Memórias de um excomungado

13out2010

Eu jamais havia cogitado a ideia de que era possível não ter religião ou não acreditar em Deus

MemoriasDeUmExcomungado-01

MEMÓRIAS DE UM EXCOMUNGADO

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O primeiro questionamento religioso de minha vida ocorreu aos 10 anos. Eu e meus colegas do colégio Santo Inácio vivíamos os preparativos da primeira comunhão, em aulas e treinamentos para a cerimônia. Eu era um menino como a maioria: tivera educação cristã e sabia rezar as orações principais. E sentia uma certa reverência mística pela imagem de Jesus Cristo, imaginando até que ele falaria comigo no momento em que eu recebesse a hóstia.

Um dia, os padres distribuíram um folheto que trazia a imagem de Jesus e um texto sobre a eucaristia. Guardei o papel e voltei a atenção para a aula que começava. Pouco depois, vi meu colega ao lado pegar seu folheto e, sem discrição, erguê-lo e rasgá-lo ao meio, dizendo, com raiva, que aquilo era mentira.

Não lembro se alguém mais viu. Mas eu vi bem. E aquilo foi um choque para mim. Perplexo, tentei entender por que ele fazia aquilo, mas logo um pensamento mais profundo me tomou: então aquilo era possível? Alguém podia fazer o que meu colega fizera e não ser instantaneamente fulminado por um raio?

A cena me perseguiu durante meses. Sim, eu sabia que, embora o colégio fosse católico, os alunos não eram obrigados a fazer a primeira comunhão, mas eu jamais havia cogitado a ideia de que era possível não ter religião ou não acreditar em Deus. Pela primeira vez, eu enxergava além da redoma religiosa dentro da qual sempre vivera.

Fiz a primeira comunhão, Jesus não veio falar comigo e eu segui sendo um desses garotos que não gostam de ir à missa, mas se dizem católicos. Aos 16, participei de um retiro de fim de semana que na época era moda entre a turma, e lá tive uma experiência mística que me fez entrar para um grupo de jovens católicos. Levei a coisa tão a sério que cheguei a ser líder do grupo, além de coordenador do retiro e palestrante sobre Francisco de Assis. Passava as viradas de ano rezando com o grupo e pensava em ser padre.

Dois anos depois, entendi que eu era livre demais para me deixar limitar por aquela filosofia controladora feita de culpa e pecado. E, assim, larguei o catolicismo e segui minha vida, sendo um místico sem religião, mas que gostava de estudar as religiões e as mitologias e de explorar os mistérios. Participei de grupos esotéricos e de um instituto de estudos espiritualistas, do qual fui expulso. Tive experiências com plantas psicoativas que me libertaram ainda mais a mente, tanto que me recusei a fazer parte das seitas que as utilizavam em seus rituais. E já quarentão foi que assumi de vez meu ateísmo, sem, contudo, deixar de sentir aquela sensação de sagrado maravilhamento toda vez que me vejo diante do imenso mistério que é estar vivo.

Um dia, descobri que sou um excomungado. Sim, é verdade. Fui automaticamente excomungado da Igreja Católica aos 20 anos, quando ajudei minha amante a fazer um aborto. Pesquisei o código de direito canônico e descobri que há mais casos de excomunhão automática (latae sententiae) e que, antes do aborto, eu já havia incorrido em dois deles, o cisma e a heresia. Talvez você também seja um excomungado e não saiba.

Religião é controle, e ele começa cedo, quando a criança é treinada para acreditar em deuses e aceitar dogmas sem questionar nada. O treinamento é tão eficaz que a maioria seguirá a vida inteira sem sequer cogitar a hipótese de que talvez haja outras maneiras de entender a vida. Junte-se isso à necessidade de ser policiado e conduzido, e pronto, teremos uma pessoa eternamente controlada. Nada tenho contra a religiosidade pessoal – é a religião institucionalizada que limita e controla as mentes. É de religião que não precisamos para sermos livres.

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Ricardo Kelmer 2010 – blogdokelmer.com

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Foto: Colégio Santo Inácio, primeira comunhão, Fortaleza-CE, 1975. Eu sou o mais escondido.

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COMENTÁRIOS
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01- Quem for pela linha de pensamento do autor, obrigatóriamente deixará de servir a pátria, da bom dia aos outros e ficar em filas como qualquer cidadão comum. Já que o autor se intitula de livre, então prá que seguir a rotina? Rangel Brasil – nov2010

02- Ricardo Kelmer, você tem todo o direito de falar e dizer tudo o que pensa e isso é bom e eu tbem, a questão é que vc veio de uma doutrina de religiosodade, vc não conheceu o verdadeiro Deus, não teve um verdadeiro encontro com o Senhor Jesus Cristo, ele sim te libertará destas amarras que te conduzem a assumir esta postura, a palavra liberta Ricardo, a palavra de Deus liberta, Jesus Cristo te liberta, a verdadeira liberdade não é a que muitos vivem, Jesus nos chamou para sermos livres e não escravos, hoje eu sou um homem que teve um verdadeiro encontro com o Senhor Jesus, vc busca este encontro, porém encontrou ele em religiosidade, Jesus não é religião, Jesus é salvação, um dia que vc souber o que isso quer dizer, seberá que ele é Deus para libertar os cativos de mente e de espírito, cativos que dizem que são livres mas no fundo são escravos de suas proprias auto doutrinas e tem isso como verdade, a verdade Ricardo sabe qual é?É que Jesus te ama do jeito que você é e que somente ele pode decifrar e satisfazer os reais desejos de teu coração e da tua eterna busca pelo sagrado. Paulo César Cândido, Fortaleza-CE – nov2010

03- Preocupam-me esses questionamentos sobre a “verdade religiosa” , que voce fez o favor de bagunçar ainda mais nessa minha confusa cabecinha. Graças a voce , estou prestes a ser excomungada e o pior é que não estou muito preocupada com isso,o que me preocupa!!!! Tá vendo, voce está me enlouquecendo!!! rsrsrsrsrs Corro o risco de arder no fogo do inferno e a culpa é toda sua! rsrsrsrsrs. Irlane, Fortaleza-CE – dez2010

04- Li tudo Kelmer! Se auto excomungado!!! rsrsrsrsrs Realmente algumas religiões escravizam. Mas acho que isso depende de cada um. Nunca me escravizaram. Meus pais sempre nos permitiram para a vida. Quanto ao conflito, ainda presente! Agora seu blog está nos meus favoritos 🙂 um abraço! Fátima Dias, Fortaleza-CE – jul2015

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6 Responses to Memórias de um excomungado

  1. Rosa disse:

    É aquele negócio de não confundir autoridade com autoritarismo, religiosidade com radicalismo… Não sei se no fim (ou na prática)tudo acaba dando no mesmo.
    Posso afirmar que sou uma mulher de fé. Não em dogmas, Deus que me livre, mas cultivo a fé na bondade, na bem-aventurança, no altruísmo,fé em mim mesma… Sentir no espírito um sopro do que é divino é bom sim,afinal é tudo mistério,elevação,luz.
    Essa coisa de Francisco de Assis foi proposital,né? Negócio de desprendimento material, tirar a roupa… Ops, olhaí a herege!
    Desista,ainda não fiquei com medo de ti.

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  2. Rodolfo Goulart Müller disse:

    Você foi libertado por um colega que rasgou um papel, eu fui libertado pela ciência, agora somos livres e podemos entender o mundo de uma forma mais profunda, algo que nenhum religioso é capaz de imaginar, sem, claro, deixar de sentir aquele sentimento de maravilhamento diante da infinitude de mistérios que nos cerca.

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  3. Alexandre disse:

    Eu fui excomungado antes de nascer por peoblemas vividos por minha familia em Mato Grosso no inicio do seculo passado. Mas tendo em vista como vivo e como penso, ja sou excomungado pelo menos umas 10 vezes. So de aborto foram seis fora os outros ditos crimes excomungaveis. Detesto religiao seja ela qual for. So tenho algum arremedo de respeito por um unico lider religioso, o Dalai Lama, mas nao pertenco, nao prego e nem participo de qualquer ato relacionado a religiao dele. Por respeito me recuso a entrar em qualquer antro (templo 0 religioso. Se me ver obrigado a isso, azar o deles.
    Valeu

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