bares. Onde estivesse, vinha-lhe o perfume inebriante da tentação, atingindo-o em cheio. À noite, deitado sobre os papelões que lhe serviam de cama, rolava de um lado para outro, a imagem de uma ruma de mulheres desfilando em seu pensamento, aquela de vermelho com quem cruzou na esquina e aquela que passou no ônibus e aquela vendedora de flores, todas elas, mil mulheres… Mil possibilidades que, entretanto, sempre terminavam expelidas em jatos de prazer solitário.

Uma vez, sem aguentar mais, dirigiu-se à periferia em busca de um cabaré, mesmo consciente do altíssimo risco da operação. Mas não encontrou nenhum. Foi então que soube que todos os cabarés haviam fechado. Por absoluta falta de clientes.

Até que uma noite…

O Ultimo Homem do Mundo CAPA 2aDesde o início, Agenor adquirira um hábito: guardar classificados dos jornais que recolhia no lixo. Recortava pedaços e juntava aos que possuía. Eram anúncios de mulheres oferecendo verdadeiras fortunas por uma noite com um homem de verdade. Pois bem. Naquela noite, no auge da angústia e da solidão, ele separou um anúncio e com ele desceu as escadas sem corrimão do velho prédio inacabado. De um orelhão da rua ligou para o número do anúncio. Uma voz de mulher atendeu… Ele falou quem ele era. A mulher não acreditou. Nervoso, ele insistiu, disse que poderia facilmente provar, mas para isso precisavam se encontrar. Então, a mulher pediu o endereço e informou que enviaria um táxi imediatamente.

Enquanto Agenor aguardava, ansioso, começou a chover e ele se protegeu sob o orelhão. Não sabia se fizera a coisa certa, mas já não voltaria atrás.

Logo, o táxi chegou. Ele entrou e acomodou-se no banco de trás, molhado da chuva. Estava nervoso, mas esperançoso. Aquela podia ser a saída que tanto buscava: uma mulher rica e insatisfeita, disposta a pagar muito por um homem que lhe desse prazer. Ela o levaria para morar numa bonita casa de praia, cozinharia para ele, lhe compraria roupas caras, lhe daria um carro bonito e lhe ensinaria a dirigir, faria todas as suas vontades. Em troca disso tudo, ele teria apenas que ser o que era: um homem. Só isso.

O táxi parou em frente a uma casa. Agenor reparou que era grande e bonita, com um jardim cheio de plantas coloridas. Um homem de paletó, com um guarda-chuva, abriu a porta do carro.

– Boa noite, senhor. Queira acompanhar-me, por gentileza.

Agenor foi conduzido pelo jardim, subiu uma escadaria e entrou numa sala.

– Por favor, sente-se. Anunciarei sua chegada.

Agenor sentou-se no sofá, admirando os móveis e os quadros nas paredes. Devia ser uma mulher muito rica, pensou, satisfeito. Aproveitando o espelho ao lado, passou o pente no cabelo e ajeitou a camisa. Por sorte havia tomado banho aquele dia. Pensara até em tirar a barba, mas não teve coragem.

Uma outra porta se abriu e uma moça muito bonita surgiu à sua frente. Tinha lindos cabelos loiros, um rosto suave e… sorria. E vestia uma camisola transparente que nada escondia de seu maravilhoso corpo.

– Agenor de Jubá? – perguntou, delicadamente.

– Sim… sou eu… – gaguejou Agenor, o desejo já se manifestando sob as calças.

Ela se aproximou.

– Como posso ter certeza disso?

Agenor sorriu, sem saber o que responder. De repente, ela o empurrou e ele caiu sentado no sofá. Ela ajoelhou-se, tirou seus sapatos, depois sua calça, a cueca, deixando-o inteiramente nu.

– A senhora pensou que eu estava mentindo, né? – disse ele, vendo que ela olhava impressionada para o meio de suas pernas. – Menti, não.

Ela continuou ajoelhada entre suas pernas, o queixo caído, os olhos de quem não acredita no que vê. Então, ela gritou, alvoroçada:

– Está no ponto! Está no ponto!

Agenor achou estranho, mas já sabia que as mulheres da cidade grande possuíam hábitos esquisitos, de forma que apenas riu. No instante seguinte, surgiram uma mulher e dois homens, carregando equipamentos.

– Obrigado – a mulher falou para a moça de camisola. – Agora é com a gente.

– Não dá pra eu ficar sozinha com ele por dez minutinhos? – perguntou a moça.

Um dos homens, porém, a puxou e a afastou para o outro lado da sala. Agenor percebeu que o outro homem empunhava uma câmera de filmar. Uma luz forte acendeu-se sobre ele.

– Estamos transmitindo ao vivo! – disse a mulher, falando no microfone. – Isso que você está vendo não é truque. A imagem não deixa qualquer dúvida: é o último homem do mundo! Nós o encontramos! Vocês podem ver, olhem aqui, é incrível, é, é inacreditável, é… maravilhoso…

Apavorado, Agenor levantou de um salto. Um dos homens ainda tentou detê-lo, mas ele saiu correndo, nu como estava, a mulher e os homens correndo atrás, aquela luz a persegui-lo. Saltou o muro da casa e caiu na calçada, no meio de uma poça dágua. A chuva havia aumentado bastante. Agenor levantou, sentindo a perna doendo, e continuou a correr.

Correu e correu até não aguentar mais. Somente então parou e caiu no chão, ofegante, a perna doendo bastante. E assim ficou, estendido no chão da passarela do viaduto, enquanto a chuva descia sobre seu corpo e lá embaixo os automóveis passavam em alta velocidade.

Chegara ao fim. Não tinha mais forças para continuar com aquela vida. Estava cansado de correr, de se esconder, de ser ninguém. Que sentido ainda havia em continuar vivo?

Naquele instante, apesar do cansaço, da dor da perna, de tudo, Agenor fechou os olhos e sorriu. Sorriu porque a ideia do fim era como um bálsamo para sua alma sofredora. Sorriu porque sentia-se finalmente liberto da dolorosa obrigação de viver.

*     *     *

Um tempo depois, Agenor percebeu que havia alguém ao seu lado.

– Humm, você fica horrível sem roupa…

Ainda deitado, Agenor virou o rosto e tentou ver quem era. Mas a água em seus olhos dificultava a visão. Aos poucos, foi enxergando melhor: um par de botas pretas, a ponta de uma bengala…

– Soloniel… – ele sussurrou, reconhecendo o diabo em seu sobretudo.

– O mais astuto dos diabos – respondeu Soloniel, tocando seu chapéu com a ponta dos dedos.

Agenor deitou novamente a cabeça.

– Por que fez isso comigo?

– Como assim? Fiz apenas o que me pediu.

– Eu só queria ser desejado…

– E não conseguiu?

Agenor suspirou, sem forças.

– Creio que ambos concordamos que cumpri minha parte no trato, não é?

Agenor não respondeu. Nada mais importava. Ficaria ali, sob a chuva, até morrer.

– Conforme combinamos, vim buscar meu pagamento.

Agenor escutou aquelas palavras sem qualquer surpresa. Não lhe importava. Já estava morto.

– Por favor, levante-se, jovem. Esta não é a melhor posição para um momento tão solene.

Agenor abriu a boca, deixando que a água entrasse. Bebeu um pouco e depois perguntou, enquanto se erguia com dificuldade, a perna uma dor só.

– O mundo vai continuar como está, todos os homens impotentes?

– O que você acha?

– Não está certo.

O diabo Soloniel riu.

– Sente-se culpado apenas porque realizou seu grande desejo?

Agenor não respondeu.

– Eu devia estar acostumado, mas sempre me encantam essas ironias… – O diabo bateu na bota com a ponta da bengala. – Bem, se isso serve de consolo, depois que você se for, tudo voltará ao normal.

Por um breve instante, Agenor sentiu-se feliz.

– Agora, siga-me. Está na hora.

O diabo caminhou até a murada da passarela e subiu, ficando de pé. Depois, virou-se para Agenor.

– Sua vez.

Agenor foi até a murada e olhou para baixo. Era uma altura considerável. Ouvira dizer que várias pessoas já haviam se jogado dali. Que maneira horrível de morrer, estatelado no asfalto, os carros passando por cima… Depois, seu corpo seria recolhido aos pedaços e levado ao necrotério, ninguém o reconheceria, seria enterrado numa cova qualquer, como indigente…

Apesar da dor na perna, Agenor subiu e firmou os pés sobre o cimento.

– Muito bem – disse o diabo. – Se quiser se despedir, posso dar-lhe um minuto.

De pé na murada, inteiramente nu, Agenor viu as luzes da cidade ao redor. O som da chuva se misturava ao dos carros passando lá embaixo. A queda seria rápida, uns poucos segundos e pronto, tudo estaria acabado, não haveria mais sofrimento.

– Um, dois, três e…

O Ultimo Homem do Mundo CAPA 2aDe repente… uma dúvida. Como assim não haveria mais sofrimento? Esperava o quê do inferno? Agenor olhou para o diabo, pensando em como perguntar sobre aquela questão repentina.

– Que saco. O que foi agora, meu jovem?

– Como é o Inferno?

O diabo pareceu não acreditar no que ouvia.

– Você quer que eu lhe explique como é o Inferno? Agora?

– É que… não consigo imaginar algo pior do que o que já estou vivendo.

O diabo bateu na bota com a bengala.

– Bem, digamos que seu caso é uma exceção.

– Como assim?

– Como havia lhe dito, todos os diabos sonham com um pedido como o seu. Realizá-lo significaria a glória eterna para um diabo, o nome para sempre brilhando em ouro na entrada do Inferno. Bem, eu consegui. E graças a você.

Agenor escutava, curioso.

– Então, como retribuição, reservei um lugar especial para você. Será meu assessor. Você sabe, já estou velho, preciso dividir o serviço.

– Assessor? Eu?

– Claro. Dentro de alguns segundos, você também será um diabo. E já tem um serviço esperando.

– Como assim?

O diabo fez uma pausa enquanto sorria.

– Dorinha vai fazer o pacto. Assim que terminar com você, irei encontrá-la.

– Dorinha?! – exclamou Agenor, surpreso.

– Sim, sua ex-namorada. Aquela que você abandonou.

A lembrança de Dorinha chegou, vinda de longe… Agenor viu seu rosto bonito, sorridente… Uma sensação de suavidade e ternura tomou-lhe conta. A doce Dorinha, esquecera dela. Esquecera dos bons momentos que viveram, antes daquele pesadelo começar.

– Pois ela não esqueceu. E sabe qual é o pedido dela?

Agenor ficou calado, com medo do que poderia escutar.

– Que você volte para ela.

– Não acredito…

– Pelo jeito, ela gosta muito de você.

Agenor estava confuso.

– A ponto de sacrificar a própria alma.

Mas como aquilo seria possível?, Agenor pensou. Como ele voltaria para Dorinha se iria para o Inferno?

O diabo deu uma gargalhada.

– Você vai para o Inferno, sim. Mas logo voltará aqui. Para buscar Dorinha. Dessa forma, ela terá seu grande desejo realizado. Soloniel é um diabo de palavra.

Agenor não acreditou. Aquilo não podia acontecer. Não com Dorinha.

– Escute, Soloniel, Dorinha é uma pessoa boa, não merece sofrer.

– Todos têm que sofrer. É a lei da vida.

– Mas não deviam vender a alma!

Agenor se surpreendeu com o próprio grito. E com o raio que caiu próximo, seguido de um estrondoso trovão. Ao seu lado, o diabo o encarava, muito sério.

– Ainda bem que você não é o dono do Inferno. Eu perderia meu emprego. Agora, salte, já me fez perder muito tempo.

Agenor continuou parado, a água da chuva escorrendo por seu rosto.

– Salte, homem. Ainda tenho trabalho hoje.

Agenor nem se mexeu.

Então. a dor, súbita e aguda. O diabo o atingira com uma bengalada na perna machucada, fazendo-o gritar de dor.

– Algo me diz que você também precisará de uma bengala em sua nova vida.

Desequilibrado, Agenor agitou os braços, como se pudesse se segurar em algo, e seus movimentos pareceram uma estranha dança. Seu corpo caiu pesadamente e se chocou todo desajeitado contra o chão.

Quando abriu os olhos, já não havia dor. E a chuva havia parado. Não viu a passarela. Nem os carros. Nem a avenida, nem a cidade, nada. Estava no Inferno? Ao redor, via apenas mato. Mas o Inferno tinha mato? No céu, as estrelas brilhavam.

Levantou, sentindo o coração acelerado, o suor no rosto. Adormecera enquanto aguardava pelo diabo, e tivera um pesadelo horrível. E caíra da pedra. Estava no alto do morro, a cidade de Jubá lá embaixo.

Como pudera sonhar tanto em tão pouco tempo? E fora tudo tão real, tão real…

Pegou o cobertor no chão. Depois, olhou o relógio. Era meia-noite, em ponto. Nesse momento, escutou um ruído, alguém chegava pelo mato. O ruído ficou mais forte e ele viu as folhas mexerem.

Não teve dúvidas: deu meia-volta e saiu numa carreira apavorada, descendo aos saltos a encosta do morro, sem olhar para trás. Entrou na cidade e só parou de correr quando chegou em casa.

– Meu filho, onde você estava? – perguntou dona Fafá, vindo da cozinha. – Venha jantar.

– Oi, mãe… – ele murmurou, ofegante, fechando rapidamente a porta e passando a tranca.

– Que cara é essa? Parece que viu alma.

Agenor beijou a mãe e foi para a cozinha.

– Quem esteve aqui agora há pouco foi Dorinha.

– Dorinha? – ele perguntou, surpreso.

– Sim, vinha do restaurante. Perguntou de você. Menina boa, ela.

– E… pra onde ela foi?

– Disse que ia se encontrar com alguém e depois ia para casa.

– Encontrar… com alguém? A essa hora?

O coração de Agenor batia forte. Foi então que alguém bateu na porta.

– Tá esperando alguém? – disse dona Fafá, caminhando para abrir a porta.

– Não, mãe! Não abra!

O Ultimo Homem do Mundo CAPA 2aDona Fafá parou e olhou para o filho, desconfiada.

– Você andou bebendo?

Agenor correu para impedir, mas ela abriu a porta, enquanto ele fechava os olhos para não ver.

– Oi, Agenor.

Aquela voz…

– Mas que pressa medonha, Agenor! Passou correndo por mim, nem me ouviu te chamar…

Ele abriu os olhos e viu Dorinha.

– Tem comida na geladeira, viu, filho? – disse dona Fafá, piscando um olho para Dorinha e saindo da sala.

– Você… foi encontrar… alguém? – ele indagou, gaguejando.

– Fui.

– Quem?

– A prima Botinha. Ela vai casar, sabia? E a festa vai ser lá no restaurante.

Ele suspirou, aliviado. Depois desviou o olhar, com vergonha.

– E você, tudo bem?

Ele fez que sim com a cabeça. Ela sorriu.

– Vim só dar um oi.

Ele procurou algo para dizer, mas não achou. O coração ainda batia acelerado. Dorinha… Em Jubá até havia mulheres mais bonitas que ela, mas Dorinha era especial, tinha um algo mais… Se ela soubesse quantas noites ele sonhara com ela… em seus braços…

– Bem, acho que já vou indo.

– Vai?

– Tá tarde, Agenor.

Ele sentiu uma súbita vontade de abraçá-la. Mas a timidez jamais permitiria. A velha timidez que nos últimos meses sempre o impedia de dizer a ela o que sentia.

– Dorinha…

– Sim?

Ela aguardava.

– É, está tarde mesmo ‒ ele falou, sorrindo nervosamente. Nunca conseguia. Jamais conseguiria.

– Tchau, Agenor. Aparece no restaurante.

Dorinha virou-se e saiu. Agenor foi para o batente da porta e de lá a observou caminhando pela calçada. Não fora forte para fazer o pacto. E nem era forte para lutar pela mulher com quem tanto sonhava. Era um fraco.

Naquele instante, um carro passou na rua e a luz dos faróis bateu em cheio sobre seu rosto. Lembrou da luz a persegui-lo enquanto tentava escapar da equipe de tevê. Então, num impulso, sem pensar no que fazia, abriu a porta e saiu correndo.

Na esquina, o carro fez a curva e sumiu. Mas Agenor não dobrou a esquina, não era o carro que lhe interessava. Continuou correndo e só parou quando alcançou Dorinha, que tomou um susto ao vê-lo chegar e lhe pegar pelos ombros. Sem dizer nada, ele a virou para si e sapecou-lhe um beijo na boca. Dorinha quase caiu, mas ele a amparou e a encostou no muro, sem interromper o beijo.

Um bom tempo depois, quando ele finalmente a largou, Dorinha só de uma coisa sabia: que queria mais.

– Pensei que você não me desejava… – ela murmurou, encostada no muro, toda molenga.

– É que eu… não sabia desejar direito.

E beijaram-se outra vez, mais forte.

Na bodega da esquina, sentado numa mesa com o último cliente da noite, Ribamar olhava satisfeito o casal se beijando.

– Até que enfim esse rapaz tomou tenência. A moça doidinha por ele…

– Quanto lhe devo, meu amigo?

– Um conhaque. Dois reais.

O homem tirou uma nota do bolso do sobretudo e pagou.

– O senhor não é daqui, né? – perguntou Ribamar, recolhendo o copo e levando para o balcão.

– Vim ver um cliente ‒ respondeu o homem, levantando e apoiando-se numa bengala. ‒ Mas ele não apareceu.

– Que pena. Fez viagem perdida.

– Fiz não. No meu ramo, cliente é o que não falta.

– Coisa boa. Que mal pergunte, qual é o seu ramo? – perguntou Ribamar, voltando à mesa.

Mas ela estava vazia. Ninguém na mesa, ninguém por perto.

– Vixe! – exclamou, sentindo um calafrio.

Bateu três vezes na madeira e rapidamente fechou a porta, sem esquecer de dar duas voltas na chave, e do cadeado e da tranca.

Adiante, encostada no muro, Dorinha suspirou nos braços de Agenor e, com os olhinhos fechados, pediu outro beijo. Mais forte.

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Ricardo Kelmer 1998 – blogdokelmer.com

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BaseadoNissoCapaMiragem-01aEste conto integra o livro
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O sonho de Agenor é que todas as mulheres do mundo o desejem. Para isso, ele está disposto a fazer um pacto com o diabo. Mas há um velho ditado que diz: cuidado com o que deseja, pois você pode conseguir…

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COMENTÁRIOS
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01- Eu gostei deste muito. gigi28 – jul2008

02- Você é bom mesmo, Ricardo. Quando vem a terrinha? Um grande abraço do amigo-leitor seu. Maninho, Fortaleza-CE – ago2008

03- Quem quer todas, não tem nenhuma. A graça de um relacionamento é ir até o fundo, explorar tudo, dure 3 meses ou 10 anos. Mas com inteireza, com verdade. Quem tem todas, não conhece, de verdade, nenhuma. Bjo. Chris, Rio de Janeiro-RJ – jan2009

04- Aquela que serve é a que conhece . conhece mesmo ? e aquele que deseja, é o faminto do lobisomem ? o grande assustado ? o fugitivo de boné … quisera ter o pacto com quem ? efusivo Agenor , talvez um perfume afrodisíaco com a tônica dionisíaca vai saber … agradaria uma bela garçonete que pega a carona no seu caminhão feito mesmo o último homem de jubá …. ahahahahahahah ! Marcia, São Paulo-SP – ago2009

05- Oi, Kelmer! Agenor é bem dotado, também, de criatividade. Ele conseguirá, um dia. rsss Linkei o teu blog no meu. =) Abs! Val – mar2010

06- Ei macho… Tu quer me matar de curiosidade é?? Parabens esse conto é incrível!!! Todo homem já se imaginou nessa situação, o problema é que nenhum homem tentou imaginar a saída desta. Valeu!!! Pedro Henrique – mar2010

07- =D Adorei essa história!!! Parabéns… o desfecho foi muito interessante. Agradeço pela possibilidade de tê-la lido. Mas… Já acabou… =(. Luciana R – abr2010

08- Achei legal o desfecho. Que pena que acabou! Karla – abr2010

09- Adorei! Aplausossssssssssss….. Gostei tanto que fiquei triste por ter acabado, hauhauahau… Parabéns Kelmer. Quero mais histórias assim. ;D Até a próxima! ;* Ingrid – abr2010

10- É até boa, mas muito brusco o fim, o que a torna sem um bom desfecho. Mariana – abr2010

11- Faltaram os créditos para a imagem da pintura usada neste artigo. O autor é o pintor peruano Boris Vallejo. Silveira Neto – abr2010

12- Muito boa a história, acompanhei-a e gostei muito. Até que enfim o Agenor teve coragem. Eu já estava angustiado com a timidez dele. Francisco Edvar – abr2010

13- ACOMPANHEI E GOSTEI DE TODA A HISTÓRIA,PORÉM O FINAL FICOU UM TANTO INCOMPLETO,HAVERÁ CONTINUAÇÃO? Dokho– abr2010

14- eita historia mais envolvente rapaz,cada capitulo era uma viagem,parabens para o escritor que deleitor dentro dos sonhos de muitos homens timidos q desejam serem desejados. Espero outras historias exoticas. Kildery – abr2010

15- Esse cigarrinho era bem docinho, hein? rs. Christiane – mai2010

16- Essa história é genial (O último homem do mundo). Recomendo. Vale muito a pena ler. Marcelo Gavini, São Paulo-SP – jun2010

 


A fantástica loja de ideias

24/12/2008

24dez2008.

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a.

Este conto integra o livro Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha, de Ricardo Kelmer

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A FANTÁSTICA LOJA DE IDEIAS

Projetor 3D, supositório para disfarçar peido, máquina de sexo virtual com personalidades… Todas aquelas ideias geniais que se têm quando se está doidão são vendidas nessa loja

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(TEXTO TRANSCRITO DA GRAVAÇÃO do programa Canabistrô, exibido no dia 26/08/2005, pelo site Terramestra)

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– Bom dia, queridos amigos telespectadores do Canabistrô, seu melhor programa de viagem! Eu sou Bia Voyage e hoje vamos apresentar pra vocês aquela matéria que havíamos prometido na semana passada, a loja de ideias Ki Lombra, na praia de Canoa Quebrada. Uma das sócias da loja, a Lulu, recebeu nossa reportagem com muita simpatia, e a matéria taí no ponto pra vocês verem, tá sensacional, vocês não vão acreditar nas ideias dos malucos. Mas antes vamos às mensagens dos nossos patrocinadores lindos.

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Entra comercial da revista Lucidez Total. Matérias e reportagens do mês. Gatinha Canabis. Maconha e autoconhecimento. As mil e uma utilidades da planta para a indústria. Entrevista com o Deputado Federal Fernando Gabeira.

Entra comercial do colírio HOMO TOTAL, para usuários gays. Um rapaz aborda outro no balcão do bar e diz que seus olhos são muito bonitos para ficarem vermelhos e irritados daquele jeito. Ele puxa do bolso um colírio, oferece, o outro pinga uma gotinha em cada olho e, quando devolve, seus olhos já estão brancos. Áudio: HOMO TOTAL, colírio pra quem entende…

Entra comercial da maconha MARLEY. Uma garota assiste a um filme no cinema, viajando bastante. Uma outra, atrás dela, cochila. A garota vibra com as cenas e a de trás só cochila. No fim do filme, as duas saem, uma satisfeita e a outra sonolenta. Áudio: Maconha MARLEY, a diferença tá na cara.

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– Oi, gente, estamos de volta com o Canabistrô, eu sou Bia Voyage e você é uma pessoa que tá aí na sua e deseja se antenar com as novidades do mundo hemp, não é, trocar ideias com a gente, conhecer pessoas e se informar a respeito da canabis. Não é isso? Isso. Porque usuário consciente faz a diferença. Agora vamos ver, vamos ver, quem acertou a pergunta da semana passada. Qual é a dose mortal de canabis? Vamos ver, abre o envelope aqui, isso… Resposta: cinco quilos jogados do 20o andar de um prédio. Acertou! O felizardo da semana mora em… Cabrobó, olha só, em Pernambuco. Um beijão pra moçada de Cabrobó que tá de olho no nosso programa. Mas não é um felizardo, é uma felizarda. Beleza. Você sabe que aqui no programa a gente não lê o nome completo, só as iniciais. Então lá vai: A, M, O, S. Fica ligada, A-M-O-S,  que a produção vai entrar em contato. Você, sua sortuda, vai receber em casa nosso kit Canabistrô completo, com camiseta, óculos, CD do programa, uma caixa de sedas Sedosa, maquininha, debulhador, marica e um exemplar da revista Lucidez Total. Parabéns. Solta o primeiro clipe aí enquanto eu vou despachar essa encomenda no correio. Volto já, moçada.

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Entra o clipe da música Libera a Pamonha, da banda Intocáveis Putz Band.

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– Bacana esse clipe, heim? Recebemos esta semana, é novinho. Se você gostou, ligue agora mesmo ou acesse nosso site, esse que taí no vídeo, e concorra a um CD da Intocáveis Putz Band, essa banda virtual mucho loca, que por sinal tem um baixista gatíssimo, vocês viram? Eu vi, não vou mentir. Mas vamos deixar de galinhagem que meu diretor já tá me olhando feio aqui. Libera a matéria com a Lulu. Libera o produto!

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Entra matéria sobre a loja Ki Lombra.

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– Olha só, gente… Eu sou Bia Voyage, pro programa Canabistrô, e você vai conhecer agora uma loja louquíssima que existe aqui em Canoa Quebrada, essa praia maravilhosa do Ceará. É a loja Ki Lombra. Sabe o que ela vende? Ideias! Ideias de todo tipo, mas de preferência, ideias malucas. As proprietárias são duas senhoras, a Lulu e a Ely. Um dia, elas vieram passar um fim de semana aqui em Canoa Quebrada, se apaixonaram pelo local e decidiram ficar. Aí tiveram a ideia de montar uma lojinha pra vender as ideias que o povo tem quando tá doidão. Começaram devagarinho, uma ideia aqui, outra ali, aí começou a aparecer gente interessada, artista, escritor, músico, gente de todo tipo interessada em ideias novas, ideias malucas, coisa diferente. A notícia se espalhou e hoje, além das próprias ideias, elas também vendem ideias dos outros. A maluqueira fuma, olha só, viaja nas ideias e depois vem aqui e vende pra elas. Não foi uma sacação genial? Tão genial que copiaram e aqui em Canoa já tem mais três lojas parecidas com esta. A Ki Lombra é a mais antiga e a mais famosa, certamente pela qualidade dos produtos. Mas também pela simpatia das donas, vocês vão ver. Olha só, A Lulu é essa aqui. Passa o dia de biquíni, o tempo todo de alto astral. Faz tempo que a senhora tem esse negócio, dona Lulu?

– Pode tirar o “dona”, viu, minha filha.

– Ah, me desculpe, eu esqueci. Faz tempo que vocês têm esse negócio, Lulu?

– Cinco anos.

– Dá pra faturar uma graninha com ideia maluca?

– Dá pra tirar a da cerveja, não tenho do que reclamar não.

– E sua sócia, a Ely?

– Ely tá viajando.

– Em que sentido?

– Eheheh. Tá cuidando da abertura de uma franquia da Ki Lombra em Piripiri.

– Em Piripiri? No Piauí?

– Lá mesmo. O povo lá é chegado numas ideias…

– E quantas franquias vocês têm?

– Deixa eu ver… Piripiri, Olinda, Jericoacoara, Jurerê, e mês passado inaugurou uma em Ipanema. Mas a gente tem um bocado de propostas, de vários países. Tamo estudando.

– Como que vocês fazem? O maluco ou a maluca vem aqui, conta a viagem…

– Isso aí, conta a viagem. A gente escuta. Se servir, a gente compra.

– Se for maluca demais, vocês dispensam?

– Aí é que eu compro mesmo, minha filha. As que vendem mais são essas, eheheh.

– E a clientela, é boa?

– De primeira vinha aqui só músico, escritor, pessoal que trabalha com cinema, televisão. Depois passou a vir outras pessoas. Até político já veio.

– Político?

– É. Porque tem maluco que tem umas ideias que serve pra política, umas ideias boas de se aproveitar.

– Tem alguma aí pra gente ver?

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– Tinha muita. Mas hoje eu não vendo mais ideia pra político não. Quando eu vejo que é dessa raça, não vendo. Porque é tudo um bando de aproveitador, tudo nojento. Sabe aquela ideia do imposto único, pra substituir todos os impostos, um por cento sobre cada cheque? Foi uma moça que me vendeu, ideia boa. Aí veio um deputado aí, olhou, gostou e comprou. Pra quê? Pra transformar nesse imposto aí sobre movimentação financeira. Olha a ironia: o que era pra acabar com essa enormidade de imposto que tem aí, acabou virando mais um imposto. Por isso que pra político eu não vendo.

– Dá pra ver que a Lulu não gosta de político, né? Mas vamos ver o que tem mais… Isso aqui, o que é?

– Isso foi um menino que deixou semana passada. É um Flatex.

– Parece um apito.

– É um supositório pra quem sofre de flatulência crônica.

– Mas que coisa! Não acredito! Verdade, Lulu? Mostra aqui, Ferdinando, mostra aqui pertinho.

– E o preço tá bom, cinquenta pilas, eheheh.

– Quer dizer que com isso o pum fica retido. Mas que coisa, olha só, gente… Mas e se o pum chega aqui, vê que não tem saída… não periga ele pegar outro caminho e escapulir pela boca? É pior, não?

– Não, minha filha, fica retido não. O flato passa por essa frestazinha aí, ó, e libera uma fragrância bem suave. Tem Patchuli e Flores do Campo. Tinha um de Coisa Queimando, mas levaram ontem.

– Coisa Queimando? E alguém se interessou por uma fragrância dessa?

– É dos que mais vende. Porque disfarça bem, fica todo mundo preocupado, procurando o que é que tá queimando…

– Ahhh, é verdade. Olha só, mas que ideia maluca…

– Quer levar um Flores do Campo pra você? Cortesia.

– Tá me chamando de peidona, Lulu?

‒ É sempre bom estar prevenida, minha filha.

‒ A senhora tem razão. Muito obrigado. Mas esse Flatex serve também praqueles puns barulhentos?

– Arrá! Pra esses é que existe o Flatex Som. Tem Pássaros, Buzina, Freio, Celular…

– Flatex Som… Não acredito. A pessoa solta um pum, o ambiente fica perfumado, toca uma musiquinha e ninguém percebe. Que voyage… Que mais que tem por aqui, Lulu?

– Tem Noves-Fora de Placa de Carro.

– Ah, esse é manjado. Já vi nos seus concorrentes, não é só você quem tem.

– Mas esse é diferente, minha filha, esse é diferente… Olha aqui, parece um Noves-Fora de Placa comum, igual a esses que tem por aí, né? Mas esse tem um detalhe que os outros não têm: é Noves-Fora + Palavra.

– Palavra?

– Sim, você olha a placa do carro e, além de tirar o noves-fora, ainda tem que dizer a primeira palavra ou frase que vier à mente com as iniciais da placa. É mais difícil, só pra iniciados. Foi a Ely quem inventou, nesse dia ela tava inspirada. Olha esta aqui. ABE 9473. Qual é o noves-fora de 9473?

– Deixa eu calcular… Cinco.

– Isso. E o que lhe vem à mente com ABE?

– Com ABE? Humm, deixa eu ver…

– Não, não pode pensar. Tem que dizer a primeira ideia que vier, mesmo que não seja nada diretamente relacionado a ABE.

– Abacate.

– Abacate cinco, entendeu?

– Ahhh…

– Ou então Abelha, A Bela e a Fera, A Bunda da Ely, Associação Brasileira de Estranhos… O que vier.

– Nossa, mas o maluco tem de ser fera pra tirar o noves-fora e ainda pensar numa palavra…

– Com o tempo, pega prática. Quem compra muito é ator, pra exercitar o improviso. Mas também é muito bom praqueles momentos em que você tá preso no trânsito.

– Ah, é. Só maluco mesmo… Epa, isso aqui eu não conheço.

– Chegou sexta-feira. É um pacote de inventos do futuro. Tem três inventos aí.

– Isso parece um projetor de slides.

– É um Holocine, um projetor holográfico com som. Exibe imagens em 360 graus. Filme, show, qualquer coisa. Em vez de você assistir ao último show da Kátia Freitas numa tevê ou num telão, você liga o Holocine e se sente no próprio local do show, como se a Kátia realmente estivesse cantando bem à sua frente, como se você estivesse num camarote de frente pro palco.

– Que interessante…

– E pode ser visto de qualquer lugar, a imagem se ajusta automaticamente ao ângulo de visão.

– Gente, o futuro já chegou! E essa cabine aqui?

– É o CelebriSex. Sexo virtual com pessoas famosas. Você escolhe se hoje quer transar com a Sabrina Sato ou com a Angelina Jolie. Então você entra na cabine, senta, conecta os sensores na pele, põe o visor 3D e escolhe a pessoa aqui no painel. Sua estrela preferida vai surgir na tela.

– Que maravilha! Mas sente mesmo, quer dizer, a sensação é a mesma do sexo no mundo real?

– Igualzinha. Quer experimentar?

– Eu? Agora? Bem… Agora tô trabalhando, né, Lulu? Vamos deixar pra depois da gravação…

– Combinado. Ah, e você também escolhe o cenário. E tem a opção de bebidas, um baseado, o que você quiser pra incrementar o lance. Por exemplo: eu quero transar com o Kelmer no alto do Pão de Açúcar, tomando um vinho francês, escutando Sade.

– Quem é Kelmer?

– Ricardo Kelmer, é um escritor muito doido. Foi ele quem criou o CelebriSex. Olha ele aqui.

– É esse? Hummm… Mais ou menos. Quais os outros homens disponíveis aí?

– Tem vários. O Fábio Jr. sempre sai bem. Tem os globais, aquele povo de Hollywood, jogador de futebol. Tem até o pessoal aqui de Canoa. Tem também aquele baixista da Intocáveis Putz Band, o Emílio. Agora que ele casou, aumentou a procura.

– Gente! Minhas amigas vão ficar loucas! Tá vendo, né, Isabella? Tá vendo, né, Cris?

– Na nova versão do CelebriSex você pode escolher mais de uma pessoa, dá pra fazer ménage à trois. A nova cabine é bem espaçosa, ou seja, vai dar pra fazer swing, olha que maravilha!

– Tô passada…

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– Ah, isso aqui também é muito legal. É um teletransportador instantâneo de moléculas, última geração, que transporta organismos vivos. O nome é TeleZapt. Você senta aqui, se conecta e puff!, é transportado pra qualquer lugar do mundo em um segundo. Com o TeleZapt você pode estudar em Londres de manhã, passear na Lagoa à tarde, e à noite dar um pulinho em Belém pra ver aquele seu namorado gostoso.

– Genial. Não precisa de passaporte?

– Que passaporte que nada! O TeleZapt chegou pra acabar com essa história de país, de soberania nacional. Todo mundo é livre pra ir aonde quiser. Minha pátria é o planeta, minha filha!

– É isso aí, Lulu! E isso aqui, é uma festa?

– É um festão. Aqui vem muito produtor comprar ideia pra festa. Essa aí, por exemplo, é um cassino-cabaré e os convidados se vestem a caráter: putas, madames, magnatas, políticos, marinheiros, garçonetes… A festa acontece numa mansão e os convidados chegam em limusines com chofer, são recebidos sob luzes de holofotes e conduzidos até o salão. Olha as máquinas de jogo, a roleta, os crupiês, a decoração da casa, tudo como se fosse um grande cassino. O nome da festa é Cabaré Soçaite. Tá vendo aquele piano ali no palco? É pro clímax da festa, um show com o Eduardo Dusek e a Karine Alexandrino. Festa boa.

– Festaça! Essa eu não perderia. Ninguém se interessou por ela?

– Todo mundo se interessa, mas a produção da festa é cara. Mas tem festa mais barata, esta aqui, por exemplo. Também é uma festa à fantasia, só que as pessoas se vestem com traje típico de algum país. Chama-se Planeta Show. Tem uma banda tocando músicas de vários países e barraquinhas com comidas típicas.

– Interessante. Acho que eu iria de dançarina espanhola. E isso aqui? “Transbordo”?

– É sugestão pra nome de transportadora, eheheh. Bom nome, não?

– Olha aí, quem estiver montando uma transportadora, passa aqui na Ki Lombra e pega um nome bom pro seu negócio. Transbordo, sua carga com segurança.

– Tem outras sugestões. Nome pra bar: Sarjeta, Mulheres Bahr, Bar Canal, Di Sempre, Barbossa, Cogumelo, Barembar, Baratoa, Glub-Glub, Tremilik… Nome pra banda: Orrori Zadus, Calígulas de Notre Dame, Os Desce-Mais, Rap Hour, Funk Tutti, Falsos Fósseis, Mulgasmos Órtiplos. Nome pra torcida organizada do Santos: Santo Suor & Cerveja. Do Fluminense: Fluminante. Nome pra motel: Dê Lírios, Amantes & Depois. Nome pra doceria: Papel de Bombom. Nome pra show de strip-tease masculino: Homens de Perto.

– E isso aqui? Cu Frito?

– É nome pra petisco de boteco. Anéis de lula na chapa.

– Ahahah! Adorei.

– Tem nome pra tudo, é só escolher.

– Isso aqui o que é? Campanha publicitária de lingerie?

– Exatamente. Uma moça deixou aí essa semana. Mas já tá vendida, um publicitário vem pegar amanhã. O mote é “Porque de repente tudo pode acontecer.”

– E pode mesmo. Aqui, Lulu, e este labirinto aqui?

– Ah, isso aí é um processador de ideias. Funciona assim, deixa eu mostrar. Você pega as ideias que você tem e joga dentro do labirinto por esse buraquinho aqui. Depois balança assim. O que é que vai acontecer? As ideias vão tentar encontrar a saída, claro. Nessa tentativa, muitas vão se encontrar pelos corredores, tá vendo? Olha só o que acontece quando elas se encontram… Uma se junta com a outra e forma uma nova ideia, tá vendo?

– Gente, que voyage… Será que é isso que acontece com as ideias na cabeça da gente?

– Chega um momento em que uma delas encontra a saída. Quando ela encontrar, você apanha rápido senão ela escapole. É sempre bom pra resolver aqueles problemas que parece que não têm solução, sabe?

– Tô passada… Mas olha, é tanta coisa aqui que um programa só não vê nem um por cento. Bem, pra terminar, Lulu, tem alguma ideia que você gostaria de mostrar pra gente?

– Tem essa aqui que chegou hoje de manhã. É o site do Grande Braulito. O Grande Braulito é o espírito da canabis, ele tá em todas as maconhas que são fumadas pelo mundo. Você fuma um e acessa o site do Grande Braulito. Você vai entrar numa viagem especial, com sensores conectados ao seu corpo, e aí você pode viajar pelos grandes momentos da História.

– Ah, é? Quais momentos, por exemplo?

– Você pode sentir o que Einstein sentiu quando criou a teoria da relatividade, o instante em que Vinícius e Tom viram a Helô Pinheiro passar e criaram Garota de Ipanema… Tem também umas lombras tortas, como o momento em que o piloto largou a bomba atômica em Hiroshima e em Nagasaki. Essa viagem eu não aconselho, pois todos os que experimentaram, ficaram pirados de verdade.

– Essa eu não quero.

– Tem a primeira transa da rainha Cleópatra, o milésimo gol do Pelé, o momento em que os índios viram as caravelas de Cabral chegando…

– Olha que coisa… Infelizmente nosso tempo tá no fim. É isso aí, gente. Você conheceu a Ki Lombra, loja de ideias da Lulu e da Ely, e pôde conferir o que tem de ideia maluca nesse mundo hemp, não é? A gente volta pro estúdio e na próxima semana tem mais. Valeu. Manda um tchauzinho aí, Lulu…

.
Entra bloco de anunciantes.

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– E aí, Lulu, aquela proposta tá de pé?

– Claro. Quer experimentar agora? Pega essa ficha.

– Oba. Segura aqui o microfone, Ferdinando. Não vai gravar isso, heim?

– Entra aí na cabine. Isso. Senta aí. Agora escolhe no painel quem você quer.

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– Hummm… Quero o Tom Cruise, cadê ele? Ah, taqui. Hummm, vou comer o Tom Cruise… Quero essa aqui também.

– A Luana Piovani?

– Acho ela ótima.

– Hummm… Um baião-de-três, né?

– Pode ser?

– Claro. Você é quem manda. Agora bota esses sensores. Isso. Onde que vai ser?

– Hummm… Essa opção aqui, no quarto do Tom.

– Escutando o quê?

– Ai, tô um pouco nervosa… Deixa ver… Bota Chico.

– Chico Buarque, pronto. Tomando o quê?

– Tem uísque?

– Tem. Vai unzinho também?

– Lógico!

– Unzinho, pronto. Põe o visor. Assim. Isso. Tá vendo direitinho?

– Uau, é perfeito! Superreal!!!

– A Luana já apareceu?

– Ainda não. Ops… ela tá chegando.

– Oi, Bia. Tudo bem?

– Ahnn… Oi, Luana…

– Você queria me conhecer?

– Queria… quer dizer… quero.

– Tô aqui.

– …

– É a tua primeira vez, Bia?

– É.

– Relaxa, vai ser ótimo. Vamos fumar um?

– Nada mal…

– Tira o sapato. Pega essa almofada aí, fica à vontade…

– Nossa, quanto livro! Não sabia que o Tom gostava tanto de ler. Cadê ele?

– Toma, pode fumar na boa. Esse é ótimo pra transar.

– Obrigado. Ahnn… Luana, desculpa perguntar… Você já transou com o Tom Cruise?

– Não. Posso soltar teu cabelo?

– Pode. Hummm… Esse fumo é mesmo bom…

– Tá mais relaxada?

– Tô ótima.

– Que bom. Deixa eu servir teu uísque.

– Você é tão doce… Eu tinha a impressão que você… era meio antipática.

– Às vezes esse negócio de ser famosa enche o saco. Aqui é bom porque todo mundo é verdadeiro, é o que é, não tem falsidade.

– Você é muito solicitada no CelebriSex?

– Sou. Mas se eu não quiser, posso negar. Conheço o programador.

– Conhece? Olha só, que privilégio…

– Quantas pedras?

– Heim?

– Quantas pedras. No uísque.

– Ahahahah! Entendi outra coisa. Duas tá bom. Aliás, quanto tempo a gente tem?

– Se tua ficha for simples, vinte minutos.

– Só? Não dá pra nada!

– Você se incomoda se eu tirar a roupa?

– Você?… Não, claro que não…

– Quer que eu tire a tua também?

– Ahnn… Agora não, deixa ele chegar primeiro.

– Ele tá chegando…

– Oi, Bia.

– Quem é você? E o que é que você tá fazendo na minha viagem?

– Eu sou o Kelmer.

– O escritor? O que criou o CelebriSex?

– Eu mesmo. Vamos escutar Chico Buarque? Boa pedida. Deixa eu ligar o som.

– Peraí, cadê o Tom Cruise?

– O Tom tá ocupadão. Pediu pra eu substituir.

– Como assim?

– Ele é muito requisitado no CelebriSex, não pode atender a todos os pedidos.

– Eu pedi uma transa com ele e não com você.

– Eu sei. Mas ele não pode vir. Qual disco do Chico você prefere?

– Esse aí tá bom.

– Ei, cadê meu beijo, Rica? Tava com saudade. Hummm… Ah, agora sim.

– Vocês… Você já conhecia ele, Luana?

– A gente sempre se encontra aqui no CelebriSex. Né, Rica?

– É. O uísque tá bom, Bia? Se você quiser outra bebida, é só pedir.

– Não sei…

– Quer comer alguma coisa? Tem um sushi muito bom.

– Chega aqui, Bia, deixa eu te dizer uma coisa. Sabia que no outro aposento tem uma piscina incrível, com água quente, holocine com show dos Doors…

– Quanto tempo já passou, Luana?

– Não te preocupa. O Rica liberou nosso tempo.

– E se eu quiser ir embora agora?

– É só sair por aquela porta.

– Você quer ir embora, Bia?

– Ahnn… Deixa eu dar mais um tapinha que eu decido…

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Ricardo Kelmer 2004 – blogdokelmer.com

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BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04aEste conto integra o livro
Baseado Nisso
– Liberando o bom humor da maconha

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Minhoca na cabeça

24/12/2008

24dez2008

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a.

Este conto integra o livro Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha, de Ricardo Kelmer

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MINHOCA NA CABEÇA

Quando o jovem escritor fuma, minhocas saem de sua cabeça. É mais um caso do além para Javier Viegas resolver

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USADOS E ABUSADOS. Ivan conferiu a placa na fachada da loja de usados e entrou. A moça no balcão o cumprimentou.

– Boa tarde. Posso ajudar?

– É aqui a loja do Javier?

– Sim, Javier Viegas. No momento ele está atendendo, mas deve desocupar em quinze minutos. Aguarde um pouco, por favor.

Ivan sentou-se no sofá e pegou uma revista para folhear. Logo depois estava entretido numa matéria sobre extraterrestres que raptam pessoas para implantar chips em seus cérebros e depois as devolvem à Terra e elas só conseguem recordar o que se passou em sessões de hipnose. Foi quando o homem apareceu, saindo da salinha ao lado, acompanhado de uma senhora de quem se despediu.

– Até logo, dona Iracema. Não esqueça de acender a vela hoje, heim? Vela amarela, virgem, de sete dias.

O homem virou-se para Ivan:

– Boa tarde, o moço está me aguardando?

Ivan reparou na figura: moreno, barrigudinho, meio calvo, cabelo preto, provavelmente com tintura, numa trança única que descia até o meio das costas. Devia ter seus cinquenta anos. Um sotaque espanhol e uns trejeitos afeminados.

– Vi seu anúncio no jornal.

– Ah, entre, entre, por favor. Aceita um licorzito de manga? Ana Isaura, traz dois pra gente, traz.

Era uma sala decorada com coisas antigas, quadros, candelabros, móveis rústicos. Javier lhe ofereceu uma cadeira em frente à mesa e sentou-se na sua, do outro lado, brincando com a longa trança sobre o peito.

– Prazer. Javier Viegas. Tarô e outros babados.

– Prazer, Ivan.

– Ivan, el terrible, ui… Mas diga, meu filho, a que devo o prazer de receber olhos tão bonitos? – E cantarolou: – Lindo, e eu me sinto enfeitiçada, iééé…

– É o seguinte, seo Javier…

– Seo, não. Assim eu não atendo. Pode levantar e ir embora ‒ falou Javier, fingindo estar magoado.

– Desculpe. Javier. Bem, Javier, é uma coisa assim meio… esquisita.

– Mi querido, já vi tanta coisa esquisita neste mundo que não me assusto com mais nada. Olha seu licorzito aí. É caseiro, viu?

Ivan recebeu o cálice que a atendente lhe oferecia. Levou-o à boca, mas foi interrompido por Javier.

– Menino, que heresia! Não vai brindar?

– Ah, claro, claro…

Javier ergueu o cálice e fechou os olhos, concentrado, em silêncio. Ivan esperou que ele concluísse seu ritual, talvez fosse algo esotérico, melhor acompanhar. Fechou os olhos, respirou fundo e escutou:

– Beber sem brindar, dez anos sem pimbar… Brindar sem ver, dez anos sem foder…

Ivan abriu os olhos, surpreso. Javier bebia seu licor, compenetrado, os olhos fechados. Que diabo de sujeito era aquele?

– Muito bom o licor, obrigado – disse Ivan, após provar da bebida.

– Minha mamacita quem faz. Dona Carmela. Todo mês me manda um vidrão assim. Esse é de manga, que é muy bueno, mas tem um de café que você não crê. Aliás, estou procurando um sócio, esses licores de mamãe podem deixar qualquer um milionário. Você não estaria interessado?

– Não obrigado, não gosto de comércio.

– Depois não diga que eu não avisei. Mas fale, conte seu problema.

– Bem, eu… O senhor, digo, você fuma? – Ivan fez o gesto de quem fuma um baseado.

– Marijuana? Não no primeiro encontro – respondeu Javier, rindo. Ivan riu sem jeito. – Não é minha viagem predileta, mas de vez em quando dou meus tapinhas pra ir ver o Almodovar.

– Bem, eu fumo. Quer dizer, fumava. Deixei exatamente porque começou a acontecer uma coisa estranha…

– Hummm, está melhorando. A-do-ro cositas estranhas.

Ivan olhou para a porta, desconfiado.

– Está fechada, menino, fique tranquilo. Fora duas entidades aqui atrás… – e apontou com a ponta da trança por sobre o ombro – aqui nesta sala só tem eu e você, você e eu. Juntinhos. Tim Maia era ótimo, não?

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– Ah, sim. Era sim. – Ivan pigarreou. E prosseguiu. – Você vê espíritos, Javier?

– Desde que eu era niño de teta. Mas diga, que coisa estranha é essa que lhe acontece?

– Ultimamente, quando eu fumo um baseado, começam a sair minhocas da minha cabeça.

– Minhocas?

– Isso.

– Saem minhocas de dentro da sua cabeça?

– Exatamente. Minhocas. Saem pelas orelhas.

Ivan aguardou enquanto Javier o observava.

– Faz tempo que você fuma marijuana?

– Desde os dezoito. Tô com trinta e quatro.

– Fuma todo dia?

– Geralmente, quando vou escrever. Duas, três vezes por semana. Sou escritor.

– Ah, é escritor? Que bueno receber um escritor em minha sala. Ainda mais um escritor cheio de lombrices na cabeça…

– É sério, Javier. Não é viagem não, é verdade. Olhe, eu trouxe uma aqui pra você ver.

Ivan tirou do bolso da camisa um saquinho de plástico e o estendeu sobre a mesa. Mas Javier o interrompeu.

– Não, não, gracias. Eu acredito em você.

– Pode pegar. É inofensiva.

– Não preciso pegar em sua minhoca pra saber que ela existe, criatura, estou vendo.

– E então? O que você acha?

– Já procurou um médico?

– Nunca falei pra ninguém. Quem ia acreditar?

– Então vamos ter que ver esse babado de perto. Quinta-feira, oito da noite. Tá bom pra você?

– Tá bom.

– Então me espere que eu apareço.

– E quanto vai cobrar?

– Pelo quê?

– Sei lá. Você vai fazer alguma coisa, não vai?

– Bueno, eu cobraria esses seus olhos. Botaria eles numa moldura pra eles ficarem mirando a mim todo dia. Mas como eu sei que você não me daria, então vou cobrar só o preço de custo.

– E quanto é?

– Milzito.

– Mil reais?

– Caro, é?

– Bem que me disseram que você é careiro.

– Careiro é quem cobra caro e não resolve. Eu resolvo.

– Eu não tenho esse dinheiro todo.

– Posso facilitar.

– Não dá pra deixar por cem?

– Cem? Ai, meu são Sebastião flechado… Setecentos.

– Cento e cinquenta.

– Meu filho, sabe quanto me custou esse livro aí que você está com o cotovelito em cima? Cinco mil reais. Mandei buscar em Damasco, veio na corcova de um camelo, protegido por uma caravana de tuaregs barbudos, pegou barco, avião… É um livro sobre como criar demônios em garrafa.

– Você cria demônios?

– Eu não. Mas conheço gente que cria e estou aprendendo a fazer umas garrafitas maravilhosas pros bichinhos morarem com mais dignidade. Sabe a Jeannie É Um Gênio? Pois é daquele modelito, com sofazinho, cortininha… Demônio também é gente.

Ivan coçou a cabeça, pensando se não fora uma péssima ideia ir ali.

– Muito bem. Quinhentos e não se fala mais nisso.

– Duzentos.

– Quatrocentos.

– Duzentos e cinquenta.

– Trezentos, e acabou. Metade agora que estou com o aluguel atrasado. A outra metade no dia.

– Ah, agora eu não tenho. Não dá mesmo pra pagar na quinta-feira?

– Ai, pelas sete pétalas! Está certo, criatura. Mas não diga a ninguém que fiz por esse preço, sim? Minha reputação iria pelo ralo do esgoto…

.

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04aNA QUINTA-FEIRA, A CAMPAINHA do apartamento de Ivan tocou e ele abriu a porta.

– Preparado? – Javier disse, alisando a longa trança que passava pelo ombro e caía sobre o peito. Vestia calça e camisão, tudo branco.

– Só um pouco nervoso… Vamos entrando. Que elegância, heim?

– Gostou? Comprei especialmente pra esta ocasião. Tinha que ser uma roupa que nunca foi usada. Humm, Karine Alexandrino… – Javier pegou um CD sobre o aparelho de som. – Mas não é que o bofe tem bom gosto? Adoro essa perua. Dizem que é homem operado, mas eu não acredito.

– Quer escutar?

– Em outra ocasião. Vamos logo ao que interessa. Menino, mas que buena vista que você tem desta janela. Pra empurrar cobrador é uma beleza. Cadê o baseadito?

– Aqui. Você fuma também?

– Desta vez não. Anda, senta aqui do meu lado e acende logo.

Ivan acendeu o baseado e começou a fumar. Javier observava atento, sentado ao lado no sofá.

– Não tem problema com os vizinhos?

– Que nada. Nesse prédio só tem maconheiro.

Ivan deu mais algumas tragadas, apagou e guardou a guimba numa caixinha de alumínio.

– Olha aí, já tá começando… – falou Ivan, apontando para a orelha direita.

Javier se aproximou e pôde ver perfeitamente: alguma coisa surgiu à entrada do ouvido. Depois foi saindo, saindo e era mesmo uma minhoca, uma pequena minhoca que deslizou um pouco mais para fora, balançou-se e caiu sobre o ombro do rapaz.

– Pelas pantufas do niño Jesus… Que coisa…

– Pode pegar, não morde.

– Não, gracias, minha religião não permite.

– Olha, já tá vindo outra…

Javier viu outra minhoca surgir à entrada do ouvido. Essa também deslizou, balançou um pouco e caiu.

– Tá saindo outra! – Javier gritou. – É a invasão das minhocas… E pelo outro ouvido, não sai?

– Sai. Tá saindo agora, olhaí.

– Que coisa loca. Me diga, quantas saem?

– Ah, depende. Às vezes sai uma só, outras vezes duas, três, cinco. Uma vez saíram nove, quase fiquei doido.

– O que você faz com elas?

– O que eu faço? Jogo fora, claro.

Javier fechou os olhos e apoiou-se com as costas na parede. Respirou profundamente, uma, duas, três vezes. Depois murmurou algo ininteligível por alguns segundos e, por fim, abriu os olhos. Afastou-se da parede e falou calmamente:

– Pois desta vez vamos fazer diferente. Já saiu tudo?

– Acho que sim.

– Então junta num papel e traz aqui – Javier foi à cozinha e abriu a geladeira. – Tem cebola?

– Cebola?

– É. Cebola. Aquela cosita arredondada, com casquinha, que faz chorar…

– Não tô entendendo…

– Claro que não está. Se estivesse entendendo não teria de me pagar quatrocentos reais.

– Trezentos.

– Não foi quatrocentos?

– Não, foi trezentos.

– Então anda, vem cá, me ajuda a cortar. Este tomate também vai.

– Minhoca não come tomate, Javier.

– Quem disse que elas vão comer alguma coisa? Onde está a frigideira, é aqui embaixo? Ah, aqui está. Tem manteiga?

– Javier, você podia me explicar…

– Dá aqui as minhocas.

Ivan passou-lhe as quatro minhocas e Javier despejou-as na frigideira, junto com pedaços picados de tomate e cebola.

– Javier, você não tá pensando…

– Um temperozinho…

Enquanto Javier fritava e temperava as minhocas, Ivan observava sem acreditar.

– Javier, você por acaso…

– Creio que já está bueno. Tem farinha? Tem, ótimo. Vamos botar um poquito, mexer… Onde estão os pires? Creio que um azeite vai bem. Pronto, você come essas duas aí e eu como essas duas aqui.

– Eu?!

– É riquíssimo em proteína, sabia? Na China o povo faz fila pra comer.

– Eu não sou chinês.

– Mas é um escritor que me contratou pra desvendar o mistério das lombrices. Anda, aproveita que está quentinho.

Javier levou a primeira minhoca à boca e começou a mastigá-la, de olhos fechados, calmamente. Ivan olhava enojado.

– Não está tão mal, Ivan. Prova aí.

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04aIvan levou a colher à boca e mastigou uma minhoca. Quase pôs tudo para fora, mas controlou-se e engoliu.

– Ivan, tô recebendo uma mensagem pra você – Javier falou, de olhos fechados.

– Pra mim?

– Um bruxo… que mora sozinho na floresta…

– Como?

– Isso mesmo. Um bruxo. Ele mora… sozinho numa cabana, próximo de uma aldeia.

– Ele tá enviando uma mensagem pra mim?

– Uma bruxa muy bonita que mora perto… e os dois vivem brigando.

– O que é isso, Javier?

– Na verdade, os dois… são apaixonados um pelo outro. Mas não reconhecem isso.

– Sinceramente, não tô entendendo nada.

– Deixa ver essa outra minhoquita… – Javier mastigou a segunda minhoca. – Hummm… Um velhinho que é o Guardião dos Gnomos… Cruzes, é isso mesmo? Sim, é isso mesmo, Guardião dos Gnomos. Os gnomos têm o poder de encontrar pessoas… de fazer com que as pessoas se encontrem… Um dia, um rapaz o procura porque está interessado em…

– Espere um pouco, Javier – interrompeu Ivan. – Só um instante.

– Um pescador… uma bela noite… – Javier seguia falando, aparentemente em transe. – Ele encontra uma sereia e ela… diz que tem o poder de lhe dar muito dinheiro.

– Espere, Javier, que eu vou pegar uma caneta!

Ivan saiu correndo e voltou com papel e caneta.

– Aquela primeira, como era mesmo? Um bruxo e uma bruxa que vivem na floresta…

– Um fantasma… ele mora no quarto de uma pensão e… e sempre trata de expulsar os inquilinos que o alugam.

– O guardião dos gnomos… e depois… depois o quê mesmo?

– Menino, o que eu fiz? – falou Javier, de repente, abrindo os olhos.

– Comeu duas minhocas fritas. Como era mesmo a outra mensagem?

– Aaaaaaarrrrrgh!!! – gritou Javier, levando as mãos à boca e correndo para o banheiro. – Me acuda, minha cabocla Mariana do cabelo cor de telha! Argh!

– Depois foi o quê mesmo? – perguntou Ivan, indo atrás dele com a caneta e o papel. – Ah, o pescador e a sereia.

– Minhoca frita! Não creio! Traz água, por caridade!

– Já vou pegar. Depois foi o quê?

– Ah, não me recordo, criatura. Quem tem de lembrar é você. Vai pegar minha água, maligno.

– Não são mensagens, Javier, são ideias pra contos.

– Ah, é?

– E são ótimas, todas elas. Ah, lembrei! O fantasma da pensão.

– Então não deixa de ser mensagem. Deixa que eu vou pegar a água, cavalheiro.

– Puxa, não acredito! Javier, você é demais!

– Ideias pra contos, heim? Bueno, vai ver que é isso que faltava pra você ser um escritor famoso: uma dieta à base de minhoca frita.

– Puxa, Javier, nunca poderei lhe agradecer…

– Claro que pode. São trezentos reais, aqui en la mano.

– Escute, Javier, tenho uma proposta a lhe fazer. Que tal trabalharmos juntos? Você come as minhocas e me passa as mensagens. Eu serei um escritor famoso, venderei muitos livros… Nós ficaremos ricos, Javier! Você fica com dez por cento de tudo o que eu ganhar, aceita?

– Não.

– Mas, Javier, as ideias são maravilhosas, eu vou escrever ótimos contos, eles vão ser um sucesso!

– Tsc, tsc. Madre de Dios, esse gosto horrível não sai…

– Vinte por cento.

– Já disse que não me interessa. Imagina, vou virar um minhocário ambulante…

– Trinta!

– Trinta por cento? – Javier alisou a trança sobre o peito, pensativo. Fez algumas contas rápido. – E se você não ficar famoso nem nada?

– Com essas ideias? Impossível!

– Não, não interessa. É melhor eu garantir o meu agora. Escuta, por que você não come as minhocas? Afinal, é da sua cabecita que elas saem, e não da minha.

– Ah, Javier, eu não vou conseguir, é ruim demais.

– Faz parte do seu aprendizado cósmico. Vamos, eu quero meu pagamento, dá aqui na mãozinha.

– Javier, por favor, seja mais bondoso…

– Mais bondoso? Só se da próxima vez eu comer aranha…

– Desculpe, não quero ser injusto.

– Exatamente, seja justo. Eu mostrei pra você qual a utilidade dessas minhocas que saem de sua cabeça quando você fuma, e agora é muito justo que eu receba meu pagamento, que te parece?

– Então vamos deixar pelos duzentos?

– Trezentos, foi o que combinamos.

– Duzentos e cinquenta então.

– Ah, eu não creio! Está bem, me pague e me deixe ir embora comer qualquer coisa pra tirar esse gosto horrível da boca, argh…

– Vou fazer os cheques.

– Cheques?

– Você parcela, não parcela?

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BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– SEO JAVIER, DESCULPE interromper, mas é encomenda pro senhor assinar – avisou Ana Isaura, entregando um pacote.

– Só um instantito, dona Iracema… – disse Javier, interrompendo a consulta do tarô e assinando o papel. – O que deve ser? Ah, é do Ivan, aquele bofe dos olhos lindos. Livro novo…

– Quem é Ivan? – perguntou dona Iracema, sentada à sua frente na mesa.

– É aquele escritor, a senhora não conhece? Ivan Ferreti.

– Ah, sim, claro. Ele é seu amigo?

– Uns anos atrás resolvi um babado forte pra ele, entonces sempre que ele lança livro novo, manda pra mim, com dedicatória e tudo – Javier abriu o pacote e mostrou o livro, orgulhoso. – Mira que capa bonita.

– Bonita mesmo.

– Era um pé-rapado. Hoje está famoso, podre de rico. Casou dia desses com uma modelo italiana que é a cara da Anita Ekberg, até os peitos são deste tamanho. Sabe onde o bofe mora atualmente? Num castelo na França, imagina o luxo.

– Nossa, que partido… Pra mim não cai um desse.

– Ai, ai, quando eu penso naqueles trinta por cento…

– Como?

– Nada, mulher, nada. Divaguei. Mas sim, onde estávamos?

– No Enamorado.

– Ah, nessa carta aqui. Pois bem… Bueno, deixa eu ver… Humm, é um senhor alto, viu, educado, distinto… Um guapo.

– Será que é casado, Javier?

– E isso lá é problema, mulher! Se for, a gente descasa.

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Ricardo Kelmer 2000 – blogdokelmer.com

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BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04aEste conto integra o livro
Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha

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Animação no jantar

23/12/2008

23dez2008

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a.

Este conto integra o livro Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha, de Ricardo Kelmer

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ANIMAÇÃO NO JANTAR

Os pais de Maria Amélia estão impressionados com o namorado da filha, um profundo conhecedor da psicologia dos super-heróis

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– PAI, MÃE, ESSE AQUI é o Mingo.

– Boa noite, seo Erandir. Boa noite, dona Gilda.

– Boa noite, Mingo. Sente aí pra jantar.

– Obrigado.

– Gosta de sopa de feijão, Mingo?

– Gosto, dona Gilda.

– Eu sirvo pra você. Maria Amélia, pega mais pão na cozinha.

– Ô Mingo, você sempre janta de óculos escuros?

– Estou com um probleminha nos olhos, seo Erandir.

– Ah.

– Maria Amélia me disse que você está concluindo uma tese de mestrado, Mingo. É verdade?

– É, dona Gilda.

– E sobre o que é mesmo?

– Personagens de gibis e desenho animado.

– Gente, que interessante.

– Pois é, mãe, o Mingo é um grande estudioso da psicologia dos super-heróis.

– Que bom.

– Quer mais pão, Mingo?

– Aceito.

– No meu tempo os desenhos eram muito bons, educativos, ensinavam coisas boas às crianças. Hoje o que se vê é só porcaria. Muita violência. Muito sangue.

– Concordo com o senhor.

– Na minha opinião, o último desenho que ainda prestava era aquele dos Smurfs. Você assistia?

– Sim.

– O que você acha? Era bom, não era? O Gargamel sempre se dava mal. Isso mostrava às crianças que fazer o mal não compensa. Desenho educativo.

– Quer bolo, Mingo?

– Aceito. Na verdade, seo Erandir, o Gargamel era usuário de LSD.

– Heim?

– Usuário, sim. O senhor conhece LSD?

– Se eu conheço? Não, mas já li alguma coisa.

– Aquele LSD não era dos melhores, a gente logo via. Atente pro comportamento do Gargamel. Fica a vida inteira perseguindo uns homenzinhos azuis que vestem gorros e fraldinhas. Aprofundando mais, podemos nos perguntar: pra que ele quer tanto pegar os Smurfs?

– Ahnn… Pra comer, né?

– Justamente. O LSD de péssima qualidade potencializa as tendências pedófilas do Gargamel. Isso hoje dá cadeia, o senhor sabe. Sem falar que ele abusava psicologicamente de seu gato, um prato cheio pra sociedade protetora dos animais entrar com um processo contra a produtora do desenho, milhões de dólares.

– Eu nunca tinha pensado nesses termos.

– Tem mais bolo?

– Tem, Mingo, deixa eu servir pra você. Ah, eu gostava mais do Patolino. Ele era muito engraçado, né, Erandir?

– Eu não gostava, Gilda. Ele era muito agoniado.

– Exato, seo Erandir. O Patolino é o maior cheirador do planeta.

– Cheirador?

– Cocaína, pai. Cheirador de coca.

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– O cara é ligadão demais, seo Erandir. Não para de falar um só instante, tem uns papos muito estranhos. E sofre de mania de perseguição. É tão ligadão que consegue ficar gritando, pulando sem parar, arrancando as penas e batendo a cabeça no chão sem sentir dor.

– Gente, cocaína faz isso?

– Faz, dona Gilda. Uma vez ele cheirou tanto que travou geral.

– Travou geral?

– Exato. Foi uma travada tão violenta que o queixo dele foi bater atrás da cabeça.

– Ah, eu gostava tanto do Patolino… Gente, mas por que ninguém nunca disse que ele cheirava cocaína?

– Se dissessem, dona Gilda, os pais não deixariam seus filhos assistir.

– Viu, Gilda? Bem que eu não gostava dele.

– Ah, eu gosto. Quer dizer, depois dessa revelação, já não sei…

– E o Popeye? Aqui na rua tinha uma vizinha do outro lado da rua, a Lindalva, lembra da Lindalva, Gilda? Ela era bem magrinha. A gente chamava ela de Olívia Palito. Influência dos desenhos.

– Olívia Palito. É uma personagem inspirada em muitas mulheres que existem por aí, seo Erandir, mulheres de carne e osso.

– No caso da Lindalva, mais osso que carne.

– Exatamente, dona Gilda. Mas a Olívia é uma personagem tremendamente complexa. Foi a primeira heroína da TV a usar descaradamente anfetaminas e moderadores de apetite. Na verdade, ela é anoréxica. E ainda é evangélica.

– Evangélica?

– O senhor nunca reparou? Veja o estilo da roupa: saia abaixo do joelho, blusa fechadinha, tudo muito comportado e sem graça.

– Que coincidência! A Lindalva também era evangélica. Não era, Gilda?

– A Olívia é evangélica, seo Erandir, mas é uma evangélica piradaça, pois fica provocando o Popeye o tempo todo. Faz o coitado gastar uma fortuna tomando Viagra misturado com espinafre. Como se não bastasse, engana o cara o tempo todo com falsas promessas de casamento. E tem mais. A safada adora ser raptada e amarrada pelo Brutus. Sexo selvagem. É a famosa magrinha que aguenta o tranco…

– Isso! Exatamente!

– E o Scooby-Doo, Mingo, fala do Scooby.

– Era um cachorro muito doido. Mas mais doido era o dono.

– Como era mesmo o nome dele?

– Salsicha.

– Isso, Salsicha! Eu não gostava muito dele não. Era assim meio, meio sujo…

– O Salsicha, seo Erandir, é o suspeito número um, o maconheiro típico.

– Ele fumava maconha? Nunca reparei.

– É só ver o jeitão dele, as roupas, o cabelo, o cavanhaque… O maluco conversa altos papos com um cachorro e está sempre na maior larica, louco pra traçar um sanduba. Isso sem falar naquele furgão psicodélico: eles se trancavam pra fumar um e saíam de lá vendo fantasma pra todo lado… Mas o Salsicha tinha muita moral com os roteiristas porque mesmo com aquela bandeira toda, nunca levou uma geral dos canas. O Scooby não fumava, mas pegava toda a maresia e por isso também vivia na larica.

– Maresia?

– É a fumaça do baseado, seo Erandir.

– E o que é larica?

– É a fome que dá depois de fumar. Esse bolo tá bom mesmo… Vou pegar mais um pouquinho. Mas voltando ao Scooby. Um cachorro que come, em média, cento e vinte biscoitos por episódio só pode estar totalmente laricado.

– Que coisa… Eu nunca tinha visto por esse lado.

– Fala do Homem-Aranha, Mingo, fala.

– Ah, o Homem-Aranha eu gosto! Lembra, Gilda, que eu tinha a coleção completa? Peter Parker. Esse sim era um super-herói educativo, você não concorda? Trabalhava, cuidava da tia doente, você via que ele era muito apegado a ela.

– Apegado ao dinheirinho que ela guardava na poupança, isso sim. A velha tinha quase cem anos. Já pensou o montante da bufunfa? Um nome mais apropriado pro Homem-Aranha seria Homem-Urubu, pois ele tava ali sempre rondando a tia, esperando a velha morrer pra pegar a herança. E ainda vivia em eterno conflito por não assumir sua bissexualidade.

– O Homem-Aranha era gay?

– Claro. O senhor acha que aquele negócio de ficar soltando teinha de aranha pra lá e pra cá é coisa de homem sério? É o primeiro caso de super-herói que começa a carreira por causa de uma picadura. E o cara é azarado pra cacete: a primeira namorada, uma loiraça rica e boazuda, morreu assassinada pelo Duende Verde. O senhor sabia que Duende Verde é o nome de uma boate gay lá em Pelotas?

– Não sabia.

– Pois é, homenagem ao Homem-Aranha. Super-herói gay tem muito por aí. Tem também o…

– Não sei se quero saber de mais algum…

– Batman.

– Ah, não!

– Ah, sim, seo Erandir. Essa é a dupla homossexual mais bandeirosa do mundo dos super-heróis. O clássico exemplo do gay titio que curte garotão. O bofinho esperto, que se aproveita do coroa pra pagar a faculdade. Homem-morcego. Morcego faz o quê, seo Erandir? Sai à noite e chupa fruta. Menino-prodígio. Prodígio em quê? Isso é lá apelido que um homem sério bote no outro! E ainda tem o mordomo.

– O Alfred? Que é que tem ele?

– Aquela pouca-vergonha rolando na bat-caverna, todo santo dia… O senhor acha que o Alfred não ia saber? Claro que sabia. Se é que não participava também. Aquela cara de diretor de seminário não me engana.

– Gente… Tô muito surpresa. Como você descobriu isso tudo, Mingo?

– Pesquisando, dona Gilda, pesquisando…

– Acho que vou proibir o Cacá de assistir TV. Batman, Homem-Aranha… Tudo gay!

– Relaxa, Erandir. Nosso filho gosta é do He-Man.

– Hummm… Logo o He-Man?

– Qual o problema com o He-Man?

– Quer saber mesmo, seo Erandir?

‒ Acho que não…

‒ Gay da geração mais nova, ligada em academia, corpo malhado. Consumidor compulsivo de esteróides. Torra a grana toda com vitamina e energético. E aquele cabelinho chanel? Loira poderosa.

– Não posso acreditar…

– Acredite. O He-Man lançou o “barbie life style” na TV. Sucesso total. E aquele grito dele?

– Ah, isso eu lembro. Pelos poderes de Grayskull! Eu tenho a fooorçaaaa!!!

– Isso na tradução final do estúdio brasileiro, seo Erandir.

– Como assim?

– No original é “Pelos poderes de gay que sou! Eu dou a rosca!”

– Você tem certeza, Mingo? Será que você não se enganou?

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– Pense bem, dona Gilda, é muita bandeira. O cara mora num castelo, fica pra lá e pra cá de sunguinha e botinha, malhando o tempo todo, injetando anabolizante… Tem até um tigre de estimação. Pura fantasia selvagem de bicha louca.

– Mas se ele é gay, quem é o outro?

– Ora, quem mais seria? O Esqueleto.

– Cruz credo!

– Aquela risadinha do Esqueleto é muito aviadada, a senhora não acha não? Os dois têm um caso super-mega-mal-resolvido. O Esqueleto, coitado, não se conforma de jeito nenhum com a separação. Por isso é que fica o tempo todo bolando vingancinha, aprontando o maior barraco em público… Bicha vingativa é um horror.

– Bom, pelo menos tem a turma da Mônica pra salvar os gibis…

– Em termos, seo Erandir, em termos…

– Não vá me dizer que a Mônica e o Cebolinha…

– Os dois? Não, não, entre eles não sai nada. A Mônica é sapata, estilo caminhoneira, dá porrada em todo mundo.

– Gente, não acredito… Ah, mas pelo menos não tem droga no meio…

– Como não tem, dona Gilda? E o Rolo? Autêntico bicho-grilo dos anos 70. Barbudo, andava descalço… E o cabelo? Nunca viu um xampu na vida. O cara não trabalhava, passava o dia inteiro viajando nas ideias e tocando um violão faltando uma corda. Bastava ele acender um baseado e botar um Led na vitrola que a Tina vinha correndo dar pra ele.

– A Tina?

– Claro. Mas hoje é diferente. Ela virou hippie de butique, anda toda arrumadinha, tem namorado mauricinho e trocou o baseado por umas caipirinhas no pagode. E com essa moda aí de juntar os personagens, alguém ainda vai criar a história onde o Rolo e o Salsicha desvendam o misterioso caso do sumiço do bagulho.

– Nossa, Mingo, você deve ter pesquisado bastante. Aceita mais um café?

– Aceito. E se não for abusar, vou pegar só mais pedacinho desse bolo, tá muito gostoso.

– Ô Mingo. Não escapa ninguém nesse seu estudo? A Alice no País das Maravilhas, por exemplo. Eu não vejo nada ali de maldade…

– Alice, a ninfeta maluquete.

– Ah, não era isso não.

– Comeu sete cogumelos de uma vez só e ficou triloca, conversando com os bichos mais estranhos do pedaço e fumando um puta haxixe da Turquia num narguilê junto de uma centopeia doidona.

– Cogumelo? Haxixe?

– O haxixe deixou a ninfeta tarada: ela traçou o coelho corredor, o gato listrado, o chapeleiro maluco, e não dispensou nem as cartas de baralho. Só não traçou a rainha porque o efeito passou.

– Gente, estou decepcionada…

– Tem mais, Mingo?

– Ah, não, Erandir! Não quero ouvir mais. Minha infância foi… foi… violentada.

– Desculpe, dona Gilda. Não era minha intenção.

– A gente tem que ir, pai.

– Tá cedo, fiquem mais um pouco.

– Obrigado pelo jantar, dona Gilda. Estava ótimo.

– Apareça mais, Mingo.

– Tchau, pai. Tchau, mãe.

– Juízo, filha.

– Gostei do Mingo, Gilda. Ele deve ser muito estudioso. Só achei estranho aquele óculos escuro. E você viu como ele estava com fome? Quase acabou com o bolo.

– Erandir…

– Sim.

– O que você quis dizer com “exatamente”?

– Como assim?

– Não se faça de desentendido.

– Juro que não estou entendendo.

– Quando ele falou da Olívia Palito, você lembrou da Lindalva, nossa vizinha.

– Ué, você também lembra dela.

– O caso não é esse.

– E qual é o caso?

– Quando ele contou que a Olívia gostava de sexo selvagem com o Brutus e disse que ela era a famosa magrinha que aguentava o tranco, você disse o quê?

– Sei lá.

– Você disse “exatamente”.

– Eu disse isso?

– Disse.

– Tá, eu disse. E qual é o problema?

– Com aquele “exatamente” você quis dizer que sabe que a Lindalva também gosta de sexo selvagem.

– Eu sei disso?

– Erandir, não queira me fazer de boba. Você comeu aquela magricela sem-vergonha?

– Gilda, você está delirando…

– Estou é muito lúcida, isso sim. Você falou “exatamente” e eu sei muitíssimo bem o que você quis dizer com isso. Não queira me fazer de boba.

– Danou-se. Agora ninguém mais pode falar “exatamente”…

– Erandir, você comeu ou não comeu?

– Minha filha, você trabalhou muito hoje…

– Não me chame de minha filha!

– Tá bom, tá bom, calma…

– Comeu ou não comeu?

– Quer saber mesmo a verdade?

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– Quero.

– Quer mesmo?

– Quero!

– Não comi.

– Não acredito.

– Então não acredite.

– Se não comeu, então o que você quis dizer com “exatamente”?

– Pô, Gilda, eu sei lá o que eu quis dizer com “exatamente”! A gente fala essas coisas pra conversa prosseguir e não porque está concordando…

– Sei.

– Gilda, a gente estava falando da Olívia e não da Lindalva.

– Você estava falando da Lindalva.

– Não, era da Olívia.

– Não era.

– Gilda, de uma vez por todas: eu não comi a Olívia.

– A Lindalva.

– A Lindalva sim. A Olívia não.

– Taí! Eu sabia!!!

– Sabia o quê?

– Você comeu!

– Não comi!

– Você acabou de falar!

– Eu falei?!

– Falou sim. “Comi a Lindalva, a Olívia não.”

– Enlouqueceu? Falei o contrário: comi a Olívia, a Lindalva não. Peraí. Eu também não falei isso. O que foi que eu falei mesmo?

– Erandir, você é desprezível!

– E você me confundiu de propósito.

– Como que você teve a coragem de me trair com aquela, aquela evangélica neurótica?! Aquela tarada que dava em cima dos homens todos dessa rua em nome de Jesus Cristo! Heim? Heim?

– Gilda…

– Você pensa que eu não percebia ela olhando pra você quando você regava as plantas? E aquelas visitinhas que ela fazia pra deixar panfletinho do culto? Eu sabia!

– Gilda…

– O que é?

– Eu te amo.

– Heim?

– Eu disse que eu te amo.

– Não vem com essa!

– Amo sim.

– …

– Eu te amo demais, Gilda…

– Não ama.

– Amo e sempre amei. E nunca vou deixar de amar.

– Você está é querendo mudar de assunto.

– Sabe por quê?

– Por que o quê?

– Por que eu nunca vou deixar de te amar?

– Não.

– Porque você é a heroína dos quadrinhos da minha vida.

– Mentira.

– Verdade.

– Eu te conheço, Erandir…

– E sabe o que um homem tem vontade de fazer com a heroína dos quadrinhos da vida dele?

– Não…

– Comê-la. Todinha. Com papel e tudo.

– Besteira.

– Besteira? Olha aqui o tamanho da besteira.

– Erandir, você é louco! Bota isso pra dentro!

– Só se for pra dentro da minha heroína.

– Erandir, o Cacá…

– Cacá já está no quinto sono.

– Ahnn… eu não sei…

– Pois eu sei. Senta aqui.

– Aqui não.

– Tira esse vestido.

– Erandir, é melhor…

– Então eu tiro.

– Não. Deixa que eu tiro. Você sempre arranca os botões.

– Isso, agora vira assim, aqui na mesa.

– Erandir, olha a cafeteira da mamãe…

– Isso, assim mesmo.

– Ai, Erandir…

– Tá bom?

– Tá ótimo…

– Quer Popeye ou Brutus?

– Brutus.

– Então toma, sua safada.

– Ai! Me chama de Olívia…

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Ricardo Kelmer 1998 – blogdokelmer.com

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BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04aEste conto integra o livro
Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha

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01- vc e muito figura mesmo mas devo confessar que adoro “animação no jantar” não da outro Mingo!!!!!!!!!!! lembro que estava em um vôo para o Parana e conheci um rapaz e começamos a falar sobre desenhos e eu falava igualzinho o Mingo e o figura morria de rir assim como eu daí no fim pedi pra ele visitar o blog do Ricardo kelmer que a idéia não era minha kkkkkkkk mas valeu …. Fernanda Vasconcelos, Aracaju-SE – jul2012


A verdadeira história do resgate do soldado Rian

23/12/2008

23dez2008

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a.

Este conto integra o livro Baseado Nisso – Liberando bom humor da maconha, de Ricardo Kelmer

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A VERDADEIRA HISTÓRIA
DO RESGATE DO SOLDADO RIAN

O soldado Rian foi capturado pelos inimigos. Seu sargento acredita que pode salvá-lo. Mas é uma missão quase impossível

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EU JÁ HAVIA ME JUNTADO a dois companheiros na 13ª base quando o soldado Rian, que deixava o 4o quadrante, foi capturado no momento em que tentava nos alcançar. Fora de fato uma tentativa arriscada, pois o 3o quadrante possuía dois destacamentos inimigos posicionados imediatamente atrás de nós. No entanto, se ele conseguisse passar por eles e juntar-se a nós, já poderíamos começar a comemorar a vitória, pois ele era o último soldado da retaguarda.

Vi quando renderam o soldado Rian, lhe bateram com o rifle e o levaram arrastado. Uma vez prisioneiro no 4o quadrante, Rian tentou escapar através da 20a e 22a bases, que estavam livres, mas levou azar: vieram as Senas Obscenas e o impediram. As Senas costumam aparecer nesses piores momentos. Logo em seguida, o inimigo conquistou a 20a base e aí a coisa piorou de vez, pois Rian passou a dispor de apenas uma única base para escapar, exatamente a 22a, e por três tentativas consecutivas não conseguiu, o que possibilitou ao inimigo retirar com tranquilidade um destacamento inteiro do 1o quadrante e avançá-lo até o 3º.

A sorte é que o inimigo também não foi competente o suficiente para conquistar a 22a base, deixando-a livre para mais uma tentativa de fuga de Rian. Foi assim que pude vislumbrar uma saída. Levei o plano ao comandante Martan.

– Deixe ver se entendi. Você quer se entregar, sargento Veras?

– Sim, comandante.

– Na 11ª?

– Exato, senhor.

– Você acha que aquele bunda-mole do Rian vale seu sacrifício?

– É o meu melhor soldado, senhor. Sem falar que ele anima bastante as noites da companhia com o seu violão. E é a única chance que temos de vencer. Atrairei o destacamento que ocupa a 10a e me deixarei aprisionar. Juntos, eu e Rian teremos mais chances de escapar do que ele sozinho.

– Ou então perderemos de vez esta batalha. Mesmo que vocês dois escapem, talvez não consigam retornar a tempo.

– Dê-me uma chance, senhor.

O comandante Martan levantou da cadeira e caminhou em silêncio pela sala, o olhar no chão. Foi até a janela e ficou a observar a movimentação de alguns destacamentos lá fora, nos rostos dos soldados a visível apreensão pelo companheiro aprisionado. Nós sabíamos perfeitamente o que aqueles demônios faziam com seus prisioneiros. Talvez, aquela hora, Rian sequer estivesse vivo para merecer que o Comando alterasse seus planos e arriscasse tudo para tentar resgatá-lo.

Mas eu sentia que ele estava vivo, que ele resistira a tudo o que porventura lhe houvessem feito. Havíamos nascido ali, vivido nossa infância no meio daquelas montanhas, daqueles rios. Conhecíamos todas as árvores e sabíamos dos atalhos e das cavernas. Juntos, participamos da tomada do 3o Quadrante na batalha de Barbanetto e, praticamente sozinhos, esfarelamos dois destacamentos, mandando-os para a prisão. Eu não podia voltar ao QG assim, deixando Rian lá, sozinho, a mercê do sadismo daqueles monstros.

– Sargento Veras, às vezes é melhor salvar o pouco que possuímos do que arriscar perder tudo.

– Sei disso, senhor.

– Estamos em vantagem aqui em Ludicósia e não estou disposto a perder o que já conquistei. A guerra nos ensina a ser práticos. Um soldado a menos não interferirá no resultado final. Por outro lado, se perdermos você, eles, além de tomarem sua posição, poderão nos fazer um bom estrago.

A cruel lógica da guerra estava ao seu lado, eu sabia. Mas eu tinha que tentar.

– Eles ainda não conquistaram a 22ª, senhor. Podem fazê-lo na próxima investida, eu sei. Mas se eu atraí-los na 11a, isso lhes desviará a atenção e eles ainda desmontarão a barricada na 12a.

– Nada garante.

– Eles me querem prisioneiro, senhor. Isca melhor não há. Barbanetto ainda está atravessada na garganta deles.

– Para seu plano dar certo, sargento, vocês teriam que sair imediatamente e ocupar a 22a.

– Operação Ternos Eternos, senhor. Já está engatilhada.

– Se não conseguirem na primeira tentativa, tudo estará perdido.

– Conseguiremos, senhor.

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04aEle me encarou durante um bom tempo. Era como se tentasse ver através de meus olhos um indício qualquer que enfim lhe revelasse minha incompetência para tal missão. Bastaria um indício qualquer, qualquer um… Quem poderia acreditar em missão tão suicida? Ninguém. Mas eu aguentei firme o olhar do comandante Martan.

– Permissão concedida, sargento Veras. Tentaremos resgatar o soldado Rian.

Eu conseguira! Agora tudo que eu precisava era apenas que toda a sorte do mundo estivesse ao meu lado.

Tínhamos três bases ocupadas no 1o quadrante, aguardando capturas. Havia um destacamento na 7a (cinco soldados) e o meu na 13a (eu e mais dois soldados). No 2o quadrante havia um destacamento deles ocupando a 12a (três soldados) e outro na 10a (dois soldados) O plano era atrair um desses dois na 11a.

A primeira movimentação, porém, foi um fracasso e tivemos de avançar dois dos nossos que estavam na 7a.

Eles contra-atacaram com um soldado da 12a e nos sobrou a última tentativa antes que o destacamento deles da 10a saísse para sempre de nosso alcance. Então corri. E fui atingido de raspão no braço. Caí, rolando pela ribanceira. Sob uma chuva de tiros consegui me arrastar e finalmente alcancei a 11ª. A primeira parte da missão estava cumprida. Então aguardei, enquanto improvisava um curativo. Dava para suportar a dor.

A isca funcionou. Um soldado inimigo percebeu o movimento e me emboscou. Fui aprisionado – exatamente como queria. Levaram-me ao 4º quadrante e lá encontrei o soldado Rian, bastante ferido, mas vivo. Ele sorriu ao me ver e de imediato entendeu tudo. Reanimei-o e lhe detalhei o plano. Ele sorriu e balançou a cabeça, como se dissesse: que loucura…

Na primeira tentativa de fuga, fracassamos. No entanto, como mais uma vez eles não conseguiram ocupar a 22ª, continuamos respirando. Mas fracassamos também na segunda tentativa. Então, o que não podia acontecer, aconteceu: a 22a foi ocupada e perdemos a única chance de saída. Era o fim.

Totalmente impossibilitados de escapar, as quatro movimentações seguintes foram todas deles: quatro soldados evacuados, levados livres para fora da área de combate. E os que ficaram continuavam, para o nosso azar, protegidos em dupla. Na quinta movimentação, porém, abriu-se a 19a. Imediatamente empurrei o soldado Rian:

– Corre!

Ele ainda vacilou um pouco, mas obedeceu. E eu fiquei, aguardando um milagre. Eis que ele veio duas movimentações depois, e eu ocupei a 24a. Enquanto Rian cumpria seu papel, retardando ao máximo sua chegada ao 1o quadrante, eles evacuaram mais alguns soldados.

Restavam apenas três soldados inimigos no 4o quadrante, onde eu estava, sendo dois na 22ª e um, sozinho, na 23ª, bem à minha frente. Eles aguardavam serem evacuados em uma ou duas movimentações, e aí perderíamos definitivamente a batalha. Mas fui rápido e eficiente: tomei a 23a e capturei o soldado que a ocupava. Alívio. Ganhávamos um pouco de tempo para respirar. Como o 1o quadrante estava inteiramente ocupado por nossos destacamentos, o que impedia qualquer chance do soldado capturado escapar, pude avançar tranquilamente pelo 3o e 2o e cheguei para comandar a evacuação de nossos homens.

Foi dramático, pois tivemos de arriscar várias vezes algumas de nossas posições enquanto o soldado prisioneiro tentava mas não conseguia um golpe certeiro. Quando ele enfim escapou, operando em Quinas Traquinas, pensei no pior, nadar tanto para morrer na praia. Evacuamos então um soldado e, em seguida, eles evacuaram dois.

Esta era a situação final: tínhamos seis soldados para retirar, e eles apenas dois. Então livramos dois e aguardamos, nervosos, sem poder acreditar que depois de tudo, não venceríamos. No entanto, um vacilo na movimentação deles fez com que sobrasse ainda um soldado, um único soldado instalado solitariamente na 24a base, a um pio da vitória. Reunimo-nos, nós quatro, os restantes, dois na 1a, um na segunda e outro na quarta, e eu lembrei a eles que somente agindo em dobradinha teríamos alguma chance. Dividimo-nos e, concentrados, contamos: um, dois, três e já!

– Quadras Esquadras!!!

Operação Quadras Esquadras. Alta complexidade. Mas conseguimos. Movimentação perfeita, em sincronia. No último instante. A vitória sorriu para nossas cores. Era realmente para não acreditar, pois vencemos contra todas as probabilidades. Na 24a base ficou o derradeiro soldado inimigo, à espera da evacuação que não viria, igualmente sem acreditar no que acontecia.

 Enquanto o soldado Rian festejava junto com seus companheiros, sentei numa pedra, enxuguei o suor da testa e abri a garrafinha de Jack Daniel’s, mandando para dentro um merecedor gole. O tiro no braço não era problema, antes da próxima batalha eu já estaria em forma.

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BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– GOSTOU DAS QUADRAS?

– Sorte demais…

– Quer perder outra?

– Não, obrigado.

– Qualé, meu irmão? Cadê o espírito esportivo?

– Não é isso.

– O que é então?

– Pô, você viaja demais, cara! Faz muito drama!

– Desculpa de perdedor.

– Não dá pra jogar gamão com você doidão assim. Transforma o jogo numa guerra.

– Ah, deixa de viadagem. Vamos outra, vamos. Eu deixo você jogar com as vermelhas.

– Não. Vou esperar você ficar de cara.

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Ricardo Kelmer 1998 – blogdokelmer.com

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BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04aEste conto integra o livro
Baseado Nisso
– Liberando o bom humor da maconha

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Plutão sai de férias

23/12/2008

23dez2008

PlutaoSaiDeFerias-03
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BaseadoNissoCapaMiragem-01aEste conto integra o livro Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha,
de Ricardo Kelmer

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PLUTÃO SAI DE FÉRIAS

O baseado acontecedor é aquele que provoca acontecimentos inusitados. Alfredo fumou um desses e reencontrou um amigo que acha que sua mulher está traindo-o.

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ALFREDO ABRIU O ESTOJINHO, olhou, olhou e escolheu o baseado acontecedor. Era uma noite de terça-feira e havia lhe batido uma vontade de fazer algo diferente. Para isso, nada mais apropriado que um fumo acontecedor.

Sim, porque existiam diversas qualidades de fumo, ele sabia disso. Existia o fumo energético, que servia perfeitamente para jogar bola, por exemplo. Existia o fumo musical, ideal para escutar Pink Floyd, Frank Zappa, Renascence, Cristiano Pinho, Érico Baymma… Havia também o namorador, o leitor, o Warner Bros, o bom-dia, o digestivo etc. Bom maconheiro que era, Alfredo sabia das melhores plantações e comprava direto na fonte, controlando assim a exata origem do fumo. Com o tempo, aprendera a catalogá-los, cada um na sua especialidade.

O acontecedor atraía situações insólitas, era essa sua especialidade. Situações nem sempre positivas, é verdade, mas esse era um risco que se corria. Fumo ideal para quem gostava de novidade, e de um certo risco. Pois bem, pensou Alfredo, acendendo o cigarro, vamos ver agora o que é que acontece. Eram sete horas da noite.

Alfredo sentou no sofá e ligou a TV. Já sentia o efeito do fumo, os sentidos e o raciocínio prolongando-se além dos próprios limites, descortinando novos horizontes de possibilidades. Procurou algo nos canais, zap-zap, mas não encontrou. Então pegou o jornal, começou a folhear. No caderno de variedades, entre as mesmices de sempre, encontrou algo curioso: uma palestra sobre astrologia cármica.

– Mas que porra é essa?

Meia hora depois lá estava Alfredo no Olimpo Center, ficava pertinho de sua casa. Sala 14, no fim do corredor. Escolheu uma cadeira nos fundos da sala e sentou-se, observando as pessoas. Um bando de esotéricos malucos, pensou, desses que conhecem profundamente os segredos da vida e principalmente da morte. Esse povo que à noite sai do corpo para ajudar desencarnados a deixar de vez o corpo físico. Esse povo que alardeia suas vidas passadas como quem exibe conquistas sexuais ou fala do carro novo. O fumo acontecedor o fizera ir a uma palestra sobre astrologia cármica, fosse lá o que isso significasse, em plena noite de terça-feira. Agora era relaxar.

Mas que nada. Não suportou a palestra muito tempo. Como é que em pleno século 20, ele se perguntava, ainda havia pessoas que se deixavam influenciar pelos astros? Então levantou e saiu da sala. No corredor, parou para beber água.

– Fala, Alfredo! Tá lembrado de mim?

Pronto, gente conhecida. Numa palestra de astrologia cármica. Ô mundo pequeno.

– Ahnn… Plínio.

Era o Plínio, amigo da faculdade, uns dez anos que não se viam.

– Não sabia que você se interessava por esses assuntos.

– Na verdade, não muito – disse Alfredo, enxugando a boca com a manga da camiseta.

– Dois amigos que se encontram. Anos sem ser ver. Numa palestra de astrologia cármica. O que é que isso quer mostrar, heim?

– Não sei. O quê?

– Então, tô dizendo. O que é que isso quer mostrar, heim? Quer mostrar que isso é um Acontecimento. Com A maiúsculo. A… contecimento – repetiu Plínio, desenhando no ar a letra A.

– Entendi.

Plínio sempre gostara daqueles temas. Pelo jeito, continuava o mesmo, ingênuo e acreditando em tudo. Em tudo que não existia.

– Já tá saindo, Alfredo? Eu também. Tá indo pra onde?

– Tomar uma cerveja.

– Tem um bar aqui na esquina.

– É lá mesmo.

– Vou com você. Eu já vi essa palestra.

– Já?

– Sete vezes.

Chegaram no bar, sentaram e pediram uma cerveja. Enquanto Plínio enchia os copos, Alfredo admirava a bunda de uma mulher que levantara da mesa vizinha. Foi quando escutou Plínio comentar algo.

– Desculpa, cara, o que é que tu falou?

– Sexo anal, Alfredo.

– O que é que tem?

– Não é recomendável, sabia?

– Ora, e por quê?

– Infesta o mundo astral. O astral fica que é um fedor só.

– Que papo, Plínio… Só se for os que tu anda pegando por aí.

– É sério. Se quiser, lhe mostro um livro que explica isso.

– Depois. Tô com muita coisa pra ler.

– Então um brinde pra comemorar.

– Ao nosso encontro.

– E também porque Plutão está mais próximo do Sol que Netuno.

– Não sabia. Está, é?

– Está.

– Ora veja. Então precisamos mesmo comemorar – Alfredo ergueu o copo. Comemorar que Plutão estava mais próximo do Sol. Isso sim era um pretexto.

PlutaoSaiDeFerias-03Soubera um tempo desse que o Plínio terminou casando com a Nisa, a gostosa da Letras. A mais gostosa e também a mais danadinha de todas as meninas do Centro de Humanidades. Grande Nisa. Pensando bem, até que os dois tinham algo a ver, o Plínio sempre fora chegado em astrologia e a Nisa botava tarô nos intervalos, cobrava cinco pilas, lembrava bem. Tinha uns peitões maravilhosos, grandes e filantrópicos – ela os oferecia em decote todos os dias, como numa bandeja, generosíssimos. A sabedoria popular, aliás, juntando seus dotes físicos e espirituais, alcunhou-a oportunamente Peitonisa. Pois bem, a Peitonisa casada com o Plínio. Que coisa. Bem, melhor deixar de pensar na mulher do amigo.

– Mas por que Plutão está mais próximo do Sol que Saturno? – perguntou Alfredo. Quase dissera peitão em vez de Plutão.

– Saturno não, Netuno.

– Netuno.

– Por causa de sua órbita. É mais elíptica – explicou Plínio, gesticulando a órbita de Plutão. – Entendeu? Mais elíptica, ó… – e repetiu o gesto. – Faça aí pra ver se entendeu mesmo.

– Entendi, pode continuar.

– Isso faz com que às vezes Plutão se aproxime mais do Sol que Netuno, que normalmente está mais próximo.

– Ahh.

Uma vez, aconteceu. A Nisa lhe concedera o prazer de chafurdar o rosto entre os peitos dela, por trás da cantina da faculdade. Ficou maravilhado, que nem menino em parque de diversão que não sabe qual brinquedo escolher. E só não chegaram às vias de fato porque tinha gente por perto. Então o curso terminou e nunca mais teve outra chance. Nisa e seus peitos impossíveis sumiram de sua vida. Essa era a grande falha de seu currículo universitário. Reprovado em Introdução a Peitonisa.

– Mas por que brindar a isso? – perguntou Alfredo, afastando as lembranças. Estava pensando muito na mulher do amigo, que coisa feia.

– Ora, porque essa situação só vai durar até 1999. Um nove nove nove.

– Que situação?

– Plutão estar mais próximo do Sol que Netuno. Começou em sete nove e vai até nove nove.

Não mudara nada. Era o mesmo chato de antigos tempos, com seus planetas, suas órbitas, a simbologia, aquele jeito de explicar as coisas. Tomaria três cervejas com ele, divertiria-se um pouco com suas histórias mirabolantes e pronto, depois iria para casa rastrear alguma coisa na tevê e fumar o velho dorminhoco. O acontecedor já fizera sua parte: encontrar o Plínio depois daqueles anos todos era realmente um acontecimento. Um Acontecimento. O Plínio às vezes se tornava um pouco chato, é verdade, mas também era um sujeito engraçado.

– E o que é que tem de tão importante numa coisa dessa, Plínio?

– Você não percebe?

– Perceber o quê?

– Isso são as férias de Plutão. Plutão vai à praia.

– Ahhhh…

Plutão vai à praia. Alfredo imaginou o planeta Plutão de calção e chinelas havaianas, segurando uma boia, o jornal debaixo do braço.

– Vai, por que não? Os deuses também têm direito a férias.

– Sem dúvida.

A mitologia! Esquecera da mitologia greco-romana. Quantas vezes, no intervalo das aulas, o Plínio o puxara para falar das eternas confusões que Mercúrio aprontava, e de como Juno descobriu que a ninfa Eco favorecia as infidelidades de Júpiter ao distraí-la com longas histórias, e, por isso, Juno a puniu, condenando-a a não mais falar sem que fosse interrogada e a só responder às perguntas com as últimas palavras que lhe fossem dirigidas. Daí seu nome, Eco.

– Quando Plutão vai à praia, sabe o que acontece?

– Juro que não sei, Plínio.

– Plutão é irmão de Júpiter e Netuno, todos filhos de Saturno, o deus que devora seus filhos. Eles se rebelam contra o pai e dividem os reinos. Júpiter fica com o Céu, Netuno com o Mar e Plutão com o Inferno. Plutão é o deus do Inferno, lugar pra onde vão todas as almas depois da morte, pra serem julgadas. Pois olha só: quando Plutão tira férias, o Inferno vira uma bagunça: falta funcionário, o serviço acumula, o barqueiro que faz a travessia do rio cobra mais caro, morto volta porque não tem ninguém pra receber, é uma confusão. O que é que isso quer dizer, heim? Quer dizer que…

– O que quer dizer?

– É isso que eu tô dizendo. O que é que quer dizer? Quer dizer que mesmo que você morra, corre o risco de não poder entrar no Inferno. Aí o que é que acontece?

– O que acontece?

– Deixa eu dizer, você é muito impaciente. O que é que acontece, heim? Acontece que muitos que morrem ficam por aí vagando, sem saber pra onde ir, alma penada zanzando de lá pra cá… – e ele mostrava com as mãos como as almas penavam, de um lado para o outro – Todas esperando que Plutão volte de férias e reorganize o Inferno pra poder enfim recebê-las.

– Pros romanos não havia paraíso depois da morte?

– É que o Inferno tem várias partes. Olha só, vou explicar. A primeira parte é o Érebo, onde tem um rio tenebroso chamado Cocito, feito das lágrimas dos maus. Caronte, o barqueiro do Inferno, é o encarregado de levar as almas ao julgamento, no Campo da Verdade. Mas Caronte se recusa a levar as almas dos que não tiveram sepultura, e então eles vagam pela margem do rio a implorar por cem anos até que o barqueiro canse de recusá-los.

– Que coisa horripilante.

– Muitíssimo. Depois vem o Inferno dos maus, um lugar absolutamente terrível, pra onde vão os condenados. Tem rios de lava, pântanos lamacentos e fedorentos, lagos gelados onde as almas são mergulhadas e outras barbaridades. Depois vem o Tártaro, onde fica o palácio de Plutão e a prisão dos antigos deuses expulsos do Olimpo. Por último vêm os Campos Elísios, o paraíso.

– E quem julgava os mortos?

Até que aquele assunto não era assim tão desinteressante, pensou Alfredo. Ou então era o fumo acontecedor que o deixara mais paciente com as doidices do outro…

– Três juízes: Éacos, Minos e Radamanto. Quem é condenado vai pro Inferno dos maus. Permanece lá o tempo que for necessário. O que é que isso tudo significa, heim? Significa… Peraí, deixa eu falar, significa que durante esses vinte anos em que Plutão saiu de férias, muita alma ficou penando por aí pelo meio do mundo. Isso é muito sério.

– Sério mesmo?

– Sério mesmo.

– Tu viu alguma?

– Eu não vejo espírito, mas minha mulher vê. Casei com a Nisa, que fazia Letras, lembra dela?

‒ Eu soube ‒ Alfredo respondeu com a expressão mais neutra que lhe foi possível.

‒ Pois foi. Uma noite a Nisa levantou pra beber água e deu de cara com um espírito. Agora esse espírito aparece lá toda sexta, logo na noite em que eu dou plantão na empresa.

‒ E aí, o que o espírito faz?

‒ A Nisa diz que ele espera ela ir beber água. Por causa disso, pusemos uma geladeirinha no quarto, lá o espírito não entra. Mas mesmo assim, a Nisa tem medo. Por isso, o Elísio está indo lá toda sexta, pra ela não ficar sozinha com esse espírito.

– Elísio?

– É o primo dela.

‒ O primo dorme na tua casa toda sexta? Na noite do teu plantão?

‒ Sim. Ele é de confiança, e não tem medo de espíritos.

PlutaoSaiDeFerias-03Alfredo tomou um gole e lembrou… Um dia, alguns anos antes, encontrara a Nisa no shopping. Continuava gostosa, os mesmo peitos se oferecendo para o mundo. E já estava casada com o Plínio. Olharam-se maliciosamente, e ela lhe piscou um olho. Ele ficou muito atiçado, e só não foi lá ter com ela porque estava acompanhado. Porém, naqueles poucos segundos toda a cena lhe passou novamente no pensamento, Nisa subindo a camiseta, os peitões mais desejados da Humanas. Durante aqueles segundos sentiu-se novamente encostado à parede da cantina, sentiu inclusive o cheiro oleoso do velho sanduíche de queijo que sempre comia no intervalo. Peitonisa… Pelo jeito, continuava safada. E agora certamente estava dando para o primo, nas barbas do marido. E o coitado acreditando em espíritos.

– Ô, Plínio…

– Diz. Garçom, mais uma estupidamente.

– Tu que é mais entendido que eu nesses assuntos, me diz uma coisa. Por que essas almas, já que não podem entrar no Inferno, não fazem como Plutão e vão pegar uma praiazinha também? Tanta coisa melhor pra fazer do que ficar assustando a mulher dos outros no meio da madrugada enquanto o marido trabalha…

– Não sei. Acho que elas não podem frequentar a mesma praia dos deuses. Nunca tinha pensado nisso. Vou consultar.

– Faz isso.

– Pode deixar.

– Ô, Plínio…

– Do que é que você está rindo?

– Desculpe – Alfredo não sabia se devia dizer. – Posso ser bem franco?

– Claro. Qual é a graça?

Alfredo coçou a cabeça. Talvez fosse mais sensato não se meter naquele assunto de marido e mulher. Plínio sempre fora um ingênuo, e com mulher era um boboca de marca maior. E casara logo com quem? Com a Nisa. Chapéu de otário era marreta mesmo. Mas, coitado, ele não merecia aquilo.

– Plínio, por favor. Um homem do teu tamanho, querer me convencer de que Plutão sai de férias e vai se bronzear no Sol, e o Inferno vira uma bagunça, e por isso enche de alma penada por aí porque não pode entrar no Inferno? Ô, Plínio…

– Mas é sério! Se quiser, eu lhe mostro um livro…

– E essa história aí, rapaz, da tua mulher com o primo dela…

– O que é que tem?

– Onde já se viu uma coisa dessa, Plínio? O cara ir dormir na tua casa porque tem um espírito perseguindo tua mulher…

– O que é que tem?

– O que é que tem? Não acredito…

– Você por acaso está insinuando que minha mulher e o Elísio…

– Deixa pra lá – Alfredo deu com a mão, impaciente. Não conseguia entender como ainda havia pessoas, dois mil e quinhentos anos depois de Platão, que ainda acreditavam que seus destinos eram comandados pelos deuses.

– Não, não. Agora eu quero que você diga o que está pensando.

– Deixa pra lá.

– Pô, Alfredo, você é ou não é meu amigo? Amigo com A maiúsculo.

– Plínio… – Alfredo segurou o braço do outro. – Desculpe a sinceridade, mas pelo que tu me falou, a tua mulher tá te corneando com esse primo, rapaz! Tu tá levando um baita de um chifre e só tu não percebe. Fica aí com essa história de Plutão saindo de férias…

– Você não acredita, não é?

– Em ti ou na Nisa?

– Nos deuses.

– Plínio, eu…

– Pois eles existem.

– Tá bom.

– Sempre existiram. Estão todos ainda por aí, influenciando nossas vidas, aprontando todos os dias. Nós é que não acreditamos mais, só acreditamos na ciência. Pois eu acredito nos deuses e sei do que eles são capazes. Se você não acredita, lastimo.

– Tá bom, Plínio, respeito tua crença. Mas tu pelo menos podia ir averiguar direitinho a história desse espírito aí. Tá muito mal contada, rapaz, não percebe? Vai lá, conversa com a Nisa sobre isso, mostrar pra ela que tu não é trouxa de acreditar numa armação absurda dessa.

Alfredo respirou fundo. Pronto, falara. Como um homem podia ser tão ingênuo? Se contasse, ninguém acreditaria. E logo com a Nisa… Enquanto o amigo ia ao banheiro, vieram-lhe mais uma vez as lembranças, a cantina e o shopping se misturando. Peitonisa…

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PlutaoSaiDeFerias-03DIAS DEPOIS, ALFREDO estava em casa, era uma sexta-feira, oito da noite. Acabara de fumar novamente do baseado acontecedor. Então o telefone tocou. Era o Plínio. Ele estava no mesmo bar da outra semana e precisava conversar. Pela voz do amigo, Alfredo percebeu que ele estava preocupado. Encontraram-se quinze minutos depois.

‒ Que bom que você veio, meu amigo ‒ disse Plínio, recebendo Alfredo com um abraço. ‒ Vamos sentar naquela mesa do canto. Não posso demorar, hoje dou plantão na empresa.

‒ Ah, sim, hoje é sexta. Mas que cara é essa? O que aconteceu?

– Conversei com a Nisa ‒ ele falou discretamente enquanto sentavam. ‒  Ela me contou tudo.

– Ah… ‒ Alfredo pediu uma cerveja e dois copos.

‒ Não, obrigado. Não posso chegar lá com bafo de bebida.

‒ Claro. Mas e então, eu tinha razão?

– Não.

– Não?

– Não. Ela não tem nada com o primo.

Alfredo olhou sério para o amigo.

– Quer dizer que tu fica trabalhando na empresa a noite toda e o primo dela vai dormir lá na tua casa porque um espírito inventou de toda sexta…

– É Plutão ‒ interrompeu Plínio.

– Heim?

– É ele, Plutão, Senhor do Tártaro.

– Como assim?

– O espírito. É o próprio Plutão. A Nisa está tendo um lance com ele. Ela confessou.

– Com Plutão.

– Com Plutão.

– O irmão de Saturno.

– Filho.

– O deus do Inferno.

– O próprio.

Alfredo suspirou. A coisa era mais séria, bem mais séria.

– E tu, o que é que fez?

– Eu, nada. Vou me meter com um cidadão desse?

– E ela?

– Ela disse que não pode fazer nada, que ele é mais forte que ela, o que é verdade, claro. Sem dizer que ele tem um cão terrível, com três cabeças, dentes enormes e serpentes enroladas pelo pescoço. Cara, eu tenho pavor mortal de cobra. Imagina dar com um bicho desse na minha frente de madrugada.

Alfredo suspirou. Era inútil, o homem era um caso perdido. Um prato de batatinhas fritas pousou no balcão.

– Gosta de molho tártaro, Plínio?

– Não, não. Tártaro não.

– Ah, claro… 

Com marido traído, sempre bom ter cuidado com as palavras.

– Plínio.

– Diz.

– Não fica com essa cara, rapaz. A vida é boa.

– Você diz isso porque não é com você.

– Não, eu não tô zombando não.

– Tudo bem.

– Tá com raiva de mim?

– Claro que não.

– Então esta é pelo meu amigo Plínio – Alfredo ergueu o copo e bebeu.

E abraçou o amigo. De repente, sentia compaixão por aquele sujeito que acreditava piamente que os deuses governavam sua vida. Olhando-o, como diferenciá-lo daqueles hominídeos primitivos que se moviam por meros instintos? Não havia diferença. Nele, a humanidade não evoluíra.

– Alfredo.

– O que foi?

– Você não tem medo de espírito, né?

– Não.

– Sabe o que é…

– Pode dizer.

– Você sabe quem é Prosérpina?

‒ Quem?

‒ É filha de Júpiter. Um dia, ela foi buscar água na fonte e Plutão se apaixonou por ela. E a raptou. Os dois se casaram e ela virou rainha do Inferno.

‒ E daí?

‒ Daí que ele talvez deseje fazer o mesmo com a minha mulher.

‒ Raptar a Nisa.

‒ Isso.

Tinha bom gosto esse Plutão, pensou Alfredo.

‒ Andei pensando numa saída para esse problema. Será que você poderia dormir hoje lá em casa?

Alfredo quase engasgou com a cerveja.

– Eu?

– Sim. Talvez Plutão escute você.

– Peraí. Tu quer que eu converse com Plutão?

PlutaoSaiDeFerias-03– Ele veria que você não o teme. E escutaria.

– E eu diria o quê pro deus do Inferno?

– Diria pra ele parar de…você sabe, pra ele deixar de importunar minha mulher. Talvez ele proponha um trato. Você escuta e depois me diz, a gente vê o que pode fazer. Os deuses também negociam.

Era demais, pensou Alfredo. Onde fora se meter? Não, aquilo não estava acontecendo.

– Você faz isso?

– Plínio, tu sabe que eu não acredito nessas coisas.

‒ Não precisa acreditar. É só pro caso de Plutão aparecer. Ah, vamos, você é meu amigo, não é? E minha mulher já está sabendo.

– Tu contou pra ela sobre essa ideia?

– Contei.

– E ela?

– Achou uma boa. Ela disse que você sempre foi um cara compreensivo. No que eu concordo. E eu confio mais em você que no primo dela, que, aliás, não vai lá em casa hoje. Nisa está sozinha.

Alfredo olhou novamente para o copo, refugiando nele o constrangimento que sentia. Seu amigo propondo que dormisse com a mulher para protegê-la das investidas de Plutão, o deus do Inferno, que estava aproveitando as férias para ir lá chafurdar nos peitos da outra. E a mulher do amigo concordava que ele fosse, ele, Alfredo. A Peitonisa. Dessa vez, o fumo acontecedor exagerara…

– Ô, Plínio.

– Diz.

– Que ano terminam mesmo as férias de Plutão?

– 1999. Um nove nove nove.

– Ano que vem?

– Exato.

– E depois?

– Depois ele volta pro Inferno. E só tira férias de novo daqui a 200 anos. Dois zero zero.

Um alvoroço se manifestando no baixo ventre, Alfredo podia senti-lo. Um alvoroço se espalhando pelo resto do corpo, se intrometendo no pensamento. Nisa sozinha…

Mas não, não podia, não era tão cafajeste assim…

– Quer um conselho, Plínio?

– Quero.

– Não mexe com o homem, rapaz. Esse pessoal tem muita influência. Melhor ser corno com espírito do que com gente. Pelo menos a fofoca fica só lá no astral. Tu sabe, né, o pior do chifre são os comentários.

– Você acha? – Plínio coçava o rosto, pensativo.

Alfredo sentia o alvoroço se espalhar rapidamente por seu corpo, por sua mente… Já não conseguia controlá-lo. Um animal enjaulado querendo sair a todo custo. Concentrava-se para falar, mas por dentro era o desejo louco que gritava.

Mas não, não podia fazer isso com o amigo…

– Sim, claro. E além do mais é só um ano, rapaz. Depois acabam as férias de Plutão, ele volta pro batente e esquece a tua mulher. Aguenta mais um pouquinho.

Nisa sozinha…

Não, não, precisava resistir. Melhor deixar aquela história com o tal do primo, mais prudente não se meter na confusão…

‒ Mas… e se Plutão raptar a Nisa? Você tem que ir, Alfredo. Vá, por favor, ela está esperando por você.

A Peitonisa… esperando… Alfredo sentia agora uma imensa coceira pelo corpo inteiro. Um ano… toda sexta… Olhou para o céu, tentando se concentrar nas estrelas, qual delas seria Plutão? Não, Plutão não era visível a olho nu. Ele atuava escondido, nos confins do sistema solar, lá onde a vista não alcançava. A vista… Visa… Nisa…

As grades da jaula enfim se romperam, um estalido que vibrou por todo seu ser. Alfredo virou a cerveja de um gole e bateu o copo na mesa, por pouco não o quebrou. Bem que tentara, disso depois não lhe poderiam acusar, bem que tentara.

– Hoje é sexta, né? – perguntou, virando-se de repente, agarrando o braço do amigo.

– É.

– Então aquele safado do Plutão vai lá hoje.

– Não fale assim, tenha respeito. Ele é um deus.

– Qual é o endereço?

Os olhos do amigo brilharam. Plínio puxou do bolso papel e caneta e anotou enquanto explicava:

– Fica ali na praça Pilos, dá pra ir a pé. No jardim do prédio tem uns ciprestes – Plínio ainda anotava o endereço, mas Alfredo já puxava o papel, ansioso, quase bufando. – Vou ligar agora pra ela avisando que você está indo.

– Ah, isso é importante, isso é importante.

O touro saltou da jaula. Um touro que acabou de cheirar dois quilos de cocaína. Ao lado, Plínio terminava de falar com a mulher pelo celular.

– Sim, amor, ele está indo. Tchau. Também te amo – Plínio desligou e virou-se para Alfredo. – Tudo ok, Alfredo, ela está aguardando.

– Pode deixar – bufou Alfredo.

– Na estante da sala tem um CD de música instrumental, uma lira na capa. O nome é Clássicos de Orfeu. Ponha pra tocar logo que chegar. Se Cérbero estiver com Plutão, somente essa música é capaz de amansá-lo.

– Cérbero? É pra dar porrada nele também?

– Não, é o cão de Plutão. Aquele de três cabeças, com as serpentes no pescoço. Você não tem medo de cobra, né?

– O cão de Plutão, o cão de Plutão – repetiu Alfredo enquanto levantava da mesa. Precisava decorar aquilo tudo. Botar para tocar o CD de Carlos Lira. Clássicos de Cérbero. Não, clássicos de Morfeu.

‒ Confio em você – disse o amigo com emoção na voz. – Sei que vai fazer um bom trabalho.

O touro ciscava a terra, a cabeça baixa, as narinas botando fogo… Nada no mundo importava agora a não ser fazer o que o amigo tanto lhe pedia. E, além do mais, aquela moleza terminaria no ano seguinte, quando findassem as férias de Plutão.

– Esqueci de lhe dizer uma coisa – Plínio chamou-o para perto. Alfredo aproximou-se, ofegante, os primeiros botões da camisa já saltando fora. – Plutão tem um capacete que o torna invisível. Foi presente dos Ciclopes. Mas mesmo sem vê-lo, você pode falar com ele.

– Claro, os Ciclopes. Eu pego eles também. Bajuladores!

Alfredo arrastou uma pata no piso do bar, uma, duas, três vezes, e saiu a toda velocidade. Atravessou a rua correndo e bufando, as patas mal tocando o chão, e sumiu entre os carros. Nem pagou a cerveja.

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Ricardo Kelmer 1998 – blogdokelmer.com

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01- Eu já li. Adorei. Parabéns. Vânia Cavalcante, Fortaleza-CE – set2010

02- Quase morro de rir lendo. Adorei! Ligia Eloy, Lisboa-Portugal – jul2015

03- Muito bom. Ivonesete Zete, Fortaleza-CE – set2010


Questão de dias

23/12/2008

23dez2008

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Este conto integra o livro Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha, de Ricardo Kelmer

QUESTÃO DE DIAS

A mãe de Luís Carlos encontrou maconha no armário do filho. Ele prometeu que pararia de fumar e agora o pai quer que ele marque o dia

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– E AÍ, FILHÃO, já marcou o dia? – perguntou seo Tavares, sorridente, dando um leve tapinha na cabeça do filho, como fazem os amigos camaradas.

– Ainda não, pai – respondeu Luís Carlos, terminando a sobremesa do almoço. – Mas não tá longe não.

– Certo, certo… Mas você não acha que esse dia tá demorando muito, meu filho?

– Ah, pai, tem que ser um dia especial, não pode ser qualquer dia.

– Tá certo, tá certo – concordou seo Tavares. – É mesmo um dia especial. Mas não demore muito. O tempo costuma enterrar as decisões que a gente toma e demora a realizar.

– Beleza, pai.

Luís Carlos limpou a boca no guardanapo, pediu licença e levantou-se, tinha que voltar à loja. Beijou a mãe e o pai e saiu para o ponto de ônibus. No caminho para o trabalho ia pensando no absurdo da situação. O pior é que não tinha ideia de como sair da enrascada.

Tudo começara naquela noite de segunda-feira. Ele chegou da loja à noite, tomou banho e jantou normalmente com os pais. Não desconfiou de nada. Depois do jantar foi ao quarto, tendo antes o cuidado de fechar a porta. Abriu o guarda-roupa, foi na última gaveta e retirou a velha caixinha de madeira. E levou um susto: não havia nada na caixinha. Puta merda, cadê a parada?, pensou enquanto procurava por entre as cuecas e as meias. Nada. O fumo havia sumido. Por um instante, imaginou que houvesse deixado em algum outro lugar. Mas não, era ali mesmo que guardava, sempre foi. Sentou-se na cama e remoeu o pensamento atrás de alguma pista. Foi nesse instante que dona Leonor bateu na porta.

– Filho, a gente pode conversar um pouco?

Ih, sujou…, ele pensou, já imaginando tudo. Abriu a porta e a mãe entrou. E contou que fora procurar um par de meia do marido no guarda-roupa do filho quando se deparou com aquela caixinha.

– E o que a senhora fez com o que tava dentro, mãe? – Luís Carlos queria saber.

– Meu filho, você não jurou pra mim e pra seu pai que tinha parado com esse vício?

Luís Carlos sentiu o coração gelar, aquilo não podia estar acontecendo, que merda… Vamos, Luís Carlos, pense rápido, vamos… Precisava encontrar um meio de se safar de mais aquela. Mas agora a coisa era séria: ela havia descoberto a parada e não adiantaria dizer que não era dele, que não sabia que diabo aquilo fazia ali em seu guarda-roupa. Não dava mais para continuar nas velhas desculpas.

– Meu filho, você é um menino tão bonito, inteligente. Tem um emprego bom, tem pais que adoram você… Maconha é coisa pra marginal, meu filho, e você não é marginal. Ô, Luís Carlos…

Dona Leonor já ameaçava chorar. Era preciso pensar rápido.

– Mãe, o que a senhora fez com a…

– Você nunca pensou que um dia pode ser preso, meu filho? Ô, Luís Carlos, isso é uma coisa tão triste…

– Desculpe, mãe. Mas não chore não, tá? Não chore que dessa vez eu prometo que vou parar. Dessa vez é sério.

– Você jura, meu filho?

– Juro pelo meu glorioso alvinegro.

– Ah, Luís Carlos, isso não é jura que se faça! Jure por uma coisa séria.

– Mas mãe, você quer coisa mais séria que…

– Seu glorioso foi rebaixado. Não vale mais nem jura.

– É, mas a senhora viu que naquela última partida…

– Não mude de assunto.

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04aEle calou-se. Dessa vez a situação extrapolara. Tinha que dizer algo certeiro. Mas o quê?

– Está bem, mãe, está bem.

Vamos, Luís Carlos, pense em algo, pense.

– Está bem, mãe.

Isso, continue.

– Ok, mãe, ok.

Algo mais criativo, Luís Carlos.

– Eu lhe peço desculpas, mãe, pela tristeza que eu possa estar lhe causando. Desculpe, viu?

Bom começo. Continue, está indo bem.

– Olhe, mãe, eu vou ser sincero com a senhora…

Essa era sempre uma boa frase. Boa para ganhar tempo. Mas perigosa, porque agora tinha de ser sincero mesmo.

– Isso é só uma fase, mãe. Eu sei que é só uma fase e que um dia vai passar. A senhora não pensa, por acaso, que eu quero passar o resto da minha vida fumando maconha, né? Isso não tem cabimento. Um dia eu sei que isso vai perder a importância e eu vou parar, eu sei disso, do fundo do meu ser.

Ele percebeu um leve brilho de esperança no olhar da mãe e isso o animou a continuar:

– Eu só preciso de um tempo, mãe. Lembra quando eu tomava aqueles porres de rum todo fim de semana e ficava passando mal, acabado no sofá? Lembra, né? Foi uma fase braba. Mas passou, não foi? Da mesma forma agora, mãe. Eu sei que um dia eu vou olhar pra um baseado e dizer assim pra ele: Quer saber de uma coisa, meu chapa, não tô mais a fim de fumar você não. E aí acabou, não fumo mais. Acabou.

Bela argumentação. Digna de um tribunal. Às vezes se surpreendia consigo mesmo. Bem que o pai tentara fazê-lo advogado, herdar o escritório, ele é que não quis. Dona Leonor olhou para o filho e o abraçou emocionada. Luís Carlos sentiu-se aliviado. Teria sido perfeito se o pai não surgisse à porta do quarto.

– Tudo bem, filho, mas se você quer mesmo parar, então precisa levar a coisa a sério e marcar logo a data.

– Marcar a data? – Luís Carlos soltou-se da mãe, surpreso.

– Claro. Marque a data que no dia eu prometo que faço uma grande festa.

– Festa? – Luís Carlos tentava ganhar tempo. – Festa?

– Claro. O pai não fez uma grande festa pro filho pródigo que voltava ao lar? Então a gente também vai fazer uma.

– Ahnn… Não, não, pai. – Aquele papo estava ficando estranho. – Esquece esse negócio de festa. Acho que não pegaria bem.

– Ô Tavares, eu também acho que isso…

– Deixe comigo, Leonor. – O pai, do alto de sua convicção, acenou para que a esposa não se metesse. – Eu insisto, meu filho. Você faz sua parte e eu a minha. Amanhã mesmo vou comprar a cerveja. Vamos tomar um porre pra comemorar. Pode chamar todos os seus amigos.

– Chamar… os meus amigos? Ahnn… eu…

– Você só precisa dizer o dia.

– Que dia, pai?

– Que dia, Luís Carlos? O dia que você vai parar de fumar droga. Não é disso que estamos falando?

– É… mas… também não precisa… marcar um dia.

– Como não precisa? Quando a gente vai casar, a gente marca o dia do casamento, não é?

– Eu não vou me casar, pai – disse Luís Carlos, se sentindo perdido e ridículo.

– Você quer ou não quer parar?

Luís Carlos respirou fundo. Já havia ido longe demais, não dava mais para voltar.

– Quero – ele respondeu, desesperançado, não vendo a hora de ficar sozinho.

– Então? É só marcar o dia. Sexta-feira está bom?

– Sexta?!

– Sim, sexta.

– Esta sexta?

– Sim, esta sexta.

– Ahnn… Vou pensar, pai. Prometo.

– E precisa pensar numa coisa simples dessa, Luís Carlos? Não é, Leonor?

Dona Leonor apenas olhava para o filho, acariciando-lhe a mão.

– Não gostou do dia? – prosseguiu seo Tavares. – Então no sábado.

– Não, sábado é o aniversário do Foca.

– Ah, o aniversário do Foca. Ele não pode fazer no domingo?

– Tavares, não pressiona o menino!

– Então semana que vem.

– Semana que vem tem o feriadão, pai, eu vou viajar com a galera. Olhe, pai, deixe eu…

– Então quando, meu filho? Quando?

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04aLuís Carlos podia perceber que o pai se esforçava por parecer compreensivo e camarada. Soava um pouco artificial, mas reconhecia que poucas vezes na vida vira o pai tão cordial e paciente.

– Pai, vamos fazer o seguinte… Me dê um tempo pra pensar. Não quero marcar um dia qualquer e quando chegar esse dia eu não estar preparado pra tomar uma decisão importante assim. Quero fazer a coisa direito, o senhor entende?

– Seu pai entende sim, meu filho – disse a mãe, tomando a vez. – A gente só quer que você pense bem no que é melhor pra você e sua família, tá? Não é, Tavares?

– Por mim, a gente marcava logo esse dia e…

– Seu pai concorda comigo, meu filho.

Então ficaram combinados. Luís Carlos pensaria num dia para parar de fumar maconha e avisaria aos pais.

Quando eles já deixavam o quarto, Luís Carlos pediu para falar a sós com a mãe.

– Por que só com ela?

– Sai, Tavares. Deixa eu conversar com o menino.

Dona Leonor empurrou o marido para fora e fechou a porta. Luís Carlos pegou a mãe pela mão e a levou até o outro lado do quarto, longe da porta, e falou baixinho:

– Mãe, o que a senhora fez com aquela parada?

– Com o quê, filho?

– A maconha, mãe. O que é que a senhora fez?

– Ah, Luís Carlos, eu fiquei apavorada, né? Imagina se a polícia descobre uma coisa daquela aqui em casa, imagina a vergonha pro seu pai…

– Mas e aí, o que a senhora fez? Enterrou no quintal?

– Joguei no aparelho.

– No aparelho?

Luís Carlos ainda pensou em correr para o banheiro.

– E dei descarga. Três vezes.

Luís Carlos fechou os olhos. A última esperança fora embora. Pelo esgoto. Ele sentou na cama.

– Pô, mãe, isso é caro, mãe, isso é caro… – foi tudo que encontrou para dizer, balançando a cabeça, sem acreditar.

Um ano depois, lá está Luís Carlos lendo jornal na sala.

– E aí, filhão, já marcou o dia? – pergunta seo Tavares, com toda a naturalidade que consegue.

– Ahnn… Que dia, pai?

– O dia, meu filho…

E o pai, dando uma de moderninho, junta o polegar e o indicador no gesto típico, como se fumasse um baseado, os dedos indo e vindo da boca em biquinho. Mas com todo o mau jeito possível de um pai que nunca sequer viu um cigarro de maconha na vida.

– Tô marcando, pai, tô marcando…

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Ricardo Kelmer 1998 – blogdokelmer.com

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BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a> Este conto integra o o livro Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha

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