Matrix e o Despertar do Herói cap 1

Matrix e o despertar do herói
A jornada mítica de autorrealização em Matrix e em nossas vidas
(Ensaio – Miragem Editorial/2005)
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Usando a mitologia e a psicologia do inconsciente, Kelmer nos oferece uma visão diferente de Matrix, o filme que revolucionou o cinema, lotou salas em todo o mundo e tornou-se um fenômeno cultural, conquistando milhões de admiradores e instigando intensas discussões.

Em linguagem descontraída, o autor nos revela a estrutura mitológica do enredo de Matrix, mostrando-o como uma reedição moderna do antigo mito da jornada do herói, e o compara ao processo individual de autorrealização, do qual fazem parte as crises do despertar, o autoconhecer-se, os conflitos internos, as autossabotagens, a experiência do amor, a morte e o renascer.

Podemos ser muito mais que meras peças autômatas de uma engrenagem, dirigidos pelas circunstâncias, sem consciência do processo que vivemos. Em vez disso, podemos seguir os passos de Neo e todos os heróis míticos: despertarmos, assumirmos nosso destino e nos tornarmos, finalmente, o grande herói de nossas próprias vidas.

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Cap 1

CINEMA, MITO E PSICOLOGIA

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resumo do filme

No futuro, a Inteligência Artificial, uma avançada geração de máquinas pensantes, entra em guerra contra os humanos e vence. Como quase não há mais fontes de energia no planeta, os corpos dos humanos sobreviventes são usados para manter as máquinas funcionando. Para que eles não percebam o que acontece, a Inteligência Artificial faz uso da Matrix, um superprograma de realidade virtual ao qual são conectadas as mentes dos humanos. Dessa forma, adormecidos e indefesos, os humanos dormem e vivem um sonho coletivo onde o mundo é como era no fim do século 20.

Um grupo de humanos, porém, despertou e mantém-se fora da realidade virtual. Eles se escondem das máquinas, invadem o sistema e tentam fazer as pessoas despertarem. Esses rebeldes creem na profecia do Oráculo que diz que o Predestinado um dia virá para destruir a Matrix e libertar a espécie humana de sua prisão mental. Eles acreditam que Neo, um jovem que vive na Matrix, é o Predestinado. Neo de fato desconfia que há algo errado com a realidade, mas não pode aceitar que ele seja o tão aguardado salvador. Começa então sua guerra, contra a Matrix e contra si próprio.

escravos da própria criação

O filme Matrix entra para a história como uma das obras que mais simbolizam o espírito de nossa época, onde a espécie humana festeja e glorifica a suprema tecnologia, mas ao mesmo tempo começa a despontar no horizonte uma ameaça que nos aterroriza: a possibilidade de nos tornarmos escravos de nossa própria criação.

De certa forma, já somos escravos. A tecnologia atual nos faz depender das máquinas para quase tudo no dia a dia, desde o momento em que acordamos até a hora de dormir. Muitos inclusive só conseguem dormir se houver ar condicionado, ventilador, calefação, música no rádio ou uma TV ligada.

Faça um teste: da próxima vez que faltar energia elétrica, perceba como as pessoas se comportam. É como se de repente a vida ficasse suspensa. Muitos simplesmente não sabem o que fazer e andam de um lado para outro feito zumbis, como se aguardassem uma ordem para voltar a funcionar. Panes elétricas geram sérios contratempos, é verdade, mas até mesmo elas podem trazer benefícios. Lá em casa, por exemplo, quando faltava luz, íamos para o quintal e deitávamos no chão para olhar o céu e procurar estrelas cadentes. Meu pai e eu discutíamos sobre o Universo ser ou não infinito, a velocidade da luz, as galáxias… A imensidão do Cosmos nos inspirava certa reverência, nos fazendo lembrar do quão pequenos somos. Quando a energia voltava, eu sempre estava mais calmo. Às vezes, naqueles poucos minutos, conversávamos mais que durante o mês inteiro. A pane elétrica, ironicamente, forçava a família a se reunir.

O desenvolvimento tecnológico é importante. A espécie humana só sobreviveu até os dias atuais porque desenvolveu tecnologia suficiente para superar todas as dificuldades que surgiram, desde a necessidade de fabricar machadinhas de pedra até a criação de vacinas que evitam doenças graves e as sondas que viajam além do sistema solar. O problema é que a tecnologia ocupa cada vez mais espaço em nossas vidas. Transformamos a ciência numa espécie de deus e nos convencemos religiosamente de que a tecnologia pode nos salvar de todo perigo. Infelizmente, não pode. Aliás, é justamente por causa dela que a espécie ameaça destruir o planeta e se extinguir. O desequilíbrio ecológico e as guerras biológicas estão aí para confirmar o perigo do uso descontrolado do saber científico.

Como tudo que existe tem dois lados, a tecnologia tanto pode criar como destruir. Em Matrix, os avanços tecnológicos chegaram a tal ponto que as máquinas se tornaram independentes e escravizaram, literalmente, a mente dos humanos, algo que, de certo modo, já ocorre hoje. Podemos fazer algo para essa possibilidade sombria não se tornar realidade?

Acredito que sim. Podemos, por exemplo, lidar com a tecnologia de um modo menos dependente, equilibrando necessidades e facilidades tecnológicas com uma vida mais ligada à Natureza (inclusive a natureza humana) e às coisas simples. Podemos também, desde já, ensinar às nossas crianças que a tecnologia existe para nos servir e não para nos escravizar. E podemos também dar mais atenção às necessidades da alma, entendendo que o sentido da vida é nos autorrealizarmos, da forma mais verdadeira possível, nos tornando pessoas mais livres e harmonizadas com a vida. Isso a tecnologia não pode fazer em nosso lugar.

A verdadeira autorrealização é uma conquista individual, uma jornada mítica que cada um deve empreender em sua própria vida. É aqui, neste ponto, que podemos aprender com os mitos, essa coisa tão arcaica e que a mentalidade racional trata com tanto desdém, repetindo sempre que “é só um mito”, desprezando sua importância e vendo-os apenas como histórias exóticas de povos primitivos ou como religiões estranhas que insistem em sobreviver junto à nossa religião. É como se disséssemos: “Somos mais evoluídos. Não precisamos de mitos”.

Mitos jamais serão “apenas” mitos, pois são eles que formam a estrutura da alma e também das sociedades. Assim como os ossos sustentam o corpo físico, os mitos sustentam a psique humana. Entender como eles agem em nossas vidas é fundamental para compreendermos melhor a nós mesmos e ao mundo que nos cerca.

o mito

Mitos são formas de interpretação da realidade, compostas de narrativas simbólicas e imagens metaforizadas, que estruturam e orientam as sociedades e guiam os indivíduos no crescimento psíquico. Eles não são deliberadamente criados por alguém, mas nascem espontaneamente da alma coletiva da espécie, a psique, que os faz emergir das profundezas do inconsciente geral da espécie e se sedimentar, geração após geração, na cultura dos povos, para conduzi-los a novos níveis em sua relação com o mistério da vida e em sua organização social, assim como na evolução de toda a espécie humana.

A mentalidade atual costuma entender os mitos como mentirinhas ingênuas. Mito não é mentira, é metáfora. Uma metáfora não é uma mentira, mas um modo simbólico de expressar uma verdade. Por esse motivo, a metáfora é a língua nativa dos mitos, pois por trás deles há sempre um símbolo carregado de mistério e numinosidade, e a melhor forma de expressá-lo será sempre a linguagem figurada.

A fotografia é tão somente um processo químico usado para captar e expressar visualmente a realidade, e nem por isso uma foto é uma mentira. Assim como a ciência e a arte, o mito expressa a realidade à sua maneira própria, metaforicamente, que não é nem mais nem menos verdadeira. Se a ciência usa a razão lógica para explicar a vida e a arte usa a beleza e a harmonia para expressar o que sentimos, o mito se utiliza dos símbolos para nos provocar e nos ligar aos mistérios da existência, que estão além da linguagem da ciência, da arte e da filosofia. As explicações dos mitos não podem satisfazer ao intelecto, nem deveriam, mas os símbolos que eles contêm possuem o poder de nos situar no contexto geral do Cosmos, alinhando nossas vidas com uma ordem maior e ligando a consciência individual a um sentido mais amplo e coletivo.

Podemos dizer que, além de fornecer explicações para o mistério da vida e da criação do mundo, o mito exerce duas funções principais, sendo uma de ordem social e outra individual. Como nos ensinou Joseph Campbell, o famoso mitologista irlandês-estadunidense que ajudou a reacender o interesse pela mitologia no século 20 e nos incentivou a olhar para dentro e seguir nossa bem-aventurança, os mitos não só expressam a realidade: eles são o fundamento de toda sociedade. Não seria nenhum exagero afirmar que toda nossa vida, desde os menores detalhes até questões como arte, ciência, política e economia, tudo são formas rituais baseadas nos símbolos que os mitos expressam. Não há nada que não esteja sob uma espécie, digamos assim, de jurisdição simbólica dos mitos, pois, explicando a vida, eles estão também endossando e justificando todos os aspectos culturais de uma sociedade, desde instituições como casamentos, ritos como funerais até o padrão de comportamento de homens e mulheres e a criação de religiões.

No plano individual, o mito atua guiando o indivíduo pelas diversas fases de sua vida, fornecendo-lhe imagens e narrativas ricas de significado para auxiliá-lo em sua jornada rumo à maturidade psicológica. Sim, os mitos descrevem ocorrências exteriores, referentes a tempos e lugares distantes – no entanto, isso é só aparência, pois o plano real dos acontecimentos é interior, é justamente a dimensão psicológica humana. É na alma e não no mundo externo que se desenrolam os dramas metaforizados pelos mitos.

Dessa forma, o mito grego de Saturno, que devora os próprios filhos, nos ensina sobre o perigo da estagnação e o eterno medo da renovação, e o mito judaico-cristão da expulsão de Adão e Eva do Paraíso nos diz sobre as dores inerentes ao despertar da autoconsciência e ao crescimento psicológico. Infelizmente, o desprezo da mentalidade racional pelo mito nos impede de captar esses importantes significados, tão úteis à vida.

o mito da jornada do herói

Um dos motivos pelos quais o filme Matrix fez e continua fazendo um sucesso danado pelo mundo inteiro é o seu enredo: ele tem profundas bases mitológicas e as pessoas se identificam com essas obras porque elas vivem, em sua própria vida, os temas contidos no filme. O mito é como o leito de um rio antigo, e eu, você e todas as pessoas somos a água que corre por ele: é através da experiência de nossas vidas individuais que o mito está sempre se renovando.

Existem muitos e muitos mitos, cada um relativo a um determinado aspecto da existência, e mesmo sem conhecê-los ou pertencendo a outra cultura, nós os vivemos, cada um de nós, em diversos momentos da vida. Nossas águas estão sempre a percorrer o leito de algum mito, embora quase sempre estejamos inconscientes disso. Conhecendo os mitos e olhando-os pela ótica da psicologia do inconsciente, podemos compará-los com nossas vidas, perceber de que modo os vivemos e, assim, saber para onde se dirigem nossas águas, evitando possíveis desastres.

A história de Neo, que procura incessantemente uma resposta para a pergunta que o move (o que é a Matrix?) nos lembra Percival, o jovem cavaleiro do Rei Artur, buscando saber para quem serve o cálice do Graal. Neo e Percival são versões modernas do mito da jornada do herói, presente há milhares de anos na cultura e religião dos diversos povos da Terra. As histórias variam, mas a essência é a mesma: o herói é alguém que larga a segurança de seu mundo cotidiano e parte em busca de algo difícil e precioso, enfrentando incertezas, sofrimentos, perigos e arriscando a própria vida para, no fim, retornar transformado e vitorioso, mais forte, experiente e seguro, para guiar ou salvar seu povo, casar-se ou substituir um velho rei injusto ou doente.

Com algumas variações, este tema se repete em nossas lendas, contos de fada, religiões e obras artísticas desde que aprendemos a contar histórias ao redor das fogueiras. Esse é o modo pelo qual os humanos conseguem, através de metáforas e sem muita consciência disso, passar para as gerações seguintes algo vital para a sobrevivência da espécie: os segredos da autorrealização.

Nossos ancestrais escutavam as histórias dos heróis com respeito e assombro, envolvidos por rituais que se transmitiam pelas gerações. E hoje, no terceiro milênio da era comum, nós continuamos repassando o mesmo costume, com a diferença que, em lugar das fogueiras, nos reunimos no escuro dos cinemas, compenetrados e reverentes, para escutar a mesma história, para não esquecermos que a vida tem um segredo: cada um de nós precisa realizar a si próprio. Por isso, quando o segredo é recontado nos filmes, disfarçado em dramas, romances, aventuras e comédias, nós nos identificamos, algo dentro de nós se agita e de repente a vida faz mais sentido: é o mágico efeito que os mitos provocam.

Em algum momento da vida o mito da jornada do herói (o mito da autorrealização) é reativado na psique individual, em toda sua força. Vemo-nos então como o herói de Matrix, insatisfeitos com os velhos papéis reservados para nós pela sociedade e em conflito com nós mesmos. Despertamos da letargia, somos obrigados a largar as certezas de nossos valores atuais e partimos rumo ao desconhecido em busca de algo que nos completará, arriscando a segurança e enfrentando medos, dúvidas, sofrimentos e até a autossabotagem. Se persistirmos na jornada interior alcançaremos nossa essência e atingiremos novos níveis de autoconhecimento e harmonia com a vida, realizando nosso potencial, alcançando a bem-aventurança e, inclusive, gerando benefícios para a sociedade. É assim que vivemos o mito da autorrealização em nossas vidas, encarnando em nós a antiga jornada do herói.

Como vivemos em grupo, toda vez que alguém alcança a verdadeira realização pessoal, de algum modo seu exemplo influencia outras pessoas, e assim a espécie como um todo também avança. Por isso se diz que a autorrealização é a melhor forma de contribuirmos, individualmente, para o desenvolvimento coletivo da humanidade.

E é justamente por essa razão que continuamos a contar para as novas gerações, nos cinemas, nos livros e teatros, com roupagem moderna e efeitos especiais, as aventuras míticas dos heróis. Fazemos isso para não esquecer que o sentido da vida é seguirmos a nossa bem-aventurança e realizarmos quem verdadeiramente somos. Uma aventura heróica, sim, mas ao alcance de cada um.

Jesus Cristo super-herói

O filme Matrix tem muitos elementos que remetem à literatura, à cultura pop e ao próprio cinema, a diversas tradições religiosas, místicas e filosóficas, assim como analogias a teorias ligadas a vários ramos da ciência como psicologia, antropologia e sociologia. Pouquíssimas obras de ficção instigaram tantas interpretações diferentes envolvendo tantas áreas do conhecimento humano. Alguns argumentam que Matrix não passa de um borrão de tinta no qual cada um vê o que quer ver, um argumento que também mostra a riqueza da história e de seus fundamentos arquetípicos, pois poucas obras artísticas fornecem tantas e diversas visões.

Na filosofia, as analogias são muitas. É óbvia a parábola da caverna de Platão (parábola ou alegoria, e não mito), onde as pessoas veem apenas as sombras da realidade e as tomam como a própria realidade, limitando suas vidas. Muitos abordam o filme usando ideias de Sócrates, Aristóteles, São Tomás de Aquino, Descartes, Kant, Laplace, Nietzsche, Sartre, Dostoievski, Marx e Baudrillard para discutir coisas como natureza da realidade, metafísica, materialismo, tecnologia, livre-arbítrio, destino e onisciência.

No campo das tradições místicas e religiosas, pode-se ver em Matrix a ideia hinduísta de maya, ou seja, a ilusão na qual vivemos e que nos cega para a verdade maior. Pode-se ver também a ideia taoísta da unicidade de tudo que existe, de se tornar uno com o mundo e assim harmonizar-se com os ritmos naturais da vida. A iluminação de que nos fala o budismo, com sua ênfase na libertação da mente dos padrões a que ela se acorrentou, é uma constante durante toda a história. Pode-se falar também da ideia gnóstica do demiurgo, o arquiteto deste mundo, um falso deus que governa a realidade humana. Os planos astrais e suas entidades, ideias presentes em tantas correntes espiritualistas, também podem ser vistas no filme.

A mitologia grega é representada na história pelo nome de personagens como Morfeu (o deus dos sonhos), que auxilia Neo a despertar de seu sono na Matrix. Há também Perséfone, esposa de Hades e rainha do submundo, que ajuda os humanos quando esses descem ao Inferno, e que em Matrix é esposa de Merovíngio e também dá uma forcinha aos humanos.

A mitologia cristã também está lá, emprestando sua rica simbologia. A trajetória de Neo tem tantos pontos em comum com a vida de Cristo que é improvável que sejam apenas coincidências. Comecemos pelo nome de Neo na Matrix, Thomas Anderson. Anderson, de procedência nórdica, significa originalmente “o filho do homem”, uma das expressões que Cristo utiliza para se referir a si. No início do filme, o amigo que faz uma visita a Neo se refere a ele, literalmente, como “Jesus Cristo” e “meu salvador pessoal”. Assim como Cristo, Neo é tentado e torturado, morre, ressuscita e sobe aos céus. O nome da personagem Trinity remete à trindade cristã (Pai, Filho e Espírito Santo). Merovíngio, o poderoso chefe dos programas rebeldes, é uma referência aos reis merovíngios, da idade média, que se acreditavam descendentes da linhagem real proveniente de Cristo. A nave Nabucodonossor traz a inscrição MARK III, no 11, que pode ser uma referência ao evangelho de Marcos, capítulo 3, versículo 11: “Os espíritos imundos, quando o viam, prostravam-se diante dele, e gritavam, dizendo: Tu és o filho de Deus.”

No entanto, e é isso que mais nos interessa, há algo além das religiões e filosofias que liga a história de Neo com a vida de Cristo e no qual ambas se inspiram. Este elo é justamente o mito da jornada do herói, bem mais antigo que os dois e que pode funcionar como uma espécie de roteiro para entendermos, psicologicamente, suas trajetórias. Jesus Cristo é o grande herói da mitologia cristã. Não é relevante aqui se ele de fato existiu ou não ou se era ou não o legítimo filho de Deus. Para o estudo da psicologia do inconsciente aplicada à mitologia, o que importa é o que sua história tem a nos oferecer em termos psicológicos. O que vale é o leito do rio, a estrutura do mito, e de que modo as pessoas o preenchem com as experiências de suas vidas.

Cristo viveu, a seu modo, a clássica trajetória do herói. Abandonou a segurança do lar e das tradições, empreendeu uma difícil jornada de autoaceitação, sofreu as dúvidas, tentações e dores inerentes aos conflitos de quem reluta em assumir seu destino e, por fim, submeteu-se à sua verdade mais íntima, ou seja, ao fato de que, sim, ele era o filho enviado por Deus Pai para redimir a humanidade.

Igual a Cristo, muitas lendas em variadas culturas, até mesmo mais antigas, contam histórias muito parecidas, com personagens de trajetórias similares, contadas e recontadas através dos séculos. O que torna a história de Cristo tão especial é o fato dela ter inspirado o nascimento de uma religião que atualmente, incluindo suas subdivisões, é seguida por aproximadamente um terço da população do mundo. Não fosse isso, certamente a história do galileu que obrava milagres, arrebanhou seguidores, incomodou líderes políticos e religiosos e morreu crucificado chegaria à nossa época como apenas uma lenda, da mesma forma que tantas outras.

Quinhentos anos antes de Cristo, na Índia, um príncipe muito rico abdicou do conforto de sua vida e foi para a floresta viver de esmolas e meditar sobre o sentido da existência. No momento em que o compreendeu, tornou-se um iluminado, um Buda, perfeitamente integrado à Natureza, capaz de fazer milagres e de ensinar as pessoas a encontrarem também a iluminação e se libertarem das prisões mentais. A mitologia cristã possui tantas semelhanças com a vida do Buda e com outros mitos de outras culturas que é como se uma única história estivesse sendo contada em variadas sociedades sob diversas versões, sob as características próprias de cada cultura e baseada em suas necessidades espirituais específicas. De fato, é sempre a mesma história: o mito da jornada do herói.

Neo, Buda e Cristo, assim como Percival, são heróis porque realizaram a si mesmos, concretizando seu potencial, vivendo profundamente seu mito pessoal e cumprindo seu destino. Cada um deles viveu, a seu modo, o roteiro que marca a jornada mítica do herói.

herói e sociedade: um moto-contínuo

Tudo que existe já traz em si a semente daquilo que o destruirá. A sociedade instintivamente sabe dessa lei universal e por isso sempre verá com desconfiança o indivíduo, ele e seu perigoso potencial de transformá-la. Mais cedo ou mais tarde ele a transformará, e os dois prosseguirão num novo nível, ela tentando manter as coisas como estão, ele a desafiando com sua diferenciação. É um moto-contínuo.

Assim como o impulso evolutivo faz com que a consciência individual evolua numa espiral, passando pelos mesmos pontos em novos níveis, a consciência coletiva da espécie também age assim, tendo de um lado da espiral a sociedade e do outro a individualidade. Nascemos imersos na sociedade, e durante a vida inteira ela exerce sua força coesiva sobre nós – mas do outro lado da espiral a individualidade nos atrai. Para os que a alcançam, ela fornece a diferenciação e a força necessária para prosseguir no caminho legítimo da alma. Seu impulso, porém, obviamente conduz o indivíduo ao outro lado da espiral, de volta à sociedade. Isso significa que a mesma sociedade que segurou o quanto pôde o impulso diferenciador do indivíduo e o rejeitou, mais tarde assimilará os novos valores que ele traz, e assim ela se enriquece, se renova e forma novos indivíduos que, por sua vez, serão também atraídos para o outro lado da espiral e, caso prossigam, levarão a sociedade a novos níveis de evolução. É assim que a espécie evolui, fazendo com que o conflito entre individualidade e sociedade seja o motor do movimento contínuo. Se não houvesse individualidade, as sociedades não mudariam e, assim, logo apodreceriam e morreriam.

Atualmente, a realização individual não se contenta apenas em se diferenciar do bando, como nos dias em que éramos semimacacos, ou em adquirir identidade própria, como nos estágios seguintes da história humana. A autorrealização agora exige mais, exige que alcancemos o ponto mais verdadeiro do que somos para que o potencial que está lá, adormecido, possa se realizar em toda sua plenitude. O novo nível de individualidade que temos de alcançar determina que atinjamos nosso centro, mas para isso precisamos, é claro, conhecer o nosso todo, e o todo inclui não só a superfície, mas o que está dentro. Isso significa que temos de conhecer o interior de nós mesmos, profundamente, do modo mais verdadeiro possível, se quisermos alcançar nosso centro mais legítimo.

Quando Neo finalmente consegue compreender quem ele é, entende seu papel no contexto da existência humana e faz o que deve fazer. É assim que ele salva a humanidade e renova as esperanças do planeta que, agora, suspenso o conflito entre humanos e máquinas, pode enfim se recuperar.

monitorando Neo

O enredo de Matrix será aqui utilizado para ilustrar o processo de autorrealização do ser humano e mostrar que podemos deixar de ser meros personagens para ser os grandes heróis de nossas próprias vidas. Para isso, usaremos como guia o primeiro filme da trilogia, onde mora a essência da história, e alguns trechos dos outros dois. Seguiremos cronologicamente, descrevendo as cenas mais importantes e comparando-as com a referida etapa do processo, usando exemplos da vida cotidiana, sempre dentro do contexto do processo de autorrealização.

Agiremos mais ou menos como os agentes da Matrix, que prenderam Neo e lhe implantaram um rastreador para não perdê-lo de vista. Em nosso caso, seguiremos Neo durante sua perigosa e emocionante jornada porque sua história é a história de cada um de nós. A aventura do guerreiro cibernético vivido pelo bonitão Keanu Reeves é uma metáfora de nossa jornada pessoal rumo à mais verdadeira realização de nós mesmos. A diferença é que Neo é um personagem de ficção e só existe nas telas, enquanto nós, eu e você, existimos aqui no mundo real, na tridimensionalidade do dia a dia, pegando ônibus lotado, suando para pagar as contas, sofrendo por nossos relacionamentos e pelo time que vai mal no campeonato, batalhando arduamente pelo que acreditamos e ainda procurando um sentido maior no meio desse grande caos da existência. Ufa! Merecemos um Oscar pelo conjunto da obra, não?

Monitoraremos Neo para, através de sua trajetória mítica, ver como nós mesmos nos comportamos em nosso processo de autorrealização. Será como um jogo onde o que virmos na tela será transplantado para a vida prática. Definiremos as regras do jogo a seguir, mas não há nada de muito complicado. Lidaremos com noções de mitologia e psicologia do inconsciente, mas tudo será feito de forma leve e descontraída.

Bem, de fato não é fácil traduzir em simples palavras e rápidas explicações o profundo, complexo e misterioso universo da alma. É como traduzir em linguagem racional e científica coisas que são do reino dos sonhos e da intuição. Porém, felizmente existe a arte e seu poder mágico de tocar as pessoas. Existem filmes como Matrix, que já trazem em si, metaforicamente, muito daquilo que os profissionais da psicologia e psicoterapia se esforçam para explicar em seus livros, palestras e consultórios. A metáfora facilita as coisas, levando ao entendimento imediato e instintivo do que realmente interessa, o centro da questão, o símbolo. Por esse motivo é que a psique faz uso da metáfora dos mitos para comunicar suas verdades.

Pois bem. O plano é usar esse incrível filme como instrumento para que nós mesmos apliquemos as verdades mitológicas em nossas vidas e, assim, possamos nos compreender melhor e nos libertarmos um pouco mais.

Mas… libertar-se de quê? Libertar-se daquilo que nos mantém presos e que nos impede de ser quem verdadeiramente somos e de seguir a nossa bem-aventurança. E isso somente cada um de nós será capaz de descobrir o que seja. Esta é a nossa missão, a sagrada missão de cada um de nós.

você se conhece?

Já vimos que, em termos psicológicos, a aventura de Neo pode ser entendida como uma reedição moderna da jornada humana rumo à autorrealização. Certo. Mas o que exatamente vem a ser isso?

Autorrealização é a efetivação do que há de mais profundo e verdadeiro em cada um de nós. Feito uma potencialidade existente no mais profundo do eu, ela nos impulsiona a um processo contínuo de autoconhecimento onde integramos os conteúdos do ser e rumamos para a mais íntima realização pessoal: a concretização da personalidade total.

Autorrealizar-se significa desenvolver o potencial adormecido e nos tornarmos quem somos destinados a ser porque é isso o que sempre fomos: a semente que já traz em si a árvore futura. É impossível autorrealizar-se sem conhecer as próprias possibilidades e torná-las reais. Seria impossível para Neo fazer tudo o que fez sem antes se convencer que, de fato, podia fazê-lo. Você lembra quando ele decide voltar à Matrix para resgatar Morfeu, mesmo sabendo que jamais alguém fez isso antes? Pois é. Nesse momento Neo está, pela primeira vez, convencido de seu potencial e, por isso, consegue fazer o impossível.

Uma pessoa autorrealizada é uma pessoa equilibrada, física e psicologicamente, que se conhece a fundo e por isso é senhora de seus atos. Está consciente das necessidades do corpo e da mente, da linguagem das emoções e do espírito. Em outras palavras, todas as dimensões de seu ser estão harmonizadas. Por conta desse elevado grau de autoconhecimento, é alguém que sabe de seu potencial e o utiliza do melhor modo, sem desperdícios nem autoenganações. É alguém que, mesmo vivendo em meio ao grande caos do mundo, está em harmonia com ele e não se abala facilmente com imprevistos e derrotas. Uma pessoa autorrealizada venceu os desafios mais importantes que a vida lhe impôs e não mais precisa lutar contra seus demônios internos, pois um dia teve a coragem de encará-los, conseguindo assim que eles passassem para o seu lado, herdando deles a força contra a qual tanto lutava.

Para atingir esse ponto, porém, a pessoa tem antes de despertar e se diferenciar da mentalidade comum, como Neo despertou da Matrix, como nossos antepassados peludos se diferenciaram do bando e inauguraram o novo ramo evolutivo que seria a espécie humana. Isso é necessário para que a individualidade se manifeste e a pessoa possa realmente conhecer quem é, buscando suas verdades dentro de si mesma. Quem sou eu? – tudo começa com essa perguntinha safada.

Nada disso é fácil ou rápido. Aqui, porém, precisamos entender algo muito importante: o que verdadeiramente interessa não é alcançar a meta. Parece contraditório empreender uma jornada onde não há chegada, mas é assim que funciona, pois o que interessa realmente nessa jornada é estar no caminho. A essência da autorrealização não é chegar, mas manter-se em movimento, até porque talvez não exista uma chegada definitiva na evolução psíquica. É mais ou menos como encontrar um grande amor: quando isso acontece, não importa o que exatamente vamos fazer ou até onde estaremos com a outra pessoa. Fixar-se nisso é perder a noção do mais importante, que é estar junto e viver o amor a cada dia, sem se preocupar mais que o necessário com seu futuro.

A alma é a dimensão interna da vida, uma dimensão fascinante e também libertadora. Porém, a maior parte das pessoas nunca chega realmente a se aventurar pelo universo de sua alma, preferindo a experiência de vida em níveis superficiais do ser. O motivo disso é que a nossa cultura não nos incentiva a olhar para dentro e, além disso, lá dentro é escuro e, você sabe, do escuro sempre podem vir coisas perigosas…

Geralmente, na primeira metade da vida gastamos a maior parte de nossa energia correndo de um lado para outro em busca de brincadeiras, dinheiro, aceitação social, poder, conquistas sexuais… Mesmo que o mundo interno nos chame a atenção, ele frequentemente é relegado a segundo plano. Algumas pessoas sentem cedo esse chamado, mas a maioria só vai escutá-lo a partir da metade da vida, quando começa a fazer falta um sentido maior. Muitas percebem que o tudo que conquistaram não as fez realizadas – nem livres. Aliás, é comum as pessoas chegarem a esse ponto se sentindo sufocadas: pelo tempo, pelo trabalho, pela família, pelas exigências sociais e até por suas próprias ideias e atitudes que durante muito tempo foram úteis, mas agora não têm o mesmo valor. É em momentos assim que a vida nos faz lembrar que temos uma missão sagrada e que só poderemos cumpri-la se nos voltarmos para a dimensão interna da nossa vida.

A história de Neo é a nossa própria história, a de alguém que um dia não se conforma com a vida que vive e busca uma vida mais verdadeira. Assim sendo, a partir de agora olhemos para o filme com outros olhos. Para monitorar o herói em sua jornada de autorrealização, precisamos ver o filme sob um ângulo psicológico, onde Matrix passa a ser a história de apenas uma pessoa, no caso Neo, e onde todas as situações do filme se referem diretamente ao herói, à sua psique. Por isso todos os personagens, a partir de agora, representarão aspectos psicológicos do próprio Neo.

Acho que não entendi bem…, você pode estar pensando. Não se preocupe. Vamos treinar nosso olhar um pouco mais antes de começarmos o monitoramento de Neo. Vamos falar sobre essa coisa misteriosa e fascinante que é a psique.

o organismo psíquico

A cada dia novas descobertas tornam menos precisas as fronteiras entre mente e corpo, mostrando que as duas coisas talvez não sejam tão distintas como julgamos. Mas, para efeito didático, ainda precisamos explicar separadamente essas dimensões do ser.

Assim como possuímos um conjunto de órgãos, um organismo, que age dentro de leis físicas, químicas e biológicas, possuímos também um “organismo psicológico” que atua seguindo suas próprias leis. Esse segundo organismo é a psique, e assim como o corpo físico, ela também regula a si mesma, podendo adoecer mas também promover a própria cura. Para entendermos melhor a psique, temos de vê-la como algo vivo e possuidor de uma espécie de inteligência própria e capaz de se autorregular. Nesse ponto, ela é como a Terra, um superorganismo que mantém a vida em si através do equilíbrio entre seus órgãos minerais, vegetais e animais. Bem, é verdade que o Homo sapiens, um dos órgãos animais, ultimamente tem se esforçado bastante para desequilibrar tudo, mas isso é outra história.

A psique é formada pela consciência e pelo inconsciente. A consciência é a área superficial da psique, ou seja, o nosso conhecimento imediato sobre nós mesmos. O centro da consciência é o ego, e é por ele que manifestamos nossa vontade. Por ele ser o centro da personalidade consciente, é justamente pelo ego que temos consciência do que somos ou não somos. Mal comparando, o ego é como a pele, pois ela é o elemento de comunicação mais visível e imediato do corpo com o ambiente externo. Mas a pele não é o corpo inteiro: do lado de dentro há outros elementos que atuam o tempo todo, estruturando o corpo, mantendo-o vivo e influenciando nosso comportamento, mesmo que não o percebamos. Ver o ego como a personalidade total equivale a confundir a pele com o corpo inteiro.

O conhecimento do ego sobre a psique ou a personalidade total, da qual ele é apenas uma parte, só alcança o que está na consciência, aquilo que é distinguível com a luz do discernimento da personalidade consciente. O que está além da fronteira da consciência, ou seja, o que faz parte do inconsciente, está na escuridão e não pode ser percebido pelo ego. Por conta do posto que ocupa, de “representante autorizado” da psique para o mundo externo, o ego tende sempre a se considerar o eu psíquico total. Mas não é. Esta é a sua velha ilusão, achar que está sempre no controle da situação. Não está porque os elementos do inconsciente influenciam no comportamento da pessoa sem o ego se dar conta, pois ele só admite a existência do que está em sua área, a consciência. Para o ego, reconhecer o inconsciente é reconhecer que não está sozinho no controle – e isso é sempre um golpe no orgulho egóico.

Às vezes dizemos: “Eu tenho umas coisas que não entendo…” ou “Não sei o que deu em mim para fazer aquilo…” ou “Eu estava fora de mim.” Em momentos assim estamos pressentindo que não somos apenas o ego, ou seja, que somos algo mais que apenas a nossa percepção consciente de nós mesmos. Estamos quase admitindo que existem outros aspectos de nós e que não os conhecemos bem nem temos controle total sobre eles. Quando surgem essas incertezas é sinal que conteúdos do ser, antes totalmente inconscientes, se aproximam da fronteira da consciência. O ego já os pressente e se incomoda. Esses conteúdos estão saindo das sombras do inconsciente e forçam saída rumo à luz da consciência, querendo ser integrados à personalidade consciente. O melhor a fazer é ir ao encontro deles antes que esses danados imprevisíveis provoquem confusões maiores. Isso é investigar-se psicologicamente, dar atenção ao mundo interno. Isso é autoconhecimento.

O ego, portanto, é uma espécie de gerente da psique, incumbido de facilitar o fluxo de conteúdos entre a consciência e o inconsciente, fluxo este que visa manter o equilíbrio psíquico, vital para a saúde do indivíduo. Um ego imaturo, porém, age feito um gerente inseguro, que está sempre tão preocupado em manter a ilusão de se achar mais do que é que não consegue perceber a existência de certos problemas na empresa. É exatamente por causa dessa negligência que os problemas se acumulam, ou seja, o fluxo de conteúdos entre consciência e inconsciente não ocorre de modo satisfatório. Para esse gerente inflado de orgulho, a prioridade não é o crescimento psíquico (crescimento da empresa), mas segurar seu cargo, manter as coisas como estão, empurrando com a barriga, adiando, fingindo não ver.

Se o ego não desempenha bem sua função gerenciadora da psique total, ignorando o inconsciente e fazendo a pessoa viver a si mesma de modo unilateral, os interesses egóicos se chocam com os interesses do eu total e as forças autorreguladoras da psique intervêm, queira o ego ou não. E aí surgem as crises.

o inconsciente

Mas… e o inconsciente, de que é feito exatamente? Podemos, a princípio, resumi-lo como o conjunto de tudo aquilo que não sabemos sobre nós mesmos. No inconsciente vivem, vamos chamar assim, complexos energéticos que possuem certo grau de independência, como se fossem entidades de vontade própria dentro de nós mesmos. Enquanto esses conteúdos inconscientes não forem percebidos e devidamente assimilados pelo ego, estarão sempre agindo na surdina, influenciando o comportamento, nos impedindo de sermos melhor do que somos, levando-nos a fazer coisas das quais nos envergonhamos e ocasionando males diversos.

É um monstro terrível esse inconsciente, um Godzilla que sempre destrói os planos da personalidade consciente? Não é bem assim. O inconsciente é imenso como o mar, é escuro como a noite – mas não é bom nem mau. Ele não tem moral, e tudo que deseja, e vai conseguir de um modo ou de outro, é se manifestar no mundo externo. O inconsciente possui conteúdos positivos e negativos, que podem ajudar ou prejudicar, dependendo da atenção que lhes dê o ego. Se o ego for um bom gerente, o inconsciente se tornará um importante aliado da personalidade consciente vida afora.

Você já comeu o corpo de um inimigo vencido? Não? Eu também não. Mas algumas tribos guerreiras tinham esse hábito de, após vencer uma batalha, comer os corpos dos inimigos mais valentes num ritual cheio de respeito e reverência. Nojento? Para nós pode ser, mas agindo assim eles acreditavam incorporar a coragem e a destreza do inimigo e, com isso, tornavam-se guerreiros mais fortes. Você pode não agir assim com seus inimigos de carne e osso, porém é isso que ocorre quando vencemos os desafios internos de nossa personalidade: o que antes era um inimigo traiçoeiro a nos emboscar no escuro do inconsciente finalmente junta-se à consciência e nos engrandece, nos equilibra e nos faz mais fortes e capazes.

hoje tem espetáculo

Talvez a analogia com as tribos guerreiras não tenha feito bem a seu estômago. Tentemos então pelo lado da arte.

Imaginemos a psique como um grupo teatral, composto de vários atores. Quando a cortina se abre, porém, no palco há somente um único ator sob um facho de luz concentrada. O ator é o ego e a luz é a consciência. A consciência ilumina tudo o que toca, permitindo que o ego, que está sempre em seu centro, veja, descrimine o que existe e decida o que fazer com o que descobriu. O próprio ego dirige o foco de luz da consciência, formando com ela quase que uma só entidade. Quase, pois em certos momentos ela ilumina um pouco mais do que ele gostaria de ver.

O ego acha que está só no palco, realizando seu monólogo mas, atrás dele, na penumbra do fundo do palco, existem outros atores, uns mais quietos, outros nem tanto: são os outros aspectos do ser. Estão no escuro porque lá a luz da consciência ainda não chegou, e o ego, por isso, não reconhece sua existência. São aspectos da personalidade que ainda não foram devidamente integrados à consciência. São conteúdos inconscientes porque o ego está inconsciente deles. Pode ser a agressividade ou um grande medo não reconhecido, pode ser um trauma da infância, uma grande culpa ou a sexualidade não assumida. Pode ser muita coisa – mas o ego não sabe desses aspectos ou finge não saber, pois em algum momento decidiu que seria melhor não conviver com eles.

Esses atores da escuridão sabem que o ego é o ator principal, mas eles também querem participar mais ativamente do espetáculo. Mesmo que não sejam oficialmente reconhecidos pelo ego, eles se movimentam em segundo plano e isso cedo ou tarde interferirá no andamento da peça. Quando isso ocorrer, o ego terá a primeira noção de que não está sozinho no palco. Mas poderá insistir em continuar desprezando os colegas, fingindo que nada aconteceu. Quanto mais os desprezar, mais eles se esforçarão para aparecer, podendo forçar a barra e chegar ao cúmulo de se adiantar no palco e dividir a luz do refletor com o ego, para surpresa e embaraço deste. O ego, coitado, que em nenhum momento teve controle total sobre os rumos da peça, agora é obrigado a admitir abertamente que existem outros atores e terá forçosamente de incluí-los em sua própria história.

Isso é apenas uma comparação, claro, mas é o que ocorre diariamente em nossas vidas. Pensamos que estamos agindo sozinhos, mas outros aspectos que fazem parte de nosso eu total estão atuando também, às vezes contribuindo e outras vezes atrapalhando e até mesmo sabotando os planos de nossa personalidade consciente. A necessidade de autoconhecimento leva o ego a ampliar a luz da consciência a fim de iluminar outros pontos da psique total, à procura do que mais possa estar ali. É um trabalho delicado e custoso, pois requer a coragem de encarar o que não se conhece em si próprio. Isso trará mudanças, inevitavelmente, e o ego não é muito chegado a mudanças, preferindo sempre manter as coisas como estão. Mas não há outra forma da psique se equilibrar e da personalidade consciente ter mais controle sobre a própria vida. O ego precisará se transformar, e para isso terá de ter grande honestidade consigo mesmo, paciência e perseverança.

Jogar a luz da consciência sobre nossos conteúdos inconscientes significa assumir outras partes de nós mesmos. Algumas dessas partes já suspeitamos que existem e, bem ou mal, convivemos com elas no cotidiano. Outras partes, porém, por algum motivo, em algum momento da vida decidimos mantê-las na escuridão – são essas as mais difíceis de lidar, pois, se por um lado essa decisão permitiu ao ego levar a vida como se essas partes não existissem, por outro lado lhes proporcionou a oportunidade de se desenvolver sem serem incomodadas. Por conta disso o ego sempre se assusta ao vê-las sair das sombras, crescidas e cheias de vontade, e vir dividir com ele a atenção da plateia.

tornar-se o próprio herói

Uma pessoa consciente de seu caminho de autorrealização sabe perfeitamente que o processo exige um contínuo transformar-se e toda transformação traz algum tipo de crise. Essa pessoa sabe que dialogar com suas outras partes e reconhecer que elas fazem parte do eu total não é trabalho fácil, pois traz incertezas e angústias. Mas o processo de autorrealização exige que a consciência se amplie para que a pessoa pare de brigar com seu próprio inconsciente, ou seja, com ela mesma. Deixando de brigar com o que reprime dentro do ser, a pessoa se torna mais autoconsciente e equilibrada, assim como Neo que, à medida que conhece seu potencial, segue treinando suas capacidades e assim consegue se movimentar melhor na Matrix.

Por outro lado, se a pessoa tem medo do que possa vir do escuro do ser e continua reprimindo a própria natureza, a psique cobrará tal negligência, atrapalhando os planos do ego, forçando-o a gafes e atitudes cada vez mais constrangedoras ou até mesmo provocando insucessos, acidentes e doenças – isso tudo para forçar o ego a parar um pouco e olhar para dentro. Esses mecanismos psíquicos fazem parte da capacidade de autorregulação do eu total, que só tem um único objetivo: realizar-se em sua inteireza, tornar-se a árvore futura que a semente predizia. Mas isso será impossível se consciência e inconsciente não estiverem em harmonia.

O processo de autorrealização leva a pessoa a lidar mais harmoniosamente com o mundo, com as outras pessoas e consigo mesmo. É como Neo, que a partir do momento em que entende verdadeiramente quem é, deixa de ser iludido pela Matrix e percebe que, em vez de ser manipulado, pode fazer o que bem quiser.

Nosso objetivo é o mesmo de Neo: tornarmo-nos os grandes heróis de nossas próprias vidas. Devemos descobrir quem somos e o que devemos fazer – isso é o processo de autorrealização. E ele é como as melhores aventuras do cinema: tem um enredo criativo e cheio de reviravoltas, um herói cativante, inimigos terríveis, perigos e armadilhas por todo lado, suspense de arrepiar, romances… E o que é mais incrível: é real. Não está acontecendo na tela, mas em nossas próprias vidas!

Mas antes é preciso despertar. Abrir a porta que dá para o mundo interior. Seguir o coelho branco.

Bem, acho que basta de treinamento. Já estamos prontos para monitorar nosso herói. Então vamos lá. As luzes já foram apagadas. Desligue o celular e se acomode na poltrona. O filme vai começar.

(continua)

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Ricardo Kelmer 2005 – blogdokelmer.com

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CONTEÚDO INTEGRAL DO LIVRO

Cap. 1 – Cinema, mito e psicologia
Cap. 2 – Toc, toc, toc… Acorde, Neo!
Cap. 3 – Não existe colher
Cap. 4 – Morrendo para vencer

Cap. 5 – Matrix Reloaded e Matrix Revolutions
Cap. 6 – Os personagens
Cap. 7 – Quadro comparativo

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Comentarios01 COMENTÁRIOS
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One Response to Matrix e o Despertar do Herói cap 1

  1. achei por acaso este blog aqui mais muito interessante o artigo vou ler o livro pra ver se é bom

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