O dia em que morri no Rock in Rio

18/09/2011

18set2011

O primeiro baseado que fumei daria um filme. Um não, vários

O DIA EM QUE MORRI NO ROCK IN RIO

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Janeiro de 1985. Cidade do Rio de Janeiro. Missão Rock in Rio 1. Plano: burlar a segurança e entrar com uma garrafa de Tonel 21, cachaça da boa. Ok, plano bem sucedido. Agora eu e meu amigo Paulo podemos relaxar um pouco: um gole na bicha, um olho no palco, outro nas garotas. Cem mil pessoas em celebração. Outro gole. É um sonho pra mim. Vinte anos, estudante de comunicação, cabelão no ombro e oclinhos redondos à John Lennon. Todo pronto pra ver Rod Stewart, o ex-coveiro da voz rouca. Mais um gole. Putz, a vida é mesmo um filme emocionante!

Paralamas, Moraes Moreira, Rita Lee – no palco, o time doméstico dava seu recado. No gramado, eu e Paulo vivíamos intensamente o primeiro ano do resto de nossas vidas. E tentávamos prosseguir no plano: conseguir um baseado. Dizem que é pecado, mas não perderíamos a chance de começar a pecar em pleno Rock in Rio. Conseguimos um enorme e, aventureiros inexperientes, mandamos tudo de uma vez. Logo a mente e o corpo adentravam outro nível de realidade e tudo ficou diferente. Mas havia algo estranho, todos olhavam pra mim com aquelas máscaras das crianças em The Wall. Cem mil olhares inquisidores me perseguindo onde quer que eu fosse, inútil se esconder. Como todos podiam saber que eu estava doidão? Um real e amargo pesadelo.

Pouco depois comecei a me sentir enjoado e o enjoo foi piorando até que não me aguentei mais em pé. Revelei ao meu amigo: Paulo, eu tô morrendo…, e ele caiu na gargalhada, calma, Bete, calma. Bem, já que eu era um cabra marcado pra morrer, pelo menos morresse decentemente. Fraco e inteiramente chapado, me dirigi às bilheterias desertas. Arrumei uns papelões e deitei sob uma catraca. Meio litro de cana no sangue mais um torpedo canábico na mente tinha que dar nisso: todo o meu eu era uma rebelião em alto mar. Paulo, deixo pra você meu livro do Pessoa, e se encontrar a moça do ônibus, diga que eu a amo… Então, fechei os olhos e saudei Nick Beal, o agente do Inferno que chegava pra me levar à ilha das almas perdidas…

Mas Beal não veio. Preferiu curtir Ozzy Osbourne berrando lá no palco. Salvo pelo Ozzy, que ironia. Abri os olhos e percebi que estava vivo. E Paulo ao lado, vigiando minha morte. Dois perdidos numa noite suja. Das profundezas de minhalma uma voz ordenou que eu levantasse e fosse pra enfermaria. Meu amigo desaprovou: Tá louco, vão descobrir que você fumou, vão te prender! Amizade em conflito. Concordei e disse que então iria comprar algo pra comer. Saí… mas desviei pra enfermaria. Estava realmente decidido em minha tragédia de homem ridículo. Não me pergunte como, mas cheguei lá. Aí olhei a fila e desanimei: duzentas pessoas aguardavam atendimento.

Mas os lobos não choram. Furei a fila e balbuciei ao atendente: Eu tô morrendo… Acho que ele concordou, pois ato contínuo me botou pra dentro. Fui levado a uma saleta toda branca onde uma fria médica nazista me atendeu. Quis saber nome, endereço, idade, o tamanho do bagulho, ia anotando tudo. Era o terror kafkiano, eu morrendo e tendo que passar pela burocracia de um inquérito absurdo. Ah, mas aquela médica partidária do Grande Irmão não me pegaria tão fácil. Então menti em todas as respostas, eh, eh, eh. Depois estiquei o braço e puff!, injeção de glicose na veia. Deitei na maca e apaguei.

Súbito, percebi uns acordes… eram familiares… vinham de muito longe… Rod Stewart! Começando a cantar You´re in My Heart, uau! Despertei de um salto. Sentia-me bem, inteiramente revigorado. Quanto tempo se passara? A médica nazista não estava mais na sala. Na maca ao lado um rapaz se contorcia numa viagem pior que a minha, eu podia escutar os gritos do seu silêncio. Era preciso fugir daquele terrível asilo. A música estava acabando, o destino batia à minha porta e não havia muito tempo.

Boto meus oclinhos. A porta da saleta está aberta. Meto a cabeça no corredor e de lá avisto a saída do asilo. Brad Davis escapando daquela penitenciária turca. Deixo meu dublê de corpo lá na maca e saio em disparada pelo corredor, empurrando os enfermeiros. Corra, Lola, corra! Ah, não, me empolguei, desculpe, Lola é mais recente. Na saída, salto a corda e, nas asas da liberdade, me infiltro na multidão. Estou salvo. Já não precisam me mandar flores. Posiciono-me num lugar razoável e enfim concretizo meu sonho de ver o velho Rod. Missão cumprida.

Depois desse sufoco até o compadre 007 diria nunca mais outra vez. Mas Sua Majestade entenda: tenho apenas vinte anos e todo o pique do mundo. E sou eterno. Assim como os diamantes.

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Ricardo Kelmer 2000 – blogdokelmer.com

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> Esta crônica está cheinha de referências a filmes de 1985 e de anos anteriores. Quais você encontrou?

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Rod Stewart canta You’re in My Heart
no Rock in Rio de 1985
+ clipe do festival

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LEIA NESTE BLOG

Ser mulher não é pra qualquer umÉ dada a saída, lá se vai o trenzinho. Num vagão as Belas, abalando nos modelitos, no outro as Madrinhas, abalando com o isopor e o estojinho de primeiro-socorro

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Comentarios01 COMENTÁRIOS
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01- Cada história, hein, seo Kelmer. Wanessa Bentowski, Fortaleza-CE – set2011

02- É uma figura!! Carmem Mouzo, Rio de Janeiro-RJ – set2011

03- Peguei todas as referências cinéfilas dos anos 80, nesse Expresso da Meia-Noite no Rock-n-Rio entre dois Daunbailó! Divertido… Téo Lorent, São Paulo-SP – set2011

RK: Expresso da Meia-Noite (dir: Alan Parker, 1978). Ponto para Téo Lorent! Mas Daunbailó (Jim Jarmusch) eu não citei não, até porque não havia visto. 🙂

04- Não ligue para o seu passado, vai que ele atende!!! Nonato Freire, Salvador-BA – set2011

05- Adorei, ri de montão por aqui, vc a cada dia me surpreende mais. Bjokinhas. Mariucha Madureira, Brasília-DF – set2011

06- Ricardo, Valeu pela cronica meu velho ! Adorei … nesta época de Rock in Rio vale demais relembrar aonde e como cada um de nós estava no priemrio. Eu, por exemplo, estava em Quixeramobim assistindo tudo pela TV com uma sensaçao muito estranha de estar no lugar errado na hora certa ! um abraço forte. Tibico Brasil, Fortaleza-CE – set2011

07- muito boa, kelmer! adorei essa. lembrei quando fui ao meu primeiro hollywood rock ver bob dylan… e quando tomei todas na abertura do roger waters… quase perdi essa apresentação por causa de uma garrafa de roseira, uma pinga feita pela minha família lá no sul de MG… adorei a crônica! abç. Rodrigo Oliveira, Fortaleza-CE – set2011

08- hehehe, jóia! Giovanni Iemini, Brasília-DF – set2011

09- ‎”O dia em que morri no Rock in Rio” me deu espasmos de risos. Só tu mesmo, visse. Excelente! Rafaela Silva, Campina Grande-PB – set2011

10- Adorei! Ana Maria van Erven de Figueiredo, São Paulo-SP – set2011

11- Ótimo, Rico. Marta Crisóstomo Rosário, Brasília-DF – set2011

12- Se eu não tivesse nascido em meados dos anos 80, certamente teria pulado “o muro” com vocês “dois, perdidos numa noite suja”, e seria mais uma dando uma de “james bond”, nessa “ilha das almas perdidas” que descreveu… De fato, Kelmer, estaria também “marcada para morrer”. mas “os diamantes são eternos”, et voilà, aqui estamos nós! prontos para qualquer Rock in Rio que porventura possa acontecer… vou indo sr. dos labirintos descritivos, não fique triste. afinal, “lobos não choram”. Érika Zaituni, Fortaleza-CE – out2011


Cine Kelmer apresenta

04/09/2011

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Uma lista com alguns dos meus filmes prediletos. Incluí também filmes relacionados ao meu trabalho.

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SITES SOBRE FILMES

> Cinema com rapadura
> Adoro cinema
> Filmes de cinema

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FILMES
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2001 – UMA ODISSEIA NO ESPAÇO
Ficção científica – EUA, 1968 – Dir.: Stanley Kubrick. Missão espacial controlada por supercomputador viaja ao planeta Júpiter para estudar estranho monolito negro. Uma obra-prima.
> Saiba maisCena (macaco)

A HISTÓRIA DE O
Drama erótico – França/Alemanha, 1975. Dir: Just Jaeckin. Roteiro: Sébastien Japrisot. Jovem fotógrafa é levada por seu amante a um castelo onde torna-se, por vontade própria, escrava sexual de seu amante e outros homens. Baseado no romance (Histoire d’O, 1954) da francesa Anne Desclos, que o publicou sob o pseudônimo Pauline Réage. Gostei bem mais do livro, mas Corinne Clery, aiai, vale o filme. Anne Desclos publicou também a continuação Retorno a Roissy, que ganhou versão cinematográfica com o título Frutos da Paixão – se você curte BDSM, indico ambos os filmes.
> Saiba maisFilme completo, legendado

ALUCINAÇÕES DO PASSADO
Drama/terror – EUA, 1990 – Dir.: Adrian Lyne. Ex-soldado sofre com estranhas alucinações e com a culpa pela morte do filho. Um dos filmes que mais admiro.
> Saiba maisCrônica: Pesadelos reais

BETTIE PAGE
Biográfico – EUA 2005 – Dir.: Mary Harron. A vida de Bettie Page, ícone da moda e da arte erótica. A caracterização feita pela atriz Gretchen Mol vale o filme.
> Saiba maisCrônica: Bettie Page, nós te amamos

BladeRunner01BLADE RUNNER – O CAÇADOR DE ANDRÓIDES
Aventura/ficção científica – EUA, 1982 – Dir.: Ridley Scott. Na Los Angeles de 2019 policial tenta capturar andróides fugitivos. Sou apaixonado por este filme. Ele tem tantas implicações filosóficas…
> Saiba maisArtigo: Deuses, humanos e andróides na berlinda
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CABARÉ SOÇAITE – VÍDEOS DA FESTA
Vídeos – Brasil, 2011 – Direção e edição: Ricardo Kelmer. Vídeos da festa Cabaré Soçaite, produzida desde 2002 pelo escritor Ricardo Kelmer.
> Saiba mais

CALÍGULA
Biográfico/erótico – EUA/Itália, 1979 – Dir.: Tinto Brass, Giancarlo Lui e Bob Guccione. O maior pornô-épico da história do Cinema mostra a vida desvairada do imperador romano. Adoro as cenas sexuais deste filme.
> Saiba mais

CARLOS CASTANEDA
> Carlos Castaneda (vídeo) – Especial da BBC sobre o polêmico antropólogo que estudou o xamanismo no México, escreveu vários livros e tornou-se um fenômeno do movimento Nova Era. Legendado.
> Saiba mais

CHICAGO
Musical – EUA/Alemanha, 2002 – Dir.: Rob Marshall. Duas cantoras se conhecem numa prisão de Chicago e buscam a fama nos palcos da Broadway. Maravilhoso. Uso imagens dele no Cabaré Soçaite.
> Saiba mais

DESCONSTRUINDO HARRY
Drama/humor – EUA, 1997 – Dir.: Woody Allen. Escritor de vida confusa passa a se relacionar com seus próprios personagens. Um dos meus preferidos de Woody Allen.
> Saiba maisCrônica: Desconstruindo Harry

DON JUAN DE MARCO
Romance – EUA, 1995 – Dir: Jeremy Leven. Psiquiatra tenta curar jovem que acredita ser o lendário amante Don Juan. Adoro este filme. Uso-o na palestra Razão e Sentimento em Conflito.
> Saiba maisCrônica: Razão e sentimento em conflito

FESTIVAL EXPRESS
Documentário – Reino Unido/Canadá, 1983 – Dir: Bob Smeaton e Frank Cvitanovich. Em 1970 um trem cruza o Canadá levando bandas e artistas como Janis Joplin, Buddy Guy e Greatful Dead para shows em várias cidades.
> TreilerCrônica: Paz e amor express

LUA DE FEL
Drama – França/Reino Unido, 1992 – Dir.: Roman Polanski. Numa viagem de navio, casal de ingleses envolve-se com outro casal e sua história de amor, ódio e crueldade. Filme maravilhoso. Cruelmente, humanamente verdadeiro.
> Saiba mais

figmanoamanoelenco1MANO A MANO – Episódios 1 e 2
Humor – Brasil, 2005 – Dir.: Vicente Barcellos e João Camargo. O divertido cotidiano de dois irmãos que passam a morar juntos na favela. Fui um dos roteiristas deste sitcom, exibido em 2005 pela RedeTV.
> Saiba mais

MATRIX
Aventura/ficção científica – EUA 1999 – Dir.: Larry Wachowski e Andy Wachowski. Após descobrir que vivia numa realidade virtual criada por máquinas, jovem luta contra elas. Um dos filmes que mais me tocaram em toda minha vida. Uso o primeiro filme da trilogia na palestra O Despertar do Herói.
> Saiba maisCrônica: O Segredo dos PredestinadosPalestra: O despertar do heróiLivro: Matrix e o Despertar do Herói

MOULIN ROUGE – AMOR EM VERMELHO
Romance/musical – Austrália/EUA, 2001 – Dir.: Baz Luhrmann. Jovem escritor se apaixona pela estrela do cabaré parisiense Moulin Rouge. A exuberância visual deste filme é emocionante.
> Saiba mais

NOVE RAINHAS
Drama/suspense – Argentina, 2000 – Dir.: Fabián Bielinsky. Dois trapaceiros se conhecem e tentam aplicar um golpe num milionário. Um dos mais incríveis roteiros que conheço.
> Saiba maisCrônica: Olha a pegadinha

O BURACO BRANCO NO TEMPO
Documentário – EUA, 1993 – 27 min – Dir.: Chris Hall. Baseado no livro homônimo, do físico Peter Russel, este filme defende que a atual crise da humanidade é, na verdade, uma crise de percepção, e que podemos, neste momento, estar à beira de um decisivo salto de compreensão a respeito do tempo e de nós mesmos.
> Veja o filme > Crônica: O redemoinho do fim do mundo

FILMEMissingLink-01O ELO PERDIDO
Aventura – EUA, 1988 – Dir.: Carol Hughes e David Hughes. Um milhão de anos atrás, na África, homem-macaco tem sua família dizimada por hominídeos e ele vaga sozinho pelo planeta, conhecendo e encantando-se com a Natureza. Ao comer de uma planta, tem estranha experiência que lhe traz importantes revelações.

> Saiba maisCrônica: A vida na encruzilhada

O EXORCISTA
Drama/terror – EUA, 1978 – Dir.: William Friedkin. Padre em crise de fé auxilia famoso exorcista a expulsar um demônio do corpo de uma garota. Magnífico!
> Saiba maisCrônica: Vade retro Satanás

O PODER DO MITO
Entrevista – EUA, 2005. Famosa entrevista feita por Bill Moyers com o mitologista Joseph Campbell em 1987. Extra com especial sobre o filme Guerra nas Estrelas. Um ótimo filme para iniciantes no estudo da mitologia comparada.
> Saiba mais

REDENTOR
Drama – Brasil, 2004 – Dir.: Cláudio Torres. Jornalista recebe de Deus a missão de convencer seu amigo de infância, um corrupto construtor, a doar sua fortuna aos pobres. Um dos melhores momentos do cinema brasileiro.
> Saiba mais

SEX AND THE CITY – 1ª temporada
Humor – EUA, 1998 – Criado por Darren Star e Karey Kirkpatrick. As divertidas histórias sobre o cotidiano de quatro amigas novaiorquinas. Uma aula de roteiro.
> Saiba mais

THE WALL
Musical, drama – EUA-Reino Unido 1982 – Dir.: Alan Parker. Baseado no álbum The Wall, de 1979, da banda Pink Floyd, o filme é a história de Pink, um roqueiro frustrado e solitário, que se isola do mundo enquanto sofre com as dolorosas lembranças de sua vida.
> Saiba mais

UMA CILADA PARA ROGER RABBIT
Humor – EUA, 1988 – Dir.: Robert Zemeckis. Detetive investiga um crime e se envolve em triângulo amoroso com um coelho e sua mulher, a sensual Jessica Rabbit. Misturando atores reais e animação, história em clima noir e a fabulosa Jessica, este filme é perfeito.
> Saiba mais

V DE VINGANÇA
Aventura, drama – Alemanha/EUA, 2006 – Dir.: James McTeigue. Produzido pelos irmãos Wachowski (diretores de Matrix), este filme é um hino à liberdade e nos faz lembrar que o povo não deve temer o governo – o governo é que deve temer o povo.
> Saiba mais

VINICIUS
Biográfico – Espanha/Brasil, 2008 – Dir.: Miguel Faria Jr. A vida e a arte de Vinicius de Moraes através de imagens de arquivo, entrevistas e interpretação de suas músicas e poemas. A vida de Vinicius daria muitos filmes.
> Saiba maisSobre o Vinicius Show de Moraes

WEEDS – 1ª temporada
Drama/comédia – EUA, 2005 – Criado por Jenji Kohan. Dona de casa de Los Angeles fica viúva e passa a vender maconha para sustentar os filhos. Roteiros e atuações impecáveis.
> Saiba mais

ZEITGEIST
Documentário – EUA, 2007 – Dir.: Peter Joseph. As mentiras por trás do Cristianismo, das políticas econômicas e das guerras. A primeira parte mostra como o Cristianismo foi influenciado pela astrologia e por mitos de várias culturas, sugerindo ao fim que Jesus Cristo é provavelmente uma invenção.
> Saiba mais e veja o filme

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Ricardo Kelmer – blogdokelmer.com

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A prostituição na sala de estar

24/02/2011

24fev2011

Quem resiste ao fetiche de acompanhar o cotidiano de uma lolita que vende sexo?

A PROSTITUIÇÃO NA SALA DE ESTAR

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Sua história é mesmo sedutora. Uma menina de 17 anos, paulistana de classe média alta, briga com os pais, sai de casa e se prostitui por três anos enquanto narra seu dia a dia num blog, cativando milhares de leitores homens e mulheres, adultos e adolescentes. Ela atua num filme pornô, lança um livro sobre sua vida que vende horrores, atrai a atenção da mídia internacional, supera problemas com drogas, casa com um ex-cliente que deixa a mulher para viver com ela e, por fim, larga a prostituição. Mas o mundo não larga dela. A apaixonante história de Raquel Pacheco, nome verdadeiro de Bruna Surfistinha, agora está no cinema. E, ainda que você não goste, está também em sua casa.

Internet, esse é o segredo do fenômeno cultural Bruna Surfistinha. Se não fosse a ideia de narrar sua vida num blog como nos diários íntimos das adolescentes, ela seria apenas mais uma entre as prostitutas deste país. Quem resiste ao fetiche de acompanhar o cotidiano de uma lolita que vende sexo? Eu também não resisti. Acrescente a isso o eterno fascínio que causa o arquétipo da prostituição e, hummm, temos uma receita de sabor irresistível.

Foi feliz a escolha do nome: Bruna é moderno e Surfistinha evoca algo de safadice misturado com meiguice e inocência, e ainda tem um quê de esportivo e saudável. Aí a gente acessava o blog e via que a menina era gatinha e não tinha nenhum jeitão de malaca espertalhona. Ela parecia ser tão verdadeira e espontânea no que fazia que, não, aquilo não podia ser uma pegadinha. Só mesmo ligando para ela para conferir.

O fato de Raquel gostar do que fazia e assumir isso em seu blog era mais um tempero na sedução. Ela preferia a prostituição, pois adorava fazer sexo com homens e mulheres e curtia os clubes de swing. Ela tinha orgasmos com seus clientes, e os respeitava e atendia às suas fantasias. E mesmo depois de famosa, Raquel não achou justo cobrar muito mais, pois sabia que, para parte de sua clientela, um programa com ela custava alguns dias de trabalho. Uma menina bonita, de boa família, que é puta porque quer e não tá nem aí para as leis do mercado – você achava que isso só existia nos filmes, né? Eu também.

Raquel destruiu uma velha imagem da prostituta, a da moça pobre-coitada que é obrigada a alugar o corpo por não ter outra opção. Raquel não. Ela estudava em colégio bom e possuía bom nível cultural. Poderia ter arrumado outro trabalho, mas, não, ela quis ser puta. Planejava juntar grana e largar a prostituição, sim, mas enquanto isso não ocorria, ela vivia com alegria e não se arrependia de sua escolha. Depois de Raquel Pacheco as teses sociológicas terão de ser refeitas para falar dessas mulheres que agora a sociedade sabe que existem: meninas de classe média que, em busca de vida melhor e de custear os estudos mais rapidamente, recusam os salários e condições oferecidos pelos empregos tradicionais e encontram na prostituição um ofício honesto, com seus prós e contras, mas com vantagens financeiras incomparáveis e que a cada dia é visto com menos preconceito.

E agora a história ganha as telas. Editoras lançam livros, profissionais do sexo saem do armário e a TV põe o assunto dentro dos lares. A sociedade descobre que ama e odeia e rejeita e quer o sexo pago, e que, mesmo em tempos de liberação sexual, ele resiste e já não tem vergonha de mostrar o rosto. No século 21 a prostituição ainda polemiza, mas continua fascinante e sedutora. E agora tem um certo charme pop. Como a história de Raquel.

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Ricardo Kelmer 2009 – blogdokelmer.com

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O FILME

Bruna Surfistinha

Drama, Brasil, 2011,  109 minutos
Direção: Marcus Baldini
Roteiro: José Carvalho, Homero Olivetto e Antonia Pellegrino
Elenco: Deborah Secco, Drica Moraes, Cássio Gabus Mendes, Guta Ruiz
Censura: 16 anos

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CARTAZES DO FILME

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SAIBA MAIS

> Blog de Raquel Pacheco
> Entrevista com Raquel Pacheco (TV Estadão, 17.11.09)
> Bruna Surfistinha na Wikipedia
> Bruna Surfistinha no New York Times (27.04.06)

> O que aprendi com Bruna Surfistinha – Lições de uma vida nada fácil (Raquel Pacheco, Panda Books). Livro digital para baixar.
> O doce veneno do pecado – Crônica de Arnaldo Jabor no estadão, 15.03.11

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Treiler oficial do filme

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MAIS SOBRE SEXUALIDADE FEMININA

AsFogueirasDeBeltane-03aAs fogueiras de Beltane – A sexualidade sem culpa de uma sacerdotisa pagã

A noiva lésbica de Cristo – Se hoje a sexualidade feminina ainda apavora a mentalidade cristã, no século 17 ela era algo absolutamente demoníaco

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Vocês Terráqueas – Seduções e perdições do feminino – Livro de contos e crônicas sobre a mulher

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DICA DE LIVRO

IFTCapa-04aIndecências para o fim de tarde
Ricardo Kelmer – Contos eróticos

Uma advogada que adora fazer sexo por dinheiro… Um ser misterioso e sensual que invade o sono das mulheres… Os fetiches de um casal e sua devotada e canina escrava sexual… Uma sacerdotisa pagã e seu cavaleiro num ritual de fertilidade na floresta… A adolescente que consegue um encontro especial com seu ídolo maior, o próprio pai… Seja provocando risos e reflexões, chocando nossa moralidade ou instigando nossas fantasias, inclusive as que nem sabíamos possuir, as indecências destes 23 contos querem isso mesmo: lambuzar, agredir, provocar e surpreender a sua imaginação.

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COMENTÁRIOS
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01- A história dela é fascinante? Ou a sociedade se impressiona com pouco? Luciano Es, São Paulo-SP – fev2011

RK: A história da Raquel é fascinante, sim. Pra começar, que menina no Brasil, de classe média alta, com bom nível cultural, saiu de casa aos 17 anos pra se prostituir e ficou famosa no Brasil e no exterior? Quantos escritores venderam 250 mil exemplares de um único livro neste país? Quantas histórias pessoais no Brasil viraram filme?

02- Não há nada de impressionante nisso, é a profissão mais antiga do mundo…dá pena ver uma mulher se degradar a este ponto, vender o corpo, ser usada e usar…somos muito mais do apenas corpo e grana, é viver de forma limitada, é enxergar apenas uma parte da vida, há muito mais nas entrelinhas…ela no fundo tem fome de amor e familia, foi isso que compreendi nesta historia. Adriana Alves, São Paulo-SP – fev2011

RK: Não há nada de degradante em sexo pago, Adriana. Cantores alugam a voz, modelos alugam o corpo. Prostituição é um negócio como qualquer outro, onde há um prestador de serviço e alguém interessado nesse serviço. Por que o serviço “sexo” seria sujo ou imoral?

03- Vai fazer o seu programa mas depois volte para mim.Beijos Bruninha. Ps, Odair José e Zeca Baleiro. Andre Soares Pontes, Fortaleza-CE – fev2011

RK: Eheheh… Esta música do Odair é demais!

04- Lamentável a vida desta vadia. Lamentável pessoas de nível dedicarem tempo e trabalho para idolatrar uma saga de degradação. Lamentável pagar ingresso de cinema ou comprar livro desta sujeira toda. Deus e a educação protejam as famíliuas. Rodrigo, Coluna Kelméricas, O Povo OnLine – abr2011

RK: CD Lamentos Rodrigais. À venda na lojinha da igreja.

05- Eu até tento, uma vez por ano eu leio esta coluna ridícula desse rapaz, e é incrível a capacidade humana de não evoluir, que lixo, mais uma vez perdi meu tempo numa leitura pobre e tosca. Levi Nepomuceno, coluna Kelméricas, O Povo OnLine – abr2011

RK: Até o ano que vem, Levi.

06- O impressionante neste filme, é que, ele é além de um simples filme; É um guia à prostituição, onde uma menina de 17 anos […] termina como uma vencedora que conquistou a sociedade através da venda de seu corpo. No mínimo deplorável para os adolescentes que vê tal pessoa conseguindo sucesso através desses meios; Lamentável que exista uma educação tão fútil, que a grande parte das pessoas que estão vendo este filme é composta de ignorantes, que não se importa com %u201Cvalores morais%u201D que estão sendo destruídos na mente de meninas por todo o país. Simplesmente uma situação lamentável aos jovens, que estão sendo conduzidos para um caminho terrível de fornicação e maus tratos, onde a mídia manipuladora pretende destruir a base familiar e fomentar a degradação moral. Misaell, coluna Kelméricas, O Povo OnLine – abr2011

RK: Oi, Rodrigo, Levi Nepomuceno e Misaell! Obrigado por comentarem. Fico feliz de ter leitores tão participativos. Vou sair agora com minha namorada pro swing e quando voltar eu respondo com calma, tá?

07- “Tornamo-nos morais quando somos infelizes” Marcel Proust. Junior, coluna Kelméricas, O Povo OnLine – abr2011

08- Ainda bem que percebi o teor de imbecilidade deste artigo antes de terminar de ler e escapei de ter que ler tanta besteira. João Marcelo Rocha Ramalho, coluna Kelméricas, O Povo OnLine – abr2011

09- VIVA A LIBERDADE!! FORA A HIPOCRISIA. ABAIXO O PRECONCEITO!!!! Ari, coluna Kelméricas, O Povo OnLine – abr2011

10- Dias desses lá vou eu conhecer um trabalho social ali no Benfica, a Associação de Solidariedade aos Meninos e Meninas de Fortaleza que com apoio de Malaga na Espanha e da Prefeitura de Fortaleza desenvolvem um belo trabalho com jovens na tentativa de “dar-lhes outros olhares”. A prostituição é uma fábula, um devir e porque não algo envolvente? Dai me despido de preceitos e minha formação cristã. Será no minimo falso moral dizermos que o dinheiro, o glamour e a sensação de ser desejado(a) não é algo. bom. O filme não evoca ou diz: faça isso ou aquilo. A Associação que visitei tenta acolher. Quem tem a dócil missão ou tarefa são os pais em trabalharem principios, valores e amor. Aos adultos o direito por seus proprios corpos! Erivaldo Teixeira, coluna Kelméricas, O Povo OnLine – abr2011

11- degradação total,jamais gastarei nenhum centavo com tal filme q dizem ser de superação,a mudança de valores é notoria e ilária,mas espero q não tenha força,só posso lamentar por toda essa podridão q afeta tantas mentes inocentes e em formação. Silvia Helena, coluna Kelméricas, O Povo OnLine – abr2011

RK: Putz, Silvia, como você é muquirana!

12- MUITO BOM O COMENTÁRIO DO SR. ERIVALDO TEIXEIRA.SENSATO E HUMANO; ELE NÃO TENTA JULGAR OU ATIRAR PEDRAS COMO FAZEM ALGUMAS PESSOAS SEMPRE EM NOME DA FÉ! SINTO MUITO PELAS PESSOAS QUE CRUCIFICAM E CONDENAM AOS OUTROS. ACHO SIM, QUE NÃO TEMOS NENHUM DIREITO DE JULGAR E CONDENAR ALGUÉM PELOS SEUS ATOS. Arimatéa de Andrade, coluna Kelméricas, O Povo OnLine – abr2011

13- PERCEBA QUE O AUTOR, diz ser SEDUTORA uma história de uma adolescente de 17 anos (Menor de Idade), que por não conseguir evoluir no relacionamento com os pais, prefere sair de casa e se prostituir. É de se imaginar que o autor, considere muitas outras histórias bem sedutoras. Mas o que se esperar de um rapaz que é escritor, roteirista e DONO DE CABARÉ, se tivesse oportunidade talvez até contratasse a tal garota para seu estabelecimento comercial, como atração principal. Levi Nepomuceno, coluna Kelméricas, O Povo OnLine – abr2011

RK: Sua sugestão para a atração principal foi aceita, Levi. Pode passar na recepção pra pegar sua cortesia.

14- Que a prostituição é um fato, todos nós sabemos. Porém a história e o filme vêm alimentar a ilusão de muitas meninas que acrdeditarao que ser prostituta é uma boa opção de vida. Enquanto a Raquel “se deu bem”, pelo menos aparentemente, milhares de prostituotas estão sem ver uma luz no fim do túnel. Cheias de decepção, traumas infelizes e sós. O filme pode até ser bom para bilheterias, porém como modelo de vida está longe da verdadeira realidade. Antonio José da Silva, coluna Kelméricas, O Povo OnLine – abr2011

15- O que faz um vencedor? Nos dias atuais o vencedor é aquele que de alguma forma, não importa qual, faz um milhão. Achava que era só coisa de americano…mas já empestou o Brasil. A Bruna é heroína pq no lugar de ter um trabalho convencional, preferiu se prostituir pra manter um alto padrão de vida. Por ter enricado, se encheu de fã. A Maria é heroína pq ganhou um milhão no BBB e agora os fãs juram de pé junto que a moça nao fez video pornográfico. Elá é uma vencedora! É BBB!!! Talvez eu esteja velha…sou do tempo que heroína era Maria Bonita, que largou a vida tranquila para lutar por um ideal…tinha um propósito acima de uma bolsa Louis Viton e um Givenchi. Ou Maria Bonita toparia ser mais uma prostituta para mostrar que venceu e pode comprar um apartamento no Leblon? Sonia, coluna Kelméricas, O Povo OnLine – abr2011


Bettie Page, nós te amamos

14/01/2011

14jan2011

Ela é um ícone da moda, da arte erótica e também do universo BDSM, inspirando artistas e fetichistas

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BETTIE PAGE, NÓS TE AMAMOS

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Você a conhece. E gosta dela que eu sei. Já a viu muito por aí, em cartazes, revistas, bottons e camisetas. Já topou com ela em sites e até em tatuagens. Talvez você apenas não saiba seu nome. Pois bem, ela se chama Bettie. É a mais famosa de todas as pin-ups. Não, ela é mais que isso: ela é “a” pin-up. Na verdade, a moça é um incrível fenômeno cultural. Ela é Bettie Page.

Nascida em Nashville, no Tennessee, EUA, em 1923, Bettie teve infância pobre. Sua família era religiosa e ela sofreu abusos sexuais por parte do pai. Estudou moda, formou-se em Artes, atuou em teatro e trabalhou como secretária. A partir de 1950, morando em Nova York, ficou famosa posando para fotos sensuais onde exibia seu lindo rosto, seu corpo perfeito e o cabelão negro de franjinha, que se tornaria marca registrada.

Mas Bettie não era só beleza. Além de ser graciosa e encantadora, ela possuía um imenso talento para posar, conseguindo transmitir ao mesmo tempo malícia e inocência, ousadia e espontaneidade. Para Bettie, exibir seu corpo nu era algo tão natural que o trabalho se tornava brincadeira, e esse clima de naturalidade e alegria é visível em suas fotos.

Foi com o fotógrafo Irving Klaw, porém, que a carreira de Bettie seguiu um rumo mais ousado. Vendo que o mercado queria novidades, ele apostou na pornografia, inserindo nas fotos elementos de fetiche sadomasoquista, e Bettie achou aquilo ainda mais divertido. Roupas de couro preto, chicotes, mulheres amordaçadas, simulação de dominação – as novas fotos fizeram tanto sucesso que ajudaram a criar uma tendência artística, o que incomodou a mentalidade careta da época que, visando combater a pornografia, forçou a criação de uma comissão de investigação no Senado. A paranoia puritana felizmente esbarrou no direito constitucional à liberdade de expressão, porém, não obstante a arte pornográfica ter seguido livremente seu caminho, a carreira de Bettie infelizmente minguou a partir daí.

Em 1958, Bettie sumiu da cena artística. Casou-se novamente e separou-se. Tentou, sem sucesso, a carreira de atriz, tornou-se religiosa fervorosa e decidiu envelhecer longe da mídia, sendo raras fotos e entrevistas suas desse período posterior. Acometida de depressão e surtos esquizofrênicos, envolveu-se em episódios de violência e internou-se em hospitais psiquiátricos. E morreu em 2008, aos 85 anos.

Hoje, meio século após o fim de sua carreira e mesmo com a popularização da pornografia, que faz as fotos daquela época parecerem coisa de criança, a imagem da rainha das pin-ups continua a se espalhar pelo mundo e seu estilo é insistentemente copiado. Ela é um ícone da moda, da arte erótica e também do universo BDSM (bondage, dominação e sadomasoquismo), inspirando artistas e fetichistas. Quadrinhos, documentários e biografias não autorizadas foram feitos sobre ela. O filme Bettie Page (The Notorius Bettie Page, 2005) mostra sua vida da infância ao fim da carreira de modelo, e um dos atrativos é a perfeita caracterização da atriz Gretchen Mol, que interpreta Bettie.

Da próxima vez, fique atento: é Bettie quem te sorri na fila da boate, no ímã de geladeira, naquele quadro no motel. Porque somos todos pornográficos. E é por isso que amamos Bettie Page.

 

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Ricardo Kelmer 2011 – blogdokelmer.com

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BettiePage-07O FILME

Bettie Page/The Notorious Bettie Page
Direção: Mary Harron, EUA/2005
Elenco: Gretchen Mol, Chris Bauer, David Straithairn, Jared Harris, Lili Taylor e Sarah Paulson
Roteiro: Mary Harron e Guinevere Turner
Produção: HBO Films, Killer Films, John Wells Productions
P&B e Cor, 91 min.

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Na Wikipedia – Saiba mais sobre Bettie Page

Vídeos – Uma seleção de vídeos com Bettie Page no Vimeo

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FILME (legendado em português)

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FOTOS
clique para ampliar

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Graciosa

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Não lembra as fotos amadoras que fazemos
com a namorada no motel?

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Bons tempos aqueles em que as mulheres não
queriam ser esqueletos…

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Queremos mulher carnuda!

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Escrava sexual. Quem nunca sonhou ter uma?

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BettiePage-09aMusa dos naturistas

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Bettie, o anjo pornográfico

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Bettie aos 81 anos, com Anna Nicole Smith e
Pamela Anderson em festa da Playboy (2003)

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Cena do filme Bettie Page (2005)

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DICA DE LIVROS

A entrega – memórias eróticas (Toni Bentley, Editora Objetiva/2005) – A bailarina filosofa sobre sua profunda experiência de amor, submissão e salvação pelo sexo anal

O diário de Marise – A vida real de uma garota de programa (Vanessa de Oliveira, Matrix Editora/2006) – Em casa, uma mãe dedicada. Na faculdade de enfermagem, uma aluna esforçada. Nos hotéis e motéis onde atende, uma garota de programa muito requisitada

A prostituta sagrada – A face eterna do feminino (Nancy Qualls-Corbett, Editora Paulus/1990) – Este livro mostra como nossa vitalidade e alegria de viver dependem de restaurarmos a alma da prostituta sagrada, a fim de nos proporcionar uma nova compreensão da vida

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MAIS SOBRE SEXUALIDADE FEMININA

OIncubo-06O íncubo – Íncubos eram demônios que invadiam o sono das mulheres para copular com elas – uma difundida crença medieval. Mas… e se ainda existirem?

Lolita, Lolita – Ela é uma garotinha encantadora. E eu poderia ser seu pai. Mas não sou

A gota dágua – A tarde chuvosa e a força urgente do desejo. Ela deveria resistir, mas…

A torta de chocolate – Sexo e chocolate. Para muita gente as duas coisas têm tudo a ver. Para Celina era bem mais que isso…

Vocês Terráqueas – Seduções e perdições do feminino – Livro de contos e crônicas sobre a mulher

A noiva lésbica de Cristo – Se hoje a sexualidade feminina ainda apavora a mentalidade cristã, no século 17 ela era algo absolutamente demoníaco

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SÉRIES ERÓTICAS DESTE BLOG

As aventuras de Diametral e Ninfa Jessi – A mais bela e safada história de amor jamais contada

As taras de Lara – Desde pequena que Lara só pensa naquilo. E ai do homem que não a satisfaz

Um ano na seca – O que pode acontecer a um homem após doze meses sem sexo?

O último homem do mundo – O sonho de Agenor é que todas as mulheres do mundo o desejem. Para isso ele está disposto a fazer um pacto com o diabo. Mas há um velho ditado que diz: cuidado com o que deseja pois você pode conseguir…

Por trás do sexo anal (1) – Se esotérico significa a parte mais oculta de uma tradição ou ensinamento, aquilo que somente iniciados alcançam após muito estudo e dedicação, então o sexo anal é o lado esotérico do sexo

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BettiePageNosTeAmamos-01a


O redemoinho do fim do mundo

07/12/2010

07dez2010

É provável que estejamos à beira de um grandioso marco evolutivo, onde a Humanidade alcançará o clímax dessa aceleração das transformações

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O REDEMOINHO DO FIM DO MUNDO

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Sei que corro o risco de parecer alarmista ou esquisotérico, mas eu sinceramente acho que em poucos anos a Humanidade poderá viver um acontecimento muitíssimo sério, desses que dividem a História em antes e depois. Antes de prosseguir, deixe-me dizer logo que sou ateísta e não tenho nenhuma religião, ok? Pois bem, continuemos. O motivo de eu pensar assim vem de vários lados, mas principalmente da análise dos grandes saltos evolutivos da Humanidade e do ritmo em que ocorrem.

Vejamos. O surgimento da linguagem (dois milhões de anos atrás), o controle do fogo (500 mil anos), a agricultura (12 mil anos), a escrita (5 mil anos), a democracia (3 mil anos), as grandes navegações (500 anos), a revolução industrial (200 anos), as comunicações (100 anos), a revolução digital (40 anos), a internet (15 anos)… Todos esses acontecimentos são marcos evolutivos da Humanidade e representam, inegavelmente, grandes e decisivas transformações no mundo. Há, porém, um detalhe intrigante: o ritmo em que eles ocorrem está cada vez mais veloz.

Essas grandes mudanças, que antes levavam milênios ou séculos para se sucederem, agora ocorrem a intervalos cada vez menores, a ponto de, atualmente, uma pessoa presenciar durante sua vida duas ou três imensas transformações no mundo, dessas que mudam tudo. Além disso, essas mudanças alcançam cada vez mais pessoas no mundo inteiro e são cada vez mais transformadoras. A continuar esse ritmo, como será? As sociedades conseguirão lidar com tantas e imensas transformações em tão pouco tempo? Como organizar a vida se tudo muda tão rápido e tão radicalmente?

Imagine um redemoinho. A cada volta, a água gira cada vez mais rápido, né? Pois bem. É como se a História fosse um redemoinho de transformações a ocorrer em ritmo cada vez mais acelerado, cada vez mais, até que… Até que o quê? Bem, num redemoinho, tudo que há nele é tragado quando chega ao fim. Estaremos chegando ao fim do redemoinho? E, depois, o que acontecerá?

Pô, se já é difícil falar do fim do mundo, imagine do que virá depois. Fiquemos, por enquanto, no redemoinho, mais precisamente no fim dele. A minha séria desconfiança é de que nos aproximamos do clímax dessa aceleração das transformações, e que o acontecimento, ou os acontecimentos que virão serão decisivos a tal ponto que significarão uma espécie de fim do mundo, ou melhor, o fim do mundo como o percebemos, o fim da realidade e de nós mesmos como até hoje entendemos.

O fim do mundo, então, seria isso, um violentíssimo choque de percepção coletiva. E o que exatamente ocasionará esse choque? Um inédito evento cósmico? Uma supercatástrofe ambiental? Ou uma guerra mundial de motivações religiosas? Seria um revolucionário experimento científico? A descoberta de novas formas de vida ou de novos níveis de realidade? O contato com uma forma desconhecida de inteligência? Um colapso do sistema financeiro? Ou o surgimento de uma noção de cidadania planetária capaz de derrubar governos e fronteiras? Tudo isso junto? Nada disso?

Não é apenas o ritmo cada vez mais acelerado das transformações que me faz desconfiar de que estamos no fim do redemoinho. A ciência, por exemplo, projeta para breve vários acontecimentos radicais como o esgotamento dos recursos naturais do planeta. A astrologia, por sua vez, nos diz que vivemos exatamente agora a mudança da Era de Peixes para a Era de Aquário. E há a questão das profecias. Sim, o fim do mundo já foi previsto várias vezes e o danado continua de pé, eu sei. Porém, entendo as profecias apocalípticas como a expressão natural de uma percepção inconsciente do fato de que um dia chegaremos ao fim do redemoinho. Em outras palavras: nós humanos sempre pressentimos, sem saber explicar direito, a chegada desse momento em que a aceleração das transformações chegará a tal ponto que, tchum!, isso significará o drástico fim do nosso senso comum da realidade. As datas estavam erradas, é verdade, mas a percepção sempre esteve correta.

Há algo mais na questão das profecias. Uma profecia tem mais chance de se realizar quanto maior for o número de indivíduos que acreditam nela, pois quem crê numa profecia naturalmente deseja, ainda que inconscientemente, que ela se realize. Isso significa que se boa parte da Humanidade atual crê que chegou o fim dos tempos, provavelmente muitos seriam capazes de fazer algo para provar que sua crença é verdadeira, que é essa a vontade de seu deus. A pergunta então é: que parcela da Humanidade acredita, e consequentemente deseja, que vivemos o fim do mundo? Bem, a julgar por tudo que se lê e ouve, os livros e filmes, as notícias, os discursos religiosos, a Humanidade está, no mínimo, obcecada pelo tema.

Por essas e outras é que desconfio que o fim do redemoinho está bem próximo. Talvez nos próximos anos. Quem sabe em 2012.

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Ricardo Kelmer 2010 – blogdokelmer.com

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LEIA NESTE BLOG

> Guia de Sobrevivência para o Fim dos Tempos – O que fazer quando de repente o inexplicável invade nossa realidade e velhas verdades se tornam inúteis? Para onde ir quando o mundo acaba?

> As máquinas não são bobas – Já existe uma geração de máquinas com certo grau de autonomia necessária pra tomar decisões que podem ou não seguir o que lhes foi ensinado

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LIVROS, FILMES E SITES

– O Buraco Branco no Tempo (Peter Russel)
Editora Aquariana, 1992
As ideias deste livro inquietante nos levam a pensar sobre o tempo de uma forma diferente e nos faz exercitar uma nova maneira de nos percebermos, como espécie, dentro do contexto da evolução e do Cosmos. O físico Peter Russel, numa linguagem acessível, mostra porque a atual crise da Humanidade é, na verdade, uma crise de percepção, e chama a atenção para o ritmo vertiginoso da atual evolução tecnológica. Podemos, neste momento, estar à beira de um decisivo salto de compreensão a respeito do tempo e de nós mesmos. Assista o filme (26 min).

– O Ponto de Mutação (Fritjof Capra)
Editora Cultrix, 1983
Prosseguindo em seus estudos, Capra mostra como as ciências já estão falhando por insistir em seguir o modelo newtoniano/descartiano de interpretação da realidade e sugere que a Humanidade está vivendo uma decisiva transição em sua evolução. Especificando a situação de diversos ramos da ciência, como medicina, psicologia e economia, Capra escreveu uma das mais importantes obras do nosso século, indispensável ao estudioso do pensamento holístico e dos novos paradigmas que lentamente estão, não substituindo, mas complementando os atuais.

Introdução ao Apocalipse (Robin Robertson)
Editora Cultrix, 1997
A ideia de Deus é um dos principais arquétipos da Humanidade, existente em todas as culturas. Através da Bíblia, ainda que esse não seja seu objetivo oficial, é possível acompanhar como evoluiu a relação da Humanidade com sua ideia de Deus, desde Adão até os dias de hoje. Este livro narra de forma brilhante a saga da transformação da consciência humana e reabilita um dos mais importantes porém menos compreendidos documentos da civilização ocidental: o Livro do Apocalipse, esmiuçando todo o seu rico simbolismo através das delicadas ferramentas da psicologia junguiana.

> ATEA – Assoc. Bras. de Ateus e Agnósticos – Vale a pena conhecer. Ou você tem medo de mudar de ideia?

> Zeitgeist (Direção: Peter Joseph. EUA/2007) Este filme mostra o quanto a história é manipulada pelas elites religiosas e econômicas, que “criam” os fatos e nos fazem todos acreditarmos neles, lutarmos por eles, matarmos por eles. Veja o filme Zeitgeist

Por que 2012? Entenda como funciona o calendário maia – Revista Superinteressante, nov2012

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Comentarios01COMENTÁRIOS
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01- É…tem lógica! 🙂 Mônica Burkle Ward, Recife-PE – dez2010

02- Paranóia delirante! Tudo isso q vc postou para levar à conclusão q vc deseja é fruto do conhecimento q vc possui. Agora imagina o q vc desconhece? Quem tem certezas está mal informado, pois sempre existe um fato que interfere no processo conclusivo, o que existe neste instante é o momento. E ele está em constante movimento. Adapte-se! Flua. Abandone as certezas. Vc e seus próximos serão mais felizes. O excesso de informações trava nosso processamento de pensar corretamente, aí nosso raciocínio nos engana levando-nos a conclusões erradas e muitas vezes em direção aos nossos medos. Esclareça-se: descubra seus pontos fracos para proteger-se de si mesmo. Paz, saúde, bons sonhos & saravá! 😀 Wener Marq, Alegre-ES – dez2010

03- É impressionante como os que se dizem “ateus” SÃO ESPIRITUALISTAS !!! Daria uma ótima tese !!! rsr sr O trecho abaixo relata muito bem o quanto que você inconscientemente e muito bem inspirado pelo NOSSO CRIADOR, descreve o que nós espíritas kardecistas já sabemos desde que o “consolador prometido por Jesus que chegou em 1857, ou seja, a doutrina espirita kardecista …. NAÕ COMO FIM TOTAL DO MUNDO ou do planeta terra, MAS, O FIM DE UM MUNDO DE PROVAS E EXPIAÇÕES .. e aos poucos tornando UM MUNDO DE REGENERAÇÃO … ESTAS MUDANÇAS SE FAZ NECESSÁRIAS CONFORME OS PLANOS DE “DEUS” Sds kardequianas. Lucimar Rabello, Vila Velha-ES – dez2010

RK: Sou ateu porque não creio na existência de divindades. Porém, não sou materialista no sentido de achar que não existe nada além da matéria. Quanto à questão do fim do mundo, essa ideia não começou com Kardec, nem com Jesus, nem com qualquer outro profeta. Ela é um arquétipo presente na psique humana, e isso nada tem a ver com religião. Entendo o Universo como uma mente, única, e as nossas mentes são expressões manifestadas dessa mente. Assim sendo, cada um de nós sabe, conscientemente ou não, dos ciclos de transformação do Universo e, por isso, “sabemos” que o mundo irá acabar. Mas o que irá acabar é o mundo como nossa mente o entende, a realidade como nós aprendemos a captá-la. Ou seja, o fim do mundo é uma transformação da percepção da realidade para um novo nível de percepção.

04- Adorei como sempre vc se supera…beijos amigo. Liz Fernandes, São Paulo-SP – dez2010

05- O que tu escreveu, brother maluquinho, sinto nas tripas. Sinto, tremo, farejo logo existo!!! 🙂 Patrícia Lobo, Salvador-BA – dez2010


Protegido: O mistério da cearense pornô da California (VIP)

28/10/2010

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Matrix e o Despertar do Herói cap 7

28/08/2010

Matrix e o despertar do herói
A jornada mítica de autorrealização em Matrix e em nossas vidas
(Ensaio – Miragem Editorial/2005)
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Usando a mitologia e a psicologia do inconsciente, Kelmer nos oferece uma visão diferente de Matrix, o filme que revolucionou o cinema, lotou salas em todo o mundo e tornou-se um fenômeno cultural, conquistando milhões de admiradores e instigando intensas discussões.

Em linguagem descontraída, o autor nos revela a estrutura mitológica do enredo de Matrix, mostrando-o como uma reedição moderna do antigo mito da jornada do herói, e o compara ao processo individual de autorrealização, do qual fazem parte as crises do despertar, o autoconhecer-se, os conflitos internos, as autossabotagens, a experiência do amor, a morte e o renascer.

Podemos ser muito mais que meras peças autômatas de uma engrenagem, dirigidos pelas circunstâncias, sem consciência do processo que vivemos. Em vez disso, podemos seguir os passos de Neo e todos os heróis míticos: despertarmos, assumirmos nosso destino e nos tornarmos, finalmente, o grande herói de nossas próprias vidas.

> saiba mais – compre o livro

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Cap 7

PARALELOS ENTRE A AVENTURA DE NEO
E O PROCESSO DE AUTORREALIZAÇÃO

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Neo acorda em seu quarto e lê as estranhas mensagens no computador. Neo encontra Trinity.
> Início do despertar. O inconsciente se agita e seus conteúdos atingem a consciência, forçando o ego à autoinvestigação. Primeiro ciclo de dúvidas e inquietações.

Neo chega ao trabalho atrasado e é repreendido pelo chefe.
> Primeiras dificuldades. A sociedade reprime a diferenciação, desestimulando o autoconhecimento ao dificultar a libertação dos padrões de comportamento coletivo.

Guiado por Morfeu, pelo celular, Neo tenta fugir mas é detido pelos agentes que o torturam e lhe inserem um dispositivo rastreador.
> O ego segue a intuição, que atua como guia em substituição à lógica racional. A sociedade intensifica a repressão e o indivíduo paga com sofrimento sua busca pela autorrealização.

Trinity convence Neo a seguir com os resistentes. O rastreador é retirado.
> O ego começa a assimilar os conteúdos inconscientes e se fortalece. O indivíduo está mais autoconsciente e ganha mais discernimento e autonomia.

Neo encontra Morfeu, toma a pílula vermelha e inicia seu processo de desconexão da Matrix.
> Dilemas e encruzilhadas no caminho. O indivíduo precisa mostrar que está realmente disposto a prosseguir.

Neo desperta no casulo, fora da Matrix. É desconectado do sistema e jogado no esgoto.
> Novo ciclo de confrontos. O ego é violentamente abalado pelos conteúdos inconscientes e a verdade sobre si mesmo desestrutura o indivíduo. Desequilíbrio psíquico. Crise existencial.

Neo se recupera na nave. Os tripulantes cuidam de Neo.
> O ego sofre com a morte de velhos valores e padrões de comportamento. A psique conduz o ego no processo de autocura.

Morfeu mostra a Neo o que aconteceu com a Terra. Neo reluta em aceitar a verdade.
> Dúvidas, medo e dor no processo de morte e renascimento. Aceitação da transformação interior.

Neo treina com Morfeu em programas de simulação para saber agir dentro da Matrix.
> As novas informações sobre si mesmo são devidamente assimiladas pelo ego, que se torna mais forte, capaz e ciente de suas possibilidades. A força progressista da psique é ativada. O indivíduo se diferencia da massa e amadurece. A vida ganha sentido e se torna mais harmoniosa.

Neo é levado de volta à Matrix para consultar o Oráculo.
> O ego é testado em sua nova fase, vivenciando situações que põem à prova sua transformação.

O Oráculo examina Neo, que ainda não acredita ser o Predestinado.
> O indivíduo está mais autoconsciente, porém ainda não acredita plenamente em seu potencial.

Os resistentes são traídos por Cypher. Morfeu é capturado pelos agentes.
> Ainda relutante em assumir certas responsabilidades, o ego sabota a si mesmo, atraindo insucessos. A força retrógrada está no comando.

Cypher mata os companheiros, zomba da crença de Trinity no Predestinado e ameaça matar Neo.
> Perigos da jornada. O ego é constantemente posto à prova. A fé e a confiança no processo são fundamentais.

Morfeu é torturado pelos agentes.
> A necessidade de liberar o potencial criativo e incorporá-lo definitivamente à consciência.

Neo e Trinity voltam à Matrix, enfrentam soldados e resgatam Morfeu.
> O indivíduo precisa assumir novas e importantes responsabilidades. É necessária a união dos opostos psíquicos.

Neo decide lutar contra o agente Smith. Neo foge mas é encurralado e morto.
> Mais fortalecido, o ego passa por novo ciclo de confrontos com o inconsciente. Crise. Novos aspectos do ser devem ser urgentemente reconhecidos.

Trinity declara seu amor por Neo e ele ressuscita na Matrix. Neo detém as balas no ar e elimina o agente Smith. Neo volta à nave e impede sua destruição pelas sentinelas.
> Após longo e difícil confronto, o ego enfim assimila os novos conteúdos. Velhos valores morrem. A consciência é ampliada ainda mais e a psique se equilibra num nível mais profundo. O indivíduo emerge da crise renascido e ainda mais forte, autoconsciente e em harmonia consigo mesmo, com os outros e com o mundo ao redor. A diferenciação atinge o ponto culminante. O potencial criativo está inteiramente ativado.

Os Predestinados alcançam o centro de controle da Matrix e se reinserem no sistema.
> O avançado nível de autorrealização do indivíduo faz com que a sociedade reconheça e assimile sua experiência pessoal, incorporando-a aos valores coletivos e enriquecendo a cultura.

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FIM

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Ricardo Kelmer – blogdokelmer.com

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CONTEÚDO INTEGRAL DO LIVRO

Cap. 1 – Cinema, mito e psicologia
Cap. 2 – Toc, toc, toc… Acorde, Neo!
Cap. 3 – Não existe colher
Cap. 4 – Morrendo para vencer
Cap. 5 – Matrix Reloaded e Matrix Revolutions
Cap. 6 – Os personagens
Cap. 7 – Quadro comparativo

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> saiba mais – compre o livro

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Matrix e o Despertar do Herói cap 6

28/08/2010

Matrix e o despertar do herói
A jornada mítica de autorrealização em Matrix e em nossas vidas
(Ensaio – Miragem Editorial/2005)
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Usando a mitologia e a psicologia do inconsciente, Kelmer nos oferece uma visão diferente de Matrix, o filme que revolucionou o cinema, lotou salas em todo o mundo e tornou-se um fenômeno cultural, conquistando milhões de admiradores e instigando intensas discussões.

Em linguagem descontraída, o autor nos revela a estrutura mitológica do enredo de Matrix, mostrando-o como uma reedição moderna do antigo mito da jornada do herói, e o compara ao processo individual de autorrealização, do qual fazem parte as crises do despertar, o autoconhecer-se, os conflitos internos, as autossabotagens, a experiência do amor, a morte e o renascer.

Podemos ser muito mais que meras peças autômatas de uma engrenagem, dirigidos pelas circunstâncias, sem consciência do processo que vivemos. Em vez disso, podemos seguir os passos de Neo e todos os heróis míticos: despertarmos, assumirmos nosso destino e nos tornarmos, finalmente, o grande herói de nossas próprias vidas.

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Cap 6

OS PERSONAGENS

Os personagens de Matrix, seu papel no filme e os aspectos psicológicos que representam no processo de autorrealização

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PAPEL NO FILME

NEO – Personagem principal. Nascido na Matrix, Neo desconfia que há algo errado com a realidade, busca respostas e é localizado pelos rebeldes. Desperta e une-se a eles para ajudar os humanos na luta contra a Inteligência Artificial. Alguns dos rebeldes consideram que ele é o Predestinado de que fala a profecia do Oráculo e que salvará a humanidade. Neo é pressionado pelo dilema de ser ou não o Escolhido e luta contra sua própria natureza.

O PREDESTINADO – Aquele que virá e, com seus poderes, libertará os seres humanos da Matrix. Não se sabe exatamente como ele é nem o que fará, mas sua vinda foi profetizada pelo Oráculo.

TRINITY – Principal personagem feminina. Oficial da nave Nabucodonossor. Reservada e discreta quanto aos sentimentos, ela é avisada pelo Oráculo que se apaixonará por um homem morto e que ele será o Predestinado. Trinity localiza Neo na Matrix e o convence a seguir os rebeldes, levando-o ao líder Morfeu. Somente no fim, quando Neo está morto, é que ela revela seus sentimentos e o que lhe dissera o Oráculo.

MORFEU – Comandante da nave Nabucodonossor. Acredita firmemente na profecia do Oráculo, que diz que um dia o Predestinado virá para libertar a humanidade da Matrix. Ele busca e encontra Neo, um jovem que vive na Matrix. Morfeu está certo de que Neo é o Predestinado e por isso o liberta, treina-o para lutar contra os agentes e se sacrifica por ele.

AGENTES – Programas criados para capturar e eliminar humanos livres que invadem a Matrix. Podem tomar o corpo de qualquer pessoa e apresentam-se sempre de terno preto, gravata e óculos escuros. São fortes, ágeis e extremamente frios e controlados. E invencíveis.

AGENTE SMITH – Líder dos agentes. Tem especial antipatia pelos humanos rebeldes, pois é por causa deles que está preso à Matrix. Mata Neo com dez tiros à queima-roupa mas em seguida é por ele destruído no fim do primeiro filme. Reaparece no segundo filme, mais poderoso e podendo atuar também fora da Matrix. Evolui tanto que, igual ao Predestinado, foge do controle da própria Matrix.

CYPHER – Membro da tripulação da nave, está cansado de lutar contra as máquinas e entra em acordo com os agentes da Matrix para entregar o líder Morfeu. Deseja esquecer tudo o que viveu e recomeçar a vida na Matrix. Para ele, ignorância é felicidade. Trai os colegas, mata três deles mas é morto quando se prepara para eliminar Neo.

ORÁCULO – Programa intuitivo desenvolvido pela Inteligência Artificial para estudar a psique humana e auxiliar na estabilização do sistema. O Oráculo profetiza aos resistentes que Morfeu encontrará o Predestinado, que Trinity se apaixonará por ele e que Morfeu por ele se sacrificará.

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PAPEL NA PSIQUE

NEO – O ego. Centro da consciência. Tem a função de gerenciar o fluxo dos conteúdos entre a consciência e o inconsciente, entre os mundos interno e externo do indivíduo. Apesar do ego ser apenas uma parte do eu psíquico total, é com ele que o indivíduo tende a se identificar, considerando o ego e o eu total como absolutamente iguais. O impulso natural de autorrealização da psique, porém, leva o indivíduo a ampliar sua noção do eu através de um longo e contínuo processo de autoconhecimento, integrando conteúdos inconscientes à personalidade consciente. O processo exige o abandono de antigos valores, honestidade para consigo mesmo, coragem para enfrentar o que se desconhece de si próprio, perseverança e confiança no processo. O ego precisa morrer várias vezes para que um novo ego surja, mais capacitado para conduzir o indivíduo a novos níveis de realização.

O PREDESTINADO – Realização da psique em toda a sua potencialidade. Culminação do processo de ampliação da consciência pelo conhecimento de si próprio e equilíbrio entre consciência e inconsciente. Efetivação do eu potencial em toda sua totalidade, capacitando o indivíduo a viver, finalmente, suas verdades mais íntimas e a se harmonizar consigo mesmo, com as outras pessoas e toda a realidade.

TRINITY – Aspectos femininos da psique (yin), ligados ao cuidado, à maleabilidade, à paciência, aos sentimentos e à valorização dos relacionamentos. Representa a experiência enriquecedora do amor, que age confrontando o indivíduo com a verdade sobre ele mesmo e levando o ego a amadurecer, ampliando a consciência.

MORFEU – Aspectos masculinos da psique (yang), ligados à força criativa, autoconfiança, liderança, agressividade e capacidade de empreender. Representa a fé em todo o processo, o impulso e a força progressista da psique.

AGENTES – Conteúdos inconscientes (medos, traumas e bloqueios) dos quais o ego foge, evitando o confronto. Caso não sejam devidamente assimilados pela consciência, causarão desequilíbrio psíquico, ocasionando gafes, fracassos, doenças e até mesmo a morte.

AGENTE SMITH – Conteúdo de dificílima assimilação por parte da consciência e que, por permanecer inconsciente durante muito tempo, cresce e se torna extremamente poderoso e perigoso, pondo em risco o processo de autorrealização.

CYPHER – Aspectos negativos da psique ligados ao cansaço, desilusão, cinismo e acomodação. É o componente de autossabotagem, a força retrógrada que impede a ampliação da consciência, constituindo-se no impulso oposto à autorrealização. É o traidor interno, sempre fugindo de responsabilidades e saudoso de um tempo em que havia menos autoconsciência e nenhum comprometimento com a transformação pessoal.

ORÁCULO – Representa o sagrado, o numinoso, o mistério, uma força maior à qual o indivíduo se submete com reverência. Pode ser uma religião formal, uma antiga tradição mística, uma poderosa verdade íntima, a ligação com as tradições ou o sentimento de estar unido a algo maior e mais antigo. Pode ser uma conexão intuitiva com a Natureza, com o Universo, com a humanidade. A conexão com o sagrado é arredia ao intelecto racional, mas dá segurança e fornece um sentido para a vida.

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(continua)

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Ricardo Kelmer 2005 – blogdokelmer.com

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CONTEÚDO INTEGRAL DO LIVRO

Cap. 1 – Cinema, mito e psicologia
Cap. 2 – Toc, toc, toc… Acorde, Neo!
Cap. 3 – Não existe colher
Cap. 4 – Morrendo para vencer
Cap. 5 – Matrix Reloaded e Matrix Revolutions
Cap. 6 – Os personagens
Cap. 7 – Quadro comparativo

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Matrix e o Despertar do Herói cap 5

28/08/2010

Matrix e o despertar do herói
A jornada mítica de autorrealização em Matrix e em nossas vidas
(Ensaio – Miragem Editorial/2005)
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Usando a mitologia e a psicologia do inconsciente, Kelmer nos oferece uma visão diferente de Matrix, o filme que revolucionou o cinema, lotou salas em todo o mundo e tornou-se um fenômeno cultural, conquistando milhões de admiradores e instigando intensas discussões.

Em linguagem descontraída, o autor nos revela a estrutura mitológica do enredo de Matrix, mostrando-o como uma reedição moderna do antigo mito da jornada do herói, e o compara ao processo individual de autorrealização, do qual fazem parte as crises do despertar, o autoconhecer-se, os conflitos internos, as autossabotagens, a experiência do amor, a morte e o renascer.

Podemos ser muito mais que meras peças autômatas de uma engrenagem, dirigidos pelas circunstâncias, sem consciência do processo que vivemos. Em vez disso, podemos seguir os passos de Neo e todos os heróis míticos: despertarmos, assumirmos nosso destino e nos tornarmos, finalmente, o grande herói de nossas próprias vidas.

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Cap 5

MATRIX RELOADED E MATRIX REVOLUTIONS

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paralelos com o processo de autorrealização

O processo de autorrealização está perfeitamente ilustrado no enredo de Matrix, o filme inicial da trilogia. Nele, acompanhamos o herói desde o início de sua aventura: as crises que levam ao despertar, o autoconhecimento, os conflitos internos, a assimilação dos conteúdos inconscientes, a autossabotagem, a experiência do amor, a morte e o renascimento. Em poucos filmes vemos a estrutura do mito da jornada do herói de modo tão preciso.

O filme inicial se fecha em si mesmo, no sentido de mostrar a trajetória completa do herói que se autorrealiza. Neo torna-se o Predestinado porque enfim se convence que sempre o fora. Em termos psicológicos: a consciência assimilou os conteúdos inconscientes que agiam livres, limitando a atuação do indivíduo, e equilibrou-se entre seus opostos, ampliando-se, permitindo a realização do potencial adormecido e levando o indivíduo a harmonizar-se consigo e o mundo à sua volta.

Vale a pena, porém, nos determos um pouco sobre os dois outros filmes da trilogia. Eles possuem alguns pontos interessantes que podem enriquecer nossa análise.

Zion

A única cidade humana da história é Zion. É lá onde vivem os humanos que nascem fora da Matrix e os que se libertam dela. É lá onde se concentra a resistência contra a Inteligência Artificial. Zion fica no centro do planeta e somente os comandantes das naves possuem seus códigos de acesso.

Na psicologia junguiana há o conceito de Self, ou Si-mesmo, que significa a totalidade e ao mesmo tempo o centro regulador da psique. É no Si-mesmo que a consciência se espelha para crescer e se tornar mais ampliada, pois ele é como a semente que traz em si o modelo da árvore futura. Assim como o ego é o centro da consciência, o Si-mesmo é o centro da psique total, uma espécie de, digamos assim, eu superior. É lá onde estão guardadas todas as potencialidades do ser, feito um código que necessita ser ativado para que se efetive aquilo que por enquanto é apenas potencial.

Neo e o Arquiteto

Em Matrix Reloaded, ao se encontrar pela segunda vez com o Oráculo, Neo fica sabendo que deve se dirigir à Fonte, ao núcleo da Matrix. “A Fonte é o fim do caminho do Predestinado”, diz o Oráculo.

Neo vai até lá e encontra o Arquiteto, a imagem digital da Inteligência Artificial, criadora da Matrix. Sentado tranquilo em sua poltrona, o Arquiteto explica a Neo muitas coisas e o diálogo é um dos mais interessantes da trilogia. Entre várias revelações, Neo descobre que antes dele existiram cinco Predestinados. Entende também que a Matrix foi criada inicialmente representando um mundo perfeito, onde ninguém sofreria e todos seriam felizes. Mantendo os humanos nesse eterno estado idílico de sonho, a Inteligência Artificial seguiria no controle total.

Entretanto, os humanos, mesmo adormecidos, rejeitavam o programa, causando-lhe instabilidade. A Inteligência Artificial insistiu, mas todas as suas tentativas falharam, levando à perda de “safras inteiras” de humanos. Entendendo que o problema era decorrente da falibilidade humana, que não tolera a perfeição, a Matrix foi transformada: no lugar de um mundo perfeito, a ilusão coletiva passou a ser ambientada numa réplica do mundo exatamente como ele era no fim do século 20, com todas as suas imperfeições e injustiças. Mesmo assim as mentes humanas ainda não o aceitaram e o programa continuou instável. Como resolver o problema? Como fazer com que a mente humana aceitasse devidamente a realidade ilusória da Matrix e as pessoas pudessem ser mantidas escravas?

Foi então desenvolvido um programa “intuitivo”, chamado Oráculo, cuja tarefa era estudar profundamente a psique humana. A solução encontrada pelo Oráculo foi oferecer aos humanos uma possibilidade de não aceitar a realidade virtual, ainda que apenas num nível inconsciente. Eles continuariam adormecidos e escravos, mas saberiam, de modo inconsciente, que poderiam despertar e se libertar. Porém, oferecer aos humanos essa opção de saber que podiam se libertar era muito perigoso, pois alguns deles poderiam efetivamente se libertar e, mesmo significando 0,01 da população, poderiam ameaçar a segurança do sistema. O jeito seria reforçar a segurança.

A estratégia funcionou perfeitamente. A quase totalidade das mentes humanas passou a aceitar o programa e o sistema se estabilizou. E as mentes que não aceitavam a ilusão da Matrix? Essa diminuta parcela dos humanos despertava do sonho coletivo e se libertava, formando a resistência. Eles então passavam a invadir o sistema e ajudar outros humanos a se libertar, causando certa instabilidade à Matrix. Para o sistema, porém, essa instabilidade estava prevista e os humanos libertos eram uma anomalia inevitável, exatamente o preço a pagar pelo máximo possível de estabilização do sistema.

Entretanto, o preço incluía algo mais: dentro da possibilidade de anomalia haveria sempre a eventualidade matemática de uma anomalia maior, o suprassumo anômalo, digamos assim. Periodicamente, entre esses humanos que se libertavam, haveria um com capacidades excepcionais, que aprenderia a agir dentro da Matrix melhor que todos, detectaria suas falhas e poderia provocar o colapso total do sistema: esse seria o Predestinado.

Portanto, tudo estava matematicamente previsto desde o início: a pequenina parcela de humanos que não aceitaria o programa e também os resistentes que sempre fugiriam para o centro da Terra e reconstruiriam Zion, a cidade humana, que funcionaria como centro da resistência. Por fim, o surgimento do Predestinado estava igualmente previsto, pois ele era, segundo o próprio arquiteto, “uma soma de um resíduo de uma equação desequilibrada inerente à programação da Matrix”. Mas como lidar com ele?

Matrix: o sistema (quase) perfeito

Embora tenha programado a Matrix para lutar ferrenhamente contra todos os que a desafiam, a Inteligência Artificial sabia que mais cedo ou mais tarde o Predestinado sempre surgiria. Assim, restou lidar com ele da melhor forma possível: se não pode com seu inimigo, una-se a ele.

Como o Predestinado conhece as falhas do sistema melhor que o próprio sistema, sabe de seus pontos vulneráveis e aprende a burlar todas as suas regras, modificando a programação à sua vontade, o ideal então seria fazê-lo se reinserir no sistema, reprogramando a Matrix com os novos dados que ele traria. Fazendo isso, a anomalia prevista reinsere a programação que traz consigo (sua experiência de vida, seus conhecimentos e todos os dados coletados sobre as falhas do sistema) e possibilita a atualização da Matrix, que é reiniciada num nível aperfeiçoado.

Mas como garantir que isso aconteça? Por que o Predestinado, inimigo da Matrix, aceitaria isso?

Para reconhecer a anomalia máxima, a Matrix está sempre a vasculhar a si própria a fim de localizar e eliminar todas as prováveis anomalias até que, dentre elas, sobreviva apenas aquela que, de fato, tem o poder de destruir, ou aperfeiçoar, o sistema. Após isso, esse suprassumo anômalo deverá ser convencido a não destruir, mas, em vez disso, aceitar ser reinserido no sistema. Mas como fazer isso?

Os próprios humanos rebeldes, sem saber, ajudam a Matrix a controlar o Predestinado, pois creem nele, necessitam dele e sempre o levam ao Oráculo. Este, por sua vez, sempre incentiva o Predestinado a se dirigir à Fonte. Ao alcançá-la, o Predestinado sempre encontra o Arquiteto, que lhe fala sobre a Matrix e no fim lhe apresenta duas opções: ou continua sua luta contra as máquinas ou se sacrifica, reinserindo-se no sistema. Se as opções são essas, por que o Predestinado sempre se entrega?

Porque, de fato, não vale a pena continuar lutando. Vejamos. Se o Predestinado prossegue a luta, Zion é destruída, pois a Inteligência Artificial cedo ou tarde saberá sua localização e tem tecnologia suficiente. Mais importante que isso, porém, é o fato de que, sem se atualizar, a Matrix mais cedo ou mais tarde entra em colapso, causando a morte de todos os humanos ligados ao sistema, o que, junto à destruição de Zion, significa a extinção da espécie humana. E quanto à Inteligência Artificial? Mesmo sem sua fonte principal de energia, os corpos humanos, ela ainda sobreviveria e recomeçaria tudo outra vez. Bem, isso é o que diz o Arquiteto. Será que é um blefe? Por via das dúvidas, o Predestinado nunca arrisca.

Por outro lado, aceitando reinserir-se no sistema, o Predestinado pode escolher 23 pessoas na Matrix para serem libertadas – elas fugirão para o centro da Terra e reconstruirão Zion, prosseguindo com a resistência. Ele se sacrifica pela humanidade, sim, mas os humanos continuam vivos. É verdade que a quase totalidade continuará escravizada, com seus corpos imersos em casulos e as mentes conectadas a uma ilusão coletiva. Mas esta opção não é pior que a extinção da espécie.

É por isso que os Predestinados anteriores a Neo aceitaram se sacrificar pela humanidade, reinserindo-se no sistema. Disseminando seus próprios códigos, reintroduziram o programa principal e assim o sistema foi reiniciado, num nível mais avançado ainda. Dessa forma, tudo prossegue como antes: a Inteligência Artificial dominando o planeta, a Matrix aperfeiçoada mantendo os humanos aprisionados e fornecendo-lhe a energia necessária, os rebeldes de Zion resistindo, tentando libertar mais humanos e, além disso, acreditando na profecia do Oráculo de que um dia virá o Predestinado…

As máquinas, a Matrix, os humanos e o Predestinado formam assim um sistema só, autossustentável, cujas imperfeições são na verdade mecanismos imprescindíveis à harmonia maior. O que parece ameaça à Matrix é, na verdade, a garantia da estabilização e do aperfeiçoamento do sistema. O Predestinado é tão somente apenas mais uma peça na engrenagem. Ele toma conhecimento disso somente no fim, quando chega à Fonte, mas então é levado, por seu amor à humanidade, a sacrificar-se, salvando a Matrix e permitindo à Inteligência Artificial continuar dominando o planeta e escravizando os humanos. Perfeito.

Na verdade… quase perfeito. Porque com Neo é diferente. Além do amor impessoal pela humanidade, característica de todos os Predestinados, ele ama Trinity. É justamente o amor romântico, além do amor pela humanidade, que o mantém disposto a lutar e desafiar as possibilidades, somente para continuar com ela, mesmo que isso ponha em risco toda a espécie humana. É um fator absolutamente novo, tão novo que a Inteligência Artificial não o previra.

E nem tinha como, coitada. Talvez as máquinas jamais consigam decifrar, calcular e prever o amor, essa força tão imensa, poderosa, insana e contraditória, essa equação tão desequilibrada e imprevisível. Tão imprevisível que a fragrância do amor de Neo e Trinity sensibiliza até o Oráculo e o leva a ajudar Neo mais do que deveria, arriscando ainda mais o equilíbrio do sistema. Tão imprevisível que em troca de um beijo de Neo (mais um beijo traidor), Perséfone trai os interesses do marido Merovíngio e permite aos rebeldes o acesso ao Chaveiro e a posterior chegada de Neo à Fonte.

Um beijo. Ai, ai, apenas um beijo… Um simples toque de lábios faz Perséfone sentir novamente a doce e inebriante sensação de estar amando. A ela bastou apenas o gostinho da sensação perdida, do amor que um dia encheu de sentido os seus dias, bastou isso para Perséfone. Como quantificar, equacionar e programar o amor?

psique artificial

A Matrix é tão somente um sistema de simulação da realidade, feito de muitos programas integrados, mas se parece bem mais com os humanos do que a Inteligência Artificial certamente gostaria de admitir. Aliás, em certos aspectos a Matrix parece uma imitação da psique humana. Podemos até falar de consciência e inconsciente, por mais estranho que pareça.

Consciência e inconsciente na Matrix? Antes que você feche o livro e diga que eu já estou forçando a barra, me dê só mais alguns parágrafos, por favor. Obrigado.

Veja só. A Matrix sabe tudo sobre si mesma? Não, pois o sistema possui os seus próprios guetos virtuais, onde se escondem os programas rebeldes que seriam desativados. Além disso, ela nem sempre sabe quando os humanos a invadem, nem onde se encontram e nem o que irão fazer. Os programas rebeldes até que não causam problemas sérios – mas os humanos invasores, estes sim dão uma dor de cabeça danada, pois além do sistema não ter controle sobre eles, os humanos desejam destruí-lo. São os conteúdos inconscientes da Matrix. Sem falar em Smith, que também sairá do controle do sistema.

A Matrix tem consciência de si através de seu programa gerenciador, que utiliza eficazes mecanismos de defesa (agentes) para perseguir e eliminar humanos invasores, pois sabe que dentre eles poderão surgir, e efetivamente surgirão, as anomalias previstas. As anomalias representam o risco de morte do sistema, mas o suprassumo das anomalias será, na verdade, a própria continuação do sistema, num nível mais avançado. O programa gerenciador, porém, não entende assim, e faz de tudo para que o sistema sobreviva. Parece até um velho conhecido nosso, não?

Isso mesmo, o programa gerenciador do sistema parece o ego. O ego da Matrix é igual a todos os egos: não quer morrer jamais. Mas não tem jeito, o Predestinado sempre vem. O programa gerenciador não sabe que o que morrerá é a versão antiga do sistema, obsoleta, uma versão incapaz de lidar com as novas exigências, com a agilidade e conhecimento do novo Predestinado. A Matrix, se entregando, se une a seu mais poderoso inimigo e ressurge atualizada, mais forte ainda. Viu? É a Matrix assimilando seus conteúdos inconscientes e se fortalecendo…

Smith personifica com perfeição o desastre que um ego inflado pode causar à psique. Na Matrix, ele é o representante mor do sistema e existe para gerenciar a relação delicada entre o sistema e os humanos, reprimindo a ação destes. Smith não aceita a derrota, não quer ser deletado: é o egão que resiste, orgulhoso. A Inteligência Artificial, na pessoa do Arquiteto, já sabe que precisa se entender com o Predestinado para que o sistema que ela criou passe para um novo nível – mas o diabo do Smith não quer saber de conversa. Sua teimosia é uma ameaça crescente ao próprio sistema e ele se torna mais perigoso até mesmo que Neo. Então, para manter o próprio equilíbrio, a Inteligência Artificial ajuda Neo a derrotar Smith. Assim também faz o Si-mesmo na psique quando o ego está inflado demais e compromete o equilíbrio do eu total: ele permite que os conteúdos inconscientes se manifestem tão fortemente que a vida sai do controle, vêm os desastres e insucessos, e o ego, humilhado e impotente, não resiste e morre.

Uma psique artificial, com seu equilíbrio dinâmico e seus próprios ciclos de morte e renascimento – assim é a Matrix, por mais blasfemo que pareça o termo psique artificial. Senão vejamos: trata-se de um sistema autoconsciente, mas não totalmente, que será sempre ameaçado e sabotado por seus próprios componentes indesejados, que um dia será por eles seriamente desestabilizado e, num processo de integração simbiótica, se unirá a eles para renovar a si mesmo e continuar vivo, mais forte e capaz – e então novos componentes indesejados surgirão e assim por diante. O centro desse sistema possui todas as informações e conhece perfeitamente o processo, pois é ele que o comanda. Além disso, essa espécie de Si-mesmo do sistema já o viu passar por tudo aquilo várias vezes, todos aqueles conflitos, e sabe que apesar de tudo o sistema sobreviverá.

Psique artificial, máquinas assimilando conteúdos inconscientes… Bem, é só uma comparação, claro, mas esse exercício de imaginação pode nos ajudar a vislumbrar como seria uma psicologia das máquinas. Sim, por que elas, sendo capazes de pensar por si próprias, não haveriam de ter uma psicologia? Talvez já seja hora de começar a pensar nessa possibilidade.

Aliás, o que Jung diria se soubesse que um dia suas ideias seriam utilizadas para explicar o comportamento das máquinas? Consideraria, de fato, uma blasfêmia? Não sei. Talvez ele desse uma daquelas suas boas risadas: “Bem, chame uma delas qualquer dia para tomar um chá comigo à beira do lago…”

retribuindo à sociedade

A engenhosidade de toda a trama de Matrix merece um prêmio. O segundo episódio, Matrix Reloaded, nos mostra a chegada do Predestinado à Fonte da Matrix e sua posterior reinserção no sistema. Ao nosso estudo, isso é mais um paralelo com o processo de autorrealização, mais precisamente o aspecto final do processo: a absorção, pela sociedade, da rica experiência do indivíduo que se autorrealiza. É o mito do herói revivido, o herói que se isola para depois retornar e salvar seu povo. É a volta do indivíduo ao outro lado da espiral indivíduo-sociedade após ter feito o percurso completo.

Já vimos que o processo de autorrealização exige que o indivíduo se diferencie. Essa diferenciação tem vários níveis e começa logo após a concepção, quando óvulo e espermatozoide se unem para formar um terceiro elemento, iniciando o processo de aglutinação dos conteúdos psíquicos indiferenciados que futuramente formarão a noção de eu. O novo ser é, por enquanto, uma pequenina porção do inconsciente coletivo da espécie que se destaca, feito uma erupção vulcânica no fundo do oceano, e que formará, com suas experiências individuais no útero materno, uma pequena elevação de terra, um inconsciente individual.

A diferenciação prosseguirá após o nascimento, quando desse inconsciente pessoal se destaca cada vez mais uma nova porção: a consciência. Ela ainda é um pedaço de terra submersa no grande oceano inconsciente, forçando passagem rumo à superfície, mas já revela as características que farão do indivíduo aquilo que ele potencialmente é. Nesse ponto, a consciência é isso, uma noção do eu que emerge, uma ilhota de individualidade e autopercepção.

Mais tarde, como vimos, o indivíduo precisa se diferenciar ainda mais, destacando-se da massa na qual vive e com quem divide valores e regras de comportamento. Vimos que isso desestabiliza a ordem social e faz a sociedade reprimir a diferenciação.

Entretanto, há um ponto do processo em que a sociedade não só não consegue mais reprimir como é influenciada pelo indivíduo que se diferencia e se autorrealiza. Nesse ponto, ocorre, numa analogia com o filme, a atualização do sistema. A força da autorrealização é tamanha que a sociedade é naturalmente levada a absorver as experiências do indivíduo, incorporando os novos valores que ele representa. O que antes era perigo à cultura mostra-se agora seu próprio alimento, aquilo que lhe permite enriquecer-se, renovar-se e sobreviver.

No Budismo, o indivíduo que alcança a iluminação torna-se o Buda (aquele que despertou) e está livre dos problemas do mundo, e nada mais pode perturbá-lo. Seu corpo está aqui, mas sua consciência voa por outros níveis, além dos níveis cotidianos. A consciência atingiu tal grau de maturidade e interação com a realidade que está livre para mover-se, liberta das dimensões do tempo e do espaço. Sidarta Gautama e outros que alcançaram a iluminação poderiam ter deixado que sua consciência partisse, finalmente liberta do corpo físico e das limitações terrenas. Mas preferiram ficar até o fim, até onde o corpo suportasse. Por quê? Para ensinar o que aprenderam. Esse é o exemplo de suprema compaixão do Bodhisatva, o ser que após uma vida inteira de busca finalmente atinge a iluminação mas aceita permanecer nas limitações do mundo, pondo à disposição da humanidade o seu conhecimento e toda a sua experiência.

Assim como o Bodhisatva, aquele que atinge a autorrealização está livre das pressões do mundo. O ser autorrealizado atingiu o equilíbrio entre consciência e inconsciente e nada mais o desequilibra. Ele agora pode finalmente descansar da longa jornada, esconder-se até o fim de seus dias num sitiozinho no alto da serra da Ibiapaba, sem TV e sem telefone, e aproveitar a paz de espírito que conquistou, longe do trânsito maluco, da poluição e dos operadores de telemarketing. Mas muitos não o fazem. Preferem continuar no mundo e contribuir com sua experiência para um mundo melhor. Reinserem-se no sistema, transbordantes de humildade e amor pela causa humana.

Essa reinserção contém certa dose de ironia, pois o indivíduo autorrealizado que agora contribui para a sociedade é o mesmo que, no início de seu processo de diferenciação, era visto como ameaça à própria sociedade, com suas ideias diferentes e atitudes subversivas, e por isso foi bastante reprimido.

Apesar da intensa repressão que leva a maioria a desistir, sempre haverá os que se diferenciam, desafiando e incomodando a sociedade. São as anomalias que o sistema se esforça em evitar. Mas são anomalias previstas e, além disso, necessárias ao sistema. São como antigas profecias que aguardam, pacientemente, que cada um de nós, predestinados que somos, decida realmente despertar.

(continua)

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Ricardo Kelmer – blogdokelmer.com

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Cap. 6 – Os personagens
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Matrix e o Despertar do Herói cap 4

28/08/2010

Matrix e o despertar do herói
A jornada mítica de autorrealização em Matrix e em nossas vidas
(Ensaio – Miragem Editorial/2005)
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Usando a mitologia e a psicologia do inconsciente, Kelmer nos oferece uma visão diferente de Matrix, o filme que revolucionou o cinema, lotou salas em todo o mundo e tornou-se um fenômeno cultural, conquistando milhões de admiradores e instigando intensas discussões.

Em linguagem descontraída, o autor nos revela a estrutura mitológica do enredo de Matrix, mostrando-o como uma reedição moderna do antigo mito da jornada do herói, e o compara ao processo individual de autorrealização, do qual fazem parte as crises do despertar, o autoconhecer-se, os conflitos internos, as autossabotagens, a experiência do amor, a morte e o renascer.

Podemos ser muito mais que meras peças autômatas de uma engrenagem, dirigidos pelas circunstâncias, sem consciência do processo que vivemos. Em vez disso, podemos seguir os passos de Neo e todos os heróis míticos: despertarmos, assumirmos nosso destino e nos tornarmos, finalmente, o grande herói de nossas próprias vidas.

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Cap 4

MORRENDO PARA VENCER

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Cypher entrega os companheiros

Quando estão prestes a retornar à nave, após a visita de Neo ao Oráculo, os rebeldes são surpreendidos numa emboscada. Estão presos num prédio sem saída e cercados por muitos soldados armados. Foram traídos por Cypher, companheiro da própria resistência.

A primeira cena do filme é o diálogo telefônico entre Cypher e Trinity. Na tela, as fileiras de caracteres (os códigos da Matrix) deslizam enquanto Trinity, na Matrix, diz que logo entrará em contato com aquele que Morfeu acredita ser o escolhido. Cypher pergunta se ela também acredita. Ela desconversa. Ele insiste, mas ela não responde. Ouve-se um ruído na ligação. “Esta linha é mesmo segura?”, ela pergunta. Cypher confirma.

Mas não é. Depois entenderemos que Cypher já age aí como informante dos agentes da Matrix e, através dessa ligação, está entregando Trinity às autoridades do mundo virtual. Não fica claro para o espectador que assiste pela primeira vez, mas começa aí a traição de Cypher, um dos elementos fundamentais da história de Matrix.

Mais tarde, na nave, quando Trinity leva o jantar para Neo, que ainda se recupera de seu despertar da Matrix, Cypher a aborda e comenta, aparentemente enciumado, que ela nunca fez isso para ele. Em outras cenas Cypher volta a testar e zombar da crença de Trinity no Predestinado, coisa em que ele, particularmente, não consegue acreditar.

O comportamento de Cypher intriga o espectador, aumentando sua desconfiança, até a cena em que fica claro que ele é um traidor: Cypher está num restaurante, na Matrix, a negociar com o agente Smith a entrega do líder Morfeu. Então sabemos que ele cansou da vida de resistente e sente falta da realidade virtual, onde pode, por exemplo, degustar uma picanha suculenta como a que está saboreando. Ele exige condições para entregar o líder: quer ser reinserido na Matrix como alguém rico e famoso, e nada quer lembrar de sua vida anterior. Smith concorda, satisfeito.

Cypher é a traição que nasce dentro da própria resistência, lembrando com isso que aqueles que lutam pela libertação da espécie humana são humanos, com todos os seus defeitos. Cypher não compartilha da crença no Predestinado. Pensando bem, é difícil mesmo crer que alguém possa destruir a tão poderosa Matrix e que esse alguém nascerá dentro dela própria. Cypher está cansado da vida desconfortável, de comer alimentos sem gosto, de fugir e se esconder, de lutar por algo em que não acredita. Mesmo sendo um dos que conseguiram despertar, já não tem forças para continuar resistindo. Some-se a isso seu interesse velado por Trinity, seu ciúme por sabê-la interessada em Neo e, pronto, a traição já tem todos os ingredientes para se consumar.

Cypher é o Judas Iscariotes de Matrix. O espectador é levado a desprezá-lo como o traidor que de fato é, mas observe-se: sem ele não haveria final feliz. Cypher e sua traição são necessários para que Neo finalmente se convença de que é o Predestinado. Se Morfeu não houvesse sido entregue por Cypher, Neo não teria porque voltar à Matrix, arriscando tudo pelo amigo. É arriscando sua própria vida, e morrendo, que Neo atinge mais um nível em sua autoconscientização. É voltando aos perigos da Matrix que Neo enfim pode se experimentar em toda sua potencialidade e cumprir o que profetizara o Oráculo: que ele morreria e que na outra vida seria o Predestinado. Sem a traição de Cypher nada disso poderia ocorrer.

No romance O Encontro Marcado, de Fernando Sabino, o protagonista diz, para espanto do padre diretor do colégio em que ele estuda, que o grande medo de Jesus Cristo era que Judas não o traísse, pois se ele não o fizesse, como Jesus cumpriria seu destino? Sem a traição de Judas, Jesus teria que tentar outros meios de morrer pela humanidade. O que seria de Jesus sem Judas? O que seria do Cristianismo sem seu beijo entreguista? Esse é um dos paralelos de Matrix com a mitologia cristã. Aliás, o nome Cypher lembra Lúcifer.

o sabotador interno

No âmbito psicológico, Cypher representa o componente de autossabotagem da psique. Cypher tem medo de arriscar o novo e prefere a segurança do velho, o que provoca estagnação e crise. Ele preferiria não saber o que sabe. O lema desse nosso companheiro interno é: “a ignorância é uma bênção”.

Cypher existe em todos nós, é a força retrógrada em eterno combate com o impulso progressista. De onde pode vir a verdadeira traição senão de dentro de nós mesmos? Isso nos lembra que o grande inimigo a vencer não se encontra lá fora: ele está dentro de cada um de nós e age na escuridão do inconsciente, sem ser percebido, dissimulando-se em nossos medos e bloqueios mais íntimos. Preferimos não encará-lo, é mais cômodo. E assim ele prossegue nos sabotando.

Há sempre um preço a pagar quando insistimos em não olhar para o que nos chama atenção em nós mesmos. O que é rejeitado na psique cresce silencioso, e esse é o pior dos inimigos: um dia ele se manifestará e estará tão forte que não haverá como deter sua traição. Por isso os terapeutas insistem na necessidade do autoconhecimento psicológico – ele ainda é a melhor prevenção contra os Cyphers da vida.

O sabotador interno sente falta do tempo em que tínhamos menos autoconsciência e, exatamente por isso, menos responsabilidades. Cypher está no poder quando desistimos de lutar e achamos mais cômodo permanecer onde estamos, sem nos comprometer com mudanças pessoais, fingindo esquecer do que realmente devemos fazer em nossas vidas.

Cypher age toda vez que desistimos de lutar por nossos sonhos ou insistimos em padrões de comportamento autodestrutivos. Quer ver Cypher no comando? É só olhar para aquela garota que sempre dá um jeito de estragar seus relacionamentos porque no fundo acha que não merece ser feliz. Ela age de forma a ser rejeitada, e quando de fato é rejeitada, confirma para si mesmo sua visão pessimista da vida, maldizendo o amor e culpando as outras pessoas.

Com Cypher no comando há uma tendência para sarcasmos, ressentimentos, ódios encobertos e toda uma gama de sentimentos negativos. Além de não suportarmos ter de prosseguir lutando, também é insuportável ver os outros firmes em seu caminho e realizando seus sonhos. Para o Cypher que existe em nós, o que lhe resta é sabotar tudo o que nosso Morfeu planeja, numa vingança por se achar injustiçado pela vida. Enquanto Cypher não for chamado à conversa franca, não precisaremos de inimigo algum: seguiremos nós mesmos, sem perceber, sabotando nossos planos de felicidade, muitas vezes no último instante.

O exemplo de Cypher serve também para nunca esquecermos que na jornada do autoconhecimento ninguém está livre das tentações. A cada avanço, novos desafios se apresentam. O conhecimento e a experiência adquiridos nos dão poder, sim, mas o poder pode corromper o ego, fechando-nos ao aprendizado. A ampliação da consciência deve prosseguir e, para isso, novos aspectos do ser devem ser integrados.

A verdade liberta, sim, mas a cada nível de liberdade alcançado, um novo nível se apresenta e não podemos nos acomodar, pois a tentação de desistir estará sempre presente, feito um diabinho a nos cutucar com seu tridente. Feito a picanha suculenta no garfo de Cypher.

a fé em si mesmo

Morfeu é capturado pelos agentes da Matrix, mas Neo, Trinity, Apoc, Switch e Cypher conseguem escapar do prédio. Cypher é o primeiro a retornar à nave e, prosseguindo em sua traição, atira nos dois operadores. Podendo decidir sobre a vida e a morte dos colegas que ainda estão na Matrix, elimina Apoc e Switch, desconectando-os de seus corpos. Depois, pelo telefone, zomba da crença de Trinity no Predestinado e, por fim, quando se prepara para matar Neo, é morto por Tank, o operador que sobrevivera a seu ataque.

Antes de desconectar Trinity e Neo, Cypher deseja brincar com os sentimentos e a fé de Trinity, e diz, sarcástico, pelo telefone: “Se ele é mesmo o Predestinado, então algo deverá acontecer e me impedir de puxar este cabo.” O suspense é insuportável. Trinity e Neo, na Matrix, se olham assustados, impotentes diante da traição do colega que prossegue, perverso: “Vamos, Trinity, olhe nos olhos dele e me diga: você ainda acredita que ele é o Predestinado? Sim ou não?”

Trinity olha para Neo e, assustada mas convicta, com o celular ao ouvido, responde: “Sim.” Nesse momento, Tank surge e, mesmo ferido gravemente, atira em Cypher, impedindo-o de matar Neo.

Atente para o drama de Trinity. Se respondesse que acreditava, Cypher puxaria o cabo e mataria Neo, mostrando que, de fato, ele não era o Predestinado, e assim ridicularizaria Trinity e sua crença, e ainda zombaria de sua paixão, da qual tinha ciúme. Porém, para Trinity havia outra opção: dizer que não acreditava, ainda que de fato acreditasse, pois assim pouparia a si mesma do sarcasmo de Cypher. Entretanto, agindo dessa forma ela não estaria sendo verdadeira consigo mesma, pois negaria sua própria fé. Então, mesmo numa situação terrivelmente desfavorável, onde tudo parece perdido e só um milagre pode salvá-los, ela prefere assumir sua crença a qualquer custo. O que pode levar alguém a manter sua fé mesmo quando tudo aponta que ela é vã?

Na jornada da autorrealização, quando parece que já fomos suficientemente testados e que a vida não tem mais porque duvidar de nosso sincero esforço e honestidade em relação às nossas crenças pessoais, eis que nos vemos numa situação como a de Trinity. É como se uma força maior armasse toda a cena somente para testar, de forma definitiva, nossa fé naquilo que dizemos acreditar.

Nós acreditamos em nosso potencial, lutamos por nossos sonhos, temos fé que conseguiremos, estamos certos disso tudo, não há dúvida. Mas isso ainda não basta, pois um belo dia a vida nos pede para… saltar no escuro. Não é possível. Simplesmente não acreditamos no que está acontecendo. Parece uma brincadeira do destino. Bem, não deixa de ser, porque apesar da fama de difícil, a vida tem um ótimo senso de humor.

Nesse ponto, muitos desistem. Entendem que não vale a pena arriscar tudo que conquistaram e decidem voltar. Arranjarão mil desculpas e tentarão se convencer que fizeram o certo – mas ficará sempre a sombra do arrependimento, para alguns sutil, para outros impossível de ser ignorada. Sutil ou não, o arrependimento de não haver tentado pode encher a vida de frustração.

Ninguém poderá decidir por nós quando esse difícil momento surgir. Só nós mesmos, por nossas atitudes, é que podemos mostrar o quanto confiamos no processo. Teremos que saltar no escuro para poder descobrir se o que nos aguarda lá embaixo é a morte ou se, na verdade, o chão sempre esteve a um palmo de nossos pés. Somente seguindo nossa fé mais íntima e dizendo um sim verdadeiro aos nossos sonhos é que saberemos se eles realmente fazem parte de nosso destino. Somente dizendo sim, como Trinity, é que pode acontecer um milagre.

Neo decide resgatar Morfeu

Neo e Trinity retornam à nave, salvos. Tank lhes comunica que terá que sacrificar Morfeu, pois ele está na Matrix, sendo torturado pelos agentes, e a qualquer momento cansará e revelará os códigos de Zion, permitindo assim que as máquinas destruam a cidade.

Neo, porém, interrompe Tank, decidido a voltar à Matrix e resgatar Morfeu. Trinity tenta impedi-lo, dizendo que Morfeu se sacrificou para que eles pudessem salvar o Predestinado. Neo explica que Morfeu estava enganado, pois acreditava que ele é algo que, na verdade, não é: “Não sou o Predestinado, Trinity. O Oráculo me disse.”

“Não. Tem de ser você.”

“Sinto muito. Sou um cara comum”.

“Não é verdade, Neo. Não pode ser verdade.”

“Por que não?”, Neo indaga, e Trinity não responde.

Este é um momento bastante significativo da história. Neo, pela primeira vez, sente que é capaz de lutar contra a Matrix. Até então ele apenas treinou com Morfeu e entortou uma colher, mas agora, na iminência da morte do homem que tanto acreditou e tanto fez por ele, Neo é tomado de súbita autoconfiança. Uma nova força parece brotar dentro dele, tão poderosa que o faz crer ser capaz de voltar à Matrix, lutar contra os agentes e resgatar Morfeu, algo que ninguém jamais conseguiu fazer.

Apesar disso tudo Neo ainda não acredita que é o Predestinado. Ele se sente impulsionado a realizar algo grandioso e sabe que é perfeitamente capaz, mas essa convicção não vem do fato de se saber o Predestinado, pois ele continua negando. De onde então vêm essa força e essa certeza imensas?

Aqui o herói está no limiar de uma profunda transformação interior, o momento em que um fenômeno muito importante começa a se produzir: o indivíduo se sente tomado pela força irresistível que já aponta no horizonte da consciência. A personalidade consciente ainda não admite a verdade, mas ela é tão poderosa que avança do inconsciente para a consciência, encurralando qualquer tentativa de defesa do ego.

Nós nos transformamos pelo autoconhecimento e chegamos até esse ponto mais cientes de nossas capacidades, sabendo que somos capazes. Ao mesmo tempo, porém, insistimos em negar certas coisas a nosso respeito, apesar delas estarem obviamente estampadas em nossas ideias e atitudes. É o último baluarte de resistência do velho ego que se mantém firme. Por quê?

Isso ocorre porque ainda estamos apegados a uma velha verdade sobre nós mesmos. Admitir isso significaria assumir uma responsabilidade definitiva sobre nossas vidas, algo que mudará tudo, inclusive nosso conceito sobre nós mesmos. Outras pessoas ao redor já sabem ou desconfiam disso, mas nós insistimos em negar. São os resquícios do velho ego que, apesar das transformações já ocorridas, ainda se recusa a morrer inteiramente. É a percepção que temos de nós mesmos agarrando-se o quanto pode à comodidade que representa o não assumir-se.

A história bíblica de Jonas, que é engolido por uma baleia, nos mostra o quanto é vão fugirmos de nós mesmos, do nosso destino. Não adianta Jonas fugir no barco, ir para bem longe. Aquilo que o aguarda irá buscá-lo seja onde for, e assim, enquanto nega para si mesmo e se esforça no rumo contrário, Jonas apenas adia o que precisa acontecer. Ele cairá ao mar, será engolido pela baleia e ela o vomitará numa praia distante, exatamente o lugar que ele tanto evitava ir. Porque é isso que aguarda o herói: o seu próprio destino de herói.

O ego sempre resiste. A autopercepção nunca abre caminho facilmente para uma nova forma de entender a si próprio. Mas o eu total é muito maior que o ego e tem mecanismos para nos forçar a avançar em nosso caminho de autorrealização, rumo ao que sempre fomos destinados a ser. E a psique é muito criativa, não duvide. Ela pode inventar acontecimentos repentinos, iscas bem camufladas ou até mesmo uma baleia.

unindo os opostos

Neo se prepara para voltar à Matrix. Trinity diz que vai com ele. Neo não concorda. Trinity, então, usa de sua autoridade como oficial da nave e, resoluta, diz que ou ela irá junto ou ele não irá. Neo tem de aceitar, e os dois, então, são enviados de volta à Matrix. Eles invadem um prédio de segurança máxima, lutam contra soldados, usam um helicóptero e, por fim, libertam Morfeu.

A prática contínua do autoconhecimento nos torna confiantes em nós mesmos. Se sabemos quem somos, sabemos muito bem  de nossas possibilidades. A autoconfiança é atingida quando deixamos de ser desconhecidos para nós mesmos e ficamos íntimos da nossa própria verdade. Após confrontar o inconsciente e assimilar aquilo que por muito tempo evitamos reconhecer em nossa personalidade total, eliminamos o inimigo interno, a força retrógrada, e podemos finalmente concentrar os esforços em outras frentes.

“Neo, ninguém nunca fez isso”, Trinity o adverte. Mas ele está inteiramente convicto: “É por isso que vai dar certo.” Neo sente que é capaz de realizar o impossível. Sua audácia surpreende os companheiros, mas ele está tão decidido que só lhes resta concordar. Ocorre o mesmo quando atingimos esse ponto do autoconhecimento: fazemos coisas que antes eram impossíveis, superando os limites pessoais e surpreendendo a todos, às vezes até a nós mesmos.

Aqui, porém, cabe uma advertência. A autoconfiança é necessária para realizar grandes feitos, sim, mas se o ego acha que conseguirá fazer tudo sozinho, acabará sofrendo amarga decepção. Autoconfiança nem sempre quer dizer autossuficiência. Apesar de agora se entender melhor com o inconsciente e ter assimilado os conteúdos que antes só atrapalhavam, a personalidade consciente precisa estar bem equilibrada para dar o grande salto. O herói necessita reunir todas as suas forças para o embate.

No caso de Neo, ele reluta em admitir a presença de Trinity na perigosa missão de resgate, pois se considera capaz de resolver a parada sozinho – mas tem de render-se à autoridade de Trinity. Temos aqui, mais uma vez, a atuação do aspecto feminino do herói. É esse aspecto que, mais uma vez, e dessa vez num nível mais profundo, exige ser devidamente reconhecido e integrado à consciência.

No início do filme, quando os resistentes ainda tentavam despertar Neo, foi Trinity quem manteve com ele o primeiro contato, cuidadosa, pelo computador, e em seguida na festa, sussurrando em seu ouvido. Depois foi ela quem o convenceu, delicadamente, a ficar no carro e permitir a retirada do aparelho rastreador. Em todos esses momentos Trinity agiu com muito cuidado para não afugentá-lo de vez. Precisou ser calma, doce, compreensiva e paciente, conquistando-lhe a confiança. Agora é diferente. Ela sabe que Neo, sozinho, não conseguirá salvar Morfeu. Ela sabe que ele precisa dela.

A natureza feminina no homem, assim como a natureza masculina na mulher, é chamada a intervir em momentos cruciais onde a consciência corre o risco de se tornar unilateral, levando-nos a agir desequilibradamente. Sabemos que somos capazes, e de fato somos, mas só conseguiremos êxito se unirmos o que somos, masculino e feminino, força e delicadeza, razão e sentimento, yin e yang. Somente assim, enfim equilibrados entre nossos opostos, é que seremos realmente capazes de fazer o impossível acontecer. Sem essa união, apenas um lado das nossas capacidades atuaria, e, certamente, não seria suficiente.

É sempre bom parar um pouco antes de dar o primeiro passo rumo a uma grande conquista e sentir se estamos suficientemente equilibrados para a missão. Mas, num mundo regido pela pressa do relógio, parar e dedicar um tempo a nós mesmos soa como um luxo impensável, e muitas pessoas chegam a sentir culpa se não estão ocupadas trabalhando, produzindo, correndo de um lado para o outro. Muitas até adoram mostrar que estão sempre lotadas de trabalho, mesmo quando não estão.

Se precisamos empreender uma grande tarefa, que exige todo o nosso esforço e atenção e envolve enormes riscos, nada melhor que, antes de começar, reunir todas as forças, tudo o que somos. Quem se conhece mais, sempre tem mais chances de obter êxito no que faz. Quem não se conhece, não terá como unir harmoniosamente suas forças e ficará sempre a um passo de tudo aquilo que poderia realizar.

No filme, é Trinity quem pilota o helicóptero e impede que um agente mate Neo. Por outro lado, é ele quem segura Morfeu pela mão e é ele também quem segura o cabo para que Trinity escape do helicóptero que cai. Sozinhos, nenhum dos dois conseguiria resgatar Morfeu. Juntos, não apenas o fazem como também reafirmam a atração que já sentiam um pelo outro, fortalecendo os sentimentos que mais tarde permitirão a Neo ressuscitar e se tornar, definitivamente, aquilo a que estava, desde o início, predestinado a ser.

humanos e vírus

A cena da tortura de Morfeu é muito interessante pelo fato de apresentar a visão das máquinas sobre a espécie humana. Enquanto aguarda que Morfeu canse e finalmente lhe revele os códigos de Zion, o agente Smith fala de uma curiosa conclusão a que chegou:

“Percebi que os seres humanos não são mais mamíferos. Todo mamífero deste planeta instintivamente desenvolve um equilíbrio natural com o meio ambiente. Os humanos não. Vocês se mudam para um lugar, se multiplicam até que todos os recursos naturais sejam consumidos e a única maneira de continuar sobrevivendo é mudar para outro lugar. Existe outro organismo que segue o mesmo padrão. É o vírus.”

O raciocínio do agente Smith é, para nós humanos, desconcertantemente lógico. Smith é o vilão que detesta a espécie humana e tudo fará para destruir Zion. Ele é o mal personificado, um programa de computador cujo objetivo é coordenar missões de captura de humanos dentro da Matrix e eliminá-los, custe o que custar. Apesar de tudo isso, o espectador é levado a admitir, a contragosto, que são sábias as suas palavras.

Smith tem toda razão: a espécie humana se comporta como os vírus, exatamente como os organismos que tanto tememos e combatemos. Até poucos séculos atrás, porém, o Homo sapiens mantinha uma relação simbiótica com o meio, respeitando as leis naturais e convivendo em harmonia com animais, vegetais e minerais. Havia o sentimento do sagrado em relação à Natureza, pois instintivamente nos sentíamos unidos a ela e sabíamos que precisávamos dela para sobreviver, verdade que os povos indígenas sempre tentaram, e ainda tentam, nos mostrar.

Infelizmente, o advento da civilização, a industrialização e agora a tecnologização mudaram isso. Hoje, desligados de nossas raízes e desconectados das leis naturais que regem a vida, tornamo-nos peritos em violentar a Natureza e não acordamos para o fato de que fazemos parte dela. Sem Natureza não há planeta, e sem planeta nós não existiríamos. A Natureza é o planeta inteiro, inclusive nós. É uma verdade que de tão óbvia não precisaria ser lembrada, mas que fazemos questão de desconsiderar e até negar.

“Vocês são o mal, o câncer deste planeta. Vocês são a praga. E nós somos… a cura.”

As palavras do agente Smith são duras. Dói na consciência e é desconfortável reconhecer que ele está certo: a espécie humana é a grande praga da Terra, ela e sua cegueira absurda. Somos a peste humana que, por onde passa, deixa atrás de si um rastro de destruição. Já não destruímos apenas a Natureza: agora eliminamos também culturas inteiras, dizimando seus valores.

Destruindo o ambiente em que vivemos, estamos destruindo também a nós mesmos, condenando à morte todos os dias milhares de pessoas, inclusive crianças, vítimas da ganância capitalista, do fanatismo religioso e do medo do diferente.

Será que um dia, como em Matrix, as máquinas se rebelarão e, feito justiceiras do planeta, nos escravizarão, interrompendo assim a ação do câncer que tão bem representamos? Talvez isso não ocorra. Talvez seja a própria Terra que, em sua capacidade autorreguladora e cansada de ser agredida, decida sacrificar nossa espécie para que a vida no planeta possa prosseguir. De qualquer forma, talvez ainda haja tempo de reverter o processo. Isso dependeria de que uma parcela considerável da humanidade acordasse para o perigo que criamos. Dependeria de que pessoas simples, como eu e você, lembrassem da verdade mais óbvia.

Neo versus Smith

Morfeu volta à nave, seguido por Trinity. Neo, porém, é impedido de voltar pelo agente Smith, que surge no metrô. Ele pensa em correr, mas volta-se e decide enfrentar Smith, contrariando a regra básica dos resistentes, que diz que jamais deve-se lutar contra um agente, pois até então todos os que tentaram, morreram.

Os agentes são programas criados para capturar e eliminar humanos intrusos no sistema. Não podem ser mortos. No máximo são “expulsos” do corpo humano que provisoriamente ocupam na Matrix para, ato contínuo, assumirem outro corpo, retornando para prosseguir a luta, sem nenhum arranhão, sem cansaço. Eles não são apenas mais fortes que qualquer humano, são invencíveis. Por isso a recomendação: quando vir um agente, fuja o mais rápido que puder.

O agente Smith é o líder dos agentes. Quando Neo, no metrô, desobedece às recomendações de fugir e volta-se para lutar contra Smith, o espectador já sabe tudo sobre os agentes e por isso sabe também que Neo não pode destruí-lo. Como então ele poderá vencer?

Em termos psicológicos, o agente Smith representa algo muito difícil de ser assimilado pela consciência, um conteúdo inconsciente que se manteve intocado durante longo tempo, apesar de toda a ampliação da consciência. É algo que nos mete muito medo e do qual sempre fugimos, o que fez com que crescesse sem ser incomodado e se tornasse extremamente poderoso.

Um dia, porém, quando mais uma vez já estamos nos preparando para fugir, algo ocorre e decidimos ficar e encarar o que tanto evitávamos ver dentro de nós mesmos. É uma atitude de grande coragem e que só ocorre quando a consciência se encontra num elevado grau de ampliação. Aceitar o confronto com o mais poderoso dos inimigos internos não é para qualquer um, mas somente para quem já encarou e venceu muitos outros, tendo disciplinado a força interior de tal forma que o embate decisivo se faz necessário e já não se pode mais adiá-lo.

Neo, através de sua parceria com Trinity, já aprendeu a equilibrar os opostos e tornou-se ainda mais forte e capaz. Agora, a prova final surge bem à sua frente. Ele tem a opção de fugir e mais uma vez adiar o confronto, nada o impede. Mas em seu íntimo o herói sempre sabe quando chegou a hora. Neo sabe que não pode mais adiar a resolução da questão que o aflige desde que despertou da Matrix. Ser ou não ser o Predestinado tornou-se uma pressão constante em sua mente e ele tem de esclarecer isso de uma vez por todas se quiser ter alguma paz. Smith nunca foi vencido, Neo sabe, mas é exatamente por isso que deve enfrentá-lo, pois somente indo ao limite extremo das possibilidades é que saberá o que pode e o que não pode fazer.

Se prosseguirmos no caminho do autoconhecimento, superando dificuldade após dificuldade, um dia certamente também teremos de testar, num nível extremo, nossos limites de honestidade para com nossa verdade mais legítima. E o que exatamente enfrentaremos? Bem, o inimigo somos nós mesmos, sempre foi assim. Ele mora na escuridão do inconsciente e somente se revelará por inteiro no instante em que decidirmos conhecê-lo de verdade. Até lá poderemos fazer suposições, desconfiar e teorizar sobre muitas coisas. Entretanto, quando o momento decisivo chegar, sempre estaremos desprevenidos.

É quando a hora da verdade soa no relógio de nossa jornada que descobrimos essa nova e perigosa entidade dentro de nós. Tudo o que vivemos até então poderá nos ajudar, sim, mas agora trata-se de um fator inteiramente novo na história e não poderia haver qualquer preparação conveniente. Estaremos sós diante de nossa outra parte, aquela que sempre existiu, dividindo conosco o espaço do nosso próprio ser, mas levando uma vida autônoma, protegida da luz da consciência. Ela é mais forte que nós. Porque ela faz parte do que nos tornaremos.

E agora? Fazemos como Neo, que decidiu lutar contra algo que é invencível? Ou fugimos? Por um lado, lutar se mostrará um esforço vão e, por outro, fugir apenas adiará o confronto inevitável. E agora, como escapar desse dilema?

meu nome é Neo

Neo e o agente Smith posicionam-se um frente ao outro como nas cenas clássicas dos filmes de bang-bang. Eles avançam atirando, mas não se acertam. Esmurram-se e rolam pelo chão da estação, medindo forças. A luta é equilibrada, mas aos poucos Smith leva vantagem e consegue jogar Neo nos trilhos do metrô. Enquanto o trem se aproxima, Smith imobiliza Neo pelo pescoço e diz: “Está ouvindo, senhor Anderson? É o som do inevitável. O som de sua morte. Adeus.”

Neo, sufocado, cerra os dentes e responde: “Meu nome é… Neo!” E, num impulso, solta-se do abraço de Smith, deixando-o nos trilhos para ser esmagado pelo trem. Neo sai caminhando, julgando-se vitorioso, mas logo adiante o trem para, as portas se abrem e Smith reaparece, renovado, pronto para prosseguir a luta.

O que parece simples frase de efeito, um desses batidos clichês de cinema, é na verdade o melhor modo de mostrar que Neo, nesse ponto decisivo de sua trajetória, está ciente de sua identidade e sua força. “Meu nome é Neo” encerra em poucas palavras todo o caminho por ele percorrido, as dúvidas vividas e os desafios superados. Ao recusar-se a ser chamado pelo nome que foi inicialmente batizado na Matrix, Neo, simbolicamente, rompe ainda mais sua ligação com o mundo das ilusões, rompimento iniciado ao criar o codinome Neo para atuar como pirata no mundo dos computadores. A criação do codinome, ainda na Matrix, marca o desenvolvimento de sua nova consciência de si mesmo. Ao insistir em ser chamado pelo novo nome, Neo confirma sua identidade e resiste à morte.

Porém… apesar de confiar em sua força, Neo ainda não se convenceu realmente de que é o Predestinado, caso contrário não precisaria de tanto esforço, como veremos depois na cena do embate final contra Smith. Ele precisa, primeiramente, “saber” que é o Predestinado. Enquanto isso não ocorrer, ele seguirá lutando, lutando e lutando contra algo que não poderá jamais derrotar.

Muitas pessoas mudam de nome quando casam ou ingressam em nova religião. É uma forma simbólica de cortar os laços que as prendiam a seu antigo mundo, aos velhos valores que norteavam a vida. É um modo de recomeçar, com uma nova identidade. Isso não quer dizer que precisamos comparecer ao cartório toda vez que nos transformamos – o que interessa é a mudança interior, e não o nome. Se mudamos por dentro, nosso mundo em volta também muda, pois como tudo está interligado, nada fica imune ao que se transforma.

Resistindo à morte e insistindo com todas as forças por sua vida, Neo está, na verdade, apegando-se ao que ele sabe de si próprio, à sua autopercepção. Porém, nesse momento sua autopercepção é insuficiente para fazê-lo vencer, pois ele ainda não admite que é o Predestinado, e somente o Predestinado é que pode vencer a Matrix. Assim sendo, sua luta contra Smith é, na verdade, a luta de Neo contra si mesmo, contra o que ele é e sempre foi (o Predestinado), mas ainda não consegue reconhecer. O que Neo realmente necessita não é vencer Smith, e sim assumir sua verdadeira natureza. Mas, então, o que ele deveria fazer?, você pode estar se perguntando. Chamar Smith para um cafezinho?

Seria ótimo se não precisássemos confrontar nossas partes não reconhecidas. Seria menos doloroso se pudéssemos nos entender pacificamente com nosso eu maldito. Mas não é assim que se dá o crescimento psíquico, pois a consciência só evolui quando é intimada a largar sua cômoda posição e seguir em frente. Entretanto, o ego, o velho ego, sempre se apega ao que ele é e acaba esquecendo do óbvio: ele só é o que é justamente porque um dia deixou de ser o que era para ser o que agora é. Sem transformações, a personalidade não tem como evoluir.

É uma função difícil, a do ego. E contém em si boa dose de ironia. Ele é um conjunto de conteúdos psíquicos que, ainda na fase uterina do indivíduo, se aglutinaram com tal força e coesão que se desprenderam do inconsciente, formando essa entidade autoconsciente na psique que chamamos eu. Imprescindível para o desenvolvimento psíquico do indivíduo, o ego precisa de muita coesão para ser ego, caso contrário a personalidade seria tão fragmentada que não existiria um indivíduo, mas muitos e vagos conteúdos que não chegaram a se unir numa única noção de eu. No entanto, o processo de crescimento sempre forçará o ego a perder, embora momentaneamente, a sua própria coesão para que ele possa assimilar novos conteúdos do ser e, com isso, ampliar a área da personalidade consciente. O ego sempre resistirá, senão não seria ego.

Todas as vezes que se fizer necessário, o ego precisará passar a gerência do ser para um outro ego mais capaz. Neo precisa morrer para que morram junto os últimos resquícios de um Neo que ainda não crê que é o Predestinado. Por mais que afirme que é Neo e se aproxime da verdade que ao mesmo tempo tanto evita, se ele não morrer inteiramente para a antiga vida jamais chegará de fato à verdade e jamais será concretizado o que ele é em sua essência. Neo mudou e está mais forte, mas ainda não mudou o suficiente, pois continua tentando derrotar Smith, e Smith não pode ser derrotado, já que ele é o próprio Neo não reconhecido.

É um paradoxo de fritar neurônio, mas é assim que funciona: quanto mais Neo se fortalecer, mais forte Smith será. Quanto mais Neo insistir em viver, outra vez a porta do trem abrirá e Smith ressurgirá, renovado, pronto para prosseguir a luta. Nós também agimos como Neo quando estamos no limiar da grande transformação e julgamos que é nosso dever matar a nossa outra parte, aquela de quem fugimos a vida inteira. É engano. Não conseguiremos derrotá-la, por mais que lutemos ‒ ela é mais forte que nós. O que temos de fazer é admiti-la em nossa natureza, pois ela é justamente o que nos falta para sermos inteiros.

Smith não morre porque Neo ainda não aceita que é o Predestinado. Como o Predestinado tem que morrer (“sua próxima vida, quem sabe…”, dissera o Oráculo), Neo evita o autossacrifício. Pretende alcançar o máximo de si sem morrer. Obviamente, não conseguirá. Ninguém consegue.

Em sua última noite antes de ser preso pelos soldados romanos, Jesus Cristo, no jardim do Getsêmani, desesperou-se ante a visão do destino que o aguardava: sangue, humilhação, crucificação, dores terríveis e morte. Desejou que não precisasse passar por tudo aquilo e lutou em seu íntimo contra o que tenebrosamente se aproximava. Agiu exatamente como Neo, tentando evitar o inevitável. Mas Cristo compreendeu que ao Predestinado é impossível vir a sê-lo sem antes padecer e morrer. Por essa razão, entregou-se ao destino e abraçou com firmeza sua cruz.

Então Neo deveria ele mesmo jogar-se sob o trem a fim de apressar a chegada do novo nível de consciência? Também não. O que Neo tem de fazer é ir até o limite possível de suas forças e de seu sofrimento e viver honestamente a agonia que aguarda a todos os heróis. Tem de aceitar seu fardo como nós também teremos de aceitar quando chegar nossa hora. Infelizmente, não nos é dado saltar etapas. Nenhum herói teve ou terá essa regalia.

o herói morre

Neo, percebendo enfim que não conseguirá derrotar Smith, começa a correr. Liga para a nave, implorando uma saída urgente. Tank lhe indica a sala de um hotel e ele corre para lá a fim de atender a ligação telefônica, enquanto os três agentes o perseguem.

Depois de correr pelas ruas, subir escadas, saltar muros e invadir apartamentos, Neo corre por um corredor enquanto o telefone toca bem próximo. Ele abre a porta e dá de cara com Smith apontando-lhe uma arma. Um tiro é disparado à queima-roupa. Neo é atingido, mas continua de pé, sem se mexer. Leva a mão à barriga e constata que está sangrando. Está tão surpreso que parece não sentir dor alguma, como se não acreditasse que tudo aquilo de fato está acontecendo.

Enquanto o telefone continua tocando, Smith dispara uma segunda vez. Neo cambaleia para trás e se apoia na parede do corredor. Olha para Smith e parece que fará algo, mas Smith atira mais oito vezes. Seu corpo escorrega e tomba para o lado. Os agentes o examinam e confirmam: “Ele se foi”. Smith, imperturbável, fala: “Adeus, senhor Anderson.”

Façamos um pequeno exercício de imaginação. O que aconteceria se Neo houvesse atendido à chamada e, assim, retornasse a salvo para a nave, livre da perseguição dos agentes? Continuaria vivo, junto com seus companheiros. Talvez fosse levado a Zion. Talvez voltasse outro dia à Matrix, para ajudar outros humanos a despertar.

Entretanto, continuaria sendo Neo – e não o Predestinado. Ele não teria os poderes que somente sendo o Predestinado poderia ter. Não poderia manipular os códigos da Matrix e quebrar as regras do sistema como somente o Predestinado pode fazer. Se retornasse à nave, Neo não passaria pela última e decisiva transformação, aquela que é imprescindível ao herói em sua jornada sagrada: a morte.

Não é fácil encarar a morte, nós sabemos. Morte biológica ou morte como símbolo máximo de profunda transformação, nunca é fácil vivenciá-la. Mas não há outro modo de cruzar o portal. Somente com a morte do ego, ou seja, do atual nível de autopercepção, é que chegaremos ao nível seguinte de ampliação da consciência. Enquanto não morremos, ficamos presos à fase na qual estamos, que já não tem nada de novo a nos oferecer. Morrer então significa, vamos dizer desta forma, saltar do nível 1 para o nível 2. Por outro lado, recusar-se a morrer significa botar uma vírgula depois do 1 e, por meio desse movimento ilusório, enganar-se com o 1,1 e mais adiante com o 1,15, depois com o 1,157 e assim sucessivamente. A vida prosseguirá nessa dízima e nós nos movimentaremos, sim, mas não será um movimento para frente, em direção do novo, ao 2, e sim um mergulhar cada vez mais fundo na fase atual, totalmente apegados a ela: 1,157 e depois 1,1574 e depois 1,15748 e a enrolação não terá fim.

Se Neo voltasse à nave, estaria apenas adiando seu confronto com Smith. Seria perda de tempo, o mesmo tempo que perdemos toda vez que não aceitamos a mudança necessária. Neo já morreu uma vez, na Matrix, e continuou vivo, na verdade mais vivo ainda. Ele já experimentou a morte de suas ilusões e venceu. Por que então sente medo de morrer mais uma vez?

Aqui, o medo é justamente o que nos indica a necessidade de transformação. Ele, em si, não é algo ruim. Sentir medo é natural, faz parte do instinto de autopreservação. Ao perceber que novos conteúdos estão para vir à tona da consciência e que poderão desestabilizá-lo, o ego tende a se esforçar para impedir. O ego sente de longe o cheiro da mudança, e quando ela está bem próxima ele usa de toda sua força para se manter no controle, pois sente que vai morrer.

A fuga de Neo pelas ruas é a fuga que a autopercepção empreende para não morrer e, assim, não dar vez à nova autopercepção que surgirá. O esforço desesperado de Neo para atender à chamada que o levará de volta à segurança da nave é o mesmo esforço que todos nós empreendemos, inconscientemente, para escapar daquilo que nos aguarda: o nosso eu legítimo, nosso eu cada vez mais verdadeiro, aquele que desde o início estava predestinado a ser, feito uma antiga profecia.

Não adianta fugir. O medo do que nos libertará nos levará a fazer isso e aquilo, sempre justificando nossos atos, e a desenvolver mil estratégias para evitar sermos apanhados pela transformação. Mas para onde nos virarmos… lá estará o agente Smith, lá estará a morte nos espreitando.

Insistir demais na velha fase transformará nossa vida no joguinho do Pac-man: viveremos num cruel labirinto, correndo alucinados, cercados de problemas, insucessos e sofrimentos. No joguinho do crescimento psíquico o único modo de escapar é desistir da luta contra nós mesmos e aceitar a transformação. Muitas vezes agimos como Neo quando recebe o primeiro tiro e quase se convence de que aquilo não pode estar acontecendo. É por pouco. O herói está a um passo de finalmente alcançar a verdade… mas não consegue, pois ainda está apegado à velha vida.

o amor libertador     

Na nave, Morfeu, Tank e Trinity acompanham o que se passa na Matrix e ficam chocados ao ver que Neo morreu. Morfeu murmura, sem acreditar: “Não é possível…” Trinity se aproxima do corpo inerte de Neo e, calmamente, sussurra em seu ouvido: “Neo, eu já não sinto medo. O Oráculo me disse que eu me apaixonaria por um homem morto e que ele seria o Predestinado. Sendo assim, você não pode estar morto, pois eu te amo.” Ela beija a boca de Neo e seu corpo estremece, voltando à vida. “Agora levante”, ela diz. Na Matrix, Neo desperta.

É bem significativo que venha de Trinity a ordem para que Neo desperte. Poderia ter vindo de Morfeu, o líder, mas veio de Trinity. Temos aqui, mais uma vez, a presença decisiva do feminino na jornada do nosso herói. Ele já havia se entendido com alguns aspectos yin de sua psique e, graças a essa união dos contrários, equilibrou-se, fortaleceu-se e conseguiu resgatar Morfeu, e tornou-se tão ágil que Smith não pôde derrotá-lo na luta.

Agora, porém, Neo está morto, e Trinity, pela primeira vez, declara seu amor por ele, sussurrando em seu ouvido o que ela sempre mantivera em segredo, escondendo dele, dos colegas e, principalmente, dela mesma.

Você certamente lembra que na cabine telefônica do metrô, prestes a voltar à nave, Trinity fala para Neo que tem algo importante a dizer mas tem medo do que pode ocorrer se disser. Ela então fala que tudo que o Oráculo lhe disse “aconteceu, menos isso”. Isso o quê?, o espectador se indaga. Não fica claro, pois Trinity retorna à nave antes que possa revelar o teor exato da profecia, mas no fim do filme saberemos: ela se referia ao fato do Oráculo ter lhe dito que ela se apaixonaria por um homem morto e que ele seria o Predestinado. Ali, no metrô, Trinity está apaixonada por Neo, mas ele… é um homem vivo. Ela está confusa: isso significa que o Oráculo errou? Ou que Neo não é o Predestinado? Pobre Trinity, não deve ter sido fácil conviver com tantas dúvidas.

Na nave, o gesto final de Trinity aciona de vez a profecia e desperta Neo, fazendo nascer o Predestinado. O sussurro de Trinity é o pneuma, o sopro milagroso da vida, o mesmo sopro com que Ísis ressuscita Osiris na mitologia egípcia. Ao nosso herói, faltava o amor para que ele se completasse e pudesse enfim ser ele mesmo em todo seu potencial. Quando tudo parecia perdido, o componente yin da psique entrou em ação mais uma vez, ocupando seu devido lugar na personalidade consciente do herói.

A recusa de Trinity em dividir o que sentia com os companheiros significa a recusa do indivíduo em aceitar a realidade de seus sentimentos. Ao fixar-se mais em outras dimensões do ser, como a intelectual, o ego despreza a dimensão dos sentimentos, que torna-se para ele um aspecto ameaçador. O ego pressente e tudo faz para não encarar o que o destruirá.

Bem, Trinity podia aos poucos ter assimilado seus próprios sentimentos e assim não deixaria tudo para ser perigosamente resolvido no último instante. Sim, poderia. Mas para assimilar os sentimentos é preciso, antes, reconhecê-los. Trinity os reprimia, tinha medo do que eles podiam significar, sequer falava deles. Como a consciência pode trabalhar de modo satisfatório algo que finge não existir?

É exatamente assim que o último inimigo se esconde da consciência, cresce na surdina e mais tarde irrompe, exigindo reconhecimento urgente. O ego não tem como vencer algo tão mais forte que ele. Então o ego morre, derrotado por aquilo que a consciência a todo custo evitou integrar a si mesma.

Neo morre porque não há outra maneira do Predestinado nascer. O ego morre porque somente um novo ego, que reconheça os conteúdos inconscientes que exigem participação na consciência, pode comandar a partir daí a jornada do eu total rumo à autorrealização.

O amor de Neo e Trinity, que os guia rumo à vitória final, é o mesmo amor romântico que guiou a mentalidade medieval, mostrando-se como imprescindível na busca moderna do indivíduo por sua essência mais legítima. É a misteriosa lógica alquímica que une duas pessoas e as transforma numa terceira, o casal, levando a individualidade a um novo nível.

Neo é o Predestinado

Neo desperta, abrindo os olhos devagar. Parece surpreso por estar vivo, mas está muito tranquilo. Põe-se de pé e olha ao redor. Os agentes percebem, sacam suas armas e atiram.

“Não…”, Neo diz baixinho, sem se abalar, e estende o braço, detendo as balas no ar. Ele agora enxerga a Matrix através de todos os seus códigos, como os rebeldes a veem nos monitores da nave, mas com muito mais nitidez. Surpreso, Smith larga a arma e avança para Neo, que se defende dos golpes com incrível facilidade. Neo então corre e salta para dentro de Smith, fazendo-o explodir. Depois reaparece, de pé, calmo e respirando profundamente. Os outros dois agentes saem correndo.

Com a aceitação do amor, Neo alcança mais um nível do despertar. É a consciência que se amplia ao integrar os derradeiros conteúdos que não admitia.

Mas isso tudo só aconteceu porque o ego morreu, o velho ego que havia muito se agarrava obstinadamente ao comando da consciência. O novo ego faz de nós pessoas mais equilibradas e mais cientes de nossas possibilidades. Além disso, a consciência ampliada nos propicia uma visão mais clara da realidade, fazendo-nos ver o mundo além das aparências, assim como Neo passa a ver a Matrix através de seus códigos, limpidamente. Agora já não podemos ser enganados como antes, pois enxergamos tudo sem disfarces, principalmente a nós mesmos.

É bom deixar claro que a aceitação e a vivência do amor é o derradeiro inimigo que Neo tem de enfrentar para que possa se tornar, de fato, o Predestinado – mas para outras pessoas o último inimigo pode ser outro aspecto do ser. Seja qual for, será sempre algo que até o fim evitamos admitir em nós mesmos.

O Taoísmo, milenar filosofia oriental, nos fala do Tao, o ritmo do Universo, o indetível escoamento da realidade. Para o Taoísmo, sábio é aquele que capta esse ritmo e assim entende o equilíbrio dinâmico do crescimento e os ciclos de fluxo e refluxo da vida, harmonizando-se com ela. Isso é tornar-se um com o Tao, uno com tudo ao redor. Agindo assim o sábio pratica um dos princípios básicos do Taoísmo: a unicidade. Ele torna-se uno com a vida porque, na verdade, é o que sempre foi, mas não percebia.

Neo harmonizou-se totalmente com sua própria natureza e isso se refletiu automaticamente no mundo externo: ele passou a ser um com a realidade. Isso fica bem ilustrado na cena em que, após invadir o corpo de Smith e fazê-lo explodir, Neo respira fundo e a Matrix, ao seu redor, respira junto com ele, num movimento harmônico de contração e expansão.

Quem poderá ser mais forte que aquele que é um com a realidade? Neo consegue harmonizar-se com a Matrix de tal modo que nada mais é impossível para ele. Assim ocorre quando, após finalmente nos entendermos com o inconsciente, adquirimos um profundo grau de integração com nós mesmos e com a vida, nos conectando aos seus ciclos e às leis naturais. É mais ou menos como pegar onda: para chegar à praia, deve-se harmonizar os movimentos do corpo com o ritmo da onda, confiando no processo e abandonando-se ao sentido da força maior – tornando-se uno com ela. Desse modo, as coisas se tornam mais fluidas e a vida mais simples. As dificuldades continuam, é claro, mas nós agora as vemos não como obstáculos, mas como forças que, feito as ondas, podem nos conduzir à segurança da praia. E é por compreendermos as coisas desse novo modo que a vida se transforma no que há de melhor para nós.

É a isso que nos conduz a autorrealização: à efetivação do que realmente somos e à harmonia com a vida. Não são todos os que a atingem. Na verdade, são poucos, pois a grande maioria desiste ante as primeiras dificuldades e se convence que é impossível. A maioria toma a pílula azul.

Porém, o impulso para a autorrealização está presente em todos nós. O que faremos com ele é que determinará se realmente nos tornaremos ou não os heróis de nossas próprias vidas.

*     *     *

As luzes se acendem e os créditos na tela já estão subindo. O lanterninha vem nos avisar que o filme terminou e só então nos damos conta. Levantamos meio atordoados e saímos, envoltos em mil pensamentos. Teremos muitas coisas em que pensar nos próximos dias.

Na rua, as pessoas voltam para a realidade de suas vidas cotidianas. E, no interior de cada uma delas, o mito prossegue, vivo e pulsante, guardando o símbolo sagrado da autorrealização sob a mais importante de todas as perguntas:

“Quem sou eu?”

(continua)

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Ricardo Kelmer 2005 – blogdokelmer.com

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CONTEÚDO INTEGRAL DO LIVRO

Cap. 1 – Cinema, mito e psicologia
Cap. 2 – Toc, toc, toc… Acorde, Neo!
Cap. 3 – Não existe colher
Cap. 4 – Morrendo para vencer
Cap. 5 – Matrix Reloaded e Matrix Revolutions
Cap. 6 – Os personagens
Cap. 7 – Quadro comparativo

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Matrix e o Despertar do Herói cap 3

28/08/2010

Matrix e o despertar do herói
A jornada mítica de autorrealização em Matrix e em nossas vidas
(Ensaio – Miragem Editorial/2005)
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Usando a mitologia e a psicologia do inconsciente, Kelmer nos oferece uma visão diferente de Matrix, o filme que revolucionou o cinema, lotou salas em todo o mundo e tornou-se um fenômeno cultural, conquistando milhões de admiradores e instigando intensas discussões.

Em linguagem descontraída, o autor nos revela a estrutura mitológica do enredo de Matrix, mostrando-o como uma reedição moderna do antigo mito da jornada do herói, e o compara ao processo individual de autorrealização, do qual fazem parte as crises do despertar, o autoconhecer-se, os conflitos internos, as autossabotagens, a experiência do amor, a morte e o renascer.

Podemos ser muito mais que meras peças autômatas de uma engrenagem, dirigidos pelas circunstâncias, sem consciência do processo que vivemos. Em vez disso, podemos seguir os passos de Neo e todos os heróis míticos: despertarmos, assumirmos nosso destino e nos tornarmos, finalmente, o grande herói de nossas próprias vidas.

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Cap 3

NÃO EXISTE COLHER

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crises do despertar

Neo é resgatado pelos rebeldes. Pela primeira vez em toda a vida sua mente está fora da Matrix, no mundo real. Muito debilitado pelos anos em que seu corpo ficou imobilizado no casulo, cedendo energia para as máquinas, Neo dorme e a tripulação cuida dele. Ele acorda e pergunta por que seus olhos doem. Morfeu responde que é porque ele nunca os usou. E finaliza: “Descanse, Neo. As respostas estão vindo”.

O indivíduo jamais sai impune de sua diferenciação da sociedade, pois a conquista da individualidade sempre cobra seu preço. As crises que envolvem o despertar deixam o ego fragilizado, pois pode ser bastante doloroso encarar a verdade sobre nós mesmos. É comum que tais descobertas abalem tanto o ego que a pessoa, num primeiro momento, adoeça, precisando de um tempo para se recuperar e retomar os afazeres normais do dia a dia. A psique, em sua capacidade autorreguladora, força a pessoa a diminuir o ritmo e cuidar de si nessa fase delicada.

Em certos casos, o corpo segue a mente e expressa o sofrimento do ser, somatizando o conflito interno e refletindo fisicamente o que se passa na dimensão da alma. Vêm daí certas doenças que devem ser entendidas num contexto mais amplo, como sintomas da crise psíquica.

Infelizmente, a maioria dos nossos médicos ignora essa dimensão psíquica do ser e por isso se concentra nos cuidados físicos e neurológicos, comprometendo o processo total de cura com seu entendimento restrito da natureza humana. Nessas ocasiões o médico geralmente não encontra causa alguma para a doença. Ora, não encontra porque procura no lugar errado. A doença física, aqui, é um sintoma localizado do desequilíbrio psíquico, pois o ego está sendo confrontado por conteúdos inconscientes, e isso ocorre porque o ego precisa evoluir, a pessoa precisa se tornar mais adulta. Por ignorar a realidade objetiva da psique, o médico também ignora que esse doloroso confronto é vital ao desenvolvimento do ego e, consequentemente, à saúde do ser total. Quando o médico desconhece que a doença já faz parte da cura, suas tentativas de exterminá-la a todo custo poderão também anular o potencial curativo que a doença oferece.

Esta noção mais ampla da saúde ainda é rara entre médicos, enfermeiros e psiquiatras, profissionais formados por escolas que tendem a ignorar a dimensão psíquica do ser. Felizmente, já existem profissionais que compreendem o ser de um modo holístico, o que os torna mais capacitados para ajudar as pessoas a entender melhor as razões de seus males. Isso nos dá esperança de que num futuro próximo as crises do despertar da consciência (e as crises psíquicas em geral) possam ser tratadas não como meras doenças, à base de comprimidos, mas como manifestações físicas e psicológicas de um processo de cura e crescimento que envolve todo o ser.

os olhos veem

Estamos num momento decisivo do processo. No começo eram indícios vagos e confusos, mensagens sutis vindas do inconsciente que inquietaram o ego, forçando-o a sair de seu quartinho. O ego começou a desconfiar que havia algo além do que sabia sobre si mesmo e passou a se investigar. Vieram as dificuldades iniciais, mas o ego persistiu em seu caminho de autodescobertas. Vieram novas dificuldades e a coisa ficou mais séria. É como se a vida dissesse: “Não era você quem queria ver o que há do outro lado de sua dúvida? Pois agora veja.”

Diante do perigo, o ego hesita. Ele pode recuar, levando a pessoa a se convencer de que essas coisas não têm importância, que é melhor não cutucar a onça… Infelizmente, às vezes basta um vislumbre do que estamos por descobrir sobre nós para nos afastarmos do caminho.

A jornada da autorrealização não é para fracos. Somente os que vencem o medo de se conhecer podem realizar a si próprios. Neo já sentiu esse medo quando tentou andar pelo parapeito do prédio e quase caiu. Sentiu pavor quando foi torturado pelos agentes. E, diante da estranha proposta de Morfeu, parou para avaliar se valeria mesmo a pena prosseguir…

O herói decidiu pagar para ver e tomou a pílula vermelha. O ego decidiu prosseguir e aceitou ver o que vinha do escuro do inconsciente. Isso fez o herói finalmente se confrontar com a realidade. E a visão dela foi tão dolorosa que o ego não resistiu e começou a morrer. E não poderia ser de outro jeito. Da mesma forma que os olhos de Neo doem por ele nunca ter usado antes, nós também sofremos por estarmos, pela primeira vez, olhando diretamente para dentro. Mas o que exatamente pode ser tão doloroso assim em nós mesmos? Resposta: tudo aquilo que incomoda e envergonha – mas que agora somos forçados a admitir como parte integrante de nossa personalidade.

Assumir que somos fracos, mesquinhos, mentirosos, medrosos, covardes, ciumentos, violentos, desonestos, enfim, assumir coisas que sempre julgamos inexistentes em nós é tarefa das mais difíceis. O ator principal tem de descer do pedestal de sua autoimportância, desculpar-se com a plateia e apresentar a ela os outros atores da peça, que ele antes desprezava ou sequer conhecia. O ator se sente humilhado.

Na vida real a plateia não são as pessoas ao redor, mas a nossa própria consciência. Podemos até enganar os outros, mas agora já não podemos seguir mentindo para nós mesmos. O ego está frente a frente com outros aspectos do ser e é impossível prosseguir ignorando-os, pois agora eles se comportam feito funcionários em greve que simplesmente paralisam as atividades e impedem o funcionamento normal da empresa, levando o ego-gerente ao desespero. A pessoa estará impossibilitada de viver sua vida normal enquanto se mantiver o caos psíquico.

Só há uma saída: o ego tem de assimilar o que vem do inconsciente e integrar essas novidades à consciência. No início é doloroso, mas logo os conteúdos assimilados fazem o ego mais forte e a psique finalmente se equilibra.

Por isso que é difícil para o indivíduo se desgarrar da sociedade: a floresta lá fora é escura. Poucos avançam quando o ego é chamado ao confronto com seus aspectos sombrios. O mais comum é tomar a pílula azul e tratar de esquecer certos assuntos. Os horizontes de quem não arrisca são menores, sim, mas no mundo das ilusões ao menos não temos de encarar a incômoda verdade sobre nós mesmos.

No entanto, sempre há quem tome a pílula vermelha, testando seus limites e assumindo todos os riscos da aventura de se conhecer. Fazem isso porque têm coragem, sim, mas também porque sentem que não podem deixar de fazê-lo, que morrerão frustrados se desistirem nesse ponto. Então dão o passo à frente.

Você já ouviu falar de Alexandre o Grande? Ele foi rei da Macedônia (atual região da Grécia) e viveu no século 4 antes da era comum. À frente de seus soldados conquistou reinos da Europa, África e Ásia, promovendo uma intensa troca cultural entre Ocidente e Oriente. Alexandre é considerado um dos maiores estrategistas militares da história. Uma das lendas a seu respeito diz que ele desembarcava seu exército na praia inimiga, retirava dos barcos as armas e a comida, reunia os soldados à beira-mar e mandava atear fogo aos próprios navios. Então, diante das chamas, gritava para a tropa: “Se quiserem voltar para casa e rever suas famílias, só temos uma opção: vencer a guerra e voltar nos barcos do inimigo.”

História interessante… Mas o que isso tem a ver com o processo de autorrealização? Tudo. Alexandre, ao queimar os próprios navios, tomava sua pílula vermelha, ou seja, tomava uma atitude drástica em relação a seu destino, obrigando a si mesmo a avançar e dar o melhor que pudesse. Para voltar para casa, seus soldados não tinham outra opção a não ser dar tudo de si, lutar com todas as forças que tivessem e algo mais. Eles eram obrigados a se superar. Por isso venciam.

Neo, ao aceitar a pílula vermelha, não age com excesso de confiança ou soberba. É justamente o contrário: ele está assustado e tem medo. Se soubesse o que o aguarda, talvez preferisse a pílula azul, como logo veremos. Nada lhe garante sucesso, mas ele, sentado naquela poltrona, parece escutar a intuição lhe sussurrar ao ouvido que sim, ele deve prosseguir, que somente assim saberá onde vai dar a toca do coelho. Somente dando esse temível salto no escuro é que o herói conhecerá o fim de sua própria história.

mais crises

Neo acorda de seu sono profundo. Sente-se melhor. Morfeu lhe explica: “Você acredita que o ano é 1997, mas é mais provável que estejamos em 2197.” Neo diz que isso é impossível. Morfeu continua: “Eu prometi a verdade a você e a verdade é que o mundo em que você vivia era uma mentira”.

Neo e Morfeu são conectados a um programa de realidade virtual onde Neo fica sabendo sobre a Inteligência Artificial, a guerra, a Matrix e o que aconteceu com o planeta. Neo reluta em aceitar que toda sua vida foi apenas um sonho gerado e mantido por máquinas pensantes. Angustia-se e é retirado do programa. Ele vomita e vai para seu aposento descansar. Aos poucos se recupera do choque e começa, finalmente, a aceitar a verdade.

Os acontecimentos que nos fazem encarar a verdade sobre nós mesmos têm força suficiente para desestruturar a vida. A verdade está à frente e não podemos mais fingir que ela não existe. Ou podemos?

Assim como Neo, mesmo desperto da Matrix, ainda reluta em aceitar a verdade, nós às vezes demoramos a reconhecer aquilo que já é evidente. Por quê? Simplesmente porque o velho ego ainda não morreu de todo e seus espasmos continuam.

Neurose. É o nome dessa tensão entre nossa verdadeira natureza e os interesses superficiais do ego ou os papéis a que sociedade nos obriga. As neuroses se manifestam porque já não é mais possível manter no inconsciente certos aspectos do ser, e ainda assim a personalidade consciente insiste em não reconhecê-los. Quanto mais tempo se prolongar essa tensão, mais a pessoa sofrerá até tornar a vida algo muito difícil de suportar.

Devemos ver a neurose com olhos mais otimistas – ela é um sinal de que estamos lidando com nossos conteúdos inconscientes, com a nossa própria natureza. Isso quer dizer que a psique está tentando se equilibrar entre seus opostos. Passamos maus bocados toda vez que o ego demora a reconhecer o que precisa ser reconhecido, sim, mas tudo isso faz parte do processo. O ego necessita de tempo para assimilar o que descobriu. Os mecanismos autorreguladores da psique têm sua sabedoria própria e por isso as descobertas do mundo interior se fazem aos poucos, para podermos digerir bem as novas informações, cada uma em seu devido tempo.

Morfeu tem de aguardar Neo se recuperar do choque causado pelo desligamento da Matrix para, só então, levá-lo a um programa de realidade virtual a fim de que ele entenda o que houve com o planeta e a humanidade. E ainda assim, com todos esses cuidados, Neo sofre bastante e precisa de mais tempo para aceitar, chegando a perguntar a Morfeu se ainda pode voltar à Matrix.

Nós também demoramos a aceitar o que realmente somos. A vida, porém, sempre trata de nos mostrar a verdade. Certos comentários a nosso respeito nos irritam? Aí está uma boa pista a seguir. Se tais comentários nos tiram do sério, talvez eles queiram nos dizer algo importante sobre quem somos mas receamos admitir. Quem está seguro em seu caminho não tem porque se incomodar com o que falam, mas, por outro lado, quem esconde algo de si mesmo será constantemente lembrado disso através de outras pessoas que, de alguma maneira, conscientes ou não, porão o dedo bem na ferida.

Outra boa pista é atentar para o que nos incomoda profundamente nos outros. Como projetamos inconscientemente aquilo que é incômodo dentro de nós, é nos outros que o veremos claramente e não em nós mesmos. Ter de conviver com essas pessoas parece um castigo, mas, na verdade, é uma ótima oportunidade para reconhecer nossas falhas. A agressividade que não reconhecemos em nós mesmos, nós a detectaremos em alguém agressivo, e isso poderá nos incomodar a tal ponto que não conseguiremos conviver com tal pessoa, pois ela sempre nos faz lembrar do que somos mas queremos esquecer.

O ego imaturo não permite que esses conteúdos inconscientes sejam reconhecidos pela consciência, e assim eles prosseguem agindo na surdina, influenciando a personalidade. Mas um ego maduro esquece o orgulho e reconhece, através de suas projeções, as falhas de sua própria personalidade. O autoconhecimento faz com que todas as pessoas sejam mestres para nós, nos ensinando o que precisamos saber sobre nós mesmos. Mas para isso precisamos de autocrítica e humildade em relação a nós, e de paciência e compreensão em relação aos outros. Precisamos treinar essas capacidades em nós para podermos praticá-las com menos dificuldade sempre que a vida exigir que avancemos ao nível seguinte de autorrealização.

Neo treina com Morfeu        

Após finalmente aceitar a verdade e se recuperar, Neo inicia seu treinamento para saber agir na Matrix. Ele é inserido num programa que simula a realidade da Matrix e consegue superar o mestre. Depois, aprendendo a saltar prédios, falha e cai, despencando sobre o asfalto.

O percurso rumo à autorrealização envolve várias situações em que será preciso admitir que o que se vivia era apenas uma ilusão. Para evitar lidar com a verdade, nós fugimos de nós mesmos. Essa fuga constante requer muita energia por parte do ego: ele se esforça a cada minuto do dia para manter as aparências, não somente para os outros, mas principalmente para si mesmo.

Nós fingimos que somos o que não somos e reprimimos o que na verdade sempre fomos. Ignoramos a voz interior que nos chama para uma conversa, e quanto mais ela insiste, mais abafamos sua voz com qualquer coisa que estiver à mão: trabalho, diversão, compras, sexo, drogas…

Com o tempo, essa tática acabará obstruindo o fluxo natural do crescimento e a crise virá num vendaval que arrancará as máscaras que o ego construiu com tanto esmero para si. O mundo de superficialidades se mostrará um cenário de papelão, os relacionamentos perderão a graça e muitas coisas que ocupavam tanto espaço na vida deixarão de fazer sentido. Teremos de admitir que vivíamos uma mentira, uma grande Matrix criada e mantida por nós mesmos, em nossa ânsia de fugir do que nos chamava.

É um momento perigoso para o herói. Para se proteger dos escombros de seu mundo que desmorona, muitos se refugiam em qualquer lugar que lhes acene com o mínimo de segurança. Muitos recorrem à religião ou às drogas. Há também aqueles que sucumbem ao cinismo e adotam uma postura sarcástica perante a vida, como se tivessem sofrido uma grande decepção amorosa. Há também aqueles que perdem o prumo e têm sua vida desorganizada a tal ponto que nunca mais a organizam de forma satisfatória. Há os que enlouquecem. E há os que desistem de viver.

Descobrir que a própria vida é uma mentira pode ser insuportável. Mas muitos conseguem assimilar a descoberta e prosseguir com suas vidas sem se entregar a novas mentiras. Buscam e encontram dentro de si mesmos o sentido maior para o sofrimento por que passam, e assim superam a crise. A experiência da dor e da superação os torna mais fortes e capazes, e eles prosseguem cada vez mais firmes rumo à concretização de suas potencialidades.

Neo aprende a lutar nos programas de simulação e termina por vencer o próprio mestre. Após nos livrarmos das mentiras que só consumiam nossa energia, podemos agora, como Neo, fazer o que realmente importa, nos capacitando a viver de modo verdadeiro, investindo em nossas vocações e lutando pelos sonhos mais íntimos. Sem o peso das mentiras que usávamos para nos proteger de nós mesmos, agora somos mais ágeis, nos movimentamos melhor pela vida. Estamos mais preparados. Mas o aprendizado não terminou. Falta, por exemplo, saber saltar prédios.

Morfeu, o princípio yang

Se Trinity representa valores mais femininos, Morfeu é a personificação do masculino na psique do herói. Morfeu é o princípio yang da personalidade: força criativa, liderança, incentivo, agressividade e capacidade de realizar. Morfeu é o líder da tripulação e foi ele quem libertou os colegas. Foi ele quem descobriu Neo na Matrix e primeiramente acreditou que ele era o Predestinado. Foi Morfeu quem enviou Trinity para contatar Neo. Foi ele quem mostrou a dolorosa realidade para Neo. Agora é ele quem o treina para lutar contra a Matrix.

O herói precisa desse aspecto Morfeu do ser. Todos nós precisamos crer que somos capazes senão nada conseguiremos realizar. Precisamos buscar nossa própria força para fazer o que devemos fazer. É esse importante aspecto da psique que nos mantém acreditando em nossos sonhos, por mais improváveis que sejam. Às vezes, quando tudo diz que não conseguiremos, é justamente o Morfeu que existe em nós que temos de localizar e fazer agir, pois ele não medirá esforços para lutar por nós. Ele é feito da inabalável fé que diz que nós somos predestinados.

A natureza agressiva do aspecto yang é bem visível nos homens, criados desde bebês para lidar com valores como força, liderança e empreendorismo. Mas eles precisam equilibrá-los com os valores femininos de sua psique senão se tornam seres psicologicamente desajustados, incapazes de levar adiante o processo de autorrealização.

Com as mulheres ocorre o mesmo, de modo inverso. Elas precisam de sua contraparte masculina para se equilibrar e serem mais coesas. A vida moderna exige das mulheres força e capacidade de liderança nos negócios, mas infelizmente muitas ficam exageradamente possuídas pelos valores masculinos e, assim como ocorre com os homens quando se deixam possuir demais pelos valores femininos, as mulheres também se tornam psicologicamente desequilibradas.

Confiar na vida e no próprio processo de crescimento é uma qualidade vital, forjada principalmente nos fracassos, pois são as derrotas que revelam os que são dignos de prosseguir no caminho. Nas situações difíceis, quando as incertezas e o sofrimento nos abatem, quando nada dá certo, lembre-se das lendas e dos mitos: as terríveis provas do herói jamais são à toa. É justamente o sofrimento que faz o herói amadurecer e se transformar, conseguindo assim, mais tarde, realizar o que antes lhe seria impossível.

É preciso confiar no processo, e isso inclui confiar inclusive no sofrimento pessoal, pois ele tem um propósito que mais adiante saberemos entender. É esta a lição de Morfeu: confie na vida, acredite em você e faça.

negar os instintos

Os tripulantes estão reunidos para comer. Dozer explica que as refeições da nave não são gostosas, mas são feitas de proteína unicelular, combinada com aminoácidos, vitaminas e minerais sintéticos, e que isso é tudo que o corpo precisa. Mouse, o mais novo, discorda: “Não é tudo o que o corpo precisa.” A seguir, Mouse comenta com Neo sobre a mulher de vestido vermelho do programa de simulação da Matrix. Afirma que foi ele quem o construiu e pergunta se Neo não gostaria de um encontro a sós com a mulher. Switch graceja: “O cafetão digital em ação…”.

“Não ligue. São hipócritas”, prossegue Mouse. “Negar nossos instintos é negar o que nos faz humanos”.

A espécie humana é apenas uma ramificação da longa cadeia evolutiva que teve início com organismos minúsculos e se diversificou pelo planeta em milhões de espécies. A maioria desapareceu pelo caminho, e entre as que chegaram vivas nos dias de hoje está o Homo sapiens, descendente direto de outras espécies de hominídeos que, por sua vez, descenderam dos primeiros primatas. Nossa espécie adquiriu elevado grau de autoconsciência e, por isso, deixou de ser guiada unicamente por seus instintos, construindo cultura. Sua mente refinou-se e adquiriu habilidades que levaram-na a dominar outras espécies, e agora seu impulso yang de conquistas segue rumo ao espaço sideral.

O Homo sapiens é uma espécie conquistadora, mas não tem poder sobre a Natureza e sequer consegue controlar a si mesmo. Nossos cientistas desvendam os segredos do Cosmos, mas apesar de todo o conhecimento adquirido, o ser humano permanece um grande mistério para si próprio.

A mentalidade científica nos fez pedantes e hoje nos cremos separados da Natureza, olhando para tudo ao redor com ar de superioridade. Mas o buraco é mais embaixo. Apesar de toda a cultura que construímos e de todos os avanços tecnológicos, ainda somos animais e, por isso, feitos de instintos. Continuamos fazendo parte da Natureza, assim como nossos peludos antepassados milhões de anos atrás.

Ironicamente, é a própria ciência que nos faz cair desse pedestal de soberba. Primeiro descobrimos que somos primos dos macacos e formamos com eles uma única família chamada primata, e depois as pesquisas revelaram que 97% de nossa constituição genética é igual a de alguns deles. Isso tudo contradiz nosso sentimento de superioridade e a crença de que, por sermos dotados de razão e pensamento abstrato, não mais fazemos parte da Natureza nem somos guiados por instintos como os bichos.

Os instintos são nossa ligação direta com a Natureza, inclusive a natureza humana. Negá-los é negar as nossas raízes e fugir do que somos. Em Matrix, os humanos rebeldes resistem a fazer parte do mundo das máquinas e, por essa razão, valorizar as características humanas faz parte da resistência. Máquinas não têm instintos (pelo menos ainda), e, como veremos quando o agente Smith expuser suas opiniões sobre os humanos, elas de certa forma se orgulham dessa autonomia em relação aos impulsos naturais. Para Mouse, porém, admitir os próprios instintos é justamente um modo de se diferenciar do mundo mecânico e previsível das máquinas e elevar a categoria humana. Reconhecer a própria humanidade é uma questão de sobrevivência.

Para que haja equilíbrio psíquico é preciso reconhecer a dimensão instintiva do ser e assimilar o que é natural em nós, aquilo que herdamos e transmitiremos a nossos descendentes, queiramos ou não. Se, ao contrário, reprimimos os instintos no inconsciente, nas regiões escuras que a luz da consciência não alcança, eles se desenvolvem sem o olhar crítico da consciência e ganham força para influenciar o comportamento do indivíduo de modo negativo e até destrutivo.

A discussão entre Mouse e os outros tripulantes pode ser vista como uma reedição da velha discussão sobre corpo e espírito. Apoc, Switch e Dozer criticam a sexualidade do jovem Mouse, certamente pensando que um humano liberto da Matrix deve concentrar sua energia no trabalho de salvar outros humanos, nas missões dentro do sistema e na luta contra as máquinas. É como se o interesse pelo sexo pudesse lhes desviar da prioridade e demonstrasse fraqueza de caráter.

Ideias desse tipo são comuns nos caminhos do autoconhecimento, principalmente quando há algum tipo de religiosidade envolvida. Para alguns a energia sexual deve ser reprimida para que a pessoa se concentre apenas no caminho da salvação. Mas, afinal, que diabo de salvação é esta que exclui algo tão natural e legítimo como o sexo?

Não podemos cair no erro de ter vergonha do corpo e dos instintos apenas porque almejamos nos tornar pessoas mais equilibradas ou espiritualizadas. Corpo e espírito são dimensões através das quais o ser atua e reprimir um ou outro sempre traz problemas. A consciência, mesmo ampliada, não deve se desgarrar de sua base instintiva sob o risco da psique se desequilibrar. O corpo tem suas necessidades e elas devem ser atendidas de forma saudável, caso contrário ele adoece. Não podemos nunca esquecer que também somos corpo e temos de entender sua linguagem, suas necessidades e nos tornarmos íntimos dele.

Sidarta também teve de entender isso antes de se tornar o Buda. Após anos de jejuns e privações numa severa vida de austeridade, ele arrasta seu fiapo de corpo sujo e mal-cheiroso até o rio e se banha. Depois aceita a tigela de arroz que lhe oferecem. Seus discípulos o abandonam, julgando-o traidor da causa ascética. Sidarta limpa seu corpo, aplaca sua fome e tem prazer nisso. Ele então entende que se sua antiga vida de príncipe era um exagero, a vida de negação ao corpo era o outro extremo do exagero. Para atingir a iluminação, ele precisou transcender aos dois extremos.

A sexualidade é um instinto que nos liga à nossa natureza animal. Se a reprimirmos, cedo ou tarde ela nos cobrará tal negligência, irrompendo do inconsciente e manifestando-se de forma descontrolada. Devidamente reconhecida e assimilada pela consciência, a sexualidade pode ser vivida de forma sadia, ampliando ainda mais a consciência de si, o mesmo ocorrendo com outros instintos como a fome, a autopreservação, a busca de significado e o instinto criativo, que leva à arte. É possível usar até mesmo a sexualidade para alcançar novos níveis do espírito.

A energia sexual nos faz sentir mais vivos, mais integrados com as leis naturais. Enquanto há sexo, há vida. Por isso é um alívio ver sexo em Matrix. Aplausos para Mouse e sua linda loira de vermelho. Um brinde à dança sensual dos corpos na festa de Zion. Viva o tesão urgente de Neo e Trinity no elevador!

o Oráculo

Mas que diabos um oráculo, coisa tão arcaica e misteriosa, está fazendo num filme como Matrix, num ambiente tão moderno e tecnológico? O Oráculo é um dos personagens mais intrigantes do filme. Sua participação na trama é fundamental, e por isso vale a pena nos debruçarmos um pouco mais sobre ele.

Oráculo é um instrumento (ou alguém ou um lugar) através do qual formulamos perguntas e recebemos respostas para as mais variadas questões. Mas de quem ou de onde vêm as respostas? De alguma divindade, de algum aspecto mais sábio de nós mesmos ou da própria Natureza, conforme a crença do consulente. Eles são comumente usados para esclarecer fatos do presente, para previsões do futuro ou como instrumento de autoinvestigação psicológica. A pessoa se concentra, formula a questão e obtém a resposta. Enquanto é processada a ritualística do oráculo, qualquer que seja ele (tarô, I Ching, runas etc.), o silêncio age em nossa mente, isolando-nos das preocupações cotidianas, e nos põe em contato com o essencial da questão.

Oráculos são utilizados por diversas culturas há milhares de anos. Como surgiram não se sabe ao certo, mas olhando para a evolução histórica da consciência, é óbvio que não há necessidade de oráculo enquanto a espécie humana ainda está no estágio de indiferenciação psíquica, ou seja, ainda não existe a autoconsciência e, por isso, não há a separação conceitual entre o eu e o mundo exterior. Nesse ponto do processo evolutivo hominídeos e Natureza coexistem num estado de total comunhão mística e tudo é uma coisa só, um imenso inconsciente. Como não existe ainda um ego para avaliar e entender o mundo, também não há necessidade de comunicação.

Entretanto, à medida que a espécie evolui, a consciência emerge e se diferencia do profundo oceano inconsciente, feito uma frágil ilhota, e a realidade se divide entre o eu e o não-eu. A espécie começa a se entender de forma distinta da Natureza e, consequentemente, pela primeira vez “olha” para o mundo e o interpreta. A Natureza, em suas diversas formas e manifestações, é para esses hominídeos algo absolutamente imenso e assombroso, muito além da compreensão. Deve ser mais ou menos nesse ponto que são desenvolvidas as primeiras formas de oráculos. Nossos antepassados, cada vez mais sentindo-se diferenciados da Natureza (ou expulsos do paraíso, como prefere a linguagem mitológica cristã), sentem necessidade de criar instrumentos para se comunicar com ela e entender seus humores e, assim, começam a “ler” a Natureza no comportamento dos bichos, no movimento das nuvens, nas folhas das árvores, nos sulcos da terra e, dessa forma, compreendendo o funcionamento do mundo, podem se proteger das feras, prever eventos e programar migrações.

Os primeiros oráculos são isso: a observação e interpretação primitiva do mundo em toda sua imensidão e mistério. Mas essa observação tem um caráter sagrado, numinoso, pois a Natureza aqui é uma divindade viva e, como tal, é reverenciada com o mais profundo respeito. A Natureza é a Mãe Terra, a generosa doadora da vida e sua mantenedora, o lugar de onde vêm e para onde voltam todos os seres.

Quanto mais a consciência se diferencia do inconsciente e o ser se firma em sua individualidade, mais a espécie se distingue da Natureza, entendendo-se como algo separado. Os oráculos surgem então, digamos assim, como um paliativo para compensar aquele perfeito estado natural de interação entre a espécie e o mundo, estado que fica irremediavelmente para trás com o advento da autoconsciência.

Atualmente, utilizamos oráculos modernos como as medições meteorológicas por aparelhos. Ah, mas isso é ciência!, você pode dizer. Sim, é ciência, mas só difere dos oráculos primitivos por envolver tecnologia, pois a motivação e os resultados são os mesmos. Os primeiros instrumentos oraculares eram um modo primitivo de fazer ciência, e nem por isso menos válido que o atual. Por estarem muito mais próximos da sabedoria natural do planeta, nossos antepassados sabiam se comunicar com ele. Nós, civilizados, é que nos afastamos tanto da Natureza que agora, para entendê-la, apelamos a uma parafernália de instrumentos que nem sempre traduzem corretamente os humores do planeta. Além disso, a Natureza perdeu seu caráter sagrado, e é por isso que não vemos nenhum problema em desrespeitá-la e violentá-la todos os dias.

Para entender a Natureza, nossos cientistas, vestidos em seus caros paletós e do alto dos pedestais acadêmicos, gastam fortunas construindo aparelhos sofisticados. Para fazer a mesma coisa, nossos antepassados cutucavam a terra ou observavam o comportamento dos pássaros.

oráculos da alma

Num determinado momento, nossos antepassados percebem que os oráculos podem ajudá-los não somente a entender o funcionamento do mundo como também compreender a eles mesmos. Descobrem que, compreendendo melhor sua própria natureza individual, podem viver melhor e mais harmonizados com o mundo. Nada mais natural, pois se os oráculos servem para entender a Natureza e, da mesma forma que plantas, nuvens e bichos, nós também fazemos parte dela, por que os oráculos não poderiam nos auxiliar a desvendar a nós mesmos?

Foram então criados oráculos, digamos, artificiais, voltados para temas relativos à alma, como o tarô moderno, que é uma evolução das cartas que já circulavam no século 14. Contrário ao que muitos pensam, a função principal do tarô não é dizer se vamos casar com o Adalberto ou se vamos passar no concurso do Banco do Brasil. Ele pode até nos responder sobre questões como essas, mas, na verdade, a estrutura de suas cartas nos revela algo mais profundo…

Analisando o tarô à luz do que hoje se sabe sobre a psique e seus arquétipos, suas cartas revelam uma espécie de mapa do caminho de autocompreensão, feito de imagens arquetípicas que funcionam como símbolos ou marcos desse caminho, indicando experiências pelas quais temos de passar durante a vida. As cartas do tarô são, assim, uma metáfora do processo de autorrealização, um espelho do mundo inconsciente.

As pessoas que possuem sensibilidade e intimidade com o mundo simbólico podem ler a vida através das cartas ou dos hexagramas do I Ching, assim como nossos antepassados liam a Natureza por suas manifestações. Em muitas culturas os sonhos também são vistos como oráculos, e ainda hoje os governantes consultam pessoas para a interpretação de seus sonhos. Hoje, a psicologia do inconsciente, principalmente a junguiana, entende os sonhos como a autoexpressão da psique, um drama que se desenrola do ponto de vista do inconsciente e que visa levar ao ponto de vista do ego informações, em forma de símbolos, sobre o eu total, promovendo assim a autorregulação psíquica. Vistos dessa ótica, os sonhos são, de fato, oráculos, pois através deles podemos ler a natureza humana.

Os oráculos, no século 20, se tornaram populares no Ocidente por conta do modismo esotérico que leva as pessoas a comprar tudo que lhes promete fornecer o sentido que falta às suas vidas. É mais uma das tantas armadilhas de nossa cultura consumista, pois o sentido da vida é algo que se descobre por si só e não que se compra na lojinha mística para pagar de três vezes no cartão. O fato de se consultar um oráculo não significa, por si só, que se está apto a captar o sentido da mensagem recebida. Para isso a pessoa deve se livrar dos bloqueios e autoenganações que a impedirão de compreender, verdadeiramente, a resposta do oráculo.

No filme Matrix, o Oráculo soa como um contrassenso: num mundo supertecnológico e racional que importância teria uma senhora vidente, cheia de mistérios e profecias? Muita importância. O Oráculo no filme representa o sagrado em nossas vidas, o numinoso, um mistério que é maior e mais antigo que nós e pelo qual nutrimos profunda fé e respeito. Pode ser uma religião formal ou uma crença religiosa particular. Pode ser o amor, a arte ou uma conexão intuitiva com a Natureza, o Cosmos, a humanidade… Mas sempre será algo diante do qual baixamos a cabeça reverentes – justamente porque nos sentimos ligados a esse mistério maior.

O sagrado é obscuro, misterioso, arredio ao intelecto e jamais o definiremos com exatidões científicas, mas sem ele podemos ficar à deriva no grande caos da existência. Perder de vista nossos valores mais sagrados nos desequilibra. Que seria dos resistentes de Matrix sem a confiança no Oráculo? Eles o consultam e respeitam suas mensagens e previsões porque ele é a âncora com o sagrado em suas vidas, e é isso que os mantêm fortes, unidos e esperançosos.

voltando à Matrix

Morfeu leva Neo de volta à Matrix para consultar o Oráculo. Durante o percurso pelas ruas, dentro do carro, Neo olha silencioso pela janela e comenta que costumava comer num restaurante daquela rua.

Já passamos pelo choque de descobrir a verdade sobre quem somos. Passamos também pela crise que envolve esse momento delicado: adoecemos, tivemos a vida virada de cabeça para baixo, fomos tentados a voltar atrás e, por fim, assimilamos bem tudo que descobrimos sobre nós mesmos. Agora estamos recuperados do choque e aos poucos a vida retoma seu curso normal. Voltamos ao cotidiano sabendo mais sobre quem somos e o que queremos. Estamos mais fortes e mais equilibrados.

No entanto, como a evolução da consciência se faz em espiral, será inevitável que passemos pelo mesmo ponto, num outro nível. Isso significa que poderemos ser envolvidos novamente nas mesmas situações de antes e, se não estivermos suficientemente preparados, haverá um grande perigo de cairmos em tentação e falharmos.

Na Matrix, o carro segue pelas ruas e Neo observa em silêncio a cidade, as pessoas nas calçadas… Parece vagamente saudoso de sua vida anterior, esse tempo em que ele ainda não conhecia a verdade, e chega a comentar que comia muito bem num restaurante daquela rua, certamente um macarrão ao molho bem mais gostoso que a ração servida na nave.

Aqui, do lado de fora da tela, na vida real de cada um de nós, também passamos por situações como a de Neo, obrigados a vivenciar novamente situações que vivíamos antes do despertar, lugares e pessoas que parecem pertencer a uma época anterior de nossas vidas. Isso funciona como teste para o ego, que se vê envolvido pelo clima dos antigos valores.

É comum que o ego sinta certa nostalgia de quando não tinha tantas responsabilidades para consigo mesmo, um tempo sem compromisso com o autoconhecimento. Podemos comparar com a sensação que nos passam as crianças, elas e sua inocência, sua despreocupação com as coisas do mundo, algo que nos dá uma espécie de saudade. Mas isso faz parte da jornada, e após despertos, precisamos voltar ao mundo para viver nossa vida, com toda a intensidade que for necessária, e isso nos obrigará a lidar com as mesmas situações de antes. Podemos ir aos mesmos lugares e estar com as mesmas pessoas de antes, e até fazer tudo que fazíamos. Agora, porém, tudo é diferente, pois nós estamos diferentes. Nossa consciência se encontra num outro nível da espiral.

entortando a colher

Enquanto aguarda ser atendido, Neo observa uma criança careca vestida como monge budista. Ela entorta uma colher sem tocá-la e depois lhe pede que faça o mesmo, dizendo: “Não tente entortar a colher. Isso é impossível. Em vez disso, tente apenas perceber a verdade.”

“Que verdade?”, pergunta Neo, curioso.

“Não existe colher. Então verá que não é a colher que entorta. É você mesmo.”

Entortar a colher é o primeiro feito extraordinário de Neo na Matrix. Aliás, frente aos que ele ainda realizará, este é bem modesto. Mas o que importa aqui é que, pela primeira vez, Neo quebra as regras, ou seja, contraria as leis que regem o mundo na Matrix. Ele, porém, só realiza este pequeno milagre porque compreendeu, de verdade, que ele e a colher são a mesma coisa, a mesma realidade. Ele não apenas concordou com a ideia e pensou que pode ser assim. Não. É algo mais profundo: ele de repente soube que é verdade.

Há milhares de anos que os místicos de diversas tradições, como o Taoísmo e o Budismo, insistem que a separação que vemos entre as coisas é apenas aparente. Na verdade, tudo que existe, objetos, pessoas, animais e plantas, tudo está unido de uma forma que nossos sentidos não captam, e é justamente por causa dessa unicidade que os místicos sempre ensinaram: para mudar o mundo, mude a você mesmo.

Se nós e o mundo que nos cerca somos a mesma coisa, então o que fizermos a nós estaremos fazendo ao mundo. Se tudo que existe está interconectado, então nada escapa à ação de algo. Se Neo e a colher são a mesma coisa, não é necessário entortar a colher: basta que Neo mova a si mesmo.

Essa verdade, que era exclusiva do misticismo, passou a ser compartilhada no século 20, por incrível que pareça, pela ciência. Descobertas em diversas áreas parecem concordar com a ideia da unicidade cósmica. Na física, os cientistas, pesquisando o estranho mundo do interior do átomo, constataram que as partículas, de algum modo ainda obscuro, se comunicam entre si. A física quântica chocou os próprios cientistas ao concluir que não existe a tal neutralidade científica, pois para se determinar a profunda natureza de qualquer objeto, o observador deve incluir na análise o próprio ato de observar, o que inevitavelmente envolve observador e observado no mesmo fenômeno. Em outras palavras: a realidade em si não existe. O que existe é a nossa interação com ela.

Outras descobertas rumam para a mesma conclusão. Na ecologia já se trabalha com a teoria que a Terra é um imenso organismo vivo, dotado de inteligência própria, e tudo que nela existe, seres, plantas e minerais, são como órgãos desse imenso organismo. A psicologia, com Jung, apresentou ao público a ideia de inconsciente coletivo e sincronicidade, ou seja, a união de todos os inconscientes, através do qual pode se processar a comunicação e os acontecimentos se relacionam significativamente entre si em forma de coincidências.

Tudo se influencia porque tudo faz parte de uma coisa só. Essa verdade cabe bem no mundo globalizado de hoje, onde as economias dos países se afetam umas às outras instantaneamente e as pessoas estão interligadas por seus computadores. A tecnologia parece confirmar, à sua maneira própria, o que as milenares tradições místicas sempre afirmaram: tudo é uma coisa só.

Se tudo está mesmo interconectado, inclusive as pessoas e suas mentes, então seria possível fazer o que Neo fez com a colher. E por que eu tento e não consigo?, você pode perguntar. Certamente porque você, em seu íntimo, não acredita nisso, não sabe disso. Seria fácil demais se nos bastasse dizer para nós mesmos que podemos desviar aquela bola para o gol para que, efetivamente, nós a desviássemos. Infelizmente, isso não basta. “Não pense que é, saiba que é”, diz Morfeu para Neo a certa altura do filme. Está justamente nesse detalhe a chave do enigma. Precisamos não apenas concordar com essa verdade, mas vivê-la profundamente, em nossa mente, em cada átomo de nosso corpo. Precisamos saber que é real em vez de apenas concordar que pode ser.

Em outra cena Morfeu ensina Neo a saltar entre prédios. Tudo que ele precisa é saber que aquilo não é real, ou melhor, que ele está num programa e pode burlar suas regras. Neo se concentra, diz para si mesmo que está entendendo, corre e salta, todo confiante. E cai lá de cima, direto no asfalto. Por que não conseguiu? Porque sua mente ainda funcionava dentro das tradicionais leis físicas, e é como se elas, no instante do salto, lembrassem a seu corpo que a gravidade existe e ela sempre o levará para baixo.

Mudarmos a nós mesmos para mudar o mundo – esta é a lição que Neo começa a aprender com a garotinha. A mesma lição com que todos nós teremos de lidar na jornada em busca da completude.

o mistério do Oráculo

O Oráculo examina Neo e diz que ele tem o dom, mas parece esperar por algo, talvez sua próxima vida. Neo ainda acha que não é o Predestinado.

Quando Neo ainda se recupera em seu aposento na nave, tentando assimilar a terrível verdade que lhe foi revelada, Morfeu lhe conta sobre o surgimento da Matrix e a profecia do Oráculo que diz que um dia alguém surgirá para libertar a humanidade de sua prisão mental. Depois diz que embora eles, os resistentes, não costumem despertar alguém após certa idade porque a mente simplesmente se recusa a aceitar a realidade, ele decidiu correr o risco com Neo porque acredita que sua busca (a dele, Morfeu) finalmente terminou.

Neo fica encucado com essa história de Predestinado. Depois Tank, o operador da nave, comenta: “Cara, se você for mesmo quem dizem que é…” Neo fica cada vez mais confuso. Por fim, Morfeu diz que irá levá-lo para que o Oráculo o veja. Essas atitudes mostram que os rebeldes valorizam bastante o Oráculo e têm por ele forte respeito.

Enquanto seguem no carro para o encontro, Neo pergunta a Trinity sobre o que lhe dissera o Oráculo. O assunto parece incomodá-la e ela não responde. O mistério em torno do Oráculo aumenta.

Neo e Morfeu chegam ao prédio. É um lugar simples e um tanto sujo. Tomam o elevador, compenetrados, e à porta do apartamento Morfeu lembra: “Eu disse que o levaria até a porta. Você é quem tem de abri-la.” Neo pensa um pouco. O espectador também: o que acontecerá dessa vez? Neo estica o braço, mas a porta se abre antes que ele a toque. Mais tarde entenderemos que Neo ainda não está preparado para aceitar a si mesmo, para abrir a porta que o levará à sua verdade mais íntima.

Uma mulher os saúda e diz que logo serão atendidos. Na sala crianças brincam de entortar e fazer levitar objetos: são mentes com potencial para despertar da Matrix. Elas já sabem manipular os códigos do sistema e, por esse motivo, alteram as leis físicas da Matrix.

Quando enfim Neo se encontra com o Oráculo, descobre-se que o Oráculo não tem nada demais. É uma senhora negra, de meia idade, que o atende na cozinha, de avental, e está ocupada com os biscoitos no forno. Simpática, ela acende um cigarro e dá um gole em algo que lembra uma caipirinha caseira.

“Não se preocupe com o vaso”, ela diz. Neo não entende: “Que vaso?” Quando se vira para procurá-lo, seu braço bate num vaso sobre o móvel e o derruba ao chão, estilhaçando-o. Confuso, pergunta como ela sabia que ele o derrubaria. E ela: “O que vai encucá-lo mesmo é isso: você o teria quebrado se eu não houvesse falado nada?”

Ela olha atentamente para Neo: “Você é mais bonito do que eu pensava. Agora entendo porque ela gosta de você”. Ele pergunta: “Ela quem?” Ela sorri e diz: “Mas não é muito esperto.” A senhora põe o óculos e pede para examiná-lo: olha seu rosto, abre sua boca, pede que diga “Aaah…” como num exame médico. Isso nos faz lembrar, por contraste, da frieza da medicina tecnológica atual, do distanciamento dos médicos que, em sua soberba, não se importam se sua grafia nas receitas não são entendidas e às vezes sequer olham para seu paciente.

Ela olha suas mãos: “Muito interessante, mas…” Neo, curioso, pergunta: “Mas o quê?” Ela responde: “Mas é claro que você sabe o que vou dizer”. Neo então entende ao seu modo e conclui: “Não sou o escolhido”. O Oráculo larga suas mãos: “Sinto muito. Você tem o dom, mas parece que está esperando algo.” Ele pergunta o que pode ser e ela responde: “Sua próxima vida, quem sabe.”

profecias

É interessante o modo como foi conduzida a questão do oráculo. Primeiro, os rebeldes o citam e o espectador fica curioso. Depois a expectativa cresce quando falam da profecia sobre o Predestinado. O silêncio de Trinity só aumenta o mistério. De repente, o Oráculo não é nada do que se podia esperar, mas ainda assim surpreende com sua aparência e atitudes.

A conversa entre Neo e o Oráculo é perfeita: mostra que oráculos, na verdade, não dão resposta alguma, mas apenas servem de instrumento para que enxerguemos a resposta dentro de nós mesmos. Se não conseguimos olhar o suficiente para dentro, jamais entenderemos o significado mais profundo da resposta que nos foi dada. Assim sendo, as mensagens de um oráculo só fazem sentido se entendidas dentro do próprio universo cognitivo de quem pergunta.

Numa consulta a qualquer oráculo é determinante a posição do consulente, pois a resposta só será compreendida se a mente estiver receptiva, sem verdades preconcebidas e falsas expectativas. A resposta sempre vem, mas nem sempre se está preparado para compreendê-la. No estado em que se encontra, confuso e temeroso de assumir a grande responsabilidade de um salvador da humanidade, qualquer resposta de qualquer oráculo seria também entendida por Neo como um “você não é o escolhido”.

Neo parece sentir alívio com a declaração. Depois fala de Morfeu, e o Oráculo diz que todos lhe devem muito, que ele é muito importante. E profetiza: “Ele crê tanto nisso que se sacrificará por você. E você terá que escolher: numa mão terá sua vida, e na outra, Morfeu. Um dos dois morrerá”.

No fim, todas as profecias do Oráculo se realizam: o Predestinado veio, Trinity apaixonou-se por ele, Morfeu sacrificou-se e Neo teve de escolher entre salvar a si e ao amigo. Escolheu o amigo ao decidir retornar à Matrix. E por causa disso morreu. Morreu, mas ressuscitou. “Quem sabe numa outra vida…”, dissera o Oráculo. Na cena do helicóptero Neo está pendurado por uma corda e segura Morfeu. Numa mão ele segura a si próprio e na outra o amigo: é a profecia que se cumpre literalmente.

As profecias sempre nos intrigaram. Será mesmo possível prever o futuro? Como saber sobre algo que ainda não aconteceu? Isso nos remete à natureza do tempo, essa coisa tão impalpável e escorregadia. Nós sabemos o que o tempo é, mas só quando não pensamos, pois logo que pensamos nele, já não sabemos mais.

Se é possível prever o futuro, então automaticamente abre-se a possibilidade de alterá-lo. Se há a alteração, então o futuro previsto não acontece. Se ele não acontece, então não era o futuro. O que era então? Isso nos remete a outros aspectos da questão: os futuros hipotéticos. Talvez existam várias possibilidades de futuro e elas possam ser acessadas, nos permitindo participar no processo de determinação do futuro que efetivamente acontecerá. Ou seja: o futuro, assim como o tempo em si, necessita da consciência para existir.

Veja o vaso que Neo quebra. Exercitemos as possibilidades da questão. Ele o teria quebrado se o Oráculo nada falasse? Isso não podemos saber. Mas analisemos. O Oráculo conhece o futuro. Assim sendo, se ele sabe que Neo quebrará o vaso, então não precisa falar para que o destino se cumpra. Ou precisa? O fato é que fala. Por quê? Será que quer apenas mostrar suas capacidades, feito um cartão de apresentação? E se sabe mesmo do futuro, por que não retira o vaso ou alerta Neo de forma mais cautelosa? Bem, se assim fizer, o futuro que ele previu não se cumprirá, e dessa forma o Oráculo agirá contra si mesmo, o que não faz sentido.

Como explicar as profecias que se cumprem? Seria tudo mero acaso, coincidência? Talvez a profecia em si mesma seja justamente a força que leva os acontecimentos a se realizarem de forma a cumpri-la, uma espécie de autossugestão, ou seja, o futuro passa a existir potencialmente porque foi anunciado. Ou não? Será que o futuro realmente já está escrito?

Há quem entenda as profecias como autênticos flagrantes de falhas no entendimento unidimensional do tempo, comprovando que o tempo não é algo linear que vem do futuro, passa pelo presente e segue para o passado ou, como queira, é algo que vem do passado que já aconteceu, passa pelo presente que vivemos e se abre em perspectivas de futuro. Em vez de uma linha reta, talvez o tempo esteja mais para uma teia, algo que só faz sentido se for entendido em seu todo, de uma vez só. Para entender o fenômeno das profecias talvez seja necessário pensá-las não em termos de causa e efeito, mas como ocorrências sincrônicas que se explicam mutuamente, algo cujas partes se sustentam umas às outras ao mesmo tempo e não podem ser totalmente entendidas separadamente. Neo quebrou o vaso porque o Oráculo falou, e o Oráculo, por sua vez, fala justamente porque Neo quebrará o vaso.

o tempo

Está vendo? Conjeturar sobre o tempo é um exercício que, em vez de nos trazer certezas, nos deixa com mais dúvidas. Entretanto, para o nosso estudo, gostaria apenas de fazer mais uma breve reflexão. Se o tempo futuro ainda não existe e o tempo passado não existe mais, o que existe então? O tempo presente, você pode dizer. Certo. Mas quanto tempo dura o presente? Um minuto? Um segundo? Mas um segundo pode ser dividido em infinitas partes, e cada uma dessas em infinitas outras partes. Em qual delas estaria o tempo presente?

Não importa em quantas zilionésimas partes dividamos o tempo. Sempre poderemos dividi-lo em partes menores, e assim jamais localizaremos seu núcleo final onde poderia estar o agora. Simplesmente porque o agora não existe, assim como não há futuro e nem passado: é tudo abstração. O tempo é como alguém que virá ou que já se foi, jamais alguém que está. Nós nos posicionamos para flagrar o momento exato de sua passagem e quando nos damos conta… o tempo já passou.

Agora danou-se. Se o tempo não existe, o que existe então?

A psique. É ela que inventa o tempo. E o faz no momento em que a consciência nasce do inconsciente atemporal, pois, para se manifestar, a consciência precisa de um veículo, o corpo, que por sua vez precisa de um plano formado de três dimensões espaciais (altura, largura e profundidade) e uma temporal. É o cruzamento dessas dimensões, o espaço-tempo, que fornece as coordenadas exatas para a manifestação da consciência.

Quando o ser se dá conta que existe, ou seja, quando surge a autoconsciência, automaticamente surge o tempo. Porém, se a consciência se detém sobre a natureza do tempo, pode perceber que ele na verdade só existe como uma dimensão necessária para que ela possa atuar, e que talvez seja mesmo possível à consciência ir além da dimensão temporal à qual está limitada e acessar o inconsciente atemporal de onde veio para, assim, distinguir informações do passado ou do futuro e, inclusive, fazer profecias.

Putz, o cara viajou… Viajou no tempo. Pois é. Se é possível uma máquina do tempo, o meu palpite de viajandão é que ela já existe. Já está construída. Ou em contínua construção. É a consciência.

autoconfiança

O fato de Neo não acreditar que é o Predestinado é compreensível, afinal trata-se de uma responsabilidade enorme, terrivelmente incômoda, principalmente para alguém que até pouco tempo atrás ainda vivia na Matrix, imerso num mundo de ilusões. Coisa parecida ocorre no caminho da autorrealização. Sentimo-nos capazes de realizar muitas coisas, mas ao mesmo tempo nos retraímos, desconfiados de nós mesmos, temerosos de assumir responsabilidades.

Os amigos confiam em nós. As pessoas dizem que temos talento. E nós, o que pensamos sobre nós? Até nos convencermos de toda nossa potencialidade e mostrarmos a nós próprios que somos capazes, muita água rolará por baixo da ponte. Teremos muitas noites mal dormidas, envoltos em dúvidas e hesitações. Rezaremos pedindo luz, procuraremos oráculos, insistiremos em receber a aprovação das pessoas para nossos projetos…

Nada, porém, poderá fazer o trabalho por nós. E o trabalho consiste em nós mesmos nos convencermos de quem somos. Mas não adianta pressa, pois cada um tem seu próprio tempo. A convicção amadurece em nosso ser à medida que nos mantemos atentos ao caminho e fazemos o que deve ser feito. Cada autodescoberta nos faz mais fortes e mais cientes de que estamos no caminho certo. À medida que o herói avança e vence os obstáculos, mais capaz ele se torna.

A sociedade repressora já tentou de tudo, mas o indivíduo prossegue rumo à sua individualidade. Cada vez menos ela pode contra ele.

(continua)

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Ricardo Kelmer – blogdokelmer.com

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CONTEÚDO INTEGRAL DO LIVRO

Cap. 1 – Cinema, mito e psicologia
Cap. 2 – Toc, toc, toc… Acorde, Neo!
Cap. 3 – Não existe colher
Cap. 4 – Morrendo para vencer
Cap. 5 – Matrix Reloaded e Matrix Revolutions
Cap. 6 – Os personagens
Cap. 7 – Quadro comparativo

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Matrix e o Despertar do Herói cap 2

28/08/2010

Matrix e o despertar do herói
A jornada mítica de autorrealização em Matrix e em nossas vidas
(Ensaio – Miragem Editorial/2005)
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Usando a mitologia e a psicologia do inconsciente, Kelmer nos oferece uma visão diferente de Matrix, o filme que revolucionou o cinema, lotou salas em todo o mundo e tornou-se um fenômeno cultural, conquistando milhões de admiradores e instigando intensas discussões.

Em linguagem descontraída, o autor nos revela a estrutura mitológica do enredo de Matrix, mostrando-o como uma reedição moderna do antigo mito da jornada do herói, e o compara ao processo individual de autorrealização, do qual fazem parte as crises do despertar, o autoconhecer-se, os conflitos internos, as autossabotagens, a experiência do amor, a morte e o renascer.

Podemos ser muito mais que meras peças autômatas de uma engrenagem, dirigidos pelas circunstâncias, sem consciência do processo que vivemos. Em vez disso, podemos seguir os passos de Neo e todos os heróis míticos: despertarmos, assumirmos nosso destino e nos tornarmos, finalmente, o grande herói de nossas próprias vidas.

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Cap 2

TOC, TOC, TOC… ACORDE, NEO!

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seguindo o coelho branco

A primeira cena de Neo o mostra em seu pequeno apartamento, adormecido sobre a mesa. Um ruído no computador chama sua atenção. Sonolento, ele observa que alguém tenta se comunicar. A mensagem na tela diz: “Acorde, Neo…” Ele não entende. Surge outra mensagem: “Siga o coelho branco”. Intrigado, hesita ante o teclado e lê a mensagem seguinte: “Toc, toc, toc…”.

Neo escuta batidas na porta e, confuso, vai abrir. São amigos que foram buscar uma encomenda e o convidam para uma festa. Ele pensa em recusar, mas vê um coelho branco tatuado nas costas da garota e aceita.

Na festa, uma desconhecida chamada Trinity se aproxima e, sussurrando em seu ouvido, diz que sabe de suas noites mal dormidas, de suas dúvidas e da pergunta que o move. Neo escuta surpreso. Como ela sabe tanto sobre sua vida?

O processo de autorrealização é um impulso natural da psique. De modo geral, ele se manifesta primeiramente através de algum tipo de curiosidade, dúvida ou insatisfação pessoal. É preciso que haja algum incômodo para que o indivíduo se sinta impulsionado a agir. Esta é a isca que a psique utiliza para atrair a atenção do ego, a personalidade consciente, para a questão. Um ego acomodado em seu mundinho de interesses imediatistas jamais terá motivação para buscar outros níveis do eu total. É necessário que uma força maior que o ego agite as águas do fundo do oceano inconsciente e faça com que as ondinhas cheguem até a superfície da consciência, incomodando o ego. É preciso sacudir o ego e despertá-lo. É hora de transformação.

No caso de Neo, ele desconfia que há algo errado com a realidade. Em suas buscas na internet, colhe pistas vagas sobre a existência de uma tal Matrix e tem curiosidade sobre um sujeito chamado Morfeu, que é considerado um perigoso fora-da-lei. Algo o atrai e fascina nesse homem: ele parece ser forte, inteligente e destemido, e desafia as autoridades em ações ousadas, sempre desaparecendo em seguida. Depois surgem aquelas mensagens no computador, a coincidência do coelho branco tatuado… E agora essa intrigante garota Trinity que sabe muita coisa sobre ele. Afinal, o que está acontecendo?

A curiosidade em relação ao que seja essa tal Matrix traz inquietação à vida de Neo. É a imagem do Graal que surge para os cavaleiros do rei Artur, impelindo-os a buscá-lo na floresta. É o início do processo. E é assim que também ocorre com todos nós. As mensagens de Trinity no computador representam, no processo de autoinvestigação psicológica, o primeiro contato com o inconsciente. Todo início é assim, confuso e feito de pistas e indícios sem consistência. São ideias sobre nós mesmos e nossas vidas que surgem no pensamento e ficam a nos instigar. Se até então o ego nunca precisou voltar a atenção a outros aspectos do ser, agora, porém, ele tem de abandonar seu mundo seguro se quiser descobrir o que o inquieta.

É bastante significativo o fato de que a primeira cena de Neo o mostra em seu quarto, pequeno e fechado, um ambiente escuro e claustrofóbico. Em nossas vidas é exatamente assim que o ego se comporta, fechado e acomodado em si mesmo. O ego tende naturalmente a ser egocêntrico. O processo do despertar, porém, exige que o ego abandone a segurança do quarto em que sempre viveu e saia para conhecer o mundo, ou seja, vivenciar outros aspectos do ser total. Visto por este ângulo, torna-se bem emblemática a primeira frase dirigida ao nosso herói: “Acorde, Neo!”

Então começam as transformações para o ego. De repente, a vida não é mais tão tranquila como antes, as certezas já não são tão certas e algumas coisas não funcionam tão bem quanto funcionavam. De repente, nos sentimos incomodados, agindo de modo estranho e desconfiando de certas ideias que sempre foram indiscutíveis. A noção que temos de nós mesmos, segura e inquestionável, começa a se mostrar não tão verdadeira assim. Agora, parece que há algo errado com o mundo.

Na verdade, nada está errado com o mundo. O mundo é o que é. Nós é que estamos diferentes e, exatamente por isso, começamos a entender o mundo de maneira diferente. É bom nos acostumarmos logo: cada vez que nos transformamos, o mundo também se transforma. Nada mais natural, afinal fazemos parte do mundo, não é? É como se tudo fossem espelhos a se refletirem o tempo todo: por menor que seja nossa mudança pessoal, ela será refletida pelos outros.

Uma vez que o processo de autorrealização começa a se manifestar, será impossível prosseguir sem se transformar, pois para atingir novos níveis de realização, teremos de descobrir quem na verdade somos. Não poderemos mais nos enganar em relação a nós mesmos. Quem se descobre, naturalmente se transforma.

Em certos casos, é uma relação amorosa que provoca esse incômodo inicial, pois o parceiro parece possuir uma certa capacidade de nos fazer descobrir coisas desagradáveis sobre nós mesmos. Isso nos indispõe com ele, mas por mais que arrumemos um culpado para nosso mal-estar, já não é mais possível fazer de conta que ele não existe. O incômodo está lá, feito um espinho em algum lugar do ser, e é uma questão de tempo entendermos que o que verdadeiramente incomoda está em nós mesmos e não em outra pessoa ou em certas situações.

Você já experimentou uma sensação parecida com essa, lembra? Foi na adolescência, quando começou a deixar de ser criança e estava se transformando em algo diferente. Tudo mudava em você, seu corpo, suas ideias, as atitudes. Era como se você estivesse deixando de ser você para ser um outro você, sem no entanto deixar de ser você mesmo.

A adolescência é um bom exemplo do tipo de transformação que aguarda aqueles que seguirão o coelho branco em suas vidas. A diferença é que enquanto na adolescência estamos construindo verdades e conceitos que a partir daí pavimentarão nosso caminho, agora o chamado interior do autoconhecimento exige que nos desfaçamos de nossas próprias verdades se quisermos prosseguir.

A pessoa precisa reconhecer outros aspectos do ser, mas se o fizer deixará de ser quem sempre foi. Isso soa como morte para o ego. Exatamente por esse motivo é que nunca aceitamos muito bem a própria transformação.

primeiras repressões

Na manhã seguinte, Neo acorda tarde e chega atrasado ao trabalho. Seu superior o repreende e o aconselha a se adequar às normas da empresa. Ele o acusa de se achar melhor que os outros e ter problemas com a autoridade, e o ameaça de demissão. Neo escuta e, temeroso, nada responde. Na janela, pelo lado de fora, um funcionário limpa a vidraça.

O processo já foi iniciado. As águas profundas do inconsciente se agitam e as ondinhas alcançam a praia da consciência. Incomodado, o ego agora terá de abandonar sua antiga e tranquila posição caso deseje satisfazer a curiosidade, dissipar suas dúvidas ou parar com seu sofrimento.

Se a autorrealização é um impulso natural da psique, por outro lado existe uma força que vem da própria sociedade e que sempre tenta barrar esse impulso, desaconselhando, a princípio sutilmente, aqueles que começam a se diferenciar e agir fora do padrão.

Mas que amiga da onça! Por que ela faz isso? Por uma questão de sobrevivência da própria sociedade, pois é melhor que todos ajam e pensem de forma parecida, feito uma boiada – assim é mais fácil se organizar. Tal estratégia repressora é natural e eficiente para a sobrevivência de nossa espécie, mas tem um custo: a anulação do indivíduo e a negação de sua singularidade. Para a sociedade o que importa é que o indivíduo se comporte como uma peça da engrenagem social e cumpra com seu papel para que ela funcione perfeitamente e se mantenha a si mesma.

Quando ocorre o impulso da diferenciação temos então um encontro de forças, uma vindo do indivíduo e a outra da sociedade, em forma de cultura, leis e padrões de comportamento. O conflito é inevitável. O indivíduo que tenta se diferenciar age como o náufrago que quer escapar da correnteza do mar: ele deve alcançar as ondas que o levarão à terra firme, mas a tarefa é difícil, pois terá que lutar contra o oceano que o puxa para si, contra o medo de desafiar algo tão grande e contra seu próprio cansaço.

Aqui, mais uma vez, nos lembramos da adolescência, quando usávamos roupas e penteados diferentes para, inconscientemente, desafiar os mais velhos. Queríamos ser diferentes deles e, ao mesmo tempo, precisávamos ser iguais aos da nossa turma. Essa procura por identidade leva os adolescentes a criar padrões de comportamento que os ajudam a se estabelecer no meio cultural em que vivem. É um tipo de diferenciação, sim, mas ainda não se trata da diferenciação psíquica de que estamos falando.

O adolescente está construindo sua identidade própria, e para isso precisa copiar dos outros, de preferência de seus amigos e seus ídolos, o que faz com que ele entre para uma turma que se veste, fala e se comporta igual, um grupo que o aceita e se reforça com sua presença. Por outro lado, a pessoa adulta que, obedecendo ao primeiro impulso rumo à autorrealização, tenta se diferenciar da massa, não tem como prioridade construir uma identidade, pois, bem ou mal, já a possui. Seu objetivo é escapar do movimento hipnótico da massa para poder avaliar melhor o que está ocorrendo em sua alma e analisar suas inquietações. Por isso é que ela precisa fugir da correnteza que a faz girar e girar sem se questionar.

A correnteza é a cultura. Nascido dentro dela, o indivíduo está impregnado, até o último fio de cabelo, de leis, ideias padronizadas e modelos de comportamento. Para se dedicar mais a seu mundo interno e dar atenção ao que o inquieta, ele terá necessariamente de se afastar um pouco do mundo exterior. Para isso, terá de mudar de hábitos.

Mas não será fácil. Aqui surgem as primeiras dificuldades, pois a sociedade age como a Matrix, acionando suas forças repressoras e detectando com rapidez aqueles indivíduos que começam a se diferenciar e se movimentar fora do movimento padrão da massa. É como se eles representassem um perigo para o funcionamento normal da engrenagem – o que é verdade.

A repressão, a princípio, costuma vir em forma de recados sutis: são os olhares desconfiados, as desaprovações e as censuras. É como se a sociedade nos repreendesse: “Para que fazer diferente se até agora a coisa vem funcionando?”

Dessa vez, Neo se safou. Mas o impulso da diferenciação continuará, cada vez mais forte. E a repressão também.

seguindo a intuição

Após escutar a ameaça de seu superior, Neo vai para sua sala e recomeça o trabalho. Um funcionário lhe entrega uma encomenda. É um celular que, para sua surpresa, logo toca. Neo atende e descobre que quem fala é Morfeu, por quem tem tanta curiosidade e fascínio.

Morfeu o avisa do perigo que corre e o orienta para que possa fugir dos agentes. Neo está confuso, mas obedece. Morfeu explica que ele tem duas opções: ou tentar escapar pela janela ou se entregar aos agentes. Angustiado, Neo anda pelo parapeito, mas olha para baixo e a vertigem o domina. O celular cai de sua mão. De repente, percebe a grande loucura que está fazendo e se entrega, sem saber por que estão à sua procura.

Durante a jornada de autorrealização nos encontraremos muitas vezes em situações onde é a intuição que nos aponta o caminho a seguir. O caminho é novo e desconhecido, e olhamos para ele com medo, pois jamais o percorremos antes. De um lado a sociedade nos aconselha com suas regras tradicionais, mas por outro lado, a intuição sussurra que nosso caminho é outro.

O ego se vê num dilema. Estamos em conflito com nós mesmos, pois uma parte de nós sabe que precisamos arriscar e a outra parte tem medo. Intuímos o que temos de fazer, mas nos faltam forças. Nesse momento crucial o ego está sendo testado: uma viagem, uma troca de curso ou emprego, um término de relacionamento, uma atitude diferente… O ego se encontra diante de um portal e a intuição lhe diz que deve cruzá-lo. Muitos até que tentam, pondo em risco coisas importantes, mas da mesma forma que Neo, sentem uma espécie de vertigem e recuam, preferindo voltar.

Vertigem é medo de altura. É isso que ocorre nesses momentos: temos medo de nos soltar das amarras das seguranças já conquistadas e, com isso, não alçamos voo. O ego está inseguro no início da jornada e desiste ante as primeiras dificuldades, preferindo não arriscar o novo e desconhecido. A pessoa retorna aos afazeres cotidianos e tenta esquecer a sensação de derrota, abrigando-se na segurança do que já conhece. O portal se abriu, mas o vislumbre da liberdade que esse momento oferece às vezes nos é assustador. Ser livre tem seu preço e nem todos estão dispostos a pagar. Mas o portal se abrirá outra vez.

Neo não vê quem lhe fala. É uma voz misteriosa, mas que parece querer orientá-lo – uma analogia perfeita para a intuição e seu modo de trabalhar. A intuição é uma das funções psicológicas (as outras são a sensação, o pensamento e o sentimento) de que dispomos para nos guiar vida afora, e ela nos permite perceber as possibilidades inerentes à situação. É uma função irracional, pois apreende a realidade instintivamente, através do inconsciente, sem a participação do pensamento lógico consciente. É a intuição que nos fornece súbitas revelações e perspectivas diferentes sobre a realidade. De repente, intuímos, sem uma lógica aparente, que é melhor seguir por aqui e não por ali, e isso depois se revela a decisão correta. Qual foi a sensação, o pensamento ou o sentimento que nos levou a tomar tal decisão? Nenhum deles. Foi outra coisa. Foi um entendimento súbito e instintivo da totalidade da questão.

Diante da necessidade de escolha, geralmente decidimos seguindo a lógica do pensamento racional: irei por esta calçada, pois assim caminharei na sombra. Às vezes, porém, algo parece nos impelir na direção contrária à lógica racional, como se uma parte de nós captasse algum aspecto importante, mas invisível, da questão. Se a razão enxerga parte por parte, separando, discriminando e julgando, a intuição apreende o todo de uma vez. É como se ela estivesse em contato com todos os aspectos da questão, mas não pudesse explicar um por um: ela fornece um entendimento instantâneo e geral.

Podemos dizer que a intuição é uma função psicológica de caráter holístico, pois nos conecta com o todo, ou seja, a totalidade ao redor (pessoas, coisas, fatos etc.) e também a totalidade de nós mesmos. Ao redor, a intuição percebe aspectos que o pensamento, as sensações ou os sentimentos não captam e nos fornece dados valiosos para a nossa decisão. E em relação a nós mesmos, a intuição nos faz considerar aspectos do ser que estão além da percepção do ego, da mente racional. Dessa forma, pensamos e agimos de acordo com tudo o que somos, consciência e inconsciente. Isso significa que a intuição nos ajuda a ser mais abrangentes e verdadeiros com nós mesmos e, assim, nos faz agir mais harmoniosamente com o mundo ao redor.

Confiar e agir seguindo a intuição não significa desprezar o pensamento lógico, os sentimentos e as sensações, pois eles também são importantes. Porém, às vezes essas funções são insuficientes e, por isso, nos levam a tomar a decisão errada, ou se contradizem, nos deixando em cruéis dilemas. É nesses momentos que a intuição pode ajudar, ainda que pareça um salto no escuro. Infelizmente, nossa cultura supervaloriza o pensamento racional e desdenha da intuição, atrofiando-a a cada dia e nos fazendo guardá-la quietinha no porão da psique, feito um objeto sem serventia, quando, na verdade, ela precisa ser desenvolvida para podermos sempre reconhecer sua voz.

Neo está metido numa situação incrivelmente estranha. De um lado está sendo perseguido por policiais e sujeitos estranhos, com jeitão de mafiosos, sem ter a mínima ideia do motivo. De outro lado um tal Morfeu, que ele nunca viu antes, aconselha-o, pelo telefone, a se esconder e arriscar a vida no alto do prédio. Neo fica dividido, mas algo lhe diz que deve obedecer a Morfeu. Logo depois, porém, sente medo de cair e desiste, preferindo se entregar a seus perseguidores. Sim, o herói deve sempre seguir sua intuição, mas isso requer uma coragem que nem mesmo os maiores heróis possuem o tempo inteiro.

repressão e tortura

Neo está num tipo de sala de interrogatório e os agentes mostram que sabem tudo sobre sua vida. Eles querem sua cooperação para capturar Morfeu, mas Neo se nega a ajudar. Os agentes o torturam e lhe inserem um aparelho rastreador para que ele, sem saber, os leve até Morfeu.

O que teria acontecido se Neo continuasse seguindo as recomendações de Morfeu? Teria escapado dos agentes? Ou teria despencado do alto do prédio e morrido na contramão, atrapalhando o tráfego? Não podemos saber. Sabemos apenas que o medo o faz desistir de seguir as orientações da voz misteriosa. Ele de repente dá por si e percebe a loucura que está fazendo, como se estivesse possuído por algo insano que o leva a se arriscar e seguir uma voz interior que quer conduzi-lo para… para onde mesmo?

Neo prefere se entregar a continuar seguindo a tal voz. Mas, por não aceitar entregar Morfeu, ele é torturado. O primeiro preço a pagar pela diferenciação foi apenas um sermão e uma ameaça de demissão, nada que impedisse o herói de continuar seguindo a intuição. Agora, porém, o preço a pagar pelo nível seguinte de indiferenciação é bem mais alto. A sociedade age de modo parecido, exigindo que desprezemos a intuição e desistamos daquilo que tanto buscamos. É um tipo de acordo, muito comum: nós entregamos os nossos sonhos mais íntimos e em troca a sociedade não mais nos cobrará. Será que você alguma vez na vida não aceitou esse acordo?

Diferenciar-se custa caro. Tentar ser livre sempre nos levará a situações arriscadas, pois a sociedade, por meio de seus agentes repressores, dificultará o caminho. Ela nos interrogará e humilhará, tentando nos convencer a seguir suas regras. A sociedade nem sempre é tão direta quanto os agentes da Matrix, mas é igualmente eficiente. Cabe a nós decidir: compactuamos com ela ou continuamos seguindo o impulso da diferenciação?

Os que seguem o impulso devem estar preparados para retaliações – é o jeitinho que a sociedade tem de punir seus membros rebeldes. Assim, aquele que, em vez de se acomodar num emprego seguro, busca um trabalho mais condizente com seus interesses pessoais, certamente terá dificuldades financeiras. Aquele que assume sua sexualidade ou um estilo de vida diferente da maioria sofre com o preconceito. Aquele que questiona o modo como as coisas funcionam é visto com desconfiança e pode ter seu trabalho sabotado. Aquele que tenta apresentar novos modos de entender o mundo sofre resistência por parte de amigos, familiares, colegas, professores, chefes, líderes religiosos e autoridades, e pode ter problemas com a lei.

Os agentes repressores da diferenciação psíquica não são necessariamente pessoas cruéis: são geralmente pessoas comuns que não têm consciência do papel que representam, são apenas seres humanos inseridos numa cultura que os leva a agir assim, sem questionar. No fim deste livro, quando analisarmos a reinserção do Predestinado na Matrix, veremos que até mesmo os que se diferenciam estão, com isso, contribuindo também, mesmo que a princípio não pareça, para o fortalecimento da cultura.

Trinity, o princípio yin

Neo acorda em sua cama, assustado com o pesadelo que teve, onde homens o prendiam e lhe metiam um bicho nojento barriga adentro. O telefone toca. É Morfeu. Ele diz que foi sorte os agentes terem-no subestimado e marca um encontro. Na cena seguinte está chovendo, e Neo, sob uma ponte, vê um carro preto parar à sua frente. Ele entra, desconfiado, e senta ao lado de uma mulher. Ele a reconhece, é Trinity. Do banco da frente Switch lhe aponta uma arma e ele se assusta. Neo pede que parem o carro, pois está farto disso tudo. Trinity olha para ele com ternura e gentilmente o convence a ficar. Neo é submetido a uma rápida e delicada operação para retirada do rastreador de seu corpo. Agora ele já não pode mais ser localizado pelos agentes.

O portal se abre novamente para Neo, o novo lhe concede uma segunda chance. Ele segue sua intuição e vai ao encontro. Dentro do carro, o medo o domina mais uma vez e ele quase desiste. Quase, pois a doçura com que Trinity lida com a situação o faz superar o medo e a desconfiança e assim ele prossegue rumo ao novo que o chama.

Trinity é uma personagem feminina, e ao longo do filme veremos que ela representa os aspectos femininos da psique do herói que ele deve reconhecer em si mesmo e assimilar, integrando-os à personalidade consciente. Trinity é o princípio yin de que fala a filosofia oriental, um princípio ligado ao feminino (enquanto o princípio yang é ligado ao masculino), e na psique ele se manifesta na forma de intuição, sentimento, cuidado, paciência, maleabilidade e doçura – esses são os valores que Neo precisa reconhecer e desenvolver em sua própria personalidade, caso contrário não se transformará suficientemente e não vencerá os desafios.

Durante o processo de autoconhecimento do homem, a contraparte feminina vai ensiná-lo a ser doce, paciente e sutil nos momentos em que a força, a rigidez e a pressa nada resolvem. Isso também é válido se o herói é uma mulher, pois as mulheres também possuem sua contraparte masculina e necessitam estar conscientes dela para equilibrá-la dentro de si.

A força, a racionalidade e a conquista são valores yang. A flexibilidade, o sentimento e a empatia são valores yin. Todos necessitamos de tudo isso, dependendo da situação, mas na jornada do autoconhecimento, mulheres e homens terão sempre a missão de reconhecer e dosar esses valores em si mesmo, caso contrário a personalidade não se desenvolverá como poderia.

a pílula vermelha

Trinity leva Neo a um prédio. Ele é apresentado a Morfeu, que lhe fala sobre a Matrix, sobre ser escravo, e que ninguém pode lhe explicar exatamente o que é a Matrix. ”Você tem que vê-la por seus próprios olhos”, Morfeu diz, e, por fim, lhe oferece duas pílulas, uma azul e outra vermelha. A azul fará com que Neo acorde em seu apartamento, seguro, e aquela estranha aventura terminará, como se tudo houvesse sido um sonho. A vermelha o levará adiante. Neo escolhe a pílula vermelha.

Quando começamos a nos interessar por nosso mundo interior, é comum surgir curiosidade por temas ligados a psicologia e espiritualidade. Há pessoas que entram para seitas esotéricas, escolas místicas e leem livros e frequentam palestras e cursos.

A curiosidade é normal, pois o mundo interior, em toda sua vastidão, é realmente fascinante e envolvente. Porém aqui há outra armadilha do caminho. Por mais livros e cursos que acumulemos, nada disso terá muito valor se a transformação não for vivida na própria carne. Não adianta se tornar especialista em algum assunto, fazer curso de xamanismo, entrar para uma seita esotérica, contatar extraterrestres ou guias espirituais ou lembrar de vidas passadas se tais coisas não contribuem para que a pessoa se conheça melhor e se relacione melhor com o mundo, com os outros e consigo mesma. A espiritualidade que não gera o sadio intercâmbio entre consciência e inconsciente tende apenas a inflar o ego. Aliás, o mundo da espiritualidade e da religião às vezes mais parece um espetáculo de enormes ego-balões coloridos e vaidosos a desfilar no céu…

O mundo interior é como uma caverna escura e cheia de labirintos. O explorador pode facilmente ser seduzido por qualquer um de seus encantos e mistérios e esquecer que precisa prosseguir e viver os desafios seguintes de sua transformação pessoal. É justamente assim, seduzida pelos conhecimentos que as religiões, seitas e os mais diversos ismos e logias oferecem, que a pessoa se acomoda em algum tipo de explicação da realidade e “autoriza” que alguma ideologia faça o trabalho por ela.

A própria pessoa é quem tem de percorrer seu caminho e viver em si mesma a alquimia que a transformará num novo ser. Saberes intelectuais e dons paranormais, por si só, nada valem na jornada do verdadeiro autoconhecimento e não significam necessariamente percorrer o caminho interior. Morfeu certamente concorda com isso, pois em certo ponto da história ele diz a Neo: “Há uma diferença entre conhecer o caminho e trilhar o caminho”.

Assim como Neo terá que ver a Matrix com os próprios olhos e entendê-la por si mesmo, nós também teremos que ver a verdade através de nossa própria vivência individual, que se parece com o convite para aquela festa chique: é pessoal e intransferível. Livros e cursos explicam com detalhes, mas tudo fica no plano do entendimento intelectual. É como planejar uma viagem e estudar a região pelo guia, decorando pontos turísticos, preços de pousadas e nomes de ruas: tanta preparação só valerá mesmo se a viagem for posta em prática, e ainda assim sabemos muito bem que na prática a coisa geralmente não sai como planejado…

É só o que tem por aí: frequentadores de cursos e catedráticos dos assuntos da alma. Muitos têm gurus, sabem botar cartas, até escrevem livros – mas não vivenciam em suas próprias vidas a transformação necessária que os conduzirá ao nível seguinte de autoconhecimento e realização pessoal. Estão empacados em algum ponto de seu crescimento interior, repetindo fórmulas e orações decoradas. Têm na ponta da língua o versículo para cada ocasião, conhecem a hierarquia dos seres ascensionados e recitam suas vidas passadas como quem narra as férias em Canoa Quebrada. Putz, de que vale mesmo tudo isso?

Assim como Morfeu não explica para Neo o que é a Matrix, nenhum livro, curso, religião ou guru pode viver por nós aquilo que nós mesmos temos de viver. Se desejamos avançar no conhecimento do mundo interior e nos libertar do que nos escraviza, só há um jeito: tomar a pílula vermelha e ver a verdade com nossos olhos, vivendo-a na própria pele, mesmo que doa. E vai doer.

o despertar

Depois de tomar a pílula vermelha, Neo é conectado aos aparelhos para finalizar seu processo de desligamento da Matrix. Ele estica a mão e o espelho à sua frente engole seus dedos. De repente, a superfície do espelho sobe pelo seu braço, feito um gel prateado, envolvendo cada vez mais seu corpo. Ele entra em pânico e desmaia.

Então Neo desperta. Está numa espécie de casulo, imerso num líquido avermelhado, e de seu corpo nu saem cabos conectores. Ele olha impressionado para as enormes construções ao redor, centenas delas, cada uma com milhares de casulos como o dele, cada casulo abrigando um corpo humano.

De repente, um robô se aproxima, observa-o e desconecta os cabos, fazendo Neo escorregar por um longo tubo e cair num esgoto, de onde é resgatado pelos rebeldes.

Esta cena tem forte carga dramática e certamente é a mais impressionante de todo o filme. Mostra o momento exato em que Neo desperta para o mundo real, acordando de um sonho no qual viveu durante toda a vida.

Em nossas vidas não acordamos em casulos gosmentos, ainda bem, mas o drama do despertar da consciência é sempre intenso e carregado de fortes sensações e emoções. O mito do despertar da consciência está espalhado em diversas culturas. Na mitologia cristã ele aparece na metáfora da árvore do bem e do mal cujo fruto faz com que Adão e Eva adquiram consciência de si próprios. Despertos, eles são expulsos do Paraíso e daí em diante terão de trabalhar duro para se sustentar. Em linguagem psicológica isso significa que o indivíduo atingiu um certo grau no conhecimento de si mesmo e já não pode mais permanecer na comodidade em que estava, com as velhas ideias e atitudes perante a vida. Nesse momento, as forças psíquicas forçam o ego a deixar seus limites de autopercepção e a ele não restará outra alternativa senão buscar novos níveis de compreensão de si mesmo.

Mas o despertar não é um processo que ocorre magicamente de um momento para o outro: ele é feito de acontecimentos que precedem as revelações transformadoras. Para Neo, o despertar começa com o estranhamento que sente em relação à realidade e com as incríveis façanhas de um tal Morfeu. Depois vêm as estranhas mensagens no computador, o encontro com Trinity, o telefonema de Morfeu, o encontro com os agentes, mais um encontro com Trinity e, por fim, o decisivo encontro com Morfeu. O herói precisa ser devidamente iniciado e passar por testes para que possa suportar a grande revelação que terá.

Não pensemos também que o despertar é uma experiência única, no sentido de que uma vez desperto, sempre desperto. Não é assim. O processo de autorrealização é feito de muitos despertares, cada um levando o indivíduo a um novo nível de autoconhecimento que, por sua vez, o leva a um novo nível de relação com mundo e isso força sua consciência a nova mudança e assim por diante.

Em nossas vidas o despertar acontece quando passamos por uma experiência forte o bastante para mexer com nossa noção da realidade ou de nós mesmos. Experiências fortes existem aos montes: basta ir ao parque de diversão, ao futebol, a uma festa, tomar alguma droga ou receber a fatura do cartão de crédito após o fim do ano. Porém, a experiência que leva ao despertar é especial porque transforma a pessoa para sempre, mudando sua autoimagem. O terremoto interno que o despertar provoca muda a pessoa para sempre.

Se na adolescência precisávamos construir uma imagem de nós mesmos, agora precisamos desconstruir. Precisamos matar o que éramos para que o novo eu possa nascer, com outros valores. Precisamos passar pelo fogo da transformação e isso envolve dor, conflitos internos, insegurança e medo. Muitas coisas podem servir de catalisador para o despertar: separações, insucessos, acidentes, doenças e até a morte, pois esses acontecimentos fornecem o choque necessário para que a pessoa pare e se concentre um pouco mais em seu mundo interno, repense os valores que até então a guiaram e perceba finalmente que a vida está lhe exigindo uma nova postura diante dela.

Na jornada de autodescoberta nós despertamos um pouco mais cada vez que assumimos certas coisas sobre nós mesmos. Podem ser boas ou ruins, mas sempre são coisas que não sabíamos ou não admitíamos. Neo precisa acordar de um longo sonho senão jamais se tornará o Predestinado de que fala a profecia. Nós precisaremos acordar também, não exatamente de um sonho, mas de uma falsa ou limitada compreensão de nós mesmos. Precisaremos nos desconectar dos valores que nos guiaram até agora mas que não são mais úteis ao crescimento pessoal, assim como Neo teve que se desconectar dos cabos que o mantinham preso ao casulo.

O verdadeiro autoconhecer-se dói porque implica necessariamente enfrentar o que se teme, tornar-se o que se evita ser, entrar no fogo dos piores medos. Dói admitir que estávamos errados, que as coisas não são bem como sempre pensamos e que nós mesmos não somos quem sempre consideramos ser. A sensação de desamparo e solidão nos atinge como um raio. Sentimo-nos impotentes, humilhados e não vemos saída para nosso sofrimento. Se pudéssemos, apertaríamos um botão, desceríamos pelo ralo e morreríamos no esgoto. E tudo estaria finalmente terminado, a dor, a decepção, a solidão. Ponto final.

Bem, de fato todo despertar da consciência exige uma morte. Mas aqui trata-se de uma morte simbólica: a morte do ego. O velho ego morre, ele e seus valores ultrapassados, para que um novo ego possa tomar seu lugar, mais forte, mais sábio e capaz de mediar os mundos interno e externo do indivíduo, gerenciando as necessidades dos dois lados. Um ego que possa conduzir o herói adiante em sua jornada.

os sonhos e a morte

Se nós tivéssemos o hábito de atentar e registrar nossos sonhos, veríamos que durante todo o tempo eles refletiam o próprio processo que vivíamos. É assim, através dos sonhos, que a psique individual retrata a si mesma, seus movimentos, suas transformações. Além de servir de espelho para a realidade psíquica do sonhador, os sonhos também podem orientar, mostrando o caminho que se deve tomar.

Por virem diretamente do inconsciente, os sonhos falam a mesma linguagem do mito, ou seja, falam pela imagem, pelos símbolos. Por isso é que eles têm fama de incompreensíveis e até mesmo de absolutamente ilógicos. Os sonhos têm uma lógica, sim, mas para captá-la precisamos ser mais íntimos de sua linguagem simbólica. Sim, é verdade que ainda temos muito que aprender sobres os sonhos, mas já sabemos que as situações que eles trazem podem se referir a aspectos do ser, cada figura representando algo em nós mesmos, em nossa vida. Se quisermos compreender mais os nossos sonhos e, consequentemente, a nós mesmos, temos que olhar para eles como estamos olhando agora para o filme Matrix, monitorando o personagem principal através de seus vários aspectos, entendendo as situações pelas quais ele passa como metáforas de seu próprio processo interior de autorrealização.

Infelizmente, no corre-corre do cotidiano não sobra tempo para nos dedicarmos ao nosso mundo interno. Acordamos já apressados e os sonhos se dissipam no ar, levando embora as importantes mensagens que a psique elaborou durante a noite, mensagens que poderiam facilitar a vida, fornecendo respostas para questões difíceis e apontando o melhor caminho. Certamente, gostaríamos de saber o que nossa parte mais sábia tem a nos dizer, mas infelizmente estamos atrasados, um monte de coisa a resolver, o aluguel está vencido, não há tempo.

Um psicólogo experiente, que sabe reconhecer as sutilezas do processo de autorrealização, pode facilitar nosso contato com os sonhos e suas mensagens. Para isso temos também de fazer nossa parte, registrando os sonhos e nos mantendo vigilantes em relação a nós mesmos, comprometidos com o processo, sendo honestos com nossas verdades interiores. Desconfie dos livros que oferecem fáceis interpretações dos sonhos, pois apesar de certos símbolos serem coletivos, sempre haverá detalhes do universo onírico estreitamente ligados à história pessoal do sonhador.

Se, nesse ponto decisivo do processo, o herói se torna mais íntimo de seu mundo onírico, ele poderá captar a mensagem e entender que a morte está se anunciando em seus sonhos, sim, mas representa a profunda transformação pela qual ele passa. Imagens de mares revoltos, catástrofes, documentos difíceis de encontrar ou desorientação na floresta indicam, em metáforas, o que está ocorrendo em sua vida: o herói está perdido, pois sua noção de si mesmo, sua preciosa identidade, ruiu feito um prédio que desaba e agora ele se sente acuado por forças que ameaçam matá-lo.

Mas a morte é simbólica e o herói não precisa ter tanto medo assim. Nós também não precisamos temer. Veja o exemplo das serpentes: elas se tornaram símbolos da vida que se renova. Justamente porque trocam de pele de tempos em tempos e com isso se tornam mais fortes e resistentes.

O sofrimento inerente ao processo de autorrealização é como uma troca de pele, um sacrifício necessário, pois não há crescimento possível sem dor. Grandes conquistas exigem grandes sacrifícios. E o que de maior podemos entregar senão a nossa própria noção de eu?

 

(continua)

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Ricardo Kelmer – blogdokelmer.com

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CONTEÚDO INTEGRAL DO LIVRO

Cap. 1 – Cinema, mito e psicologia
Cap. 2 – Toc, toc, toc… Acorde, Neo!
Cap. 3 – Não existe colher
Cap. 4 – Morrendo para vencer
Cap. 5 – Matrix Reloaded e Matrix Revolutions
Cap. 6 – Os personagens
Cap. 7 – Quadro comparativo

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Matrix e o Despertar do Herói cap 1

28/08/2010

Matrix e o despertar do herói
A jornada mítica de autorrealização em Matrix e em nossas vidas
(Ensaio – Miragem Editorial/2005)
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Usando a mitologia e a psicologia do inconsciente, Kelmer nos oferece uma visão diferente de Matrix, o filme que revolucionou o cinema, lotou salas em todo o mundo e tornou-se um fenômeno cultural, conquistando milhões de admiradores e instigando intensas discussões.

Em linguagem descontraída, o autor nos revela a estrutura mitológica do enredo de Matrix, mostrando-o como uma reedição moderna do antigo mito da jornada do herói, e o compara ao processo individual de autorrealização, do qual fazem parte as crises do despertar, o autoconhecer-se, os conflitos internos, as autossabotagens, a experiência do amor, a morte e o renascer.

Podemos ser muito mais que meras peças autômatas de uma engrenagem, dirigidos pelas circunstâncias, sem consciência do processo que vivemos. Em vez disso, podemos seguir os passos de Neo e todos os heróis míticos: despertarmos, assumirmos nosso destino e nos tornarmos, finalmente, o grande herói de nossas próprias vidas.

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Cap 1

CINEMA, MITO E PSICOLOGIA

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resumo do filme

No futuro, a Inteligência Artificial, uma avançada geração de máquinas pensantes, entra em guerra contra os humanos e vence. Como quase não há mais fontes de energia no planeta, os corpos dos humanos sobreviventes são usados para manter as máquinas funcionando. Para que eles não percebam o que acontece, a Inteligência Artificial faz uso da Matrix, um superprograma de realidade virtual ao qual são conectadas as mentes dos humanos. Dessa forma, adormecidos e indefesos, os humanos dormem e vivem um sonho coletivo onde o mundo é como era no fim do século 20.

Um grupo de humanos, porém, despertou e mantém-se fora da realidade virtual. Eles se escondem das máquinas, invadem o sistema e tentam fazer as pessoas despertarem. Esses rebeldes creem na profecia do Oráculo que diz que o Predestinado um dia virá para destruir a Matrix e libertar a espécie humana de sua prisão mental. Eles acreditam que Neo, um jovem que vive na Matrix, é o Predestinado. Neo de fato desconfia que há algo errado com a realidade, mas não pode aceitar que ele seja o tão aguardado salvador. Começa então sua guerra, contra a Matrix e contra si próprio.

escravos da própria criação

O filme Matrix entra para a história como uma das obras que mais simbolizam o espírito de nossa época, onde a espécie humana festeja e glorifica a suprema tecnologia, mas ao mesmo tempo começa a despontar no horizonte uma ameaça que nos aterroriza: a possibilidade de nos tornarmos escravos de nossa própria criação.

De certa forma, já somos escravos. A tecnologia atual nos faz depender das máquinas para quase tudo no dia a dia, desde o momento em que acordamos até a hora de dormir. Muitos inclusive só conseguem dormir se houver ar condicionado, ventilador, calefação, música no rádio ou uma TV ligada.

Faça um teste: da próxima vez que faltar energia elétrica, perceba como as pessoas se comportam. É como se de repente a vida ficasse suspensa. Muitos simplesmente não sabem o que fazer e andam de um lado para outro feito zumbis, como se aguardassem uma ordem para voltar a funcionar. Panes elétricas geram sérios contratempos, é verdade, mas até mesmo elas podem trazer benefícios. Lá em casa, por exemplo, quando faltava luz, íamos para o quintal e deitávamos no chão para olhar o céu e procurar estrelas cadentes. Meu pai e eu discutíamos sobre o Universo ser ou não infinito, a velocidade da luz, as galáxias… A imensidão do Cosmos nos inspirava certa reverência, nos fazendo lembrar do quão pequenos somos. Quando a energia voltava, eu sempre estava mais calmo. Às vezes, naqueles poucos minutos, conversávamos mais que durante o mês inteiro. A pane elétrica, ironicamente, forçava a família a se reunir.

O desenvolvimento tecnológico é importante. A espécie humana só sobreviveu até os dias atuais porque desenvolveu tecnologia suficiente para superar todas as dificuldades que surgiram, desde a necessidade de fabricar machadinhas de pedra até a criação de vacinas que evitam doenças graves e as sondas que viajam além do sistema solar. O problema é que a tecnologia ocupa cada vez mais espaço em nossas vidas. Transformamos a ciência numa espécie de deus e nos convencemos religiosamente de que a tecnologia pode nos salvar de todo perigo. Infelizmente, não pode. Aliás, é justamente por causa dela que a espécie ameaça destruir o planeta e se extinguir. O desequilíbrio ecológico e as guerras biológicas estão aí para confirmar o perigo do uso descontrolado do saber científico.

Como tudo que existe tem dois lados, a tecnologia tanto pode criar como destruir. Em Matrix, os avanços tecnológicos chegaram a tal ponto que as máquinas se tornaram independentes e escravizaram, literalmente, a mente dos humanos, algo que, de certo modo, já ocorre hoje. Podemos fazer algo para essa possibilidade sombria não se tornar realidade?

Acredito que sim. Podemos, por exemplo, lidar com a tecnologia de um modo menos dependente, equilibrando necessidades e facilidades tecnológicas com uma vida mais ligada à Natureza (inclusive a natureza humana) e às coisas simples. Podemos também, desde já, ensinar às nossas crianças que a tecnologia existe para nos servir e não para nos escravizar. E podemos também dar mais atenção às necessidades da alma, entendendo que o sentido da vida é nos autorrealizarmos, da forma mais verdadeira possível, nos tornando pessoas mais livres e harmonizadas com a vida. Isso a tecnologia não pode fazer em nosso lugar.

A verdadeira autorrealização é uma conquista individual, uma jornada mítica que cada um deve empreender em sua própria vida. É aqui, neste ponto, que podemos aprender com os mitos, essa coisa tão arcaica e que a mentalidade racional trata com tanto desdém, repetindo sempre que “é só um mito”, desprezando sua importância e vendo-os apenas como histórias exóticas de povos primitivos ou como religiões estranhas que insistem em sobreviver junto à nossa religião. É como se disséssemos: “Somos mais evoluídos. Não precisamos de mitos”.

Mitos jamais serão “apenas” mitos, pois são eles que formam a estrutura da alma e também das sociedades. Assim como os ossos sustentam o corpo físico, os mitos sustentam a psique humana. Entender como eles agem em nossas vidas é fundamental para compreendermos melhor a nós mesmos e ao mundo que nos cerca.

o mito

Mitos são formas de interpretação da realidade, compostas de narrativas simbólicas e imagens metaforizadas, que estruturam e orientam as sociedades e guiam os indivíduos no crescimento psíquico. Eles não são deliberadamente criados por alguém, mas nascem espontaneamente da alma coletiva da espécie, a psique, que os faz emergir das profundezas do inconsciente geral da espécie e se sedimentar, geração após geração, na cultura dos povos, para conduzi-los a novos níveis em sua relação com o mistério da vida e em sua organização social, assim como na evolução de toda a espécie humana.

A mentalidade atual costuma entender os mitos como mentirinhas ingênuas. Mito não é mentira, é metáfora. Uma metáfora não é uma mentira, mas um modo simbólico de expressar uma verdade. Por esse motivo, a metáfora é a língua nativa dos mitos, pois por trás deles há sempre um símbolo carregado de mistério e numinosidade, e a melhor forma de expressá-lo será sempre a linguagem figurada.

A fotografia é tão somente um processo químico usado para captar e expressar visualmente a realidade, e nem por isso uma foto é uma mentira. Assim como a ciência e a arte, o mito expressa a realidade à sua maneira própria, metaforicamente, que não é nem mais nem menos verdadeira. Se a ciência usa a razão lógica para explicar a vida e a arte usa a beleza e a harmonia para expressar o que sentimos, o mito se utiliza dos símbolos para nos provocar e nos ligar aos mistérios da existência, que estão além da linguagem da ciência, da arte e da filosofia. As explicações dos mitos não podem satisfazer ao intelecto, nem deveriam, mas os símbolos que eles contêm possuem o poder de nos situar no contexto geral do Cosmos, alinhando nossas vidas com uma ordem maior e ligando a consciência individual a um sentido mais amplo e coletivo.

Podemos dizer que, além de fornecer explicações para o mistério da vida e da criação do mundo, o mito exerce duas funções principais, sendo uma de ordem social e outra individual. Como nos ensinou Joseph Campbell, o famoso mitologista irlandês-estadunidense que ajudou a reacender o interesse pela mitologia no século 20 e nos incentivou a olhar para dentro e seguir nossa bem-aventurança, os mitos não só expressam a realidade: eles são o fundamento de toda sociedade. Não seria nenhum exagero afirmar que toda nossa vida, desde os menores detalhes até questões como arte, ciência, política e economia, tudo são formas rituais baseadas nos símbolos que os mitos expressam. Não há nada que não esteja sob uma espécie, digamos assim, de jurisdição simbólica dos mitos, pois, explicando a vida, eles estão também endossando e justificando todos os aspectos culturais de uma sociedade, desde instituições como casamentos, ritos como funerais até o padrão de comportamento de homens e mulheres e a criação de religiões.

No plano individual, o mito atua guiando o indivíduo pelas diversas fases de sua vida, fornecendo-lhe imagens e narrativas ricas de significado para auxiliá-lo em sua jornada rumo à maturidade psicológica. Sim, os mitos descrevem ocorrências exteriores, referentes a tempos e lugares distantes – no entanto, isso é só aparência, pois o plano real dos acontecimentos é interior, é justamente a dimensão psicológica humana. É na alma e não no mundo externo que se desenrolam os dramas metaforizados pelos mitos.

Dessa forma, o mito grego de Saturno, que devora os próprios filhos, nos ensina sobre o perigo da estagnação e o eterno medo da renovação, e o mito judaico-cristão da expulsão de Adão e Eva do Paraíso nos diz sobre as dores inerentes ao despertar da autoconsciência e ao crescimento psicológico. Infelizmente, o desprezo da mentalidade racional pelo mito nos impede de captar esses importantes significados, tão úteis à vida.

o mito da jornada do herói

Um dos motivos pelos quais o filme Matrix fez e continua fazendo um sucesso danado pelo mundo inteiro é o seu enredo: ele tem profundas bases mitológicas e as pessoas se identificam com essas obras porque elas vivem, em sua própria vida, os temas contidos no filme. O mito é como o leito de um rio antigo, e eu, você e todas as pessoas somos a água que corre por ele: é através da experiência de nossas vidas individuais que o mito está sempre se renovando.

Existem muitos e muitos mitos, cada um relativo a um determinado aspecto da existência, e mesmo sem conhecê-los ou pertencendo a outra cultura, nós os vivemos, cada um de nós, em diversos momentos da vida. Nossas águas estão sempre a percorrer o leito de algum mito, embora quase sempre estejamos inconscientes disso. Conhecendo os mitos e olhando-os pela ótica da psicologia do inconsciente, podemos compará-los com nossas vidas, perceber de que modo os vivemos e, assim, saber para onde se dirigem nossas águas, evitando possíveis desastres.

A história de Neo, que procura incessantemente uma resposta para a pergunta que o move (o que é a Matrix?) nos lembra Percival, o jovem cavaleiro do Rei Artur, buscando saber para quem serve o cálice do Graal. Neo e Percival são versões modernas do mito da jornada do herói, presente há milhares de anos na cultura e religião dos diversos povos da Terra. As histórias variam, mas a essência é a mesma: o herói é alguém que larga a segurança de seu mundo cotidiano e parte em busca de algo difícil e precioso, enfrentando incertezas, sofrimentos, perigos e arriscando a própria vida para, no fim, retornar transformado e vitorioso, mais forte, experiente e seguro, para guiar ou salvar seu povo, casar-se ou substituir um velho rei injusto ou doente.

Com algumas variações, este tema se repete em nossas lendas, contos de fada, religiões e obras artísticas desde que aprendemos a contar histórias ao redor das fogueiras. Esse é o modo pelo qual os humanos conseguem, através de metáforas e sem muita consciência disso, passar para as gerações seguintes algo vital para a sobrevivência da espécie: os segredos da autorrealização.

Nossos ancestrais escutavam as histórias dos heróis com respeito e assombro, envolvidos por rituais que se transmitiam pelas gerações. E hoje, no terceiro milênio da era comum, nós continuamos repassando o mesmo costume, com a diferença que, em lugar das fogueiras, nos reunimos no escuro dos cinemas, compenetrados e reverentes, para escutar a mesma história, para não esquecermos que a vida tem um segredo: cada um de nós precisa realizar a si próprio. Por isso, quando o segredo é recontado nos filmes, disfarçado em dramas, romances, aventuras e comédias, nós nos identificamos, algo dentro de nós se agita e de repente a vida faz mais sentido: é o mágico efeito que os mitos provocam.

Em algum momento da vida o mito da jornada do herói (o mito da autorrealização) é reativado na psique individual, em toda sua força. Vemo-nos então como o herói de Matrix, insatisfeitos com os velhos papéis reservados para nós pela sociedade e em conflito com nós mesmos. Despertamos da letargia, somos obrigados a largar as certezas de nossos valores atuais e partimos rumo ao desconhecido em busca de algo que nos completará, arriscando a segurança e enfrentando medos, dúvidas, sofrimentos e até a autossabotagem. Se persistirmos na jornada interior alcançaremos nossa essência e atingiremos novos níveis de autoconhecimento e harmonia com a vida, realizando nosso potencial, alcançando a bem-aventurança e, inclusive, gerando benefícios para a sociedade. É assim que vivemos o mito da autorrealização em nossas vidas, encarnando em nós a antiga jornada do herói.

Como vivemos em grupo, toda vez que alguém alcança a verdadeira realização pessoal, de algum modo seu exemplo influencia outras pessoas, e assim a espécie como um todo também avança. Por isso se diz que a autorrealização é a melhor forma de contribuirmos, individualmente, para o desenvolvimento coletivo da humanidade.

E é justamente por essa razão que continuamos a contar para as novas gerações, nos cinemas, nos livros e teatros, com roupagem moderna e efeitos especiais, as aventuras míticas dos heróis. Fazemos isso para não esquecer que o sentido da vida é seguirmos a nossa bem-aventurança e realizarmos quem verdadeiramente somos. Uma aventura heróica, sim, mas ao alcance de cada um.

Jesus Cristo super-herói

O filme Matrix tem muitos elementos que remetem à literatura, à cultura pop e ao próprio cinema, a diversas tradições religiosas, místicas e filosóficas, assim como analogias a teorias ligadas a vários ramos da ciência como psicologia, antropologia e sociologia. Pouquíssimas obras de ficção instigaram tantas interpretações diferentes envolvendo tantas áreas do conhecimento humano. Alguns argumentam que Matrix não passa de um borrão de tinta no qual cada um vê o que quer ver, um argumento que também mostra a riqueza da história e de seus fundamentos arquetípicos, pois poucas obras artísticas fornecem tantas e diversas visões.

Na filosofia, as analogias são muitas. É óbvia a parábola da caverna de Platão (parábola ou alegoria, e não mito), onde as pessoas veem apenas as sombras da realidade e as tomam como a própria realidade, limitando suas vidas. Muitos abordam o filme usando ideias de Sócrates, Aristóteles, São Tomás de Aquino, Descartes, Kant, Laplace, Nietzsche, Sartre, Dostoievski, Marx e Baudrillard para discutir coisas como natureza da realidade, metafísica, materialismo, tecnologia, livre-arbítrio, destino e onisciência.

No campo das tradições místicas e religiosas, pode-se ver em Matrix a ideia hinduísta de maya, ou seja, a ilusão na qual vivemos e que nos cega para a verdade maior. Pode-se ver também a ideia taoísta da unicidade de tudo que existe, de se tornar uno com o mundo e assim harmonizar-se com os ritmos naturais da vida. A iluminação de que nos fala o budismo, com sua ênfase na libertação da mente dos padrões a que ela se acorrentou, é uma constante durante toda a história. Pode-se falar também da ideia gnóstica do demiurgo, o arquiteto deste mundo, um falso deus que governa a realidade humana. Os planos astrais e suas entidades, ideias presentes em tantas correntes espiritualistas, também podem ser vistas no filme.

A mitologia grega é representada na história pelo nome de personagens como Morfeu (o deus dos sonhos), que auxilia Neo a despertar de seu sono na Matrix. Há também Perséfone, esposa de Hades e rainha do submundo, que ajuda os humanos quando esses descem ao Inferno, e que em Matrix é esposa de Merovíngio e também dá uma forcinha aos humanos.

A mitologia cristã também está lá, emprestando sua rica simbologia. A trajetória de Neo tem tantos pontos em comum com a vida de Cristo que é improvável que sejam apenas coincidências. Comecemos pelo nome de Neo na Matrix, Thomas Anderson. Anderson, de procedência nórdica, significa originalmente “o filho do homem”, uma das expressões que Cristo utiliza para se referir a si. No início do filme, o amigo que faz uma visita a Neo se refere a ele, literalmente, como “Jesus Cristo” e “meu salvador pessoal”. Assim como Cristo, Neo é tentado e torturado, morre, ressuscita e sobe aos céus. O nome da personagem Trinity remete à trindade cristã (Pai, Filho e Espírito Santo). Merovíngio, o poderoso chefe dos programas rebeldes, é uma referência aos reis merovíngios, da idade média, que se acreditavam descendentes da linhagem real proveniente de Cristo. A nave Nabucodonossor traz a inscrição MARK III, no 11, que pode ser uma referência ao evangelho de Marcos, capítulo 3, versículo 11: “Os espíritos imundos, quando o viam, prostravam-se diante dele, e gritavam, dizendo: Tu és o filho de Deus.”

No entanto, e é isso que mais nos interessa, há algo além das religiões e filosofias que liga a história de Neo com a vida de Cristo e no qual ambas se inspiram. Este elo é justamente o mito da jornada do herói, bem mais antigo que os dois e que pode funcionar como uma espécie de roteiro para entendermos, psicologicamente, suas trajetórias. Jesus Cristo é o grande herói da mitologia cristã. Não é relevante aqui se ele de fato existiu ou não ou se era ou não o legítimo filho de Deus. Para o estudo da psicologia do inconsciente aplicada à mitologia, o que importa é o que sua história tem a nos oferecer em termos psicológicos. O que vale é o leito do rio, a estrutura do mito, e de que modo as pessoas o preenchem com as experiências de suas vidas.

Cristo viveu, a seu modo, a clássica trajetória do herói. Abandonou a segurança do lar e das tradições, empreendeu uma difícil jornada de autoaceitação, sofreu as dúvidas, tentações e dores inerentes aos conflitos de quem reluta em assumir seu destino e, por fim, submeteu-se à sua verdade mais íntima, ou seja, ao fato de que, sim, ele era o filho enviado por Deus Pai para redimir a humanidade.

Igual a Cristo, muitas lendas em variadas culturas, até mesmo mais antigas, contam histórias muito parecidas, com personagens de trajetórias similares, contadas e recontadas através dos séculos. O que torna a história de Cristo tão especial é o fato dela ter inspirado o nascimento de uma religião que atualmente, incluindo suas subdivisões, é seguida por aproximadamente um terço da população do mundo. Não fosse isso, certamente a história do galileu que obrava milagres, arrebanhou seguidores, incomodou líderes políticos e religiosos e morreu crucificado chegaria à nossa época como apenas uma lenda, da mesma forma que tantas outras.

Quinhentos anos antes de Cristo, na Índia, um príncipe muito rico abdicou do conforto de sua vida e foi para a floresta viver de esmolas e meditar sobre o sentido da existência. No momento em que o compreendeu, tornou-se um iluminado, um Buda, perfeitamente integrado à Natureza, capaz de fazer milagres e de ensinar as pessoas a encontrarem também a iluminação e se libertarem das prisões mentais. A mitologia cristã possui tantas semelhanças com a vida do Buda e com outros mitos de outras culturas que é como se uma única história estivesse sendo contada em variadas sociedades sob diversas versões, sob as características próprias de cada cultura e baseada em suas necessidades espirituais específicas. De fato, é sempre a mesma história: o mito da jornada do herói.

Neo, Buda e Cristo, assim como Percival, são heróis porque realizaram a si mesmos, concretizando seu potencial, vivendo profundamente seu mito pessoal e cumprindo seu destino. Cada um deles viveu, a seu modo, o roteiro que marca a jornada mítica do herói.

herói e sociedade: um moto-contínuo

Tudo que existe já traz em si a semente daquilo que o destruirá. A sociedade instintivamente sabe dessa lei universal e por isso sempre verá com desconfiança o indivíduo, ele e seu perigoso potencial de transformá-la. Mais cedo ou mais tarde ele a transformará, e os dois prosseguirão num novo nível, ela tentando manter as coisas como estão, ele a desafiando com sua diferenciação. É um moto-contínuo.

Assim como o impulso evolutivo faz com que a consciência individual evolua numa espiral, passando pelos mesmos pontos em novos níveis, a consciência coletiva da espécie também age assim, tendo de um lado da espiral a sociedade e do outro a individualidade. Nascemos imersos na sociedade, e durante a vida inteira ela exerce sua força coesiva sobre nós – mas do outro lado da espiral a individualidade nos atrai. Para os que a alcançam, ela fornece a diferenciação e a força necessária para prosseguir no caminho legítimo da alma. Seu impulso, porém, obviamente conduz o indivíduo ao outro lado da espiral, de volta à sociedade. Isso significa que a mesma sociedade que segurou o quanto pôde o impulso diferenciador do indivíduo e o rejeitou, mais tarde assimilará os novos valores que ele traz, e assim ela se enriquece, se renova e forma novos indivíduos que, por sua vez, serão também atraídos para o outro lado da espiral e, caso prossigam, levarão a sociedade a novos níveis de evolução. É assim que a espécie evolui, fazendo com que o conflito entre individualidade e sociedade seja o motor do movimento contínuo. Se não houvesse individualidade, as sociedades não mudariam e, assim, logo apodreceriam e morreriam.

Atualmente, a realização individual não se contenta apenas em se diferenciar do bando, como nos dias em que éramos semimacacos, ou em adquirir identidade própria, como nos estágios seguintes da história humana. A autorrealização agora exige mais, exige que alcancemos o ponto mais verdadeiro do que somos para que o potencial que está lá, adormecido, possa se realizar em toda sua plenitude. O novo nível de individualidade que temos de alcançar determina que atinjamos nosso centro, mas para isso precisamos, é claro, conhecer o nosso todo, e o todo inclui não só a superfície, mas o que está dentro. Isso significa que temos de conhecer o interior de nós mesmos, profundamente, do modo mais verdadeiro possível, se quisermos alcançar nosso centro mais legítimo.

Quando Neo finalmente consegue compreender quem ele é, entende seu papel no contexto da existência humana e faz o que deve fazer. É assim que ele salva a humanidade e renova as esperanças do planeta que, agora, suspenso o conflito entre humanos e máquinas, pode enfim se recuperar.

monitorando Neo

O enredo de Matrix será aqui utilizado para ilustrar o processo de autorrealização do ser humano e mostrar que podemos deixar de ser meros personagens para ser os grandes heróis de nossas próprias vidas. Para isso, usaremos como guia o primeiro filme da trilogia, onde mora a essência da história, e alguns trechos dos outros dois. Seguiremos cronologicamente, descrevendo as cenas mais importantes e comparando-as com a referida etapa do processo, usando exemplos da vida cotidiana, sempre dentro do contexto do processo de autorrealização.

Agiremos mais ou menos como os agentes da Matrix, que prenderam Neo e lhe implantaram um rastreador para não perdê-lo de vista. Em nosso caso, seguiremos Neo durante sua perigosa e emocionante jornada porque sua história é a história de cada um de nós. A aventura do guerreiro cibernético vivido pelo bonitão Keanu Reeves é uma metáfora de nossa jornada pessoal rumo à mais verdadeira realização de nós mesmos. A diferença é que Neo é um personagem de ficção e só existe nas telas, enquanto nós, eu e você, existimos aqui no mundo real, na tridimensionalidade do dia a dia, pegando ônibus lotado, suando para pagar as contas, sofrendo por nossos relacionamentos e pelo time que vai mal no campeonato, batalhando arduamente pelo que acreditamos e ainda procurando um sentido maior no meio desse grande caos da existência. Ufa! Merecemos um Oscar pelo conjunto da obra, não?

Monitoraremos Neo para, através de sua trajetória mítica, ver como nós mesmos nos comportamos em nosso processo de autorrealização. Será como um jogo onde o que virmos na tela será transplantado para a vida prática. Definiremos as regras do jogo a seguir, mas não há nada de muito complicado. Lidaremos com noções de mitologia e psicologia do inconsciente, mas tudo será feito de forma leve e descontraída.

Bem, de fato não é fácil traduzir em simples palavras e rápidas explicações o profundo, complexo e misterioso universo da alma. É como traduzir em linguagem racional e científica coisas que são do reino dos sonhos e da intuição. Porém, felizmente existe a arte e seu poder mágico de tocar as pessoas. Existem filmes como Matrix, que já trazem em si, metaforicamente, muito daquilo que os profissionais da psicologia e psicoterapia se esforçam para explicar em seus livros, palestras e consultórios. A metáfora facilita as coisas, levando ao entendimento imediato e instintivo do que realmente interessa, o centro da questão, o símbolo. Por esse motivo é que a psique faz uso da metáfora dos mitos para comunicar suas verdades.

Pois bem. O plano é usar esse incrível filme como instrumento para que nós mesmos apliquemos as verdades mitológicas em nossas vidas e, assim, possamos nos compreender melhor e nos libertarmos um pouco mais.

Mas… libertar-se de quê? Libertar-se daquilo que nos mantém presos e que nos impede de ser quem verdadeiramente somos e de seguir a nossa bem-aventurança. E isso somente cada um de nós será capaz de descobrir o que seja. Esta é a nossa missão, a sagrada missão de cada um de nós.

você se conhece?

Já vimos que, em termos psicológicos, a aventura de Neo pode ser entendida como uma reedição moderna da jornada humana rumo à autorrealização. Certo. Mas o que exatamente vem a ser isso?

Autorrealização é a efetivação do que há de mais profundo e verdadeiro em cada um de nós. Feito uma potencialidade existente no mais profundo do eu, ela nos impulsiona a um processo contínuo de autoconhecimento onde integramos os conteúdos do ser e rumamos para a mais íntima realização pessoal: a concretização da personalidade total.

Autorrealizar-se significa desenvolver o potencial adormecido e nos tornarmos quem somos destinados a ser porque é isso o que sempre fomos: a semente que já traz em si a árvore futura. É impossível autorrealizar-se sem conhecer as próprias possibilidades e torná-las reais. Seria impossível para Neo fazer tudo o que fez sem antes se convencer que, de fato, podia fazê-lo. Você lembra quando ele decide voltar à Matrix para resgatar Morfeu, mesmo sabendo que jamais alguém fez isso antes? Pois é. Nesse momento Neo está, pela primeira vez, convencido de seu potencial e, por isso, consegue fazer o impossível.

Uma pessoa autorrealizada é uma pessoa equilibrada, física e psicologicamente, que se conhece a fundo e por isso é senhora de seus atos. Está consciente das necessidades do corpo e da mente, da linguagem das emoções e do espírito. Em outras palavras, todas as dimensões de seu ser estão harmonizadas. Por conta desse elevado grau de autoconhecimento, é alguém que sabe de seu potencial e o utiliza do melhor modo, sem desperdícios nem autoenganações. É alguém que, mesmo vivendo em meio ao grande caos do mundo, está em harmonia com ele e não se abala facilmente com imprevistos e derrotas. Uma pessoa autorrealizada venceu os desafios mais importantes que a vida lhe impôs e não mais precisa lutar contra seus demônios internos, pois um dia teve a coragem de encará-los, conseguindo assim que eles passassem para o seu lado, herdando deles a força contra a qual tanto lutava.

Para atingir esse ponto, porém, a pessoa tem antes de despertar e se diferenciar da mentalidade comum, como Neo despertou da Matrix, como nossos antepassados peludos se diferenciaram do bando e inauguraram o novo ramo evolutivo que seria a espécie humana. Isso é necessário para que a individualidade se manifeste e a pessoa possa realmente conhecer quem é, buscando suas verdades dentro de si mesma. Quem sou eu? – tudo começa com essa perguntinha safada.

Nada disso é fácil ou rápido. Aqui, porém, precisamos entender algo muito importante: o que verdadeiramente interessa não é alcançar a meta. Parece contraditório empreender uma jornada onde não há chegada, mas é assim que funciona, pois o que interessa realmente nessa jornada é estar no caminho. A essência da autorrealização não é chegar, mas manter-se em movimento, até porque talvez não exista uma chegada definitiva na evolução psíquica. É mais ou menos como encontrar um grande amor: quando isso acontece, não importa o que exatamente vamos fazer ou até onde estaremos com a outra pessoa. Fixar-se nisso é perder a noção do mais importante, que é estar junto e viver o amor a cada dia, sem se preocupar mais que o necessário com seu futuro.

A alma é a dimensão interna da vida, uma dimensão fascinante e também libertadora. Porém, a maior parte das pessoas nunca chega realmente a se aventurar pelo universo de sua alma, preferindo a experiência de vida em níveis superficiais do ser. O motivo disso é que a nossa cultura não nos incentiva a olhar para dentro e, além disso, lá dentro é escuro e, você sabe, do escuro sempre podem vir coisas perigosas…

Geralmente, na primeira metade da vida gastamos a maior parte de nossa energia correndo de um lado para outro em busca de brincadeiras, dinheiro, aceitação social, poder, conquistas sexuais… Mesmo que o mundo interno nos chame a atenção, ele frequentemente é relegado a segundo plano. Algumas pessoas sentem cedo esse chamado, mas a maioria só vai escutá-lo a partir da metade da vida, quando começa a fazer falta um sentido maior. Muitas percebem que o tudo que conquistaram não as fez realizadas – nem livres. Aliás, é comum as pessoas chegarem a esse ponto se sentindo sufocadas: pelo tempo, pelo trabalho, pela família, pelas exigências sociais e até por suas próprias ideias e atitudes que durante muito tempo foram úteis, mas agora não têm o mesmo valor. É em momentos assim que a vida nos faz lembrar que temos uma missão sagrada e que só poderemos cumpri-la se nos voltarmos para a dimensão interna da nossa vida.

A história de Neo é a nossa própria história, a de alguém que um dia não se conforma com a vida que vive e busca uma vida mais verdadeira. Assim sendo, a partir de agora olhemos para o filme com outros olhos. Para monitorar o herói em sua jornada de autorrealização, precisamos ver o filme sob um ângulo psicológico, onde Matrix passa a ser a história de apenas uma pessoa, no caso Neo, e onde todas as situações do filme se referem diretamente ao herói, à sua psique. Por isso todos os personagens, a partir de agora, representarão aspectos psicológicos do próprio Neo.

Acho que não entendi bem…, você pode estar pensando. Não se preocupe. Vamos treinar nosso olhar um pouco mais antes de começarmos o monitoramento de Neo. Vamos falar sobre essa coisa misteriosa e fascinante que é a psique.

o organismo psíquico

A cada dia novas descobertas tornam menos precisas as fronteiras entre mente e corpo, mostrando que as duas coisas talvez não sejam tão distintas como julgamos. Mas, para efeito didático, ainda precisamos explicar separadamente essas dimensões do ser.

Assim como possuímos um conjunto de órgãos, um organismo, que age dentro de leis físicas, químicas e biológicas, possuímos também um “organismo psicológico” que atua seguindo suas próprias leis. Esse segundo organismo é a psique, e assim como o corpo físico, ela também regula a si mesma, podendo adoecer mas também promover a própria cura. Para entendermos melhor a psique, temos de vê-la como algo vivo e possuidor de uma espécie de inteligência própria e capaz de se autorregular. Nesse ponto, ela é como a Terra, um superorganismo que mantém a vida em si através do equilíbrio entre seus órgãos minerais, vegetais e animais. Bem, é verdade que o Homo sapiens, um dos órgãos animais, ultimamente tem se esforçado bastante para desequilibrar tudo, mas isso é outra história.

A psique é formada pela consciência e pelo inconsciente. A consciência é a área superficial da psique, ou seja, o nosso conhecimento imediato sobre nós mesmos. O centro da consciência é o ego, e é por ele que manifestamos nossa vontade. Por ele ser o centro da personalidade consciente, é justamente pelo ego que temos consciência do que somos ou não somos. Mal comparando, o ego é como a pele, pois ela é o elemento de comunicação mais visível e imediato do corpo com o ambiente externo. Mas a pele não é o corpo inteiro: do lado de dentro há outros elementos que atuam o tempo todo, estruturando o corpo, mantendo-o vivo e influenciando nosso comportamento, mesmo que não o percebamos. Ver o ego como a personalidade total equivale a confundir a pele com o corpo inteiro.

O conhecimento do ego sobre a psique ou a personalidade total, da qual ele é apenas uma parte, só alcança o que está na consciência, aquilo que é distinguível com a luz do discernimento da personalidade consciente. O que está além da fronteira da consciência, ou seja, o que faz parte do inconsciente, está na escuridão e não pode ser percebido pelo ego. Por conta do posto que ocupa, de “representante autorizado” da psique para o mundo externo, o ego tende sempre a se considerar o eu psíquico total. Mas não é. Esta é a sua velha ilusão, achar que está sempre no controle da situação. Não está porque os elementos do inconsciente influenciam no comportamento da pessoa sem o ego se dar conta, pois ele só admite a existência do que está em sua área, a consciência. Para o ego, reconhecer o inconsciente é reconhecer que não está sozinho no controle – e isso é sempre um golpe no orgulho egóico.

Às vezes dizemos: “Eu tenho umas coisas que não entendo…” ou “Não sei o que deu em mim para fazer aquilo…” ou “Eu estava fora de mim.” Em momentos assim estamos pressentindo que não somos apenas o ego, ou seja, que somos algo mais que apenas a nossa percepção consciente de nós mesmos. Estamos quase admitindo que existem outros aspectos de nós e que não os conhecemos bem nem temos controle total sobre eles. Quando surgem essas incertezas é sinal que conteúdos do ser, antes totalmente inconscientes, se aproximam da fronteira da consciência. O ego já os pressente e se incomoda. Esses conteúdos estão saindo das sombras do inconsciente e forçam saída rumo à luz da consciência, querendo ser integrados à personalidade consciente. O melhor a fazer é ir ao encontro deles antes que esses danados imprevisíveis provoquem confusões maiores. Isso é investigar-se psicologicamente, dar atenção ao mundo interno. Isso é autoconhecimento.

O ego, portanto, é uma espécie de gerente da psique, incumbido de facilitar o fluxo de conteúdos entre a consciência e o inconsciente, fluxo este que visa manter o equilíbrio psíquico, vital para a saúde do indivíduo. Um ego imaturo, porém, age feito um gerente inseguro, que está sempre tão preocupado em manter a ilusão de se achar mais do que é que não consegue perceber a existência de certos problemas na empresa. É exatamente por causa dessa negligência que os problemas se acumulam, ou seja, o fluxo de conteúdos entre consciência e inconsciente não ocorre de modo satisfatório. Para esse gerente inflado de orgulho, a prioridade não é o crescimento psíquico (crescimento da empresa), mas segurar seu cargo, manter as coisas como estão, empurrando com a barriga, adiando, fingindo não ver.

Se o ego não desempenha bem sua função gerenciadora da psique total, ignorando o inconsciente e fazendo a pessoa viver a si mesma de modo unilateral, os interesses egóicos se chocam com os interesses do eu total e as forças autorreguladoras da psique intervêm, queira o ego ou não. E aí surgem as crises.

o inconsciente

Mas… e o inconsciente, de que é feito exatamente? Podemos, a princípio, resumi-lo como o conjunto de tudo aquilo que não sabemos sobre nós mesmos. No inconsciente vivem, vamos chamar assim, complexos energéticos que possuem certo grau de independência, como se fossem entidades de vontade própria dentro de nós mesmos. Enquanto esses conteúdos inconscientes não forem percebidos e devidamente assimilados pelo ego, estarão sempre agindo na surdina, influenciando o comportamento, nos impedindo de sermos melhor do que somos, levando-nos a fazer coisas das quais nos envergonhamos e ocasionando males diversos.

É um monstro terrível esse inconsciente, um Godzilla que sempre destrói os planos da personalidade consciente? Não é bem assim. O inconsciente é imenso como o mar, é escuro como a noite – mas não é bom nem mau. Ele não tem moral, e tudo que deseja, e vai conseguir de um modo ou de outro, é se manifestar no mundo externo. O inconsciente possui conteúdos positivos e negativos, que podem ajudar ou prejudicar, dependendo da atenção que lhes dê o ego. Se o ego for um bom gerente, o inconsciente se tornará um importante aliado da personalidade consciente vida afora.

Você já comeu o corpo de um inimigo vencido? Não? Eu também não. Mas algumas tribos guerreiras tinham esse hábito de, após vencer uma batalha, comer os corpos dos inimigos mais valentes num ritual cheio de respeito e reverência. Nojento? Para nós pode ser, mas agindo assim eles acreditavam incorporar a coragem e a destreza do inimigo e, com isso, tornavam-se guerreiros mais fortes. Você pode não agir assim com seus inimigos de carne e osso, porém é isso que ocorre quando vencemos os desafios internos de nossa personalidade: o que antes era um inimigo traiçoeiro a nos emboscar no escuro do inconsciente finalmente junta-se à consciência e nos engrandece, nos equilibra e nos faz mais fortes e capazes.

hoje tem espetáculo

Talvez a analogia com as tribos guerreiras não tenha feito bem a seu estômago. Tentemos então pelo lado da arte.

Imaginemos a psique como um grupo teatral, composto de vários atores. Quando a cortina se abre, porém, no palco há somente um único ator sob um facho de luz concentrada. O ator é o ego e a luz é a consciência. A consciência ilumina tudo o que toca, permitindo que o ego, que está sempre em seu centro, veja, descrimine o que existe e decida o que fazer com o que descobriu. O próprio ego dirige o foco de luz da consciência, formando com ela quase que uma só entidade. Quase, pois em certos momentos ela ilumina um pouco mais do que ele gostaria de ver.

O ego acha que está só no palco, realizando seu monólogo mas, atrás dele, na penumbra do fundo do palco, existem outros atores, uns mais quietos, outros nem tanto: são os outros aspectos do ser. Estão no escuro porque lá a luz da consciência ainda não chegou, e o ego, por isso, não reconhece sua existência. São aspectos da personalidade que ainda não foram devidamente integrados à consciência. São conteúdos inconscientes porque o ego está inconsciente deles. Pode ser a agressividade ou um grande medo não reconhecido, pode ser um trauma da infância, uma grande culpa ou a sexualidade não assumida. Pode ser muita coisa – mas o ego não sabe desses aspectos ou finge não saber, pois em algum momento decidiu que seria melhor não conviver com eles.

Esses atores da escuridão sabem que o ego é o ator principal, mas eles também querem participar mais ativamente do espetáculo. Mesmo que não sejam oficialmente reconhecidos pelo ego, eles se movimentam em segundo plano e isso cedo ou tarde interferirá no andamento da peça. Quando isso ocorrer, o ego terá a primeira noção de que não está sozinho no palco. Mas poderá insistir em continuar desprezando os colegas, fingindo que nada aconteceu. Quanto mais os desprezar, mais eles se esforçarão para aparecer, podendo forçar a barra e chegar ao cúmulo de se adiantar no palco e dividir a luz do refletor com o ego, para surpresa e embaraço deste. O ego, coitado, que em nenhum momento teve controle total sobre os rumos da peça, agora é obrigado a admitir abertamente que existem outros atores e terá forçosamente de incluí-los em sua própria história.

Isso é apenas uma comparação, claro, mas é o que ocorre diariamente em nossas vidas. Pensamos que estamos agindo sozinhos, mas outros aspectos que fazem parte de nosso eu total estão atuando também, às vezes contribuindo e outras vezes atrapalhando e até mesmo sabotando os planos de nossa personalidade consciente. A necessidade de autoconhecimento leva o ego a ampliar a luz da consciência a fim de iluminar outros pontos da psique total, à procura do que mais possa estar ali. É um trabalho delicado e custoso, pois requer a coragem de encarar o que não se conhece em si próprio. Isso trará mudanças, inevitavelmente, e o ego não é muito chegado a mudanças, preferindo sempre manter as coisas como estão. Mas não há outra forma da psique se equilibrar e da personalidade consciente ter mais controle sobre a própria vida. O ego precisará se transformar, e para isso terá de ter grande honestidade consigo mesmo, paciência e perseverança.

Jogar a luz da consciência sobre nossos conteúdos inconscientes significa assumir outras partes de nós mesmos. Algumas dessas partes já suspeitamos que existem e, bem ou mal, convivemos com elas no cotidiano. Outras partes, porém, por algum motivo, em algum momento da vida decidimos mantê-las na escuridão – são essas as mais difíceis de lidar, pois, se por um lado essa decisão permitiu ao ego levar a vida como se essas partes não existissem, por outro lado lhes proporcionou a oportunidade de se desenvolver sem serem incomodadas. Por conta disso o ego sempre se assusta ao vê-las sair das sombras, crescidas e cheias de vontade, e vir dividir com ele a atenção da plateia.

tornar-se o próprio herói

Uma pessoa consciente de seu caminho de autorrealização sabe perfeitamente que o processo exige um contínuo transformar-se e toda transformação traz algum tipo de crise. Essa pessoa sabe que dialogar com suas outras partes e reconhecer que elas fazem parte do eu total não é trabalho fácil, pois traz incertezas e angústias. Mas o processo de autorrealização exige que a consciência se amplie para que a pessoa pare de brigar com seu próprio inconsciente, ou seja, com ela mesma. Deixando de brigar com o que reprime dentro do ser, a pessoa se torna mais autoconsciente e equilibrada, assim como Neo que, à medida que conhece seu potencial, segue treinando suas capacidades e assim consegue se movimentar melhor na Matrix.

Por outro lado, se a pessoa tem medo do que possa vir do escuro do ser e continua reprimindo a própria natureza, a psique cobrará tal negligência, atrapalhando os planos do ego, forçando-o a gafes e atitudes cada vez mais constrangedoras ou até mesmo provocando insucessos, acidentes e doenças – isso tudo para forçar o ego a parar um pouco e olhar para dentro. Esses mecanismos psíquicos fazem parte da capacidade de autorregulação do eu total, que só tem um único objetivo: realizar-se em sua inteireza, tornar-se a árvore futura que a semente predizia. Mas isso será impossível se consciência e inconsciente não estiverem em harmonia.

O processo de autorrealização leva a pessoa a lidar mais harmoniosamente com o mundo, com as outras pessoas e consigo mesmo. É como Neo, que a partir do momento em que entende verdadeiramente quem é, deixa de ser iludido pela Matrix e percebe que, em vez de ser manipulado, pode fazer o que bem quiser.

Nosso objetivo é o mesmo de Neo: tornarmo-nos os grandes heróis de nossas próprias vidas. Devemos descobrir quem somos e o que devemos fazer – isso é o processo de autorrealização. E ele é como as melhores aventuras do cinema: tem um enredo criativo e cheio de reviravoltas, um herói cativante, inimigos terríveis, perigos e armadilhas por todo lado, suspense de arrepiar, romances… E o que é mais incrível: é real. Não está acontecendo na tela, mas em nossas próprias vidas!

Mas antes é preciso despertar. Abrir a porta que dá para o mundo interior. Seguir o coelho branco.

Bem, acho que basta de treinamento. Já estamos prontos para monitorar nosso herói. Então vamos lá. As luzes já foram apagadas. Desligue o celular e se acomode na poltrona. O filme vai começar.

(continua)

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Ricardo Kelmer 2005 – blogdokelmer.com

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CONTEÚDO INTEGRAL DO LIVRO

Cap. 1 – Cinema, mito e psicologia
Cap. 2 – Toc, toc, toc… Acorde, Neo!
Cap. 3 – Não existe colher
Cap. 4 – Morrendo para vencer

Cap. 5 – Matrix Reloaded e Matrix Revolutions
Cap. 6 – Os personagens
Cap. 7 – Quadro comparativo

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> saiba mais – compre o livro

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A mensagem de Avatar ao Povo da Terra

28/01/2010

28jan2010

Temos de compreender o que os antigos já sabiam e nós esquecemos: a Terra é um ser vivo e nós fazemos parte dele

A MENSAGEM DE AVATAR AO POVO DA TERRA

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Muitos aplausos merece James Cameron por seu filme Avatar. Se o cinema já é uma experiência meio onírica, agora, com as técnicas de filmagem para a tecnologia 3D criadas pelo diretor, avançamos ainda mais dentro do sonho. Pena que, quando acaba o filme, estamos de volta ao nosso pesadelo terráqueo, do qual não conseguimos acordar.

A história de Avatar é simples: os humanos, interessados num valioso mineral existente na lua Pandora, invadem a terra de um povo humanoide, que se defende bravamente e conta com a ajuda fundamental de um humano que vira a casaca e passa a lutar ao seu lado. O roteiro não tem atrativos maiores e chega a ser previsível. Os personagens vestem os velhos modelões: tem o mocinho que se transforma ao longo da história, a mocinha que gosta dele, outro cara que gosta dela, o vilão malvado que morrerá no embate final…

Então, Avatar teria como único destaque os efeitos especiais, aperfeiçoados pela nova tecnologia 3D? Não. O filme tem o grande mérito de focar com competência na questão ecológica, e o faz em duas frentes: no visual exuberante do mundo de Pandora e na conexão mística de seu povo, os Na´vi, com a Natureza. Em Avatar, o 3D nos entretém e sempre rouba a cena, é verdade, mas a mensagem ecológica fica em nossa mente após o filme. E é isso que importa.

Toda a força do povo Na´vi vem do fato deles entenderem Pandora como um ser vivo que se comunica com tudo que nele vive, inclusive com os Na´vi, que não apenas o habitam mas são parte integrante desse ser. Eles vivem de forma harmoniosa com Pandora porque é assim que se sentem, unos com ela, e por isso sua relação com tudo que vive é de um respeito carregado de sacralidade, devoção e gratidão, como se fosse uma religião. Ops! Chegamos a uma das melhores coisas de Avatar: a religião dos Na´vi, se é que podemos chamar de religião, é a própria Natureza.

E aqui na Terra, fora da tela? Aqui, seguimos em nosso pesadelo real. O Homo sapiens, a única espécie sobrevivente da linhagem hominídea, vive um momento evolutivo decisivo: ou se entende já com a Natureza ou então procura outro lugar para morar. Putz, por que chegamos a esse ponto lamentável? A resposta estaria prontinha na boca de qualquer Na´vi: Porque vocês se separaram da Natureza. E não poderemos discordar. É justamente porque nos entendemos separados da Natureza que desrespeitamos as leis do planeta onde vivemos, e achamos que escaparemos impunes. Não escaparemos porque, sendo parte da Terra, ao destruí-la estamos também destruindo a nós mesmos.

Repensar a forma como nos percebemos em relação à Terra e a nós mesmos, é disso que precisamos, urgente. Temos de compreender o que os antigos já sabiam e nós esquecemos: a Terra é um ser vivo e nós fazemos parte dele. Se você pensou agora na teoria de Gaia, é isso mesmo. Segundo a teoria, a Terra é um superorganismo vivo, autoconsciente, dotado de inteligência própria, capaz de se autorregular e que, como tudo que vive, busca o equilíbrio interno. E nós, assim como tudo que vive na Terra, fazemos parte desse equilíbrio. Infelizmente, o Homo sapiens civilizado desprezou o que seus antepassados sabiam, e o preço disso pode ser seu próprio extermínio, como outras tantas de espécies que não souberam se adaptar ao equilíbrio geral do organismo maior.

Religiões gostam de cultuar deuses distantes, entidades inalcançáveis, tudo muito longe daqui. Talvez seja o momento de focar mais perto em nossa busca pelo Sagrado. Se existe algum tipo de religiosidade que pode nos salvar a todos, ela se resume ao amor pelo planeta e pela Humanidade. Uma religiosidade sem deuses, templos ou dogmas. Sem salvadores, pecados originais, guerras santas, e sem dízimo. Uma religiosidade cuja salvação virá de uma profunda mudança de percepção – ou não virá.

Ah, mas como cuidar de algo que não é de ninguém e no qual todo mundo mete a mão? De que adianta alguns terem essa noção sagrada da Terra se outros não têm e esses continuam a desrespeitá-la? Chegamos à conclusão inevitável, que é a mensagem mais importante de Avatar: só cessaremos o desequilíbrio do organismo geral se agirmos como organismo geral. Em outras palavras, é somente nos entendendo como um povo só, o Povo da Terra, que poderemos cuidar devidamente da Terra e de nós mesmos. Enquanto formos vários povos, vários países e várias religiões, não alcançaremos a visão do todo. Enquanto houver fronteiras, religiões e outras noções separatistas, não nascerá a unidade necessária para agirmos em conjunto. Somente quando surgir o Povo da Terra é que haverá salvação para o Homo sapiens.

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Ricardo Kelmer 2010  – blogdokelmer.com

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PALESTRA
Este texto é o resumo da palestra que fiz no Encontro de Cinema, um dos eventos integrantes do 17o Encontro da Nova Consciência, festival de caráter multicultural que acontece desde 1992, durante os dias de Carnaval, na cidade de Campina Grande, na Paraíba.

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AVATAR – TREILER

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FILMEAvatarCartaz-01AVATAR – FICHA TÉCNICA

Avatar
Diretor:
James Cameron
Elenco: Sam Worthington, Sigourney Weaver, Michelle Rodriguez, Zoe Saldana, Giovanni Ribisi, Joel Moore
Produção: James Cameron, Jon Landau
Roteiro: James Cameron
Fotografia:
Mauro Fiore
Trilha Sonora: James Horner
Duração:
150 min
Ano: 2009  –  País: EUA
Gênero: Ação  –  Distribuidora: Fox Film
Estúdio: Twentieth Century-Fox Film Corporation / Lightstorm Entertainment / Giant Studios
Classificação: 12 anos

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LEIA NESTE BLOG

A imagem do século 20 – Vimos nossa morada flutuando no espaço. Vimos um planeta inteiro, sem divisões. Não vimos este ou aquele país: vimos o todo

Minha noite com a Jurema – Nessa noite memorável, fui conduzido para dentro de mim mesmo pelo próprio espírito da planta, que me guiou, comunicou-se comigo, me assustou, me fez rir e ensinou coisas maravilhosas

Xamanismo de vida fácil – A tradição xamânica dos povos primitivos experimenta uma espécie de retorno, atraindo o interesse de pesquisadores e curiosos

Pátria amada Terra – É animador ver as novas gerações convivendo mais naturalmente com essa noção de cidadania planetária

WikiLeaks e o nascimento da cidadania global – Quanto mais as pessoas se conectam à internet, mais elas se entendem como participantes ativos dos destinos do mundo e não apenas de seu país

Uma bandeira diferente – As pessoas saudavam o nascimento do novo símbolo que emergia do fundo da alma de todos falando de paz e unicidade, de um mundo unido e sem divisões

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DICA DE LIVRO

LIVROOBuracoBrancoNoTempo-01O Buraco Branco no Tempo
Peter Russel – Editora Aquariana, 1992

As ideias deste livro inquietante vão além de muitas compreensões padronizadas que temos a respeito da vida. Elas nos levam a pensar sobre o tempo de uma forma diferente e nos fazem exercitar uma nova maneira de nos percebermos, como espécie, dentro do contexto da evolução e do Cosmos. O físico Peter Russel, numa linguagem acessível, mostra porque a atual crise da Humanidade é, na verdade, uma crise de percepção, e chama a atenção para o ritmo vertiginoso da atual evolução tecnológica. Podemos, neste momento, estar à beira de um decisivo salto de compreensão a respeito do tempo e de nós mesmos.

> Teoria de Gaia na Wikipedia

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01- adorei o artigo sobre Avatar. Voce pegou o ponto central da questao… e o pior é que esta é uma sindrome bem comum desde uma escala pequena (ruas e pracas) ate a escala global. Temos esta ideia que somos meros visitantes, com bilhete pago e direito a faxineiro para colocar tudo de volta como era quando a gente sair… ahh tolos mortais :- ) … Desenvolvemos inteligencias incriveis em tantos campos da vida, mas ficamos tao especializados que estamos cada vez menos sabios para entender o todo e como nos relacionamos com este todo! Roberta Lossio, Recife-PE – jan2010

02- Sintetizadissimo! Depois faço um comentário mais aprofundado. Massa demais. Gabriel Sousa, São Paulo-SP – jan2010

03- êêê…a menina de olhos puxados ressuscitou tua consciencia cósmica!!! Edgar Powrczuk, Porto Alegre-RS – jan2010

04- Gostei muitíssimo. Houve uma sinapse em mim, por volta de dezembro, que me faz viver hoje, justamente, o fim da era separatista e o renascimento pela Unidade… Vou repassar, viu? Amei. Um cheiro. Ana Karla Dubiela, Fortaleza-CE – jan2010

05- Você é simplesmente DEMAIS. Gosto de tudo o que vc escreve, me identifico com seu pensamento holistico de vida e espiritualidade.Te adoro! Beijos. Sandra Neves, Belo Horizonte-Mg – jan2010

06- NÃO TENHO O MENOR INTERESSE NESSA BABAQUICE NEW AGE E MUITO MENOS NAS IDIOTICES PRETENSAMENTE LITERÁRIAS E PRETENSAMENTE ERÓTICAS QUE VC ESCREVE. DESCULPE-ME, MAS VC É UMA FRAUDE! QQ SER HUMANO CAPAZ DE DIZER QUE AVATAR “FICARÁ MARCADO NA HISTÓRIA DAS ARTES” SÓ PODE SE UM DÉBIL MENTAL OU NÃO ENTENDER ABSOLUTAMENTE NADA DE CINEMA OU ARTE. Marcos K, São Paulo -SP – jan2010

07- Que liiindo!!! Não tinha vontade nenhuma de ver este filme, mas este seu artigo me convenceu. É deste Ricaredo que eu gosto, quando fala sério, do universal. Os dois últimos parágrafos estão divinos. Parabéns e muito sucesso nesta palestra do Encontro da Nova Consciência. Muito obrigada. Até que enfim uma luz no fim do túnel. Gilvanilde Oliveira Falcão, Fortaleza-CE – jan2010

08- Amei a cronica sobre a visao de Avatar. Vc ja me fez despertar duas visoes diferentes de filmes: Matriz e agora Avatar. eu amei e ja repliquei. Fabiano Brilhante, Fortaleza-CE – jan2010

09- Todo verdadeiro Xamã é profundamente RELIGIOSO no sentido original e etimológico do que significa ser religioso. Ele e a Natureza são um só. O Espírito Católico/Javético DESLIGA e o Espírito Xamã RELIGA. Hey xamã nordestino!!!!!, Me likes muitão tua ALMA. Tua PANDORA/HELENA/SHERAZADE/PROSTITUTA SAGRADA… Patrícia Lobo, Salvador-BA – jan2010

10- Ainda não assisti ao filme, mas depois dessa crônica, desse final de semana não passa! Mônica Burkleward, Recife-PE – jan2010

11- Caro amigo, é sempre um prazer compartilhar esta percepção de unicidade e de – SINTO-ME FELIZ EM USAR ESTA PALAVRA QUE HÁ TEMPOS EVITO – religiosidade. Sim Na’vi poderia ser nossa Gaia. Somos uno e estamos conectados com o planeta, não compreender isso é buscar o próprio fim. Também tenho feito algumas palestras sobre o tema, e vinculado a educação a distância nesse paradigma de integração. José Lins Jr., Juazeiro do Norte-CE – jan2010

12- O próprio filme, a tecnologia, o cinema como arte, são separações/criações de algo do humano que não estão na natureza. Nós não somos naturais, desde a metáfora da “saída do paraíso”. Não estamos como água na água, como os outros seres vivos, como dizia o George Bataille. E também Hegel: “o homem é a doença do animal”. Diante disso, a única saída é nos conscientizarmos do nosso alto poder destrutivo, inclusive contra nós mesmos e procurarmos soluções de controle e auto gestão pela força, que é a única coisa que é respeitada. Direito, justiça e leis, como coação, desde Kant. O problema é que o capitalismo se tornou maior que os Estados e a sua possível força. A coisa é muito complexa. Adianta o que cada um pode fazer e que, de certa forma, lentamente demais, mas simplesmente impossível de ter-se visto há poucos anos atrás, o discurso ecológico está aí, nem que os que não queiram, que vão utilizá-lo politicamente, não o queiram. O discurso ecológico é o velho silêncio da morte. Contra a morte, ninguém pode, e é isso que acontecerá com o planeta e com a raça humana. Diante da morte, própria, dos amados e odiados, o “povo da terra” vai ter que se unir. Se há alguma coisa ainda natural para o homem é a morte. Então, unam-se “o povo da morte”. Retornarão para a terra, “metafóricaliteralmente”….. Abraço, do amigo. Ronald Paula, Fortaleza-CE – jan2010

13- Adorei, querido! Vou reenviar para meus amigos!!!!! Liz Cristal, São Paulo-SP – jan2010

14- Adorei!!! Linda Mascarenhas, Fortaleza-CE – jan2010

15- Parabens Ricardo pelo seu blog. Maria Christina, Brasília-DF – jan2010

16- Bem, gostei bastante desta mensagem pois olha, assisti ontem a noite o filme Avatar… Muito lindo. Você tem toda razão, é tudo isso e mais um pouco. Realmente a mensagem ecológica fica na memória de quem assisti o filme, e para os mais sensíveis, fica ainda a consciência buscando algo a fazer em prol da natureza. Parabêns, esteja em Paz, sucesso em sua vida. Jaqueline Lima, Ariranha-SP – fev2010

Adorei, querido! Vou reenviar para meus amigos!!!!!Adorei, querido! Vou reenviar para meus amigos!!!!!

O ridículo das religiões (filme)

02/01/2010

Ricardo Kelmer 2010

Veja o filme pois certamente você rirá do absurdo das crenças dos outros. E, se tiver um mínimo senso de autocrítica, vai dar risada também das suas

Por que, em vez de falar diretamente a todos, Deus envia mensagens apenas a um ou outro escolhido, fazendo com que as pessoas sejam obrigadas a acreditar cegamente em tudo que eles dizem?

Será que os cristãos sabem que a história de Jesus Cristo é mais uma cópia de outras histórias anteriores sobre deuses que nasceram de mães virgens no dia 25 de dezembro, que fizeram milagres, foram mortos e ressuscitaram no terceiro dia?

De sexta pra sábado Deus proíbe os judeus de apertarem botões mas é possível enganá-lo usando-se maquininhas, criadas pelos próprios judeus justamente pra este fim. Mas o que Deus acha de ser enganado?

O comediante estadunidense Bill Maher percorreu alguns países entrevistando cristãos, judeus e muçulmanos e fez a eles perguntas simples, do tipo que as crianças fazem, e o resultado é hilário. Dirigido por Larry Charles (“Borat”), o documentário Religulous (religion + ridiculous) mostra com bom humor a irracionalidade das crenças religiosas e o perigo que elas representam pro futuro do mundo e conclama ateus e não-religiosos a saírem do armário. Você é religioso? Veja o filme pois certamente você rirá do absurdo das crenças dos outros. E, se tiver um mínimo senso de autocrítica, vai dar risada também das suas.

Que bom que filmes como esse estão sendo feitos. Isso indica que as pessoas não religiosas se sentem mais livres pra expor sua opinião sobre a religião e os malefícios que ela causa à humanidade. Somente assim a religião perderá seu injustificável privilégio de não poder ser criticada.

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Ricardo Kelmer – blogdokelmer.wordpress.com

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Religulous
2008, 101 min, Documentário
Classificação: 16 anos
Direção: Larry Charles / Roteiro: Bill Maher
Elenco: Bill Maher
Sinopse: O popular comediante Bill Maher viaja a destinos religiosos e analisa com humor as diferentes perspectivas sobre a religião. No documentário, Maher entrevista católicos, judeus e muçulmanos, entre outros credos. Do mesmo diretor de “Borat”.

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Religulous – Treiler

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LEIA NESTE BLOG

> Bem vindo ao clube dos excomungados – Pra Igreja o pecado de estuprar ou assassinar alguém é menor que o de praticar um aborto

> Memórias de um excomungado – Eu jamais havia cogitado a ideia de que era possível não ter religião ou não acreditar em Deus

> A menina, a exorcista e a cantora – Primeiro a menina é usada como laboratório de novas técnicas de exorcismo. Agora é usada como objeto de promoção de igreja evangélica. ATENÇÃO: CONTÉM MENSAGENS POUCO RESPEITOSAS DE FANÁTICOS RELIGIOSOS

> Religião certa e sexualidade errada – Com exceção daquelas mais ligadas à Natureza, as religiões atuais foram criadas por homens e refletem a mentalidade patriarcal dominadora

> Religião no esporte é gol contra – Se nada for feito, a religião invadirá os campos e quadras e o esporte virará uma cruzada entre os jogadores e seus deuses. ATENÇÃO: CONTÉM MENSAGENS POUCO RESPEITOSAS DE FANÁTICOS RELIGIOSOS

> Santa Luana, livrai-nos dos fanáticos – Crer que o ser supremo do Universo tá do meu lado e castigará quem discorda de mim e que o meu deus é real e os outros são mentira – isso não é fanatismo? ATENÇÃO: CONTÉM MENSAGENS POUCO RESPEITOSAS DE FANÁTICOS RELIGIOSOS

> Meu futuro de popistar cristão – Meus shows seriam superanimados, sempre acompanhados de meu time de ruivinhas cristãs de minissaia, as Noviças Viçosas

> O mundo é uma mentira – Este filme mostra o quanto a história é manipulada pelas elites religiosas e econômicas, que “criam” os fatos e nos fazem todos acreditarmos neles, lutarmos por eles, matarmos por eles

> Religião no poder é fogo – A primeira vítima da promiscuidade entre poder e religião é justamente o maior dos sustentáculos da democracia: a liberdade

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MAIS SOBRE ATEÍSMO

> ATEA – Assoc. Bras. de Ateus e Agnósticos – Vale a pena conhecer. Ou você tem medo de mudar de ideia?

> Neurocientista e escritora Suzana Herculano sai do armário – Bem vinda ao clube, Suzana!

> Religulous (filme) O comediante estadunidense Bill Maher percorreu alguns países entrevistando cristãos, judeus e muçulmanos e fez a eles perguntas simples, do tipo que as crianças fazem, e o resultado é hilário.

> Ateus.net – Bom site sobre ateísmo.

> Ateus do Brasil – Mais um bom site sobre ateísmo.

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 COMENTÁRIOS
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01- Este texto mereceria uma resposta assim: se eu tivesse que ter uma religião só minha seria adorar você. Claire, São Paulo-SP – fev2011


Toc, toc, toc… Acorde, Neo

13/12/2009

Ricardo Kelmer 2009

 

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A palestra O Despertar do Herói é a que mais apresentei, umas cinquenta vezes, poraí. Criada em 2000, eu já a levei a empresas, escolas, faculdades e também a grupos particulares. Em Campina Grande, na Paraíba, apresentei-a pra uma plateia de quinhentas pessoas, olhaquiloco. Isso é uma prova do quanto os mitos nos tocam a alma e fazem reverberar dentro de nós a essência mágica de suas mensagens.

Se você mora em São Paulo, tá convidado pra próxima apresentação, em 17dez2009, no Esp Cult Alberico Rodrigues.

> Palestra “O despertar do herói – A jornada sagrada de autorrealização nos mitos, em Matrix e em nossas vidas”

RK fala de Mitologia, Psicologia, Autoconhecimento e Realização Pessoal em linguagem simples e descontraída para mostrar que o mito da Jornada do Herói, presente nas histórias de tantas culturas, é uma metáfora do processo de autorrealização, a jornada individual de todos nós rumo à nossa essência mais verdadeira e profunda.

Podemos ver esse mito em lendas, livros e filmes, como se fosse um precioso segredo – que muitos infelizmente esquecem e assim se perdem de sua essência mais legítima. Assim como os heróis dos mitos e do cinema, cada um de nós está predestinado a se realizar verdadeiramente e, com isso, tornar-se o grande Herói de sua própria vida. Mas antes é preciso, como o herói de Matrix, despertar, distinguir-se da massa, conhecer-se e assumir a tarefa que dará sentido à existência.

> HORÁRIOS
18h: exibição do filme – 20h15: intervalo para o café
20h30: palestra – 21h30: encerramento
Local:  Espaço Cultural Alberico Rodrigues. Praça Benedito Calixto, 159 – Pinheiros. Estacionamento na praça.  Inf.: 3064.3920 e 3064.9737. R$ 10.
> Mais palestras de RK

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Ricardo Kelmer – blogdokelmer.wordpress.com

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Treiler da palestra

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Filme: Desconstruindo Harry

04/11/2009

Ricardo Kelmer 2009

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Desconstruindo Harry

FICHA TÉCNICA

Deconstructing Harry
EUA, 1997 – 95 min
Elenco: Woody Allen, Kirstie Alley, Tobey Maguire, Demi Moore, Robin Williams, Billy Crystal e outros
Roteiro e direção: Woody Allen
Indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Original

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RK COMENTA

Niilismos e orgasmos

Harry Block é um conhecido escritor que usa e abusa de referências autobiográficas em seus livros, o que acaba por incomodar seus amigos, familiares e amantes, que se descobrem nas histórias publicadas e não gostam nada de como foram retratados. Em meio a uma crise criativa, abandonado pela amante e preparando-se para ser homenageado pela própria escola que no passado o expulsou, Harry passa a se relacionar com seus próprios personagens, que lhe mostrarão novas formas de compreender sua vida confusa.

Eis mais um daqueles deliciosos personagens cheios de neuras de Woody Allen. Harry gasta todo seu dinheiro com análise, advogados e putas e ele é o primeiro a prevenir suas amantes para que não se apaixonem por ele. Acusado por sua ex-mulher de levar a vida baseado tão-somente em niilismo, cinismo, sarcasmo e orgasmo, ele consegue irritá-la ainda mais dizendo que com um slogan desses, seria eleito presidente da França.

Desconstruindo Harry é um filme muito divertido, principalmente para escritores que se relacionam intensamente com sua própria obra e com seus personagens. Se você costuma escrever inspirado diretamente em seus relacionamentos e nem sempre consegue distinguir o que inventou em seus textos daquilo que copiou da vida, então conheça Harry Block. E dê boas risadas dele e de você também.

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Baixe o filme
> Factoryfilmes.net (áudio em português)

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Ricardo Kelmer 2009 – blogdokelmer.com

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Cine Kelmer apresenta – Dicas de filmes

Olha pegadinha – Quem nunca foi enganado? Esse ainda não nasceu

Paz e amor express – Durante cinco dias o Festival Express cruzou a leste-oeste do verão canadense levando em seus vagões os ideais da união pela música, a esperança ainda viva de um mundo de paz e amor

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Don Juan DeMarco baixa em Pinheiros

16/09/2009

Ricardo Kelmer 2009

RazaoeSentimentoEmConflitoCartaz-01b.

Cinema, Tela da Alma é uma série de palestras que faço usando filmes pra mostrar como a força e o encantamento do cinema são capazes de nos tocar profundamente a alma e nos instigar a viver a vida de modo mais verdadeiro. Sempre em linguagem acessível e de forma descontraída, essas palestras nos fazem ver os filmes por um olhar mitológico e psicológico, refletindo na tela as nossas próprias vidas, os nossos sonhos, os medos e anseios e a velha busca pela nossa essência mais legítima, que o corre-corre do cotidiano tão bem nos faz esquecer.

A primeira palestra deste ciclo atual será Razão e Sentimento em Conflito. Trata-se de uma abordagem bem humorada do filme Don JuanDeMarco, mostrando como os personagens principais, o jovem Don Juan e seu psiquiatra, representam o velho conflito entre intelecto (a visão fria e racional da vida) e coração (a poesia e o romantismo). Outros aspectos analisados: estrutura do roteiro e fotografia.

Outros filmes que integram o ciclo de palestras Cinema Tela da Alma: Matrix, Caçador de Andróides (Blade Runner), Piaf, Uma Mente Brilhante, Encontro Marcado e Alucinações do Passado.

Horários
18h30: exibição do filme
20h: intervalo para o café
20h15: palestra
21h30: encerramento

Local:  Espaço Cultural Alberico Rodrigues
Praça Benedito Calixto, 159 – Pinheiros (estacionamento na praça)
Inf.: 3064.3920 e 3064.9737
Investimento: R$ 10

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Ricardo Kelmer – blogdokelmer.wordpress.com

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> Crônica Razão e sentimento em conflito
> Palestras de RK

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Carma de mãe para filha

07/07/2009

07jul2009

Os filhos sempre pagam caro pelos pais que não se realizam em suas vidas

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CARMA DE MÃE PARA FILHA
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“Quanto menos os pais aceitem seus próprios problemas, tanto mais os filhos sofrerão pela vida não vivida de seus pais e tanto mais serão forçados a realizar tudo quanto os pais reprimiram no inconsciente.”

Foi o sábio Carl Gustav Jung (1875-1961), sempre ligado nas sutilezas dos processos psicológicos, quem afirmou isso aí. Em outras palavras, o psiquiatra-pensador suíço quis dizer que os filhos sempre pagam caro pelos pais que não se realizam em suas vidas.

Lembrei disso ao assistir a comédia romântica Mamãe Quer que Eu Case (Because I Said So, EUA 2007, direção Michael Lehmann). A história é sobre uma garota desajeitada (Mandy Moore) que sofre um bocado pela mania da mãe (Diane Keaton) de querer controlar sua vida, principalmente na questão dos relacionamentos amorosos. A mãe, no passado, havia errado em suas escolhas e tinha medo que a filha seguisse pelo mesmo caminho.

Meu lado mulherzinha até que riu com aquelas besteiras que somente o universo feminino, com suas deliciosas neuras, pode proporcionar. O tema da história é bom, mas os personagens não me convenceram, e o roteiro tem obviedades demais, dessas que te fazem sacar o final já no começo do filme. E a personagem da mãe exagera nos faniquitos, ficou caricato.

Mas pelo menos o filme me inspirou a falar de Jung, esse notável médico de almas. Essa coisa dos pais não viverem suas vidas verdadeiras e isso influenciar no comportamento dos filhos é algo muitíssimo sério, mas que infelizmente não costuma ser levado em consideração nas análises que fazemos sobre a vida. O que Jung quer mesmo é nos alertar, a nós todos, para a extrema importância que tem a realização pessoal, não apenas para as nossas vidas individuais como também para a vida de todos os que estão próximos a nós.

Em sua compreensão abrangente da vida humana, Jung logo percebeu que estamos todos inapelavelmente ligados uns aos outros, que nossas mentes estão interconectadas através do inconsciente e, por isso, tudo o que fazemos reverbera nos outros, como espelhos que se refletem e a todo instante acusam, em si próprios, os movimentos dos outros espelhos. Se os pais não resolvem seus conflitos internos, estes não apenas afetarão a relação familiar como poderão influenciar negativamente a vida individual de seus filhos. Se os pais vivem falsamente suas vidas, o peso dessa mentira sufocará seus filhos, que poderão se sentir pressionados, sem perceber, a viver o que seus pais não realizaram em vez de seguir seu próprio caminho de autorrealização. Às vezes, é possível desfazer essas falsas expectativas, mas isso é um processo que requer alto grau de conscientização das partes envolvidas, que inclui o perdoar e também o perdoar-se  e ainda assim se terá perdido um tempo precioso, que jamais será recuperado.

Vendo a coisa desse modo, torna-se óbvia a necessidade de vivermos bem nossas vidas, não apenas por interesse próprio, mas porque a nossa bem-aventurança, de algum modo, também tocará a nossos amigos e familiares. Foram vários os sábios da história que insistiram nessa curiosa verdade: para mudar o mundo, mude a si próprio. Jung, falando sobre o processo de individuação, disse o mesmo, afirmando que o futuro da Humanidade depende da quantidade de pessoas que conseguirem se autorrealizar.

Entretanto, não existe autorrealização sem autoconhecimento. Como realizaremos o nosso potencial sem antes sabermos verdadeiramente quem somos, o que de fato precisamos e queremos, o que realmente nos atrapalha a caminhada? Como nos libertarmos sem saber o que nos aprisiona? É libertando-se que podemos também libertar os outros das nossas expectativas limitantes em relação a eles.

Conhecermo-nos, sem autoenganações, e vivermos nossa melhor vida é o que temos de fazer. E um dia nossos filhos e netos nos agradecerão bastante por isso.

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Ricardo Kelmer 2009 – blogdokelmer.com

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Carl Gustav Jung (26.07.1875 – 06.06.1961)
Psiquiatra e pensador suíço. Fundador da psicologia analítica, também conhecida como psicologia junguiana. Jung, assim como Joseph Campbell (1904-1987), ajudou a reacender o interesse sobre a mitologia, situando os mitos como elementos essenciais na busca do indivíduo por sua essência e completude

Jung – a jornada do autodescobrimento – Vídeo com um resumo da vida e das ideias de Carl Jung, o psicólogo e pensador suíço criador da teoria do inconsciente coletivo

Jung na Wikipedia

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LEIA NESTE BLOG

MarianaQuerNoivar-04aMariana quer noivar – Você abdicaria das relações amorosas em sua vida em troca de dinheiro ou sucesso na carreira?

Livros: He, She, We – Os rios de nossas vidas, na verdade, correm por leitos muito, muito antigos – os mesmos leitos que outras águas, ou outras pessoas, percorreram do mesmo modo

Mulheres na jornada do herói – É ainda mais interessante ver o relato das mulheres, pois elas sempre foram, mais que os homens, historicamente reprimidas na busca pela essência mais legítima de suas vidas

A ilha – Uma fábula sobre o autoconhecimento

Blade Runner – Deuses, humanos e androides na berlinda – Como todo ser, o criador busca sempre transcender a sua própria condição, e é criando que ele faz isso

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FilmeCinema-01Cine Kelmer Apresenta – Dicas de filme

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01- Ricardo querido: sábias palavras. Friso esta frase aqui, que resume tudo: Como nos libertarmos sem saber o que nos aprisiona? Esta é, de fato, a grande questão. Passarei esta deliciosa crônica adiante. Um abraço meu! Jana Lauxen, Passo Fundo-RS – nov2009

02- Querido Rico, Sempre aprecio a simplicidade com que consegue falar de assuntos complexos – simples mas nunca superficial – os laços invisíveis que nos ligam com nossos ancestrais (pais, avós, tios etc) em grande parte nos determinam; o tal autoconhecimento fruto, ou não, de uma boa terapia sem dúvidas nos ajuda a desistir de pagar “contas” ou pagar conscientemente e por escolha, débitos que na verdade não contraímos…. Parabéns! bjs. Danielle Alves, Fortaleza-CE – nov2009

03- Karaca Ricardo, cada vez me surpreendo mais com vc. Vc é o homem ideal. Vc pensa muiiiiiiiiiiiito legal, e escreve muito legal as coisas que pensa. Marcia Alves, Belo Horizonte-MG – nov2009

04- Li agora “Carma de mãe pra filha”….Vou assistir ao filme… Você realmente mexeu na questão…..e vejo o quanto é sério e importante esse debate.!! Acho que todos nós sem exceção….teve esse impacto na educação e atualmente esse reflexo é visível, já que antigamente era mais velado…não tão aparente. O que difere éque tudo está na nossa frente e não fazemos muito pra mudar isso. Pergunto: se mesmo nos autoconhecendo….o que fazemos depois disso? prá onde iremos e qual alternativas temos? A resposta está lá frente…no futuro…. Mas hoje o que fazer pra mexer nesse universo e provocar essa mudança principalmente na família.? Inêz Dias, Campinas-SP – nov2009

05- Tenho que te parabenizar, Ricardo! Além de escritor, vc se torna intermediador de temas como esses, que algumas vezes acabam ficando um tanto complexo para nós, simples curiosas e curiosos sobre o comportamento humano, e nos facilita a compreensão. Vc une qualidade e simplicidade e fica ótimo te ler! A coisa flui… adoro! Sua maneira de se comunicar é muito ímpar e boa demais! Estou lendo -Mulheres que correm com os lobos- e… putz! Estou fascinada!! Infinitamente enriquecedor… Toda mulher deveria ler! Foi referência sua. Obrigadíssima pela dica! E quando acabar Clarissa, estarei mergulhando no universo Junguiano. Já estava com essa idéia e depois de ter lido a crônica, mais ainda! Obrigada por me enviar! Bjs. Karine Rangel, Rio de Janeiro-RJ – nov2009

06- Muito bendito…muito bem dito, Ric!!!! Gosto muito quando fala do querido Carl! Beijos sortidos!!!! Chris Godoy, São Paulo-SP – nov2009

07- Olha Kelmer, vc é demais mesmo, apesar de não ter filhos, na teoria és 1000. Verdade, às vezes precisamos repensar nas atitudes, nas nossas relações como um todo. bjão. Gizela Symanski, Porto Alegre-RS – nov2009

08- Adorei, Rica ! Estou entendendo e entrando cada vez mais à fundo nessa compreensão e querendo me libertar das crenças ancestrais e da história de meus pais. Isabela Pinto, Fortaleza-CE – nov2009

09- Amei!!! Concordo plenamente… Beijos e Parabéns!!!! Cynthia Silveira, São Paulo-SP– nov2009

10- Adorei!!! Beijos de luz! Sandra Neves, Belo Horizonte-MG – nov2009

11- “Os pais fazem dos filhos, involuntariamente, algo semelhante a eles – a isso denominam ‘educação’ -; nenhuma mãe duvida, no fundo do coração, que ao ter seu filho pariu uma propriedade; nenhum pai discute o direito de submeter o filho aos seus conceitos e valorações.” Assim dizia Nietzsche … Márcia Costa, São Paulo-SP – nov2009

12- Adorei!!!!! Repassei para várias pessoas. Gosto muito do jeito que você enxerga as coisas. Seu jeito de escrever… amei ler…to começando a semana a milhão com está frase na minha cabeça pra mudar o mundo, mude a si mesmo. Jung. Jamile Abdallah, São Paulo-SP – nov2009

13- Oi Ricardo, adorei seu texto, primeiro pq é um tema que me fascina (escrevi um artigo sobre isso na conclusão de uma especialização sobre “Abordagem sistêmica”, acho até que usei essa mesma citação do sábio Jung), segundo pq gosto muito do seu jeito de escrever e terceiro pq vc sintetizou bem um pensamento central da teoria junguiana. Muito legal… Vou enviar o tento pra amigos e entregar uma cópia pra alguns pacientes. Obrigada. Abraço e continue nos presenteando com boas construções. Raquel Brasil, Fortaleza-CE – nov2009

14- Muito boa a reflexão..adorei! Tatá Guida, Rio das Ostras-RJ – ago2013

15- É isso aí… “torna-se óbvia a necessidade de vivermos bem nossas vidas, não apenas por interesse próprio mas porque a nossa bem-aventurança, de algum modo, também tocará nossos amigos e familiares.” Sem essa de jogar a culpa nos pais, no governo, nos astros, no aquecimento solar…. Maria Emília Lino Silva, Paraty-RJ – ago2013

16- Gostei Ricardo,Bjo! Dijé Sales, Fortaleza-CE – ago2013

17- Geralmente as mães fazem isso, falam dos seus dissabores como uma alerta. Erros são inevitáveis. Há erros que são acertos e vice versa. Jully Fernandes, Juazeiro do Norte-CE – set2013

18- Gostei, meu amado!!! Jung é DELIOSO, assim como você! Tadinhos dos meus filhos…eles devem viver com aquela ladaínha do Zeca Pagodinho na cabeça: “É preciso muito amor para suportar essa mulher…” Ana Erika Oliveira Galvao, Fortaleza-CE – set2013

19- Jung e Ricardo Kelmer: mistura irresistível. Adoro! Paula Izabela, Juazeiro do Norte-CE – set2013

20- Muito boa eu já tinha lido antes, sensacional! Adriana Rocha, Mogi das Cruzes-SP – set2013

21- Muito boa eu não tinha lido antes, sensacional! Zilda Barradas, Cuiabá-MT – set2013

os filhos sempre pagam caro pelos pais que não se realizam em suas vidas.

A diversidade sexual pede passagem

04/05/2009

04mai2009

A luta pela legitimação da diversidade sexual como característica humana não é mais apenas uma luta de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros

A DIVERSIDADE SEXUAL PEDE PASSAGEM

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Somos todos humanos, eu, você, os outros. Somos todos Homo sapiens. No entanto somos diversos, você, eu e todos os outros, pois temos nossas culturas, religiões e histórias pessoais diferentes, o corpo, a cor da pele, a língua, o modo de entender a vida… Não há dois humanos exatamente iguais. E jamais houve. Você já pensou nisso?

A diversidade é uma de nossas maiores riquezas. Foi ela que possibilitou à espécie experimentar-se de infinitas formas pela longa e difícil jornada da evolução. A diversidade biológica-cultural, ao contrário das teorias que defendem pureza racial e coisas do tipo, é que pode nos oferecer melhores possibilidades de aperfeiçoamento. Se obedecêssemos todos, automaticamente, a um só modo de ser e compreender a vida, nossos horizontes evolutivos seriam bem mais limitados.

E na área da sexualidade? Sexualmente também somos diversos. Pode soar exagerado mas, pense bem: é impossível haver dois seres humanos exatamente com a mesma sexualidade, a mesmíssima forma de viver as relações pessoais e o desejo sexual. Existem humanos homens e humanos mulheres – mas quando o assunto é sexualidade, as possibilidades que se formam a partir daí são tantas que não daria para catalogar com exatidão todas as variantes da sexualidade humana.

A maioria das sociedades atuais, porém, rejeita a natureza diversa da sexualidade de nossa espécie. Aliás, elas não só rejeitam como estabelecem um padrão de normalidade e punem quem não o obedece. Foi assim, tentando padronizar artificialmente o que por natureza é amplo e diverso, que essas sociedades construíram uma triste história de intolerância, preconceito e violência, não apenas contra quem não se enquadra no padrão mas contra a própria espécie humana.

A discriminação e a violência contra pessoas por causa de sua orientação sexual as leva, frequentemente, a uma vida semiclandestina, regida pelo medo constante de ser descoberto e incompreendido. Essas pessoas, para não sofrerem a discriminação, caem em outro tipo de sofrimento: a dor de não poder ser o que se é. O que é pior, sofrer abertamente a discriminação ou viver uma vida de mentira?

Talvez você que agora lê este artigo seja uma pessoa que se encaixa perfeitamente no modelo padrão de sexualidade que nossa sociedade estabeleceu, o modelo heterossexual cem por cento. Se é o seu caso, você não sofre discriminação por sua sexualidade, você está livre para ser e expressar o que você é. Que bom! Mas se você está fora do padrão, você sabe muito bem qual o preço que tem de pagar para ser o que você é. De qualquer modo, em ambos os casos, se encaixando ou não em padrões, você tem a sua própria sexualidade, e ela, em sua natureza mais profunda, é só sua, é única, e ninguém mais tem uma igual pois ninguém mais tem as mesmas preferências, no mesmo grau, do mesmo jeito. Por que então discriminar, se todos nós, por trás dos nossos crachás sociais, temos nossas íntimas particularidades?

A sociedade discrimina o diferente porque é assim que ela busca manter o controle sobre seus indivíduos. Talvez seja uma forma de estratégia natural de organização e sobrevivência dos corpos sociais, sim, pois é mais fácil controlar o que se comporta igual. Mas o custo disso é a anulação do próprio indivíduo, que é estimulado desde o início a seguir os mesmos passos de todos, como numa manada.

Felizmente, porém, trazemos em nós, cada um de nós, o impulso potencial para a autorrealização, ou seja, para realizar quem verdadeiramente somos em nossa essência, em nossa natureza mais legítima, ao invés de obedecer cegamente aos padrões impostos, que nos querem indiferenciados. Os que seguem o impulso da autorrealização acabam se diferenciando do resto da manada e, de fato, pagam caro por construírem seu próprio caminho – mas são justamente essas pessoas que transformam a sociedade, apresentando-lhe os novos valores.

Atualmente a humanidade vive a intensificação desse processo de transformação do comportamento coletivo em vários aspectos, como nos movimentos feministas e na luta antirracismo. No campo da sexualidade não seria diferente: hoje as sociedades se veem na obrigação de discutir o tal modelo de padronização da sexualidade, mesmo sendo um tema incômodo, pois é cada vez mais difícil esconder o fato de que somos, sempre fomos, sexualmente diversos.

Quando me convidaram para participar, como enviado da Revista Planeta, da edição inicial do For Rainbow, o festival de cinema da diversidade sexual, que aconteceria em Fortaleza em julho de 2007, tive dúvidas se a produção do evento conseguiria, de fato, tirar a ideia do papel e realizá-la. O Ceará é um estado que, além de muito pobre, tem reconhecida tradição machista, e onde, segundo dados recentes, a homofobia entre escolares adolescentes é uma das maiores do país. Mas o evento aconteceu, sem contestações, com apoio da mídia. E eu voltei de lá esperançoso, não somente pelo festival mas também pelo ótimo exemplo que a capital cearense dá ao país com a implementação de políticas públicas de garantia ao livre exercício da sexualidade e de combate ao preconceito. Fica cada vez mais claro que o direito à própria sexualidade é uma conquista da democracia e que políticos e governantes serão cada vez mais cobrados em relação a isso.

O For Rainbow de Fortaleza não está só. Muitos outros eventos são criados a cada dia no mundo todo como forma de expressão da sexualidade humana diversa. As passeatas do orgulho gay, que começaram tímidas, vão deixando de ser eventos representativos de uma minoria sexual para se tornar uma grande festa de todos, onde se celebra a alegria e a liberdade de poder ser o que se é e de viver em harmonia com o diferente. Como a grande mídia já não pode mais fingir que essas coisas não existem, o mundo se torna, cada vez mais, ciente do que sempre foi absurdamente óbvio e, assim, a natureza múltipla de nossa sexualidade deixa de ser um tabu, passando a ser algo natural, para nós e, principalmente, para as novas gerações.

A psicologia do inconsciente nos ensina que ninguém vive plenamente sua própria vida enquanto não reconhece o que na verdade é. Mas ela também nos diz que esse reconhecer-se sempre traz alguma crise. São verdades psicológicas que muitos já entendem, sim, mas o que muitos ainda não percebem é que elas valem tanto para o indivíduo como para a espécie como um todo. Nesse momento histórico, a humanidade está justamente se debatendo nas crises que vêm desse necessário processo de autoaceitação. Com a aproximação das culturas e a facilidade da comunicação e dos transportes, a espécie passou a se conhecer num nível jamais experimentado – e é normal que isso cause medo e insegurança. E conflitos também, sim, pois se somos educados entendendo que nossa cultura é a melhor, provavelmente o contato inicial com outra cultura não será muito amistoso. A aproximação do diferente às vezes assusta mas só assim podemos perceber que o que antes julgávamos feio, errado e perigoso, é apenas diferente.

Atualmente todas as pessoas do mundo estão sendo levadas a reconhecer que sua cultura não é a melhor, que sua religião é apenas uma entre tantas e os seus valores, antes absolutos, tornam-se relativos diante de outros valores. A atual crise, portanto, era mesmo inevitável. E é uma crise de percepção: estamos nos percebendo de modo diferente ao que sempre fizemos. Mas há uma boa notícia, e ela também vem da psicologia: num segundo momento o conflito dá lugar à assimilação do novo pois o indivíduo aceita o que descobriu sobre si mesmo como parte legítima de sua personalidade e a integra à sua autoidentidade. A crise de autopercepção que tanto dói nos leva, no final, a nos tornarmos mais equilibrados, coesos e inteiros.

Agora, a luta pela legitimação da diversidade sexual como característica humana não é mais apenas uma luta de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros. Este reconhecimento do que sempre fomos é um desafio de todos. De todos, sim, pois até mesmo os que defendem os tais padrões sexuais e negam a diversidade, também pagam seu preço pois têm cada vez mais que conviver com o diferente que tanto lhes incomoda.

É, não está sendo fácil para nenhum dos lados. Mas já passamos pela fase mais difícil. A humanidade, a cada dia, está mais transparente e mais verdadeira para com ela própria. E isso é uma ótima notícia.

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Ricardo Kelmer 2007 – blogdokelmer.com

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(Artigo publicado na Revista Planeta, 2007)

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AFINIDADES

Entrevista: Fundador de grupo de ‘cura de homossexuais’ que se assumiu gay – Entrevista com Sergio Viula para o site eleicoeshoje.com.br, 25.10.11

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