25jul2010
Se os problemas relacionados ao crack ficassem restritos às camadas pobres da população, os ricos jamais se incomodariam e o horário nobre da tevê nem tocaria no assunto
SÓ O CRACK SALVA
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Em maio assisti a um documentário que me trouxe, ao mesmo tempo, preocupação e esperança. Ele foi exibido no prédio da Fiesp, a Federação da Indústrias do Estado de São Paulo, que fica na avenida Paulista, o coração financeiro do país. Documentário sobre as modernas indústrias paulistas? Não. Sobre a retomada do ritmo industrial após a crise financeira? Não. Era um documentário chamado Selva de Pedra – A Fortaleza Noiada e mostrava a terrível realidade que envolve os usuários de crack na cidade de Fortaleza.
Após a exibição, Preto Zezé, que dirigiu o documentário com Edmar Jr., falou sobre a problemática do crack em Fortaleza e no Brasil. Fiquei agradavelmente surpreso com ele. Preto Zezé, coordenador da CUFA-CE (Central Única das Favelas), demonstrou ter uma rara abrangência de visão em relação à questão do crack mas também em relação a drogas em geral e justiça social. Não é à toa que ele já foi convidado a vir a São Paulo para falar sobre a problemática das drogas, inclusive para policiais. Dessa vez foi a Fiesp que o convidou.
Pela primeira vez tive real noção do problema – e vi que ele é monstruoso. O crack já é considerado uma epidemia nacional e a quantidade de usuários, hoje aproximadamente um milhão e meio de pessoas, aumenta velozmente, como nunca antes ocorreu com nenhuma droga. Se os problemas relacionados ao crack ficassem restritos às camadas pobres da população, os ricos jamais se incomodariam e o horário nobre da tevê nem tocaria no assunto. O problema, porém, já chegou às classes média e alta que, além de também contarem com usuários, sofrem com o aumento nos índices de roubo, assalto e assassinatos ligados ao crack, tanto nas capitais como em pequenas cidades.
Um orgasmo de quinze minutos – você já teve um? Nem eu. Mas é disso que falam os usuários de crack. A pedra é queimada, inalada e o prazer proporcionado é tão intenso mas tão intenso que, uma vez experimentado, tudo que se quer é ter de novo, e imediatamente, e mais uma vez, e mais uma. Nada contra orgasmos longos, muito pelo contrário. O problema é que o crack é altamente nocivo ao organismo, deixa sequelas terríveis e não raramente mata após poucos anos de uso. Por isso, ao contrário de outras drogas, é impossível usar crack ocasionalmente e de modo recreativo – o usuário é sempre um viciado e em nome desse vício ele perderá qualquer senso moral e será capaz de enganar, roubar, assaltar, agredir e matar. Muitos abandonam a família e os amigos, recorrem à prostituição, contraem dívidas e acabam engrossando a massa de farrapos humanos a perambular pelas ruas, adoecendo e morrendo à míngua. O baixo preço, o altíssimo nível de dependência e a degradação física, psicológica e familiar que o crack ocasiona fazem o cigarro, o álcool, a maconha e até mesmo a cocaína parecerem brincadeirinha de criança.
A sociedade, perplexa, não sabe o que fazer. Tirar das ruas os noias, como os usuários são chamados, não resolve pois eles logo retornam. Prisão também não resolve pois o problema não é apenas de contravenção mas principalmente de saúde pública. Nos Estados Unidos o crack afugentou os usuários de drogas mais rentáveis e causou tantos problemas ao tráfico que ele próprio baniu a droga do mercado. Especialistas consideram que no Brasil somente o próprio tráfico teria o poder de acabar com a epidemia. Aliás, em São Paulo o PCC não permite o crack nas cadeias, tamanho seu poder de destruição.
Mas… e quanto a tratamento? Sim, é possível tratar o viciado mas não é fácil pois primeiramente ele deve querer. Há também discordâncias sobre a metodologia do tratamento pois não há pesquisas suficientes. No entanto, todos concordam que, além do apoio de família e amigos, é necessário que o indivíduo em recuperação encontre em sua própria comunidade as condições que lhe permitam manter-se abstinente e isso envolve escola, emprego e atividades sociais, esportivas e artísticas que possam substituir o prazer do crack. Isso, porém, é impossível se não há investimentos na melhoria de qualidade de vida nos bairros pobres.
É justamente por isso que o documentário Selva de Pedra, ao mesmo tempo que me preocupou, também me deixou esperançoso pois deixa claro que o problema do crack é de responsabilidade de toda a sociedade. Além disso, o fato dele ter sido exibido num lugar como a Fiesp mostra também que as classes sociais estão dispostas a dialogar na busca por uma saída para o problema. A ironia é que seja o crack que esteja finalmente aproximando ricos e pobres e nos obrigando a discutir honestamente o tema da desigualdade social e também a questão do uso de drogas, sem ingenuidade e hipocrisia. É a salvação que vem do inferno.
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Ricardo Kelmer 2010 – blogdokelmer.com
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Treiler do documentário Selva de Pedra
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Preto Zezé fala na TV sobre o crack
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Governo não sabe como tratar craqueiro, diz Drauzio Varella
(Folha de São Paulo, 21.05.2010)
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DICA DE LIVRO
Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha
Ricardo Kelmer
Os pais que decidem fumar um com o filho, ETs preocupados com a maconha terráquea, a loja que vende as mais loucas ideias… RK reuniu em dez contos alguns dos aspectos mais engraçados e pitorescos do universo dos usuários de maconha, a planta mais polêmica do planeta. Inclui glossário de termos e expressões canábicos. O Ministério da Saúde adverte: o consumo exagerado deste livro após o almoço dá um bode desgraçado.
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