O encontrão marcado

05jul2008

Fechei o livro, fui até a janela e olhei pro mundo lá fora. E disse baixinho, com a leveza que só as grandes revelações permitem: tenho que ser escritor

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O ENCONTRÃO MARCADO

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Há livros tão especiais que deviam fazer parte do álbum de fotos da pessoa. Eles são decisivos, apontam caminhos, mudam o rumo da vida. Você deve ter livros assim, difícil eleger o mais importante, né? O livro da minha vida se chama O Encontro Marcado. Seu autor: Fernando Sabino.

Para falar dele preciso antes voltar à infância, eu na biblioteca do colégio Santo Inácio encantado com os livrinhos infantis, o melhor brinquedo que poderiam inventar. Mais tarde, descobri a coleção Para Gostar de Ler, crônicas de vários autores brasileiros. Que delícia! Ainda agora sinto na alma o gosto de susto e descoberta que vinha daqueles textos, horizontes que se abrem, possibilidades desveladas. Hoje eu sei: foi naquele momento, aos dez anos, que as sereias da literatura me fisgaram e eu saltei no mar. Foi lendo aqueles textos que decidi ser escritor.

Sabino era meu predileto. Suas crônicas ilustraram toda a minha adolescência. O humor, a ternura, o modo econômico, o olhar leve e agudo sobre as pequenices do dia a dia ‒ seu estilo me fascinava. Eu já escrevia historinhas e os professores gostavam de minhas redações. Ainda não sabia, mas já procurava. Porém, quando tentava crônicas me batia uma terrível sensação de impotência, pois lembrava de Sabino e pesava sobre mim sua sombra gigantesca. Não, eu jamais conseguiria escrever como ele, melhor nem tentar. Maldito. Como podia incentivar e ao mesmo tempo destruir um jovem candidato a escritor?

Meu pai me presenteava com os livros do mineiro, que eu lia com renovado fascínio. Adolescente, espinha no rosto, sonhando em ser escritor. Mas era algo difícil de visualizar… Que caminhos percorrer, a quem pedir ajuda? Como ser cronista se as melhores crônicas já estavam escritas? Então, deu-se o encontrão. Dezoito anos, dividido entre o velho sonho literário e as dez mil coisas do mundo, peguei na biblioteca da faculdade um romance de Sabino, O Encontro Marcado. Comecei a ler de manhã, não almocei, entrei pela tarde, faltei à aula. A noite veio e eu lá extasiado, sem conseguir largar o livro. Foi um clarão de luz que iluminou de vez o caminho. Fechei o livro, fui até a janela e olhei o mundo lá fora. E disse baixinho, com a leveza que só as grandes revelações permitem: tenho que ser escritor.

Aquele livro em minhas mãos dizia tudo. Eu estava ali! Eu era Eduardo Marciano brincando no quintal, querendo ser atleta, descobrindo os livros. Eu era Eduardo puxando angústia, porres homéricos de poesia, promessas de amizade. Eu era aquilo tudo, otimismo, amargura, ironia, paixão, solidão. Eu, mais um marinheiro ensandecido a quem as formosas sereias das letras olharam nos olhos.

A criança já havia decidido. Mas agora o jovem confirmava: eu simplesmente não poderia ser outra coisa na vida senão escritor. Eu trombara com meu próprio destino, um esbarrão que me encheu dessa estranha liberdade de quem abraça a própria sina. Sabia que não seria fácil e que, como a maioria, eu provavelmente desistiria pelo caminho. Sabia também que deveria beber em muitos estilos para encontrar o meu próprio. E entendi que não devia temer as grandes sombras.

O tempo passou, vão-se mais de vinte anos. Combinei com amigos encontros solenes aos quais não fomos, roubei esqueletos, fiz de muitas quedas um passo de dança, fui interrompido antes de terminar. Reli O Encontro Marcado outras vezes. Certo dia, comprei um e deixei no banco da praça, com dedicatória ao desconhecido que o encontrasse. O destino se cumpriu e tornei-me escritor. Culpa daquele livro diabólico.

Há encontros que marcam para a vida inteira ‒ o meu foi aquele. E é ao romance de Sabino que agradeço. Pelos céus e infernos que passei e passarei em nome das sereias da literatura. Por ter me ajudado a fazer do medo, uma ponte. Por ter feito da minha procura, um encontro.
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Ricardo Kelmer 2004 – blogdokelmer.com

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> Esta crônica integra o livro Blues da Vida Crônica

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Obrigado, J K Rowling – Em todo o planeta milhões de crianças adquiriram o hábito de ler livros graças às aventuras de Harry Potter

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01- Deixo-te, à laia de comentário, um dos meus poetas favoritos – afinal, como escrever um comentário, se o melhor comentário já foi escrito? Susana X. Mota, Leiria-Portugal – jun2005

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.
(Alexandre O’Neill)

02- Kelmer, Show de bola a sua coluna, velho…tem style…mas tbm o que se espera de um cearense que pensa que é carioca…é algo como misturar buchada com bolinho de bacalhau…hahaha. Parabéns! Marcos Fonteles, Parnaíba-PI – out2006

03- ONTEM LI:O TEMPO PASSOU.VÃO-SE MAIS DE VINTE ANOS…….GRANDE “ENCONTRÃO MARCADO”!VC É MESMO GENIAL!PORISSO SOU SUA FANZONA.BESOS AH! NÃO SE DESESPERE.SEUS FÃS LHE AJUDARÃO A PAGAR SEU ALUGUÉL, COMPRANDO SEUS BETESSELERS,RSRSRSRS.MUCHOS BESOS. Ângela Carvalho, Fortaleza-CE – out2006

04- Infelizmente, li poucos textos de Fernando Sabino (após seus elogios, “O Encontro Marcado” está confirmado em minha lista anual de livros, hehehe). Raíza Rodrigues Pontes, Fortaleza-CE – jan2007

05- Além de ser agradável a leitura do conteúdo, comecei, através do seu depoimento, descobrir porque você se tornou um bom contista. Fica, mais uma vez, confirmado que quem é sensível e lê bons autores, termina tendo boas influências. Por isso, corre o risco (bom) de se tornar escritor um dia para representar sua geração na Literatura. Parabéns. Avante, meu jovem! E que os gênios literários do passado nos abençoem e nos inspirem sempre para continuarmos com o encantamento da arte das palavras. Diante disso, saúdo o escritor promissor que você é. Seu amigo e leitor. Alberico Rodrigues, São Paulo-SP – jul2009

06 Um dia, encontrei Fernando Sabino numa noite de autógrafos aqui no Recife e disse a ele que também escrevia. Aí, após autografar e me entregar o livro carinhosamente, ele me disse: “Pois bem, quero, um dia, ir numa noite de autógrafos sua”. Faz mais de 15 anos que isso aconteceu, mas ainda guardo na memória o homem simpático, bem vestido, agradável, atendendo todos com enorme gentileza e ternura. Lia sempre suas crónicas e adorava, elas me falavam de coisas maravilhosas e de um modo encantador. Esta é recordação que tenho dele. Viva Fernando Sabino! Viva o dia do escritor! Abraço pra você, Ricardo! Fátima Braga, uma escritora de fato! – Fátima Braga, Recife-PE – jul2009

2 Responses to O encontrão marcado

  1. Criscalina disse:

    Kelmer, O Encontro Marcado também é um dos livros que mudou a minha vida. 😀
    http://aquelasoutrashistorias.blogspot.com/2008/04/das-coisas-que-me-fazer-ser-antes-e.html

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  2. ricardokelmer disse:

    > Oraora… Mais uma que a magia do encontro marcado fisgou. Parabéns pelo blog, Criscalina, vc escreve gostoso.

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