06dez2012
Durante cinco dias, o Festival Express cruzou a leste-oeste do verão canadense levando em seus vagões os ideais da união pela música, a esperança ainda viva de um mundo de paz e amor
PAZ E AMOR EXPRESS
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Em 1970, uns produtores malucos tiveram uma ideia maluca: alugar um trem, botar dentro um povo bem maluco e percorrer o Canadá fazendo shows de rock e blues. Que ideia abençoadamente louca! Durante cinco dias, o Festival Express cruzou a leste-oeste do verão canadense levando em seus vagões os ideais da união pela música, a esperança ainda viva de um mundo de paz e amor. Os passageiros? Anote aí: Janis Joplin, Greateful Dead, Buddy Guy, The Band, Sha Na Na, Flying Burrito Brothers e outros, tudo gente boa. A viagem está registrada num filme, Festival Express (direção de Bob Smeaton), que após trinta anos de pendengas judiciais, finalmente foi liberado para exibição.
Escolho a sessão da meia-noite do domingo. Um horário maluco para um filme maluco, podiscrê. Masco meu chiclete alucinógeno, entro no clima e me mando para o Espaço Unibanco. A fila para entrar é enorme, atrás de mim uma camiseta Janis Joplin Forever, na frente uma do Raulzito, todo mundo empolgado, ninguém quer perder o trem. A sala fica lotada, gente sentada no chão. As luzes se apagam, a viagem vai começar…
Se Woodstock foi um presente para o público, o Festival Express foi um presente para todos aqueles músicos. Os produtores lhes proporcionaram uma viagem inesquecível pelas paisagens canadenses, a raríssima oportunidade de estarem todos juntos num trem, muita música, a filosofia de paz e amor, algo que jamais aconteceria de novo. E eles aproveitam até a última ponta aquela louca festa sobre trilhos. O vagão-bar é o mais concorrido: um chega com a guitarra, outro traz a percussão, um beque em lá maior e a festa vira a noite, sem hora para acabar, como todas as festas deviam ser.
Sabe as rodinhas que a gente faz com os amigos, birita e violão, as músicas preferidas, falar besteira, celebrar a amizade, brindar à vida? Pois imagine a rodinha com aqueles malucos geniais, tudo chapado, se abraçando, improvisando letras absurdas em músicas sem pé nem cabeça, o uísque rolando solto, a fumaça no meio do mundo, Jerry Garcia no violão, Janis morrendo de rir… Como eram as músicas? Ah, bem profundas, coisas do tipo Tudo foi queimado até o talo… e o horizonte se abriu… uou-uou-uuu…
No meio da viagem acaba a birita. Os aloprados simplesmente beberam todo o bar do trem, bando de esponja. E agora? Roquenrôu is ríar tuistêi, mas sem encher a lata não dá, né? Paraí, motorista, vamos resolver esse problema! Então os malucos entram na primeira loja e compram todo o estoque de bebida, saem levando caixas e caixas, rindo como crianças fazendo danação. Agora sim, singue dâ blus, mêm!
A viagem está tão viajante que os músicos esquecem que têm de fazer shows, ih, é mesmo, o show… O trem para em Toronto, desce todo mundo, vamos trabalhar. A multidão fora do estádio é tamanha que o show é transferido para a praça. Quando Janis surge na telona do cinema corre um frisson pela plateia, exclamações, gritinhos. Eu me ajeito na poltrona, sei que lá vem paulada. A bluseira texana manda ver Cry Baby, aquela fossa doída que só ela sabia cantar, honey, i know she told you that she loved you much more than i did… Estou paralisado, nem pisco, but all i know is that she left you… São sete minutos antológicos, Janis berrando, miando, se descabelando, Janis rasgando a alma com o punhal de seu blues, o sangue respingando tela afora, i’ll always be around if you ever want me… Olho para trás e vejo duzentos pares de olhos arregalados, todos em transe. Esse é um de seus últimos shows, em breve ela partirá, so come on, come on and cry, baby… Estou todo arrepiado e não contenho as lágrimas. Quando Janis termina, o cinema inteiro explode em gritos emocionados como num show ao vivo, as pessoas se levantam para aplaudir, coisa de louco.
O filme também mostra um solo inenarrável de Buddy Guy, performances conjuntas das bandas e depoimentos dos artistas e produtores, além das belas imagens do público, aquela gente bacana e suas roupas coloridas, às vezes sem roupa mesmo, tudo na paz, ainda botando fé que as flores venceriam os canhões. Mas infelizmente a viagem dos anos 60 já estava no fim. Os Beatles pediram o divórcio e Janis, Jimmy e Jim saltaram do trem, não viveriam para ver em que se transformaria o mundo que eles um dia sonharam, esperançosos, que podia ser melhor. O trem dos sonhos parou, foi recolhido na garagem da história e fecharam o portão. Ficaram as músicas, as imagens. E a guimba de uma esperança, pequenininha, quase nada, mas que insiste em não apagar.
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Ricardo Kelmer 2004 – blogdokelmer.com
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Esta crônica inegra o livro Blues da Vida Crônica
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FESTIVAL EXPRESS
Reino Unido/Canadá 2003
Dir.: Bob Smeaton
Com Janis Joplin, Greateful Dead, Buddy Guy, The Band, Sha Na Na e outros
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Janis em Cry Baby (Festival Express, Toronto, 1970)
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Trecho do filme Festival Express
Festinha num dos vagões do trem. Pense numa chapação grande…
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Performance da crônica Paz e Amor Express (Eita Sarau, jan2014, São Paulo)
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