Matrix e o despertar do herói
A jornada mítica de autorrealização em Matrix e em nossas vidas
(Ensaio – Miragem Editorial/2005)
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Usando a mitologia e a psicologia do inconsciente, Kelmer nos oferece uma visão diferente de Matrix, o filme que revolucionou o cinema, lotou salas em todo o mundo e tornou-se um fenômeno cultural, conquistando milhões de admiradores e instigando intensas discussões.
Em linguagem descontraída, o autor nos revela a estrutura mitológica do enredo de Matrix, mostrando-o como uma reedição moderna do antigo mito da jornada do herói, e o compara ao processo individual de autorrealização, do qual fazem parte as crises do despertar, o autoconhecer-se, os conflitos internos, as autossabotagens, a experiência do amor, a morte e o renascer.
Podemos ser muito mais que meras peças autômatas de uma engrenagem, dirigidos pelas circunstâncias, sem consciência do processo que vivemos. Em vez disso, podemos seguir os passos de Neo e todos os heróis míticos: despertarmos, assumirmos nosso destino e nos tornarmos, finalmente, o grande herói de nossas próprias vidas.
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Cap 5
MATRIX RELOADED E MATRIX REVOLUTIONS
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paralelos com o processo de autorrealização
O processo de autorrealização está perfeitamente ilustrado no enredo de Matrix, o filme inicial da trilogia. Nele, acompanhamos o herói desde o início de sua aventura: as crises que levam ao despertar, o autoconhecimento, os conflitos internos, a assimilação dos conteúdos inconscientes, a autossabotagem, a experiência do amor, a morte e o renascimento. Em poucos filmes vemos a estrutura do mito da jornada do herói de modo tão preciso.
O filme inicial se fecha em si mesmo, no sentido de mostrar a trajetória completa do herói que se autorrealiza. Neo torna-se o Predestinado porque enfim se convence que sempre o fora. Em termos psicológicos: a consciência assimilou os conteúdos inconscientes que agiam livres, limitando a atuação do indivíduo, e equilibrou-se entre seus opostos, ampliando-se, permitindo a realização do potencial adormecido e levando o indivíduo a harmonizar-se consigo e o mundo à sua volta.
Vale a pena, porém, nos determos um pouco sobre os dois outros filmes da trilogia. Eles possuem alguns pontos interessantes que podem enriquecer nossa análise.
Zion
A única cidade humana da história é Zion. É lá onde vivem os humanos que nascem fora da Matrix e os que se libertam dela. É lá onde se concentra a resistência contra a Inteligência Artificial. Zion fica no centro do planeta e somente os comandantes das naves possuem seus códigos de acesso.
Na psicologia junguiana há o conceito de Self, ou Si-mesmo, que significa a totalidade e ao mesmo tempo o centro regulador da psique. É no Si-mesmo que a consciência se espelha para crescer e se tornar mais ampliada, pois ele é como a semente que traz em si o modelo da árvore futura. Assim como o ego é o centro da consciência, o Si-mesmo é o centro da psique total, uma espécie de, digamos assim, eu superior. É lá onde estão guardadas todas as potencialidades do ser, feito um código que necessita ser ativado para que se efetive aquilo que por enquanto é apenas potencial.
Neo e o Arquiteto
Em Matrix Reloaded, ao se encontrar pela segunda vez com o Oráculo, Neo fica sabendo que deve se dirigir à Fonte, ao núcleo da Matrix. “A Fonte é o fim do caminho do Predestinado”, diz o Oráculo.
Neo vai até lá e encontra o Arquiteto, a imagem digital da Inteligência Artificial, criadora da Matrix. Sentado tranquilo em sua poltrona, o Arquiteto explica a Neo muitas coisas e o diálogo é um dos mais interessantes da trilogia. Entre várias revelações, Neo descobre que antes dele existiram cinco Predestinados. Entende também que a Matrix foi criada inicialmente representando um mundo perfeito, onde ninguém sofreria e todos seriam felizes. Mantendo os humanos nesse eterno estado idílico de sonho, a Inteligência Artificial seguiria no controle total.
Entretanto, os humanos, mesmo adormecidos, rejeitavam o programa, causando-lhe instabilidade. A Inteligência Artificial insistiu, mas todas as suas tentativas falharam, levando à perda de “safras inteiras” de humanos. Entendendo que o problema era decorrente da falibilidade humana, que não tolera a perfeição, a Matrix foi transformada: no lugar de um mundo perfeito, a ilusão coletiva passou a ser ambientada numa réplica do mundo exatamente como ele era no fim do século 20, com todas as suas imperfeições e injustiças. Mesmo assim as mentes humanas ainda não o aceitaram e o programa continuou instável. Como resolver o problema? Como fazer com que a mente humana aceitasse devidamente a realidade ilusória da Matrix e as pessoas pudessem ser mantidas escravas?
Foi então desenvolvido um programa “intuitivo”, chamado Oráculo, cuja tarefa era estudar profundamente a psique humana. A solução encontrada pelo Oráculo foi oferecer aos humanos uma possibilidade de não aceitar a realidade virtual, ainda que apenas num nível inconsciente. Eles continuariam adormecidos e escravos, mas saberiam, de modo inconsciente, que poderiam despertar e se libertar. Porém, oferecer aos humanos essa opção de saber que podiam se libertar era muito perigoso, pois alguns deles poderiam efetivamente se libertar e, mesmo significando 0,01 da população, poderiam ameaçar a segurança do sistema. O jeito seria reforçar a segurança.
A estratégia funcionou perfeitamente. A quase totalidade das mentes humanas passou a aceitar o programa e o sistema se estabilizou. E as mentes que não aceitavam a ilusão da Matrix? Essa diminuta parcela dos humanos despertava do sonho coletivo e se libertava, formando a resistência. Eles então passavam a invadir o sistema e ajudar outros humanos a se libertar, causando certa instabilidade à Matrix. Para o sistema, porém, essa instabilidade estava prevista e os humanos libertos eram uma anomalia inevitável, exatamente o preço a pagar pelo máximo possível de estabilização do sistema.
Entretanto, o preço incluía algo mais: dentro da possibilidade de anomalia haveria sempre a eventualidade matemática de uma anomalia maior, o suprassumo anômalo, digamos assim. Periodicamente, entre esses humanos que se libertavam, haveria um com capacidades excepcionais, que aprenderia a agir dentro da Matrix melhor que todos, detectaria suas falhas e poderia provocar o colapso total do sistema: esse seria o Predestinado.
Portanto, tudo estava matematicamente previsto desde o início: a pequenina parcela de humanos que não aceitaria o programa e também os resistentes que sempre fugiriam para o centro da Terra e reconstruiriam Zion, a cidade humana, que funcionaria como centro da resistência. Por fim, o surgimento do Predestinado estava igualmente previsto, pois ele era, segundo o próprio arquiteto, “uma soma de um resíduo de uma equação desequilibrada inerente à programação da Matrix”. Mas como lidar com ele?
Matrix: o sistema (quase) perfeito
Embora tenha programado a Matrix para lutar ferrenhamente contra todos os que a desafiam, a Inteligência Artificial sabia que mais cedo ou mais tarde o Predestinado sempre surgiria. Assim, restou lidar com ele da melhor forma possível: se não pode com seu inimigo, una-se a ele.
Como o Predestinado conhece as falhas do sistema melhor que o próprio sistema, sabe de seus pontos vulneráveis e aprende a burlar todas as suas regras, modificando a programação à sua vontade, o ideal então seria fazê-lo se reinserir no sistema, reprogramando a Matrix com os novos dados que ele traria. Fazendo isso, a anomalia prevista reinsere a programação que traz consigo (sua experiência de vida, seus conhecimentos e todos os dados coletados sobre as falhas do sistema) e possibilita a atualização da Matrix, que é reiniciada num nível aperfeiçoado.
Mas como garantir que isso aconteça? Por que o Predestinado, inimigo da Matrix, aceitaria isso?
Para reconhecer a anomalia máxima, a Matrix está sempre a vasculhar a si própria a fim de localizar e eliminar todas as prováveis anomalias até que, dentre elas, sobreviva apenas aquela que, de fato, tem o poder de destruir, ou aperfeiçoar, o sistema. Após isso, esse suprassumo anômalo deverá ser convencido a não destruir, mas, em vez disso, aceitar ser reinserido no sistema. Mas como fazer isso?
Os próprios humanos rebeldes, sem saber, ajudam a Matrix a controlar o Predestinado, pois creem nele, necessitam dele e sempre o levam ao Oráculo. Este, por sua vez, sempre incentiva o Predestinado a se dirigir à Fonte. Ao alcançá-la, o Predestinado sempre encontra o Arquiteto, que lhe fala sobre a Matrix e no fim lhe apresenta duas opções: ou continua sua luta contra as máquinas ou se sacrifica, reinserindo-se no sistema. Se as opções são essas, por que o Predestinado sempre se entrega?
Porque, de fato, não vale a pena continuar lutando. Vejamos. Se o Predestinado prossegue a luta, Zion é destruída, pois a Inteligência Artificial cedo ou tarde saberá sua localização e tem tecnologia suficiente. Mais importante que isso, porém, é o fato de que, sem se atualizar, a Matrix mais cedo ou mais tarde entra em colapso, causando a morte de todos os humanos ligados ao sistema, o que, junto à destruição de Zion, significa a extinção da espécie humana. E quanto à Inteligência Artificial? Mesmo sem sua fonte principal de energia, os corpos humanos, ela ainda sobreviveria e recomeçaria tudo outra vez. Bem, isso é o que diz o Arquiteto. Será que é um blefe? Por via das dúvidas, o Predestinado nunca arrisca.
Por outro lado, aceitando reinserir-se no sistema, o Predestinado pode escolher 23 pessoas na Matrix para serem libertadas – elas fugirão para o centro da Terra e reconstruirão Zion, prosseguindo com a resistência. Ele se sacrifica pela humanidade, sim, mas os humanos continuam vivos. É verdade que a quase totalidade continuará escravizada, com seus corpos imersos em casulos e as mentes conectadas a uma ilusão coletiva. Mas esta opção não é pior que a extinção da espécie.
É por isso que os Predestinados anteriores a Neo aceitaram se sacrificar pela humanidade, reinserindo-se no sistema. Disseminando seus próprios códigos, reintroduziram o programa principal e assim o sistema foi reiniciado, num nível mais avançado ainda. Dessa forma, tudo prossegue como antes: a Inteligência Artificial dominando o planeta, a Matrix aperfeiçoada mantendo os humanos aprisionados e fornecendo-lhe a energia necessária, os rebeldes de Zion resistindo, tentando libertar mais humanos e, além disso, acreditando na profecia do Oráculo de que um dia virá o Predestinado…
As máquinas, a Matrix, os humanos e o Predestinado formam assim um sistema só, autossustentável, cujas imperfeições são na verdade mecanismos imprescindíveis à harmonia maior. O que parece ameaça à Matrix é, na verdade, a garantia da estabilização e do aperfeiçoamento do sistema. O Predestinado é tão somente apenas mais uma peça na engrenagem. Ele toma conhecimento disso somente no fim, quando chega à Fonte, mas então é levado, por seu amor à humanidade, a sacrificar-se, salvando a Matrix e permitindo à Inteligência Artificial continuar dominando o planeta e escravizando os humanos. Perfeito.
Na verdade… quase perfeito. Porque com Neo é diferente. Além do amor impessoal pela humanidade, característica de todos os Predestinados, ele ama Trinity. É justamente o amor romântico, além do amor pela humanidade, que o mantém disposto a lutar e desafiar as possibilidades, somente para continuar com ela, mesmo que isso ponha em risco toda a espécie humana. É um fator absolutamente novo, tão novo que a Inteligência Artificial não o previra.
E nem tinha como, coitada. Talvez as máquinas jamais consigam decifrar, calcular e prever o amor, essa força tão imensa, poderosa, insana e contraditória, essa equação tão desequilibrada e imprevisível. Tão imprevisível que a fragrância do amor de Neo e Trinity sensibiliza até o Oráculo e o leva a ajudar Neo mais do que deveria, arriscando ainda mais o equilíbrio do sistema. Tão imprevisível que em troca de um beijo de Neo (mais um beijo traidor), Perséfone trai os interesses do marido Merovíngio e permite aos rebeldes o acesso ao Chaveiro e a posterior chegada de Neo à Fonte.
Um beijo. Ai, ai, apenas um beijo… Um simples toque de lábios faz Perséfone sentir novamente a doce e inebriante sensação de estar amando. A ela bastou apenas o gostinho da sensação perdida, do amor que um dia encheu de sentido os seus dias, bastou isso para Perséfone. Como quantificar, equacionar e programar o amor?
A Matrix é tão somente um sistema de simulação da realidade, feito de muitos programas integrados, mas se parece bem mais com os humanos do que a Inteligência Artificial certamente gostaria de admitir. Aliás, em certos aspectos a Matrix parece uma imitação da psique humana. Podemos até falar de consciência e inconsciente, por mais estranho que pareça.
Consciência e inconsciente na Matrix? Antes que você feche o livro e diga que eu já estou forçando a barra, me dê só mais alguns parágrafos, por favor. Obrigado.
Veja só. A Matrix sabe tudo sobre si mesma? Não, pois o sistema possui os seus próprios guetos virtuais, onde se escondem os programas rebeldes que seriam desativados. Além disso, ela nem sempre sabe quando os humanos a invadem, nem onde se encontram e nem o que irão fazer. Os programas rebeldes até que não causam problemas sérios – mas os humanos invasores, estes sim dão uma dor de cabeça danada, pois além do sistema não ter controle sobre eles, os humanos desejam destruí-lo. São os conteúdos inconscientes da Matrix. Sem falar em Smith, que também sairá do controle do sistema.
A Matrix tem consciência de si através de seu programa gerenciador, que utiliza eficazes mecanismos de defesa (agentes) para perseguir e eliminar humanos invasores, pois sabe que dentre eles poderão surgir, e efetivamente surgirão, as anomalias previstas. As anomalias representam o risco de morte do sistema, mas o suprassumo das anomalias será, na verdade, a própria continuação do sistema, num nível mais avançado. O programa gerenciador, porém, não entende assim, e faz de tudo para que o sistema sobreviva. Parece até um velho conhecido nosso, não?
Isso mesmo, o programa gerenciador do sistema parece o ego. O ego da Matrix é igual a todos os egos: não quer morrer jamais. Mas não tem jeito, o Predestinado sempre vem. O programa gerenciador não sabe que o que morrerá é a versão antiga do sistema, obsoleta, uma versão incapaz de lidar com as novas exigências, com a agilidade e conhecimento do novo Predestinado. A Matrix, se entregando, se une a seu mais poderoso inimigo e ressurge atualizada, mais forte ainda. Viu? É a Matrix assimilando seus conteúdos inconscientes e se fortalecendo…
Smith personifica com perfeição o desastre que um ego inflado pode causar à psique. Na Matrix, ele é o representante mor do sistema e existe para gerenciar a relação delicada entre o sistema e os humanos, reprimindo a ação destes. Smith não aceita a derrota, não quer ser deletado: é o egão que resiste, orgulhoso. A Inteligência Artificial, na pessoa do Arquiteto, já sabe que precisa se entender com o Predestinado para que o sistema que ela criou passe para um novo nível – mas o diabo do Smith não quer saber de conversa. Sua teimosia é uma ameaça crescente ao próprio sistema e ele se torna mais perigoso até mesmo que Neo. Então, para manter o próprio equilíbrio, a Inteligência Artificial ajuda Neo a derrotar Smith. Assim também faz o Si-mesmo na psique quando o ego está inflado demais e compromete o equilíbrio do eu total: ele permite que os conteúdos inconscientes se manifestem tão fortemente que a vida sai do controle, vêm os desastres e insucessos, e o ego, humilhado e impotente, não resiste e morre.
Uma psique artificial, com seu equilíbrio dinâmico e seus próprios ciclos de morte e renascimento – assim é a Matrix, por mais blasfemo que pareça o termo psique artificial. Senão vejamos: trata-se de um sistema autoconsciente, mas não totalmente, que será sempre ameaçado e sabotado por seus próprios componentes indesejados, que um dia será por eles seriamente desestabilizado e, num processo de integração simbiótica, se unirá a eles para renovar a si mesmo e continuar vivo, mais forte e capaz – e então novos componentes indesejados surgirão e assim por diante. O centro desse sistema possui todas as informações e conhece perfeitamente o processo, pois é ele que o comanda. Além disso, essa espécie de Si-mesmo do sistema já o viu passar por tudo aquilo várias vezes, todos aqueles conflitos, e sabe que apesar de tudo o sistema sobreviverá.
Psique artificial, máquinas assimilando conteúdos inconscientes… Bem, é só uma comparação, claro, mas esse exercício de imaginação pode nos ajudar a vislumbrar como seria uma psicologia das máquinas. Sim, por que elas, sendo capazes de pensar por si próprias, não haveriam de ter uma psicologia? Talvez já seja hora de começar a pensar nessa possibilidade.
Aliás, o que Jung diria se soubesse que um dia suas ideias seriam utilizadas para explicar o comportamento das máquinas? Consideraria, de fato, uma blasfêmia? Não sei. Talvez ele desse uma daquelas suas boas risadas: “Bem, chame uma delas qualquer dia para tomar um chá comigo à beira do lago…”
retribuindo à sociedade
A engenhosidade de toda a trama de Matrix merece um prêmio. O segundo episódio, Matrix Reloaded, nos mostra a chegada do Predestinado à Fonte da Matrix e sua posterior reinserção no sistema. Ao nosso estudo, isso é mais um paralelo com o processo de autorrealização, mais precisamente o aspecto final do processo: a absorção, pela sociedade, da rica experiência do indivíduo que se autorrealiza. É o mito do herói revivido, o herói que se isola para depois retornar e salvar seu povo. É a volta do indivíduo ao outro lado da espiral indivíduo-sociedade após ter feito o percurso completo.
Já vimos que o processo de autorrealização exige que o indivíduo se diferencie. Essa diferenciação tem vários níveis e começa logo após a concepção, quando óvulo e espermatozoide se unem para formar um terceiro elemento, iniciando o processo de aglutinação dos conteúdos psíquicos indiferenciados que futuramente formarão a noção de eu. O novo ser é, por enquanto, uma pequenina porção do inconsciente coletivo da espécie que se destaca, feito uma erupção vulcânica no fundo do oceano, e que formará, com suas experiências individuais no útero materno, uma pequena elevação de terra, um inconsciente individual.
A diferenciação prosseguirá após o nascimento, quando desse inconsciente pessoal se destaca cada vez mais uma nova porção: a consciência. Ela ainda é um pedaço de terra submersa no grande oceano inconsciente, forçando passagem rumo à superfície, mas já revela as características que farão do indivíduo aquilo que ele potencialmente é. Nesse ponto, a consciência é isso, uma noção do eu que emerge, uma ilhota de individualidade e autopercepção.
Mais tarde, como vimos, o indivíduo precisa se diferenciar ainda mais, destacando-se da massa na qual vive e com quem divide valores e regras de comportamento. Vimos que isso desestabiliza a ordem social e faz a sociedade reprimir a diferenciação.
Entretanto, há um ponto do processo em que a sociedade não só não consegue mais reprimir como é influenciada pelo indivíduo que se diferencia e se autorrealiza. Nesse ponto, ocorre, numa analogia com o filme, a atualização do sistema. A força da autorrealização é tamanha que a sociedade é naturalmente levada a absorver as experiências do indivíduo, incorporando os novos valores que ele representa. O que antes era perigo à cultura mostra-se agora seu próprio alimento, aquilo que lhe permite enriquecer-se, renovar-se e sobreviver.
No Budismo, o indivíduo que alcança a iluminação torna-se o Buda (aquele que despertou) e está livre dos problemas do mundo, e nada mais pode perturbá-lo. Seu corpo está aqui, mas sua consciência voa por outros níveis, além dos níveis cotidianos. A consciência atingiu tal grau de maturidade e interação com a realidade que está livre para mover-se, liberta das dimensões do tempo e do espaço. Sidarta Gautama e outros que alcançaram a iluminação poderiam ter deixado que sua consciência partisse, finalmente liberta do corpo físico e das limitações terrenas. Mas preferiram ficar até o fim, até onde o corpo suportasse. Por quê? Para ensinar o que aprenderam. Esse é o exemplo de suprema compaixão do Bodhisatva, o ser que após uma vida inteira de busca finalmente atinge a iluminação mas aceita permanecer nas limitações do mundo, pondo à disposição da humanidade o seu conhecimento e toda a sua experiência.
Assim como o Bodhisatva, aquele que atinge a autorrealização está livre das pressões do mundo. O ser autorrealizado atingiu o equilíbrio entre consciência e inconsciente e nada mais o desequilibra. Ele agora pode finalmente descansar da longa jornada, esconder-se até o fim de seus dias num sitiozinho no alto da serra da Ibiapaba, sem TV e sem telefone, e aproveitar a paz de espírito que conquistou, longe do trânsito maluco, da poluição e dos operadores de telemarketing. Mas muitos não o fazem. Preferem continuar no mundo e contribuir com sua experiência para um mundo melhor. Reinserem-se no sistema, transbordantes de humildade e amor pela causa humana.
Essa reinserção contém certa dose de ironia, pois o indivíduo autorrealizado que agora contribui para a sociedade é o mesmo que, no início de seu processo de diferenciação, era visto como ameaça à própria sociedade, com suas ideias diferentes e atitudes subversivas, e por isso foi bastante reprimido.
Apesar da intensa repressão que leva a maioria a desistir, sempre haverá os que se diferenciam, desafiando e incomodando a sociedade. São as anomalias que o sistema se esforça em evitar. Mas são anomalias previstas e, além disso, necessárias ao sistema. São como antigas profecias que aguardam, pacientemente, que cada um de nós, predestinados que somos, decida realmente despertar.
(continua)
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Ricardo Kelmer – blogdokelmer.com
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Cap. 1 – Cinema, mito e psicologia
Cap. 2 – Toc, toc, toc… Acorde, Neo!
Cap. 3 – Não existe colher
Cap. 4 – Morrendo para vencer
Cap. 5 – Matrix Reloaded e Matrix Revolutions
Cap. 6 – Os personagens
Cap. 7 – Quadro comparativo
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