. O ato do padre Júlio Lancellotti, em São Paulo, derrubando com uma marreta as pedras cimentadas sob um viaduto, foi grandioso e desde já passa para a galeria de imagens da resistência antifascista no Brasil. Revoltado com a estratégia higienista da prefeitura paulistana para resolver a questão das pessoas em situação de rua, Julio Lancellotti fez o certo, o óbvio: devolveu a essas pessoas o único lugar que elas possuem para morar.
. Em pé, diante do espelho da parede, Cachorrinha vê sua imagem refletida. Seu corpo magro nu, a alvura da pele, o cabelo chanel negro, os seios pequenos… Em seu pescoço, a coleira de couro vermelha com as iniciais em amarelo: BB. E a corrente de ferro, prendendo-a pelo pescoço ao pé da cama. Ela gosta do que vê.
Quando a porta se abre, Cachorrinha imediatamente ajoelha-se, senta sobre os calcanhares e encosta as palmas das mãos no chão, à frente dos joelhos, a posição um, da docilidade. Uma mulher entra, trajando vestido e sapato de salto alto.
‒ Está pronta, Cachorrinha?
Ela percebe a mudança no tom de voz de Brenda. Já não é mais a moça que meia hora antes a recebera, entre abraços e saudações descontraídas. Agora é sua dona. Dez anos mais nova que ela, mas naquele vestido e naquele salto alto parece ser mais velha.
‒ Nossos convidados logo chegarão.
Cachorrinha sorri. Adora quando seus donos convidam amigos para brincar com ela. Sua dona solta a corrente do pé da cama e Cachorrinha agradece esfregando-se em suas pernas. De pé, é observada por alguns instantes, tem seu corpo verificado, os dentes e as axilas, os seios apalpados, a pele cheirada. Sua dona aponta para a cama e Cachorrinha vai para lá, e fica de quatro sobre o colchão, a posição dois, da disponibilidade. As bordas de sua buceta são afastadas, o interior vistoriado, sua dona introduz um dedo, cheira e lambe. Cachorrinha geme. Depois sua bunda é aberta e um plugue é enfiado em seu cu, e a parte externa possui uma argola à qual é preso um rabo peludo de cachorro, de cor castanha.
‒ Não é bonito? Comprei ontem pra minha Cachorrinha… ‒ sua dona diz, passando carinhosamente a mão em sua cabeça. Cachorrinha olha-se no espelho e exulta com a imagem, sua bunda adornada pelo novo e belo rabo peludo. Tem sorte de ser a cadela de donos tão generosos.
Obrigado, Senhora, obrigado…, ela responde por meio de ganidos, agradecida.
Sua dona a leva pelo corredor do apartamento, puxando-a pela corrente, e Cachorrinha a segue engatinhando, como uma fiel cadelinha deve fazer, e o contato do rabo no interior das coxas lhe provoca arrepios. Na sala, próximo à porta, seu dono as espera. Cachorrinha segue sua dona até lá e para, mantendo-se na posição de docilidade, semiajoelhada, aos mãos no chão.
‒ Beto, olha como nossa Cachorrinha ficou linda com o rabo novo.
‒ Lindíssima ‒ ele responde, entusiasmado. ‒ Posição dois, agora, pra tirar foto.
Cachorrinha obedece, ficando de quatro e empinando a bunda para as fotos, sua dona ao seu lado, segurando-a pela corrente.
‒ Está feliz, Cachorrinha?
Muito feliz, Senhor, ela responde latindo, sacudindo a bunda e balançando o rabo.
‒ Nossos convidados merecem toda nossa hospitalidade. Sirva-os como se servisse a nós, entendido? ‒ Cachorrinha responde sim com a cabeça. ‒ Boa cadela… ‒ ele diz, dando dois tapinhas em seu rosto. Os tapas não doeram, mas ela pode sentir o rosto latejando levemente, o suficiente para fazer-lhe brotar um tremor de excitação.
O casal convidado entra, seus donos dão-lhe as boas-vindas, abraços e beijos.
‒ Esta é Cachorrinha, que está aqui hoje para todo o nosso dispor, não é, Cachorrinha? ‒ diz sua dona, e ela responde sim com a cabeça, alegremente.
Cachorrinha sorri para o casal, que sorri de volta para ela com indisfarçável interesse. São jovens como seus donos, não tão bonitos, é verdade, mas imediatamente se tornam lindos e especiais, pois são os convidados daquela noite, e servi-los será o mesmo que servir a seus amados donos, e só por isso ela já os ama também.
‒ Cumprimente-os como nós a ensinamos.
Cachorrinha engatinha até o casal convidado e lambe delicadamente a mão da mulher, e depois a do homem. Que luxo de cadela, diz a mulher. É um belo espécime, parabéns, emenda o homem. E Cachorrinha se derrete de felicidade, vendo que seus donos sorriem orgulhosos dela.
Todos vão acomodar-se nos sofás e Cachorrinha engatinha atrás de sua dona, que a deixa sentada próximo à mesinha de centro. Posição um, Cachorrinha, e ela imediatamente obedece, assumindo a posição de docilidade. Depois de beberem um pouco e conversarem divertidamente, as atenções se voltam para ela.
‒ Sua cadela é realmente muito bonita, Brenda ‒ diz a convidada. ‒ Desde quando a possuem?
‒ Seis meses, somos seus segundos donos. Quer dar biscoito pra ela? Ela adora.
Biscoito de carne, hummm… Os prediletos de Cachorrinha. Ela lambe os lábios, olhando fixo para os biscoitos num pote de vidro sobre a mesinha. A convidada pega um biscoito e o atira próximo dela. Cachorrinha hesita, olha para sua dona.
‒ Pode pegar, Cachorrinha.
E só então ela avança e abocanha o biscoito, e o come com prazer. Depois sua dona a chama, para que os convidados possam vistoriá-la. E eles a examinam, tocando seu rosto, mexendo em seu cabelo, olhando seus dentes. Ela vira-se, para que possam examinar detalhadamente seu novo rabo. Enquanto o tocam, Cachorrinha sente calafrios correrem por seu corpo e ela precisa se concentrar para manter-se quieta. Ser vistoriada é sempre um grande prazer…
‒ Cachorrinha agora vai nos servir o camarão empanado ‒ anuncia sua dona.
Sobre a mesa, há uma concha com um pequeno gancho na borda. Cachorrinha a apanha com a boca, entrega à sua dona e vira-se de costas. O rabo é retirado e a concha é presa ao plugue anal, ficando pendurada na entrada da buceta. Cachorrinha sente o frio do alumínio nos lábios de sua buceta e geme em ganidos baixinhos. Sua dona põe alguns camarões na concha e ordena que ela sirva os convidados. Cachorrinha engatinha até eles, com cuidado para que os camarões não caiam, e para de costas para que se sirvam. E eles se servem, e seus donos também. Ela silenciosamente implora para que todos se sirvam bastante, pois mesmo o mais leve toque de seus dedos mexe a concha e faz vibrar o plugue dentro de seu cu, criando deliciosas ondas de vibrações… Sua bunda agora é uma bandeja, uma dócil bandeja branquinha de camarões empanados.
‒ Quer camarão, Cachorrinha? ‒ pergunta seu dono. Ela faz que sim com a cabeça. ‒ Então vá pegar seu pratinho.
Cachorrinha engatinha até a cozinha e volta trazendo na boca seu pratinho de plástico. Seus donos pegam alguns camarões, mastigam e os põem no pratinho, e ela os come diretamente com a boca, fechando os olhos para assimilar bem o sabor. Ah, o melhor molho do melhor chefe do mundo não é nada diante do gosto de saliva fresquinha de seus donos…
Após terminar o último pedaço, ela engatinha até sua dona e lambe-lhe a mão, agradecida. E gane baixinho, olhando para ela de um jeito especial.
‒ O que você quer, Cachorrinha?
Cachorrinha gane novamente.
‒ Quer fazer cocô?
Ela responde que sim com a cabeça.
‒ Como é educada… Ah, Brenda, quando você pode emprestá-la? ‒ pergunta a convidada, encantada.
‒ Que tal na próxima quinta?
‒ Está ótimo! Cuidaremos muito bem dela.
Cachorrinha vibra por dentro com o que ouve. Adora ser emprestada. Ela vira a bunda para sua dona, que retira a concha e depois puxa o plugue de seu cu. Depois engatinha até um canto da sala, para e acocora-se de costas para os dois casais que, dos sofás, a observam em silenciosa atenção. Cachorrinha apoia as mãos no chão, suspende a bunda e se concentra. E, durante o minuto seguinte, defeca calmamente, sentindo a merda sair de seu cu devagar, numa longa peça de cor marrom que desce até o pratinho de plástico e pousa enrolando-se sobre si mesma, enquanto ela sutilmente observa pelo espelho da parede os quatro nos sofás, todos extasiados pela sua atuação. Quando termina, seu semblante não nega o prazer e o imenso orgulho que sente. Defecar para os convidados de seus donos, que prova maior de amor uma cadela pode oferecer?
Ela vira-se, abocanha a borda do pratinho e sai engatinhando para deixá-lo na área de serviço, boa cadela que é. Lá, aproveita para limpar-se e retorna para receber a recompensa de seus donos, quem sabe mais um biscoitinho de carne. Porém… eles não parecem satisfeitos. O que pode ter acontecido? Somente neste instante é que percebe que defecara um pouco fora do pratinho. Ela olha para seus donos, com um olhar de desculpas, foi sem querer, só um segundinho de desatenção… Mas já é tarde.
‒ Muito feio o que você fez, Cachorrinha ‒ diz sua dona em seu ouvido, e Cachorrinha conhece bem aquele tom de voz ameaçador. ‒ Você quer que nossos convidados pensem que não soubemos educar você?
Cachorrinha abaixa a cabeça, triste e envergonhada por sua falha grotesca. Para os donos de animais, nada mais desabonador que serem conhecidos no meio como péssimos educadores. Defecar num pratinho, até a cadela mais simplória sabe fazer isso, que vergonha… Se pudesse, voltaria o tempo para que seus donos não tivessem que passar por tal desonra.
Brenda aponta para um ponto na estante. Cachorrinha gane, pedindo novamente para ser perdoada. Mas sua dona está resoluta e mantém o braço apontado para a estante. Ela engatinha para lá, pega com a boca um saco de veludo vermelho e o leva para sua dona. Apreensiva, Cachorrinha a observa abrir o saco e puxar de dentro um chicote preto de tiras de couro. A visão daquele objeto lhe dá um calafrio. Sua dona a puxa pela coleira e a faz deitar-se de bruços sobre uma almofada, deixando sua bunda bem elevada e inteiramente à disposição.
‒ Por favor, ensine-lhe um pouco de boas maneiras ‒ diz sua dona, entregando o chicote ao convidado.
Cachorrinha sente o coração acelerar. Seu dono ajoelha-se em frente a ela e a segura pelos punhos, para que não se movimente. Sua dona a venda com uma tira de pano, para que nunca saiba o momento certo em que o golpe a atingirá e, assim, não tenha como se preparar.
Os primeiros golpes são leves, provocando-lhe curtos ganidos de satisfação, e Cachorrinha aos poucos sente a tristeza e a vergonha darem lugar ao prazer de ouvir novamente o doce som do estalo do couro em sua pele. Os golpes se tornam mais fortes, e o prazer se mistura à dor, até que a dor se sobrepõe e as lágrimas escapam de seus olhos, molhando a venda, e a cada chicotada ela morde os lábios, resistindo à dor, a dor que aumenta, e aumenta mais, até que fica insuportável e ela late, pedindo para parar, um latido sofrido misturado com choro.
‒ Promete que nunca mais vai nos envergonhar como fez hoje? ‒ pergunta seu dono.
Sim, sim, ela responde latindo, ainda chorando. Ele solta seus punhos e lhe tira a venda.
‒ Ótimo. Agora ponha seu rabo e venha nos satisfazer.
Cachorrinha apanha o rabo e o leva à sua dona. Por alguns instantes ela aguarda, enquanto sente os olhares de todos sobre si, ela de quatro, o rabo na boca, as lágrimas a escorrerem de seu rosto. Finalmente, sua dona pega o rabo, prende-o ao plugue e o enfia novamente em seu cu. Cachorrinha ainda sente a bunda dolorida mas o plugue alivia a dor e os pelos do rabo entre suas coxas a fazem sentir-se melhor. Sua dona aponta para a convidada e ela engatinha até o sofá, onde o casal está sentado lado a lado, e põe-se entre as pernas da mulher, na posição de docilidade. A mulher suspende o vestido e tira a calcinha. Cachorrinha vê surgir a buceta da mulher, entreaberta e molhada. Ela sabe que seus donos a observam e que não pode mais falhar em nenhum detalhe. Então aproxima o rosto e começa a lamber a buceta da mulher, que segura sua cabeça com as duas mãos e a puxa contra si, enquanto geme cada vez mais forte, vai, Cachorrinha, me chupa, vai… Com o rosto afundado entre as coxas da convidada, a língua de Cachorrinha passeia pelo interior de sua buceta, no início devagar e depois mais rápido, seguindo os movimentos do corpo da mulher, harmonizando-se com sua respiração, e ela sente quando as coxas se contraem, os gemidos se intensificam, as mãos lhe puxam a cabeça como se quisessem enfiá-la toda… e a mulher goza em sua boca, um gozo longo e ruidoso, e ela prova o gosto daquele gozo feminino, bebendo tudo que pode.
O convidado a aguarda com o pau para fora da calça, totalmente ereto. Cachorrinha abana o rabo, ansiosa. Ele a chama, vem, Cachorrinha, vem, e ela posta-se entre suas pernas, observando-o masturbar-se. Não é tão grande como ela gosta, mas é bonito. E cheiroso também, ela constata, enquanto o beija na cabeça e começa a lambê-lo. Sua boca o envolve em idas e vindas contínuas, chupando-o com presteza, e o homem goza logo, jorrando sêmen em seu rosto, e ela lambe e lambuza-se e bebe com vontade, enquanto ele geme seu prazer de ser chupado por uma cadela tão dadivosa.
Em seguida, Cachorrinha satisfaz sua dona, ela deitada no carpete e Cachorrinha entre suas pernas, e depois satisfaz seu dono, ele de pé mesmo, com ela ajoelhada no chão e tendo que dividir o gozo dele com sua dona, que exige que ela não beba tudo e que, diretamente de sua boca, passe uma parte para a boca dela, o que Cachorrinha faz, num longo e saboroso beijo que a deixa tão excitada que ela quase implora para também ser chupada pelos dois. Mas isso é algo que não lhe é dado fazer. Sua obrigação é servir.
Após satisfazer aos quatro, e feliz de sentir-se inundada por tantos gozos, Cachorrinha engatinha para um canto e posta-se na posição de docilidade. Está cansada, mas sabe que deve permanecer ali, aguardando que a chamem a qualquer momento.
E, após alguns minutos, seus donos a chamam, ordenando dessa vez que fique debruçada no sofá, com os joelhos no chão e afastados. É quando o terceiro convidado surge na sala: Yago. Cachorrinha não o conhece, mas sabe que foi trazido pelo casal convidado. Seu dono levanta seu rabo, deixando sua bunda totalmente descoberta, e lambuza sua buceta com sorvete de morango, não esquecendo de despejar uma boa porção lá dentro. Yago se aproxima lentamente, em seu passo firme. É um grande labrador negro, e sorvete de morango é o seu preferido. Cachorrinha fecha os olhos, para que a visão não lhe desvie a atenção das sensações que terá. Enquanto seu dono mantém seu rabo erguido, ela sente que Yago fareja sua buceta e começa a lambê-la. Cachorrinha arrepia-se, sentindo a grande língua varrer toda a extensão da buceta, meter-se dentro dela feito uma cobra inquieta e vasculhar seu interior em busca do sorvete. A língua de Yago não para, é como um dispositivo automático. Cachorrinha gane de prazer, e gane mais ainda quando Yago monta sobre ela e ela sente seu peso sobre suas costas, o bafo quente em sua nuca, os pingos da saliva caindo em seu pescoço. As tentativas do animal são bruscas e desajeitadas, mas as patas estão cobertas por luvas especiais para que as unhas não arranhem sua pele. Então o pau do labrador força entrada em sua buceta e ela empina mais a bunda, procurando encaixar-se melhor ao corpo dele, até que, com a ajuda de seus donos, Yago finalmente consegue e ela sente o membro dentro de si, um membro grosso e quente a entrar e sair do espaço onde pouco antes se remexia sua língua, e Cachorrinha late, e late mais alto, tomada pelo frenesi luxurioso, e então Yago arfa mais forte sobre suas costas e ela sente o líquido quente dentro de si e, nesse momento, uma gigantesca onda de prazer desaba sobre ela, arrastando-a sem rumo, e Cachorrinha uiva o mais alto que pode, transtornada e feliz, gozando o indizível êxtase de ser a cadela amada de seus donos.
* * *
O alarme do celular toca a melodia familiar e Silvana desperta. Sexta-feira, sete da manhã. Ela abre os olhos, reconhece seu quarto e se espreguiça. Dormiu pouco, mas sente-se bem e disposta. Duas horas depois ela sai do táxi e chega ao prédio da empresa. Sobe até o décimo segundo andar, cumprimenta algumas pessoas no corredor e entra em sua sala, onde a aguarda sua secretária.
‒ Bom dia, dona Silvana.
‒ Bom dia, Lia. Os gerentes já chegaram para a reunião?
‒ Sim, os quatro já estão aí. Posso chamá-los?
‒ Por favor.
A secretária sai, e um minuto depois retorna, e com ela os quatro gerentes, que ocupam as cadeiras em frente à mesa da diretora.
‒ Bom dia, senhoras e senhores ‒ diz Silvana. ‒ Trouxeram os relatórios? Ótimo.
Um após outro, os gerentes leem seus relatórios e Silvana faz suas observações. Vinte minutos depois, ela encerra a reunião e todos levantam-se para sair.
‒ A senhora fica ‒ ela fala para uma das gerentes. ‒ Pode nos deixar a sós, Lia.
Os demais gerentes saem com a secretária, que fecha a porta. Silvana, ao lado de sua mesa, agora observa a moça, em pé à sua frente.
‒ Nossa empresa está muito satisfeita com seu trabalho, dona Brenda.
‒ Obrigado, dona Silvana.
‒ Indicarei seu nome para a subdiretoria, o que acha?
‒ Puxa… eu…
‒ Não precisa agradecer.
Por alguns instantes, Silvana olha sério para a funcionária. Depois mexe em alguns papéis na mesa e sorri.
‒ Foi uma noite maravilhosa. Você estava linda.
‒ Sim, e você estava magnífica ‒ Brenda sorri também, e agora o semblante de ambas está bem descontraído. ‒ Os convidados ficaram encantados.
Silvana aproxima-se e beija a moça suavemente na boca.
‒ Eu te amo tanto, Brenda.
‒ Nós também te amamos muito.
‒ Você e Beto são os melhores donos do mundo.
Elas se beijam mais uma vez, dessa vez um beijo intenso e demorado, enquanto se abraçam e as mãos apalpam seus corpos. Quando terminam, Silvana recompõe-se, respira fundo e abre a porta.
‒ Até logo, dona Brenda. Mais uma vez parabéns pelos bons resultados.
‒ Obrigado, dona Silvana.
A funcionária sai e Silvana fecha a porta. Senta-se relaxadamente em sua poltrona, fecha os olhos e suspira, lembrando da noite. Depois pega uma caneta e circunda, no calendário, a quinta-feira seguinte, anotando ao lado: emprestada. Adora ser emprestada.
Uma advogada que adora fazer sexo por dinheiro… Um ser misterioso e sensual que invade o sono das mulheres… Os fetiches de um casal e sua devotada e canina escrava sexual… Uma sacerdotisa pagã e seu cavaleiro num ritual de fertilidade na floresta… A adolescente que consegue um encontro especial com seu ídolo maior, o próprio pai… Seja provocando risos e reflexões, chocando nossa moralidade ou instigando nossas fantasias, inclusive as que nem sabíamos possuir, as indecências destes 23 contos querem isso mesmo: lambuzar, agredir, provocar e surpreender a sua imaginação. > saiba mais
Nos contos de Ricardo Kelmer, o erótico pode vir com variados temperos: romantismo, humor, misticismo, bizarro, horror… Às vezes, vem doce e sutil, ou estranho e avassalador, e às vezes brinca com nossas próprias expectativas sobre o que seja erótico. Explorando fetiches, fantasias, delírios e tabus, e até mesmo experiências reais do autor e de seus leitores, as estórias deste livro acabam de chegar até você para apimentar seus dias, e suas noites, de quarentena. > saiba mais
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Quando vi, estávamos casadinhos. Foram onze anos de intensa convivência, na alegria e na tristeza
SÃO PAULO 467 ANOS
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Hoje é aniversário dela. Mas deixe-me voltar uns anos no tempo. Para dizer que antes, era o medo. Sim, eu a temia, mas nem tinha consciência disso. O medo arquetípico daquilo que pode nos libertar – hoje sei.
Até que, numa noite de outubro de 2006, um sonho veio me dizer “vá!”, e foi tão enfático que eu obedeci, mesmo sem saber como ela me receberia. O Louco das cartas do tarô, a se jogar no mundo, confiando nas asas de sua própria ingenuidade…
Quando vi, estávamos casadinhos. Foram onze anos de intensa convivência, na alegria e na tristeza, Planalto Paulista, Sumaré, Pinheiros, livros, teatro, saraus, amores e amizades… Aprendi a aceitá-la do jeitinho que ela é e ela me ensinou a mágica de ser, ao mesmo tempo, escritor, ator canastrão e muambeiro de eletrônicos da Santa Efigênia.
Sabe, ela me abriu as portas de um novo mundo e de um novo eu, e devo muitíssimo a ela. Sim, hoje é Fortaleza, essa loirinha desmiolada de sol, quem dorme e acorda comigo, mas nessas idas e vindas que a vida traz, nós três nos entendemos bem.
Feliz aniversário, São Paulo!
. Ricardo Kelmer 2021 – blogdokelmer.com
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VIAJANDO NA MAIONESE ASTRAL Memórias exóticas de um escritor sem a mínima vocação para salvar o mundo
Miragem Editorial, 2020
Enquanto relembra as pitorescas histórias de quando largou uma banda de rock para liderar um aloprado grupo esotérico e lançou-se como escritor com um livro espiritualista de sucesso (Quem Apagou a Luz? – Certas coisas que você deve saber sobre a morte para não dar vexame do lado de lá) que depois renegou, o autor fala, com bom humor, sobre sua suposta vida no século 14, carreira literária, amores, sexo, drogas ilegais, prostituição e crises existenciais, reflete sobre sua relação com o feminino, o xamanismo, a filosofia taoista e a psicologia junguiana e narra sua transformação de líder de jovens católicos em falso guru da nova era e, por fim, em ateu combatente do fanatismo religioso e militante antifascista.
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COMENTÁRIOS .
01- não esqueça dela. ela faz bem pra caramba. Shirlene Holanda, São Paulo-SP – jan2021
02- Suas andanças me são familiares menos Fortaleza que sonho conhecer. Fez bem! Malu Ferreira, São Paulo-SP – jan2021
03- Parabéns pelo maravilhoso texto. Clea Fragoso, Fortaleza-CE – jan2021
04- Também consegui me encantar com a “cidadivosa” quando a conheci! Tereza Cristina, Fortaleza-CE – jan2021
05- Lindo! Declaração de amor bem bonita. Também admiro São Paulo, um universo fascinante. Ligia Eloy, Lisboa-Portugal – jan2021
06- eu só fiquei 3 anos em Sampa e, depois, 15 no Rio de Janeiro. Foi no Rio que nasceu meu filho, o maior amor da minha vida. Mesmo assim, São Paulo foi e é a minha cidade do coração, com todos os perrengues que passei lá. Nutro um amor enorme por ela, tive acesso a tanta arte, tanto conhecimento, foram 3 anos muito bem vividos. Discordo de você se achar ator canastrão. Desde lá nos anos 80, quando você contava suas histórias, suas piadas, nas mesas dos bares, eu já achava que você tinha uma veia artística para os palcos. Lisieux Bevilaqua, Fortaleza-CE – jan2021
07- “Porém com todo defeito te carrego no meu peito… são, são paulo, quanta dor…” Arnaldo Afonso, São Paulo-SP – jan2021
08- Adorei, Kelmer!!!! Barbara Garcia, São Paulo-SP – jan2021
09- Lindo sem barba. Parabéns pelo lindo texto. Vilma de Oliveira, Fortaleza-CE – jan2021
10- Obrigada por homenagear minha cidade. Bj. Marcia Soares Fernandes, São Paulo-SP – jan2021
11- Aprecio ler seus livros. Maria Ines Ramalho, Fortaleza-CE – jan2021
12- Você é muito a cara de Sampa! Reny Diel, Porto Alegre-RS – jan2021
13- Kelmer, “esta bichinha” me pegou pelo coração e vivi 8 anos por lá. Ela é todo o mistério da vida com suas não-identidades, diversidades, generalidades, diferenças e tudo o que pode ser. Parabéns São Paulo. Tenho uma parte do meu coração com você! Érico Baymma, Fortaleza-CE – jan2021
14- que lindo!!! Olinda Evangelista, Florianópolis-SC – jan2021
15- Imensamente lindo! Somos brasilianos! Carlos Bonfim, Sobral-CE – jan2021
16- Maravilha esse texto! Amei. Lúcia Menezes, Rio de Janeiro-RJ – jan2021
17- Eu te admiro muito meu sobrinho com esse jeito meio confuso e inteligente , parabenizo por tudo que você merece . Seja sempre iluminado com os seus desejos extraordinários e fabulosos. Leonor Oliveira Moreira, Fortaleza-CE – jan2021
18- um grande abraço primo. Maria Célia Oliveira Garcia, Fortaleza-CE – jan2021
. Esta semana vi o filme 2020 nunca mais (Death do 2020), encomendado pela Netflix aos criadores da série Black mirror. Com roteiro de Annabel Jones e Charlie Brooker e direção de Alice Mathias e Al Campbell, o filme é um divertido pseudodocumentário sobre alguns dos acontecimentos que fizeram de 2020 um ano tão bizarro.
Ri muito. Adoro aquele típico humor inglês. Com o foco direcionado para o trio covid, Donald Trump e Boris Johnson, ficaram de fora as imbecilidades de Jair Bolsonaro. Compreensível. Foram tantas que precisariam de um filme só para elas.
O filme terminou e eu pensei: poderá 2021 ser tão bizarro quanto foi 2020? Difícil? Pois eu, sinceramente, acho que a coisa vai piorar. A febre só retrocede após atingir seu ápice. O neofascismo, a ganância capitalista e o fanatismo religioso só cederão se forem seriamente confrontados, e ainda não foram.
Sabe a Elba Ramalho, aquela cantora que já afirmou ter sido chipada por extraterrestres? Pois mal entrou 2021 e a peçoa umana abre o bico para dizer que a pandemia de covid é uma maligna estratégia dos comunistas para destruir os cristãos. Gente… Isso a Netflix não mostra. O que deduzir de tamanho absurdo? Que o chip dos etês veio com defeito, só pode.
Parafraseando Manuel Bandeira em seu poema Na boca, felizmente existe o uísque na vida. Vou tomar uma, porque a aberração tá de um jeito que só vai bebendo. Um brinde aos comunistas malvados, que raptarão Elba e a levarão ao alto daquele serrote em Quixadá, para que o Comandante Asthar, da Confederação Intergalática, troque seu chip.
E, felizmente, existe também Chico César, ufa, para mostrar que a Paraíba não produz apenas cristãos com lamentável deficiência cognitiva. Em resposta a um admirador, que lhe pediu para não fazer músicas de cunho político, Chico falou o óbvio, que toda arte tem um cunho político, que não lhe peçam para silenciar e morrer calado, que ou respeite ou saia, que não tente controlar o vento, e que não veio botar ninguém para dormir, mas está aqui para acordar os dormentes.
Putz, que resposta! Lavou a nossa alma! Foi tão bonita que fui ler atentamente e antevi nela uma música. E já convidei meus parceiros musicais a botar uma melodia nesse trecho e enviar para o Chico. Acho que ele vai gostar.
Não tente controlar o vento Não pense que a fúria Da luta contra as opressões Pode ser controlada Eu sou parte dessa fúria Não sou seu entretenimento Não vim botar ninguém pra dormir Vim acordar os dormentes Sou o fio da história feito música No pescoço dos fascistas E dos neutros
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Foi por isso que decidi que, assim como os músicos que seguiram tocando enquanto o Titanic afundava, eu seguiria até o fim escrevendo
A ARTE VENCEU A MORTE
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Não foi fácil finalizar e lançar meu livro VIAJANDO NA MAIONESE ASTRAL enquanto tentava sobreviver e manter a sanidade no meio de uma devastadora pandemia que já matou 200 mil pessoas. A situação era absolutamente nova. Eu precisaria buscar forças desconhecidas em mim e reinventar estratégias de divulgação e venda. Em certo momento, achei que forçava a barra. Como alguém pode pensar em literatura no meio de uma catástrofe?
Em respeito aos mortos, pensei em adiar tudo para quando findasse a tempestade. Mas… e se eu não sobrevivesse a ela?
A proximidade da morte muda tudo. A mim, ela fortaleceu convicções e eu mudei para ser ainda mais eu. Foi por isso que decidi que, assim como os músicos que seguiram tocando enquanto o Titanic afundava, eu seguiria até o fim escrevendo. Se a indesejada das gentes chegasse, ela me encontraria fazendo o que nasci para fazer.
Lançar este livro neste momento significa, para mim, a vitória da arte sobre a morte. Eu sobrevivi para contar a minha história, que é também um pouco da história de meus amigos e de muitos outros. Bem, a tempestade ainda não passou, é verdade, e não sei como estarei daqui a uma semana. Porém, a sensação que me preenche agora é de vitória. E devo isso à literatura.
E devo essa vitória também a você, que me lê e acredita no que faço. Muito obrigado!
. Ricardo Kelmer 2020 – blogdokelmer.com
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VIAJANDO NA MAIONESE ASTRAL Memórias exóticas de um escritor sem a mínima vocação para salvar o mundo
Miragem Editorial, 2020
Enquanto relembra as pitorescas histórias de quando largou uma banda de rock para liderar um aloprado grupo esotérico e lançou-se como escritor com um livro espiritualista de sucesso (Quem Apagou a Luz? – Certas coisas que você deve saber sobre a morte para não dar vexame do lado de lá) que depois renegou, o autor fala, com bom humor, sobre sua suposta vida no século 14, carreira literária, amores, sexo, drogas ilegais, prostituição e crises existenciais, reflete sobre sua relação com o feminino, o xamanismo, a filosofia taoista e a psicologia junguiana e narra sua transformação de líder de jovens católicos em falso guru da nova era e, por fim, em ateu combatente do fanatismo religioso e militante antifascista.
Quem Apagou a Luz? Certas coisas que você deve saber sobre a morte para não dar vexame do lado de lá
(ensaio)
Lançado em 1995, este livro resume, numa linguagem descontraída, as crenças e vivências que norteavam o grupo esotérico do qual o autor participou nos anos 1990, abordando temas como experiências fora do corpo, reencarnação, vida após a morte, extraterrestres e guias espirituais.
A partir de 2000, quando o autor assumiu seu ateísmo, este livro deixou de ser publicado, interrompendo uma trajetória de sucesso. Porém, em 2020, para divulgar seu livro Viajando na Maionese Astral – Memórias exóticas de um escritor sem a mínima vocação para salvar o mundo, ele decidiu relançá-lo numa edição especial, junto com o Maionese.
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COMENTÁRIOS .
01- Parabéns! Ana Claudia Domene, Albuquerque-EUA – dez2020
02- A arte venceu a morte porque você venceu em uma história inteira de vida. Venceu porque se dedicou ao que melhor te representa. Parabéns!!!! Te ler é muito divertido e inspirador, Mizifi…. Ale Magna, Fortaleza-CE – 2020
03- O seu jeito de lidar com os ruídos da vida e os desafios dela, pra mim, é inspirador! E nestes dias tão difíceis que estamos todos enfrentando, você não permitiu que a adversidade e a dinâmica do mundo sufocassem a sua arte.
Viu porque me sinto uma pessoa privilegiada por lhe conhecer e fazer parte da sua vida?! E ler você então, é maravilhoso demais… Lana Arrais, Fortaleza-CE – dez2020
. VIAJANDO NA MAIONESE ASTRAL Memórias exóticas de um escritor sem a mínima vocação para salvar o mundo
Ricardo Kelmer – Miragem Editorial, 2020.
. RESUMO Aos 30 anos, Ricardo Kelmer largou uma banda de rock para liderar um aloprado grupo esotérico que planejava salvar o mundo e lançou-se como escritor com um livro espiritualista de sucesso, hoje renegado. Enquanto relembra as pitorescas histórias desse tempo, ele nos conta curiosidades da carreira literária, reflete sobre sua relação com o feminino, o xamanismo, a filosofia taoísta e a psicologia junguiana, e, com bom humor e ironia, revela intimidades nos departamentos do amor e da amizade, do sexo e da boemia, da prostituição e das drogas ilegais, dos fracassos e das crises existenciais. Como pano de fundo das memórias, vê-se a trajetória de um líder de grupo de jovens católico que se transformou em falso guru da nova era e, por fim, em ateu combatente do fanatismo religioso e militante na luta antifascista.
> Na página do livro: texto de apresentação, comentários de leitores, curiosidades
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cap 1 ESQUELETOS DO PASSADO
. arqueologia da psique
Eu tinha 28 anos, morava nos braços dengosos da minha loirinha desmiolada de sol, também conhecida por Fortaleza, e cursava Letras na Universidade Federal do Ceará (UFC). Trabalhava como atendente numa clínica veterinária e, em paralelo, faturava um extra fazendo produção de eventos e festas temáticas. Era 1992, e o velho sonho de ser escritor profissional, que me possuíra a alma ainda na infância, resistia, sim, mas com tantos afazeres, e precisando atender também às obrigações boêmias, não me sobrava tempo nem disposição para escrever.
Essa situação me angustiava que nem uma gravata apertada, mas, por outro lado, eu sabia que a carreira de escritor é muito incerta e que assumi-la exigiria sacrifícios que eu não estava disposto a pagar. Sim, pode me chamar de covarde, eu era isso mesmo, e essa covardia começava a travar meu processo de autorrealização, que Jung chama de individuação, e que eu ainda não sabia o que era, mas saberia alguns anos depois, quando fosse apresentado à psicologia junguiana.
Resumindo: meu futuro literário cada vez mais se resignava a um triste e desmilinguido cantinho naquela tal prateleira da vida inteira que poderia ter sido e que não foi, como diria Manuel Bandeira, meu poeta preferido.
Então…
(musiquinha de suspense)
Então, tudo começou a mudar no dia em que eu soube de uma palestra sobre sonhos e experiências fora do corpo. Eu não podia imaginar que isso abriria as portas do meu destino.
Antes, porém, de prosseguir, permita-me voltar no tempo. Tentarei localizar, feito arqueólogo da psique, restos fossilizados de minhas experiências com as letras, a religiosidade e o feminino. Isso me ajudará a entender melhor minha própria trajetória, as minhas mortes e a aventura bizarra que estava prestes a acontecer.
magia dos livros
Nascido em 1964, em Fortaleza, capital desse chão mítico que chamamos Ceará, vivi nela toda a infância e a adolescência. Família classe média, e depois média alta. Sou o mais velho dos quatro irmãos, mas tive uma irmã mais velha, Gina, que morreu com dois anos, de hidrocefalia, o que fez com que meu nascimento fosse cercado de muita expectativa. Educação católica, em casa e nos colégios. Moramos no Centro e na Parquelândia, e em 1972 mudamos para o Cocó, o que me possibilitou um fim de infância em contato com a Natureza: dunas, mato, lagoa, praia, bichos soltos pelas ruas e muita cobra passeando faceira dentro de casa. Era um privilégio.
Aos 6 anos, me apaixonei pela professora do colégio Cristo Rei, que apenas sorria da minha paixão envergonhada. Infelizmente, ela não quis nada comigo. Desconfio que foi pela diferença de idade, as pessoas não iriam aceitar – tudo bem, Eliane, eu entendo. Era o arquétipo do feminino já a me seduzir em suas múltiplas e irresistíveis manifestações, eu tão novinho, coitado…
A primeira experiência marcante com livros se deu aos 7 anos, no colégio Santo Inácio. Uma vez por semana, íamos à biblioteca, que funcionava numa pequena sala. Putz, eu adorava! Um dia, no momento de voltar para a sala de aula, me escondi sob a mesa. Meus colegas saíram, a professora apagou a luz, saiu e trancou a porta. Fiquei lá sozinho, envolvido pela penumbra, naquele imenso e solene silêncio… De repente, eu tinha todos os livros do mundo só para mim, que maravilha. Foram apenas alguns minutos, até a professora vir me buscar, mas algo muito sério aconteceu naquela biblioteca. Acho que o universo mágico dos livros se abriu para mim e fui invadido por uma sensação de encantamento. Uma experiência numinosa, foi isso que vivi, hoje sei. Na verdade, acho que nunca mais saí daquela sala. Continuo lá, em estado de maravilhamento, fora do tempo…
Aos 8 anos, contraí uma pneumonia que quase me mandou para a tumba. Sem poder ir ao colégio, passava o tempo entre os livros do Tarzan e os quadrinhos do Príncipe Valente e do Homem Aranha*. Tinha também a turma da Mônica, com aquele personagem que me fascinava, o Louco. Sem falar dos personagens da Disney, claro, ah, o Manual do Escoteiro Mirim… Se existia um paraíso, naqueles dias eu morei nele de pijama. Foi assim, fugindo da morte, que me veio a ideia: quando eu crescesse, escreveria histórias como aquelas para os outros lerem. Promessa é dívida, viu, menino?
Agora, meu primeiro e vergonhoso delito. Ele ocorreu justamente por conta dessa incipiente paixão pelos livros. Quando tinha 9 anos, participei de uma gincana no colégio, na qual os alunos que conseguissem vender certa quantidade de selos ganhavam como recompensa uma coleção de livros com os contos folclóricos dos Irmãos Grimm. Sai oferecendo os selos aos colegas, à família, aos vizinhos, a desconhecidos na rua… Como não consegui vender todos, decidi roubar dinheiro da bolsa da minha mãe, e foi assim que, para minha felicidade, adquiri os livros. Porém, dona Vilminha deu pela falta do dinheiro e tive que confessar meu crime. Como não quis dizer que roubara para comprar livros, criei uma justificativa que julguei mais nobre e aleguei que roubara o dinheiro para dar para a moça que trabalhava em nossa casa. Ela, coitada, ficou muito surpresa e negou tudo, claro, e no fim meus pais felizmente entenderam que ela não tinha culpa, mas agora sabiam que tinham um filho literato e ladrãozinho.
Anos depois, esse episódio ressurgiu em minha lembrança e fui tomado de imensa vergonha, e me assustei com minha atitude. Isso acendeu uma luzinha vermelha em meu processo de autoconhecimento e me serviu de alerta para o quanto eu podia ser egoísta, falso, mesquinho e covarde em nome dos meus objetivos.
religião, morte, versinhos, sacrilégios
Aos 10 anos, como todo bom menino católico, fiz a primeira comunhão e lembro que me senti muito frustrado, inconformado mesmo, porque Jesus não apareceu para mim quando recebi a hóstia, contrariando a expectativa que alimentei por um ano inteiro. Isso me incomodou, mas não tanto quanto um fato ocorrido dias antes, que guardo como o primeiro questionamento filosófico de minha vida*.
Esperávamos a aula começar, quando um padre do colégio distribuiu para os alunos um folheto com a imagem de Jesus e um texto sobre a eucaristia. Enquanto eu lia, um colega ao lado ergueu seu folheto e o rasgou em pedacinhos, dizendo, com raiva, que aquilo tudo era mentira. Fiquei perplexo, sem acreditar. Tentei entender por que ele fazia aquilo, mas logo um pensamento mais profundo e inquietante me tomou: então aquilo era possível? Alguém podia fazer o que meu colega fizera e não ser instantaneamente fulminado por um raio vindo do céu?
Eu sabia que, embora o colégio fosse católico, os alunos não eram obrigados a fazer a primeira comunhão, mas até então eu jamais cogitara, sequer por um segundo, a ideia de que era possível não ter religião ou, pior, não crer na existência de Deus. Pela primeira vez, eu enxergava um pouquinho além da redoma religiosa dentro da qual fora criado.
Relevei a atitude do rebelde colega e perdoei a Jesus por não ter aparecido para mim, até porque eu tinha consciência de que era um menino abençoado, pois já escapara das garras da morte por quatro vezes. Sim, quatro. A pneumonia eu já contei, mas, anos antes, a rede onde eu dormia pegou fogo e assei dentro dela feito churrasquinho até conseguirem me tirar. De outra vez, atravessei a avenida correndo e, bufo!, fui atropelado por um fusca, e a porrada foi tamanha que minha cabeça afundou o capô. Não morri nesse dia por ser cabeça-dura. Depois, me afoguei na piscina do clube e, quando meus pais se deram conta, eu já estava lá no fundo, bem quietinho. Até hoje ponho água para fora.
Versinhos para as professoras no dia do aniversário delas – confesso que eu fazia isso. E elas adoravam. Dona Conceição, por exemplo, achava lindas as redações que eu escrevia, e eu fazia questão de caprichar só para ganhar seu abraço apertado e afundar a cabeça entre seus peitões. Eu começava a descobrir os prazeres da literatura…
Sabe o Peninha, o primo destrambelhado e metido a esperto do Donald, que era repórter do jornal A Patada, do Tio Patinhas, e que nas horas vagas se transformava no intrépido Morcego Vermelho? Era o meu personagem Disney favorito. O Manual do Peninha virou meu livro de cabeceira. Então, negativamente influenciados pelo Peninha, meu primo Jamiro e eu fundamos um jornal. A sede ficava na garagem da casa dele, e tudo que tínhamos era uma centenária máquina de escrever faltando várias teclas, umas folhas de papel já usadas de um lado e papel-carbono. Revelando toda nossa criatividade, batizamos o jornal de… A Patada. Meu primeiro trabalho, ah, foi inesquecível: entrevistar Emerson Fittipaldi, o bicampeão de Fórmula 1. Coisinha simples, para começar. Então, saí pelas ruas do Centro, munido de caneta e bloquinho de papel, a procurar pelo grande piloto, mas ninguém soube me informar onde ele morava, até porque ele nunca morou em Fortaleza. Nosso jornal teve a expressiva quantidade de zero edições. Foi meu primeiro fracasso profissional.
Mas não desisti. Em seguida, criei um jornalzinho caseiro com notícias do cotidiano familiar: a goiabeira deu a primeira goiaba, a cadela rasgou a cueca do papai, meu irmão pegou meus brinquedos sem me pedir permissão… Era uma folha de papel escrita e colorida a mão, fixada à parede da sala. Chamava-se… Fofocal. Para você ver como desde pequeno eu me supero no ridículo. Ninguém gostou do jornal, principalmente meu irmão delatado Marcio, e o Fofocal morreu no lançamento. Meu segundo fracasso profissional. Vai anotando.
colégio militar, orgasmo, o feminino, contos eróticos
Então, aos 10 anos, passei no concurso e virei aluno do Colégio Militar*. Fui para lá porque o ensino era considerado excelente e seria uma boa economia para meus pais, pois era quase gratuito. Além disso, meu pai queria que eu seguisse a carreira militar, cursar a Academia das Agulhas Negras, quem sabe até ser Presidente da República… Bem, concedamos um desconto à megalomania paterna: estávamos em 1975, na ditadura militar, e a carreira de milico representava um futuro financeiramente tranquilo.
No início, ser aluno do Colégio Militar me empolgou, tudo era novidade, e eu andava nas ruas com orgulho do meu uniforme, percebendo os olhares que nos lançavam as meninas do colégio Imaculada Conceição. Eu, que era ótimo aluno de Português e Redação e amava as crônicas da série Para Gostar de Ler, passei a relatar minhas experiências numa série de textos que intitulei Os Melhores Momentos da Minha Vida. Boa parte deles falava das festinhas e da grande emoção de dançar com as meninas. Ainda não eram contos eróticos, mas tenha calma que logo chegaremos lá.
Quer saber como foi meu primeiro beijo de língua? Deu-se por essa época. Foi bom, mas infelizmente ela não mexia a língua. Na verdade, ela não tinha língua, a coitada. Chamava-se Amiguinha*, era uma boneca quase do meu tamanho, da minha irmã mais velha. Eu treinava com Amiguinha para quando fosse beijar as meninas do Imaculada, o que jamais chegou a acontecer, ô iludido.
Minha mãe tinha um Bel Linha, um aparelho vertical de massagens para eliminar celulite. Em pé, a pessoa encaixava a cinta vibracional ao redor da cintura, nas pernas ou na bunda, ligava e ela vibrava, massageando. Um dia, testando o aparelho, me virei de costas para ele, encaixei a cinta abaixo da cintura e liguei. No início, a vibração fez cócegas, mas logo depois a sensação ficou boa, ficou gostosa, ficou muito prazerosa e, ops, o que é isso, tô sentindo uma coisa estranha… aaaaaahhhh… Foi assim, aos 10 anos, o meu primeiro orgasmo, que eu não sabia nem que tinha nome, e descobri que aquilo me deixava meio tonto e feliz, e descobri também que, mesmo querendo mais, tinha que esperar um tempo até poder repetir. Uau, aquilo era melhor que brincar de Forte Apache. Solidário, avisei aos meus irmãos sobre a incrível descoberta, e eles experimentaram, mas não se entusiasmaram. Fiquei viciado no Bel Linha, a tal ponto que dona Vilminha precisou trancar o quarto, caso contrário eu passaria a tarde inteira lá.
No segundo ano ginasial, fiquei conhecido no Colégio Militar: venci o 1° Campeonato de Futebol de Tampinha, promovido pelo grêmio. Fui o campeão, duelando contra os melhores jogadores, inclusive caras mais velhos. Foi o máximo! Das conquistas que tive na vida, foi esta, aos 12 anos, a mais valiosa de todas, pois ela me deu a certeza de que eu era capaz. Se eu não tivesse perdido minha medalha de ouro, ainda hoje andaria com a bichinha pendurada no pescoço.
Nesse mesmo ano, aconteceu meu primeiro namoro. Durou apenas três dias, mas vale como registro, inclusive porque ele trouxe o segundo questionamento filosófico da minha existência. Eu gostava das minhas duas vizinhas, que eram amigas, e ambas me queriam. Fiquei terrivelmente angustiado com a necessidade de escolher apenas uma delas. Por que não as duas, por que tinha de ser assim, por quê? – eu não me conformava. Infelizmente, precisei escolher. Então, com todo o pragmatismo que um adulto de 12 anos pode ter, escolhi a que tinha piscina em casa. Mas a outra não se conformou e, para aumentar minha angústia, insistiu para que eu mudasse minha decisão, o que quase ocorreu. Putz… Foi minha estreia nesse improdutivo embate, que eu travaria pelos trinta anos seguintes, contra a pior das monogamias, a compulsória. Voltarei a este tema depois, prometo.
Um ano mais nova que eu, minha irmã Ana estudava no Imaculada. Então, conheci suas colegas e passei a aguardar ansiosamente pelas tardes em que elas iam estudar lá em casa. Ah, eram dias especialíssimos… Eu ficava estudando em meu quarto, aguardando pelo momento em que elas paravam e iam tomar banho. Era um lindo filme que eu assistia escondido, trepado num banco no corredor lateral da casa, eu lá observando por entre as frestas da janelinha no alto, ladrão de intimidades, fascinado pela transcendental visão das meninas nuas a se ensaboar, meu coração acelerado, a alma em total alumbramento, eu tremendo de assombro e prazer…*
Foi assim, aos 13 anos, inspirado pela poesia do feminino, que o Jeitoso, atuando ao sul do umbigo, se impôs em minha vida e passou a ser cogerente das minhas decisões. O Jeitoso só ganharia esse nome muitos anos depois, e eu nem lembro mais quem o batizou assim, mas o fato é que lá estava eu, adolescente com espinhas na cara, a penetrar de vez a dimensão sexual da existência.
Você lembra dos contos eróticos da revista Ele Ela? Eles me motivaram a escrever meus primeiros contos, expressando as safadices que eu desejava fazer com as mulheres. Durante as aulas, meus textos circulavam discretamente entre os colegas, que liam com a sofreguidão típica dos adolescentes lotados de hormônios. Um dia, o professor de português descobriu, pegou a folha de papel e leu em silêncio, em pé ao meu lado. E eu lá, suando de nervosismo e vergonha. Em certo momento, ele comentou surpreso uma passagem que falava de uma… “abordagem anal”. Putz! Expulsou-me da sala? Não. Devolveu a folha e disse que estava bem escrito, mas que eu devia prestar mais atenção às aulas. Que alívio!
Susto grande, mas segui escrevendo contos eróticos. Um dia, minha mãe descobriu o caderno no qual eu os escrevia e, indignada, deu um sumiço naquela pouca-vergonha. Dona Vilminha deve ter ficado especialmente horrorizada com um conto cujas protagonistas eram as funcionárias da loja dela, ou com um outro no qual me aproveito da embriaguez da minha prima. Entendo perfeitamente sua preocupação, mamis, mas de nada adiantou, eu já era um Marquezinho de Sade.
poeta e místico
Por essa época, comecei a cometer meus poemas, que variavam entre dramas amorosos, erotismo e misticismo, e alguns com uma vaga temática social. E, como achei que podia ser músico, tive aulas de violão. Eu me imaginava tocando canções para as meninas, em noites ao luar, todo galanteador. Cheguei a compor uma música, absolutamente horrorosa, cujo refrão era uma pérola de criatividade (Amor, eu te amo, amor, eu te amo, amor, eu te amo…) e que, naturalmente, se chamava Amor, Eu te Amo. Imagine a cena: eu tomei coragem e finalmente me declarei à garota, e toquei a música para ela, que escutou com atenção e depois chorou, chorou muito… com pena de mim. Não, isso não rolou, mas com certeza é o que teria acontecido. Felizmente, desisti logo do violão. Mas a música não desistiria de mim, como você em breve verá.
Após quatro anos no Colégio Militar, o que antes era empolgante virou insuportável. O ar repressor, aquela ênfase na autoridade e na obediência, o cabelo raspado… Isso tudo entrou em conflito com minhalma de poeta rebelde e meus casos de indisciplina se tornaram frequentes. E, putz, eu queria estudar num colégio que também tivesse alunas! Preocupados, meus pais me puseram em outro colégio. Foi assim que perdemos a chance de ter um general na família.
No novo colégio, o Marista, também católico, havia alunos homens e mulheres. No início, eu ficava nervoso diante delas, a voz desafinava e me atrapalhava todo, era uma lástima. Estava intimidado pela grandeza do feminino. Elas eram tão lindas, tão sensuais, e eu me perdia de admiração de vê-las passar… As curvas de seus corpos, as protuberâncias, o jeitinho de mexer no cabelo, aquela força indefinível que elas exalavam – tudo no universo feminino era belo e me inspirava textos, que, mesmo envergonhado, passei a mostrar para elas. Virei o poeta da turma. E descobria que, se não era o mais bonito, o craque do futebol ou o bom de briga, podia impressionar as garotas com as palavras.
Aos 15 anos, meu primeiro Carnaval, para valer. Uau, foi uma das mais impactantes descobertas de toda a minha vida. Então, era aquilo o Carnaval? Toda aquela alegria, a embriaguez, a licenciosidade – era perfeito! Até hoje, quando ouço Moraes Moreira, me vem a lembrança do cheirinho da loló. Infelizmente, eu era tímido demais, desses que fica a noite inteira tomando coragem para chegar junto da musa e sempre volta para casa arrasado e odiando a si próprio. Bem, ao menos nos poemas eu podia ser um folião safado e feliz.
Em paralelo à literatura, me interessavam também assuntos ligados a psicologia e potencialidades da mente. Li alguns livros, como o Método Silva de Controle Mental, e comecei a perceber a importância de uma rígida disciplina mental para alcançar os objetivos.
E lia também sobre parapsicologia, ocultismo e bruxaria. Nessa época, vi o filme O Exorcista* (do diretor William Friedkin, baseado no romance de William Peter Blatty). Eu sabia que era um filme apavorante, e meus pais me aconselharam a não ver. Mas encarei tudo como um desafio pessoal – se o Diabo existia mesmo, eu queria medir forças com ele. Doces ilusões… É claro que o Diabo existia – mas apenas nas minhas crenças, e ao longo da vida eu teria boas oportunidades de confrontá-lo, sempre que fosse tentado a ser infiel às minhas verdades.
Então, fui ver O Exorcista. Putz… Quase me caguei nas calças de tanto medo. Nessa noite, precisei dormir no quarto dos meus pais, eu, marmanjo de 15 anos, que ridículo. E minha mãe: Eu te disse, eu te disse… Dias depois, queria ver o filme novamente, tão fascinado que fiquei.
E havia os sonhos. Eis um tema que desde cedo me encantou. Onde minha noção do eu ficava quando eu dormia? O que em mim prosseguia funcionando, gerando sonhos? Seria o estado de sono uma espécie de passagem para outras dimensões da realidade? Ah, os sonhos eram mistérios fascinantes, e todas as noites eu adormecia como alguém que caminha, reverente, para a grande verdade… mas no outro dia acorda frustrado por continuar sem conhecê-la.
grupo de jovens, posfácio de espirro
Em 1981, existia um retiro espiritual que era moda entre a turma. Aos 16 anos, participei de um desses, organizado pelos padres da paróquia de São Vicente. O retiro ocorria num sítio na Água Fria e objetivava sensibilizar ao máximo os adolescentes com depoimentos, palestras e vivências. No último dia, à tarde, acontecia o clímax do evento: a equipe “da pesada”, que trabalhava na cozinha e na limpeza, mas permanecia estrategicamente oculta, era apresentada, e eram entregues as cartinhas que os “mensageiros” recolheram com os familiares dos participantes. Enquanto eram entoados cânticos de louvor, a garotada lia as cartinhas e muitos choravam e se arrependiam de seus horrendos pecados. Eu? Bem, eu quase me acabei em lágrimas, sensibilizado pela súbita percepção de que Jesus, o filho de Deus, se sacrificara por mim naquela cruz. Por mim. Como não se sentir desgraçadamente culpado?
Após o retiro, integrei o ENJOP, o Encontro de Jovens da Paróquia da Paz*, um grupo criado para reflexão bíblica e ação na sociedade, dentro do espírito das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e da Teologia da Libertação. Foi aí, aos 16 anos, que eu, adolescente de classe média alta e filhinho de papai, adquiri um início de senso de justiça social. Coordenei esse grupo e também uma das edições do retiro, onde dava palestras sobre Francisco de Assis, e criei um jornalzinho mensal voltado aos jovens da paróquia, do qual eu era o faz-tudo. Chamava-se O Mensageiro e era impresso em mimeógrafo, algo que você, se tem menos de cinquenta, certamente não faz ideia do que seja, e nem vou dizer para você ficar na curiosidade. Foi meu terceiro jornal, e este durou cinco meses.
Eu levava a coisa tão a sério que passei duas viradas de ano em retiro, rezando pela paz no mundo, acredita? Como sabemos, não adiantou nada, a humanidade segue em sua desgraça. E mais: eu cogitava entrar para o seminário e ser padre – juro que é verdade. Quando soube, meu pai aprovou: É uma boa, pois padre não paga aluguel, almoça de graça e não precisa registrar os filhos. Seo Galvonis até tinha razão, mas aí namorei uma colega do grupo, depois outra, e desisti desse negócio de batina. Perdemos a chance de ter um bispo na família.
O fervor religioso duraria dois anos. O filhinho de papai agora cursava Comunicação Social na UFC e descobria os demoníacos prazeres da boemia. Comecei a me sentir oprimido por aquela filosofia controladora feita de culpa e pecado e questionei os dogmas do cristianismo. O ambiente desbundado da faculdade, os barzinhos e o amor pelas artes, em especial a literatura, eclipsaram qualquer sacrifício que Jesus pudesse ter feito por mim, e então larguei o grupo de jovens, deixei de ir às missas e o cristianismo perdeu um adepto.
Segui minha vida, sendo um místico sem religião, mas que gostava de estudá-las e de explorar os mistérios. Frequentei centros espíritas e terreiros de Umbanda. Não acreditava mais no Deus cristão, nem em Céu e Inferno, e no lugar dessas coisas pusera uma energia cósmica impessoal que não julgava a ninguém. Eu rumava para o ateísmo, mas ainda precisava crer em algo do reino do sobrenatural, e não tinha posição definida sobre o pós-morte, espíritos e reencarnação. Eram ideias interessantes, mas carentes de comprovação.
Foi nesse período que senti que precisava me livrar de uma mania adquirida na infância. Quando pequeno, minha avó materna me ensinara uma mandinga: sempre que espirrasse, devia falar “Ave Maria”, para a Virgem me proteger de doenças. Era um posfácio de espirro. Porém, como eu já não era cristão, não mais fazia sentido. O diacho é que, após quinze anos de repetições, eu estava tão condicionado que a mania continuou firme e, comecei a me achar o ex-cristão mais ridículo da galáxia.
Talvez se eu trocasse a fala da mandinga… Então, chamei o poeta Manuel Bandeira para me acudir com seu poema Vou-me embora pra Pasárgada, que era meu lema de vida. Posfácio por posfácio, que fosse um que eu acreditasse, né? E funcionou. Agora, eu espirrava e, em vez de “Ave Maria”, emendava imediatamente com “Vou-me embora pra Pasárgada”. Esse posfácio durou vinte anos, e depois vieram outros, criados de acordo com a fase que eu vivia. Atualmente, é “Vida que frutifica”. Cada doido com sua mania.
faculdade, viagens, excomunhão
Devorador de livros da biblioteca do Centro de Humanidades, um dia, aos 18 anos, descobri O Encontro Marcado*, romance de Fernando Sabino. A leitura foi impactante e me fez ver que eu não tinha opção: ou seria escritor ou morreria frustrado. Embriagado dessa certeza, uni-me ao colega Roberto, datilografamos uns poemas nossos, montamos um livretinho de bolso com oito páginas grampeadas e lhe demos o nome de Tanto Faz como Tanto Fez. Fizemos duzentas cópias e saímos vendendo para os colegas e na rua. Com o arrecadado, enchíamos a lata de cachaça e brindávamos à poesia e à amizade. Embora de um modo bastante simplório e descompromissado, aquilo me pareceu o primeiríssimo passo de uma carreira literária.
Não concluí Comunicação Social, mas fiz amigos na faculdade que seguem comigo até hoje, li toneladas de bons livros, participei da minha primeira campanha política engrossando a massa que gritava Diretas Já e fui apresentado, pelo amigo Alberto, a Ypê, a mais transcendental das canções de Belchior*. Embriaguei-me após as aulas nos botecos da redondeza, conheci a maconha e viajei de semileito para aqueles dionisíacos encontros de estudantes. Num deles, em Campinas, conheci um poeta gaúcho, Edgar*, e nos anos seguintes fomos companheiros de saborosas viagens pelo Brasil, regadas a violão, cachaça, Bandeira, Pessoa e Vinicius, morrendo toda noite de paixão pelas ninfas que cruzavam nossos caminhos. Com Edgar, aprendi: viver não é preciso, flanar é preciso.
Em 1985, aos 20 anos, dei uma de mochileiro e fiz uma viagem de dois meses, passando pelo Rio de Janeiro, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, vendendo artesanato cearense para me sustentar na estrada. Foi meu primeiro movimento significativo de lançar-me nas incertezas do mundo, longe da segurança de casa. A viagem começou com dois dias de ônibus para o Rio para curtir a primeira edição do Rock in Rio*. Sabe o Ozzy Osbourne? Enquanto ele berrava no palco, eu, no meio daquela plateia de cem mil pessoas, fumei um baseado e tive minha primeira lombra torta, tão torta que fui parar na enfermaria tomando glicose na veia. Apaguei na cama e acordei ouvindo Rod Stewart cantando You´re my Heart. Já recuperado, saí correndo, driblei a segurança e voltei para a plateia. Coisas de jovem imortal, você sabe.
Agora, vamos a mais um delito. Eu tinha um caso com uma garçonete (ai, as garçonetes) de um bar na Santos Dumont. Eu ia lá nos fins de noite só para ganhar um agrado dela: sentava na última mesa do mezanino, que era bem escuro, pedia uma cerveja, a garota trazia e, muito dadivosa, aproveitava o ensejo e me servia um prestativo boquete. Pois bem. Um dia, ela me avisou que estava grávida. Grávida de mim. Putz. Eu, que nunca quis ser pai, respirei aliviado ao saber que ela também não queria ser mãe, e decidimos pelo aborto, que foi feito em condições simplórias na residência de uma enfermeira aposentada – era o que podíamos pagar. Foi uma experiência difícil para nós dois, e enquanto acompanhava a recuperação da garota, senti-me diminuído ante sua força e coragem, e percebi que a tal fragilidade das mulheres é uma grande mentira, estrategicamente construída pelo patriarcado. Eu tinha 20 anos e o episódio me fez avançar um pouco mais na percepção do machismo e na histórica questão da opressão da mulher, e, ao mesmo tempo, me causou a excomunhão da Igreja Católica. Sim, de acordo com o código de direito canônico, aborto é um dos casos de excomunhão automática (latae sententiae). Você aí que me lê, talvez você também seja um excomungado e não sabe.
E os meus textos? Começando a rarear. Eu estava inspiradíssimo para viver a poesia da vida, é verdade, mas nem tanto para escrevê-la.
Dos 17 aos 23, trabalhei como contínuo de loja de presentes, escriturário do Bradesco, redator de publicidade, vendedor de malha de Petrópolis, representante comercial de rádio e jornal e, tchan-tchan-tchan-tchan!, fornecedor de lança-perfume para os amigos. É bom registrar, anota aí, que também fornecia para respeitáveis senhoras e senhores da alta sociedade em festas no clube Náutico. Poizé, ganhei uma graninha boa explorando a velha e natural necessidade humana de estados especiais de consciência. Sim, natural, veja o caso das crianças: elas adoram rodar e rodar até cair tontas no chão. E admito que, sim, me aproveitei das donzelas desavisadas, esguichando o cloreto de etila na gola da minha camisa, quer experimentar, cheira aqui, vem logo antes que evapore…
Badauê, Breg Brothers e Belas da Tarde
Minha vida boêmia teve início aos 15 anos, em 1980. Até o início do milênio seguinte fui rato de balcão de duas centenas de bares, entre eles o inesquecível Cais Bar*, na Praia de Iracema, cujo sócio, Ernesto, se tornaria, anos depois, um querido parceiro musical*. Não posso deixar de citar Papito, o homem que mais teve bares no mundo. Num deles, o Outras Palavras, em 1991, eu pregaria no flanelógrafo meu exame negativo de HIV – naqueles dias em que a AIDS nos aterrorizava a todos, foi a melhor maneira que encontrei de fazer autopropaganda.
Porém, eu queria ter o meu próprio bar. Então, em 1988, com os amigos Paulo e Nelsinho, montamos o Badauê*, na Praia de Iracema. Foi um sucesso, graças, principalmente, às nossas namoradas-garçonetes, as estonteantes Silvinha, Roberta e Patrícia, que ganhavam tanta gorjeta que chegavam a nos emprestar dinheiro. No caixa do bar, abusando de seu charme, minha irmã caçula Luce, menor de idade, que aceitou receber o salário em cerveja. E os shows? Putz, cada um mais antológico que o outro. O melhor foi o da banda Os Necessários, do “felomenal” Zé Di Bedis, e o melhor dos piores foi o do grande Toinho Martan, que teve como título esta preciosidade: Eu Não Tô In, Tô Out.
Ai, Badauê… Foi muita birita, muitas noites de libertina alegria que prosseguiam de manhã na barraca Subindo ao Céu e, é claro, muita reclamação da vizinhança. O bar era simples, de estilo rústico e com várias árvores, e no mezanino pusemos colchonetes e redes – era para lá, no meio da madrugada, o bar lotado, que levávamos as amigas que exageravam na birita, para elas dormirem um pouquinho. Poizé, o Badauê tinha essa nobre preocupação social… Aliás, até hoje corre uma lenda que diz que fazíamos altas orgias na caixa dágua, tomando banhos coletivos na mesma água que era usada para lavar os copos. Não nego e nem confirmo, mas deixo aí uma pista para o segredo da receita da nossa supercaipirosca.
Infelizmente, por discordâncias internas, o bar durou apenas nove meses, sim, só isso, fechando em 1989, um fracasso que até hoje lamento. O Badauê brilhou tão intenso e cruzou os céus de nossa juventude tão rapidamente que não temos nenhuma foto desses dias, pode isso, produção?
Enquanto o bar fechava, para compensar a tristeza, surgiam Os The Breg Brothers*, a banda brega satírica que criei com os amigos Jabuti e Cadinho para celebrar a cornagem, e que tinha como vocalistas Dani e Luce, minha maninha, que depois do Badauê se desencaminhara de vez na vida, coitada. Ah, era um velho sonho meu, ter uma banda, compor músicas… Sonho que durou apenas dois shows, que fizemos no Pirata Bar, pois Jabuti foi morar em Teresina e depois esticou para Berlim. Mais um fracasso, para eu deixar de ter ilusões com a vida artística. Não espalha, por favor, mas até hoje me acabo na cachaça a cantar Menina do Lacinho Cor de Rosa.
Em 1990, com a certeza de que ganharia um bom dinheiro, vendi meu fusca, o saudoso Lombriga, e fui com o amigo Dudu morar em Manaus, vender água de coco congelada. Lá estava eu, novamente, a me lançar no mundão incerto, dessa vez me aventurando numa jogada bastante arriscada. Em Manaus, tomei muito guaraná Baré e matei a curiosidade de experimentar cocaína, e logo da pura, e percebi que ela não combinava comigo, pois me deixava muito ansioso. E o negócio da água de coco? Não deu certo. Perdi feio nessa jogada. E nem fui corajoso o suficiente para continuar por lá. Outro fracasso, que me faria, a partir daí, temer as grandes mudanças da vida. Porém, a experiência ao menos renderia, anos depois, um dos meus contos mais conhecidos, O Presente de Mariana*.
E os textos desse período? Quase nada, infelizmente.
Para recomeçar a vida após o fracasso de Manaus, passei a cursar Letras, na UFC, enquanto trabalhava na clínica veterinária de meus pais. Ao mesmo tempo, era produtor de festas temáticas, como A Noite do Rei Lagarto (Como Jim Morrison comemoraria em Fortaleza os 25 anos de sua morte), que fiz em 1991 para o meu ídolo*, e era um dos organizadores de um bloco de pré-carnaval chamado Bonecas da Volta, que depois se chamaria Belas da Tarde*, no qual eu e os amigos, bêbados e vestidos de mulher, desfilávamos pela cidade num trenzinho infantil berrando as músicas da Xuxa. O bando de vândalas invadíamos os hotéis para agarrar os gringos e beber o uísque deles, e ainda pegávamos a lagosta do prato e saíamos comendo. Putz, era muito desmantelo.
Então, estamos agora em 1992. Nove anos antes, eu tivera aquela forte revelação sobre meu destino de escritor, enquanto lia O Encontro Marcado, mas passado todo esse tempo, eu continuava acovardado no mesmo lugar, dividido entre mil afazeres e escrevendo pouquíssimo, o que me deixava cada dia mais frustrado. Eu tenho 28 anos e estou indo para a palestra que mudará para sempre minha vida.
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cap 2 O DESTINO BATE À PORTA
. batismo na conscienciologia
A palestra era do IIPC (Instituto Internacional de Projeciologia e Conscienciologia), que tinha sede no Rio de Janeiro e do qual eu jamais ouvira falar. Soube dela por Eduarda, uma garota que era cliente da clínica veterinária de meus pais, que trabalhava com turismo e com quem eu já trocara umas ideias sobre literatura, música e misticismo.
A projeciologia é um ramo da conscienciologia, que trata de temas como evolução da alma (que o IIPC chama de consciência), experiências fora do corpo (projeções da consciência), energias psíquicas, vida após a morte, reencarnação, espíritos e guias espirituais. As ideias se pareciam com o espiritismo, mas a abordagem se pretendia mais científica e usava terminologia própria, mais técnica e menos moralizante. O IIPC não trabalhava com a hipótese de Deus, mas admitia a existência de seres superevoluídos, já libertos da série de encarnações no plano físico. No geral, a ênfase era no aprimoramento da lucidez do indivíduo, na vida física e nos períodos entre vidas, com o objetivo de se tornar um ser superevoluído.
Eu nunca vira um espírito na vida. Curtia e lia bastante sobre o sobrenatural e praticava exercícios para desenvolver o poder da mente, mas experiências mesmo, nada. Porém, eu tinha uns sonhos… Neles, eu voava livremente pelo céu em passeios bastante agradáveis. Eram sonhos nítidos e detalhistas, e às vezes começavam no minucioso ato de erguer-se, devagar, descolando os pés do chão e subindo às alturas. Num deles, ajudei minha amiga Daniela a voar também, e voamos juntos sobre a cidade, nos deliciando com a paisagem. De manhã, após acordar, eu lembrava deles e era tomado por uma sensação tão boa que por três dias eu me sentia diferente, num raro estado de paz e harmonia com a vida, imperturbável. Esses sonhos se repetiram entre os 21 e 26 anos, mas infelizmente haviam cessado.
Foi justamente por causa deles que fui à palestra do IIPC: esses sonhos talvez fossem experiências extracorpóreas ou, como alguns preferem, viagens astrais. Eu estava muito curioso. E, principalmente, queria-os de volta.
Gostei bastante da palestra, e fiquei empolgadíssimo com a possibilidade de voltar a ter meus sonhos de voo e, uau, até de controlá-los. Com essa motivação, logo depois fiz o curso básico e passei a integrar o grupo do IIPC em Fortaleza, que se reunia semanalmente numa salinha alugada na Aldeota. Eduarda, que me falara da palestra e também fora assistir, também passou a integrar o grupo.
o grupo do IIPC
Agora, aos 28 anos, eu era, pelo menos para o IIPC, um ser que dera o passo inicial em seu processo de despertar. Nas reuniões, estudávamos os livros do instituto e praticávamos os exercícios, que visavam, principalmente, o domínio das bioenergias, a expansão da percepção consciente, a recordação de outras vidas, o contato com seres espirituais e extraterrestres e o controle das experiências fora do corpo. De tudo isso, as viagens astrais e as vidas passadas eram o que mais me interessavam, e, além do mais, elas certamente me dariam material para escrever muitas histórias.
Na organização do grupo estava ele, meu amigo Zé Di Bedis, o felomenal. Por ser de família ligada ao espiritismo kardecista, desde pequeno ele tinha familiaridade com aqueles temas e já tivera algumas experiências que o levaram a conhecer a sede do IIPC e fazer cursos lá, quando morou na capital fluminense em 1991. Ele planejava ser pesquisador do instituto e hospedava em sua casa os professores que vinham para ministrar os cursos. Di Bedis (vamos chamá-lo assim para simplificar, já que seu nome é citado mais de 150 vezes neste livro) era um músico de jazz conhecido, mas seu interesse se voltara aos assuntos do instituto, tanto que vendera sua mais cara guitarra para pagar os cursos e comprar os livros necessários. Na última vez que eu o vira, no bloco Belas da Tarde, meses antes, nós dois estávamos bêbados e vestidos de mulher, ele arrasando de Xuxa do Capeta e eu abalando de Colegial que Levou Pau. Meu amigo tinha um jeito meninão, sempre fora muito popular e era um cara superdivertido, humorista nato. Por tudo isso, fiquei surpreso de reencontrá-lo no IIPC, todo sério e formal.
Frequentando o grupo, fiquei particularmente amigo de duas garotas: Eduarda, que eu já conhecia, embora pouco, e Tata, uma paulista fonoaudióloga que se mudara recentemente para Fortaleza. Assim como Di Bedis, elas eram um pouco mais novas que eu. Não me interessei particularmente por nenhuma, mas elas me impressionavam por terem experiências lúcidas fora do corpo, o que eu e Di Bedis queríamos muito ter.
Explicando. Segundo o IIPC, existe a dimensão física e existem também dimensões espirituais, ou extrafísicas, nas quais a alma pode se manifestar por meio de corpos mais sutis que o corpo físico. Nessa lógica, todos têm experiências espirituais quando dormem, mas a grande maioria não lembra ou lembra delas como sonhos vagos, enquanto uma minoria vive as experiências com lucidez e autocontrole, sabendo que estão fora do corpo, e lembram depois que acordam. Essa lucidez extracorpórea lhes permite realizar serviços assistenciais, como auxiliar almas recém-desencarnadas a partir de vez ou convencer outras a parar de encher o saco dos vivos e ir se tratar nos hospitais espirituais.
Uau, isso era demais! Eu queria muito ter essas experiências lúcidas. Poderia até ajudar os outros, sim, que eu sou um hominídeo egoísta mas não tanto, porém não dispensaria um turismo pelas ilhas caribenhas. Ou, quem sabe, assistir a minha vizinha se masturbando…
– Isso não pode! – trataram logo de me explicar.
– Oxe! Por quê?
– Por causa da cosmoética.
Explicando. Cosmoética é a ética cósmica, um conjunto de princípios morais que devem guiar os estudiosos da conscienciologia. Pois justamente por causa da tal da cosmoética eu não poderia jamais ver a vizinha em seus momentos íntimos.
Ah, que injusto… Era como dar pirulito para criança e dizer que só pode olhar. No meu caso, era pior, nem olhar eu podia. Obviamente, senti-me frustrado. Mas, peraí… E se a vizinha tivesse a fantasia de ser observada?
– Se ela também quiser ser observada?
– Isso. Muita mulher gosta de se exibir.
– Bem…
Naquele momento, senti, esperançoso, que talvez houvesse provocado uma pequena fissura nas leis da cosmoética.
– Afinal, Ricardo, você está no IIPC pra evoluir ou pra fazer sacanagem no astral?
Foi meu primeiro dilema no estudo da conscienciologia. Porém, apesar da chata da cosmoética, fiquei feliz de saber que o tema sexo não era contaminado com noções moralistas, como no espiritismo, mas encarado como um processo natural de troca de energias, que devia ser feito com ética, sim, mas principalmente com lucidez, pois do outro lado podia estar… um vampiro energético, por exemplo*.
Vampiro energético? Uau. Aquilo começava a ficar realmente interessante… Era como ser personagem de um filme de aventura sobrenatural.
Explicando. Na conscienciologia, assim como no espiritismo, os espíritos são seres momentaneamente desencarnados, que vivem na dimensão espiritual, e as afinidades energéticas definem o tipo de companhias espirituais que você tem. Resumindo: há os espíritos amparadores, que são mais evoluídos e nos ajudam a fazer o bem, e os espíritos assediadores, que são menos evoluídos e nos prejudicam. Nas reuniões, um dos exercícios visava aprender a sentir as energias dos espíritos, para saber quem exatamente nos acompanhava. Para isso, sentávamos um de frente para o outro e nos dávamos as mãos. Eu, porém, mesmo me esforçando, não sentia nada. Tata, porém, sempre que sentia minhas energias, não conseguia disfarçar seu incômodo.
– O que você sentiu, Tata?
– Não sei bem… – ela tergiversava, cordial demais para dizer que eu estava espiritualmente mal-acompanhado. – Vamos pedir pra Eduarda sentir também.
Trocamos de lugar. Eduarda e eu nos demos as mãos.
– E aí? – perguntei.
– Acho que senti… Jim Morrison – respondeu Eduarda.
– Sério? Que demais! Come on, baby, light my fire…
Adorei saber disso. Assim como Eduarda, eu era fã do poeta-cantor dos Doors. Aliás, na festa A Noite do Rei Lagarto, que eu fizera um ano antes, o felomenal Di Bedis abalou fantasiado de Pamela, a namorada de Jim. Ao saber quem era Jim Morrison, Tata fez cara de reprovação: Eca…
Que garota chatinha…, pensei. Aquilo era preconceito com poeta doidão, bêbado e mulherengo. Ou, seja, comigo.
tentando sair
Em termos de capacidades sensitivas, Eduarda era tida como a mais dotada. Ela dizia ter uma amparadora muito evoluída, sempre a lhe ensinar. A cada semana, minha nova amiga relatava suas experiências lúcidas, nas quais encontrava todo tipo de gente desencarnada, voava até Paris, duelava contra assediadores… Eu escutava atento, sem saber se podia realmente considerar tudo que ela dizia. Bem, em breve eu também teria, assim esperava, as minhas próprias experiências.
Um dia, Eduarda contou que me encontrara algumas vezes na dimensão espiritual, e que eu, infelizmente, nunca estava lúcido. Putz, fiquei inconformado. Tudo que eu precisava, nessas ocasiões, era perceber que aquele sonho era real, e então, plim!, eu passaria imediatamente para o modo lúcido e teria controle total sobre a experiência. E no dia seguinte talvez lembrasse de tudo.
– E como sou no mundo espiritual, Eduarda? – eu, evidentemente, queria saber.
– Do mesmo jeito. Só não sabe que aquilo é real.
– Então, devo falar umas boas merdas, né?
– Um pouco mais que aqui.
Um pouco mais significava muita, muita merda. Isso era mais um motivo para eu conseguir dominar logo as técnicas. E, assim, mandei ver nos exercícios. Não comia nada antes de dormir e dormia de barriga para cima, para facilitar a saída do corpo astral. Fazia exercícios de visualização com uma vela acesa no quarto escuro e praticava a circulação de energias pelo corpo. Deitava a cada noite animado com a expectativa de ter minha primeiríssima experiência lúcida.
E acordava de manhã frustrado. Tudo bem, esta noite tentarei outra vez, pensamento positivo, vamos lá. Esperanças renovadas, seguia tentando. E acordando frustrado.
Durante o ano de 1992, li os livros recomendados, conversei muito com o pessoal do grupo e pratiquei várias modalidades de exercícios. Cheguei ao sacrilégio de diminuir a boemia, porque dormir bêbado prejudicava a qualidade das experiências e impedia a recordação. Perdi festas imperdíveis porque a energia do lugar não seria boa. Sem falar que eu era o único cara que tinha uma seção secreta na agenda de telefones intitulada VE, ou Vampiras Energéticas – com essas, era mais prudente evitar o primeiro beijo.
Apesar do esforço, infelizmente, não tive nenhuma experienciazinha lúcida. Nem tive de volta meus queridos sonhos de voo. Nem qualquer contato com algum ser não físico, ou sequer uma vaga lembrancinha de uma vidinha passada, embora o IIPC considerasse isso menos importante que o domínio das bioenergias. Tata, Eduarda e Di Bedis insistiam para eu continuar, vamos lá, mais cedo ou mais tarde você vai conseguir, não pode desistir…
Mas eu já tinha enchido o saco.
coisas loucas
Um dia, seis meses depois, estou em casa tentando finalizar um conto erótico quando Di Bedis me liga para contar que ele e as garotas estavam se encontrando para praticar exercícios com Cris, uma amiga da Tata, publicitária paulistana, que passava temporada na cidade e que, dias antes, eu conhecera em rápido encontro.
– Cara, você tem que participar também – ele me convidou, empolgado. – Estão acontecendo umas coisas loucas!
– Que coisas loucas?
– Ah, não vai dar pra explicar por telefone. Aparece lá no apê da Tata.
– Di Bedis, eu deixei o IIPC ano passado.
– Nada a ver com aquele grupo, é uma coisa só nossa.
Eu adorava meu amigo, mas quanto às garotas…
Nos meus últimos dias no grupo do IIPC, eu as considerava esquisotéricas demais para o meu gosto. Tata até que era divertida, mesmo quando tentava ser séria. Ela me parecia uma evangélica caretinha, e me achava um porraloca, com meu estilo artístico-boêmio, minha filosofia hedonista de vida e minha brilhante carreira literária que jamais começava. Bem, ela tinha razão. Quanto a Eduarda, ela estava longe de parecer uma crente careta. Vestia roupas escuras, curtia ocultismo e posava de sensitiva misteriosa, como se soubesse de coisas importantes que ninguém mais sabia, o que inevitavelmente lhe conferia um ar superior, acentuado pelo fato de ser gorda. E Cris, que eu vira apenas uma vez, me parecera ser meio desregulada. Vai ver que, como eu, também fora atropelada e batera a cabeça, ou tomava remédio controlado, pois num momento era muito risonha e delicada, e no momento seguinte parecia a diretora do internato, sisuda e professoral.
Eu gostava das garotas, mas, como diz a piada, para mim elas eram as três irmãs Gracinha: a Sem Graça, a Desgraça e a Nem de Graça. Não necessariamente nessa ordem.
– Então, aparece lá. Oito horas – insistiu Di Bedis.
Eu estava razoavelmente bem comigo mesmo. Voltara a escrever, ufa!, e, mesmo com todos os outros afazeres, planejava finalmente publicar um livro de contos, com a ajuda do amigo Balu, que me permitia usar seu computador. Fazia algumas festas de sucesso com minha amiga Andrea e me divertia bastante com as mulheres, sem maiores compromissos sentimentais. Talvez não fosse bom voltar a me envolver com aquelas garotas estranhas e suas esquisoterices delirantes.
Olhando pelo ângulo de hoje, talvez eu já pressentisse o que poderia vir, e por isso fiquei temeroso. Mesmo assim, aceitei ir reencontrá-los. E, além disso, meu interesse pelo sobrenatural continuava, e em mim ainda resistia a esperança de voltar a ter meus deliciosos sonhos de voo.
Semana seguinte, lá estava eu num bar, a poucos minutos de ir para o motel com uma moreninha mui mimosa, quando de repente… lembrei do convite do Di Bedis. Putz, eu esquecera totalmente. Fiquei na dúvida se devia ir ou não, afinal já era meia-noite… Porém, senti um impulso estranho, algo intuitivo, e, mesmo bastante atrasado e sob protestos do Jeitoso, decidi ir encontrá-los. A moreninha não entendeu nada.
Cheguei ao apê da Tata e quem abriu a porta foi Cris, que me recebeu com um sorriso enigmático:
– Você, heim? Sempre me fazendo esperar.
Como assim?, tive vontade de perguntar, mas Tata me puxou para dentro. A sala estava na penumbra, e vi Di Bedis e Eduarda deitados no chão a meditar ou coisa parecida. Velas acesas, um cheiro danado de incenso e Enya tocando baixinho. Uau… Parecia que eu caíra bem no meio de um ritual medieval de bruxaria. Desculpei-me pelo atraso e perguntei o que acontecia.
– Temos algo importante pra te contar – Tata respondeu com certa gravidade.
Eu não estava gostando nadinha do que via e comecei a me arrepender de ter ido ali. Se eu corresse, talvez ainda pegasse a moreninha mimosa no bar. A curiosidade, porém, foi maior, e me acomodei no sofá. Sentia-me um tanto desconfortável, mas algo indefinível naquela situação me excitava. Os outros levantaram do chão e sentaram também. Foi então que comecei a escutar uma história bem louca.
voltando para Aaran
Nervosa e escolhendo bem as palavras, Tata contou que nos últimos dias eles viveram ali intensas experiências: recebiam visitas de espíritos, lâmpadas estouravam sem explicação, gosmas escorriam das paredes… Umas das experiências foi uma recordação conjunta: Tata, Eduarda e Cris tiveram clarividências que lhes mostraram a vida que viveram, as três juntas, no século 14, na Dinamarca. Com mais dezenas de pessoas, inclusive Di Bedis, elas integravam uma comunidade esotérica na floresta chamada Aaran, que lidava com as mesmas questões do IIPC, mas de um modo diverso.
– Lembramos de mais uma pessoa que viveu com a gente em Aaran – Tata prosseguiu. – Você.
– Eu?!
Surpreso, olhei para Di Bedis. O que ele poderia me dizer sobre aquilo?
– Não lembrei de nada, cara – ele explicou, um pouco nervoso. – Mas escuta aí o que ela tem pra dizer.
Tata explicou que o que estava acontecendo era algo incrível, pois após seis séculos nós todos havíamos nos reencontrado em Fortaleza, e que isso não era algo à toa, que certamente havia um importante propósito por trás de tudo e precisávamos descobrir qual era.
– Se vocês que lembraram não sabem, imagine eu –brinquei, tentando diminuir meu incômodo.
– Mas podemos descobrir… e descobrir muito mais… – disse Eduarda, em seu estilão misterioso.
– O que queremos saber – interrompeu Cris, num tom meio autoritário – é se você quer descobrir, conosco, o motivo de termos nos reencontrado agora, seiscentos anos depois. Ou se prefere ficar fora dessa história.
– Pra ser sincero, eu adoraria lembrar dessa tal vida – respondi. – Se é que ela realmente existiu.
– Podemos começar agora – disse Cris.
– Sério? Como?
Cris olhou para Tata, que imediatamente balançou a cabeça em negação.
– Não vou fazer isso, Cris.
– Acho que você deveria, sim.
– Você não perde a mania de mandar, né?
– E você continua a mesma menina teimosa.
Percebi um certo clima de desentendimento entre elas.
– Tudo bem, vou fazer – disse Tata. – Mas é por ele, não por você.
Tata saiu em direção ao quarto, enquanto Eduarda acendia novamente as velas.
– O que ela vai fazer? – perguntei.
– Tata era uma das dançarinas de Aaran – explicou Cris, ajudando Di Bedis a afastar a mesa e abrir um espaço no meio da sala. – E você a viu dançar muitas vezes.
a dançarina de Aaran
Sentado no sofá, os outros sentados no chão ao redor, esperei que Tata voltasse do quarto, eu ainda dividido entre ficar e sair correndo dali. Ela voltou logo, usando um vestido simples, acima dos joelhos, e descalça. Achei que botariam alguma música para tocar, mas isso não aconteceu.
No centro da sala, iluminada pela fraca luz das velas, Tata postou-se em pé, fechou os olhos e respirou profundamente algumas vezes. Então, com movimentos suaves e ondulados, começou a dançar, enquanto murmurava sons que, apesar de meu esforço, eu quase não escutava.
Achei a dança muito estranha, talvez pela ausência de música, ou então porque era estranha mesmo. Permaneci atento para poder detectar qualquer detalhe que me fizesse lembrar de qualquer coisa que pudesse ser, mas não lembrei de nada. Absolutamente nada naquela performance me pareceu familiar. Está bem, serei bem franco: achei a dança horrível. Senti-me um jurado de programa de calouros, aguardando o fim da apresentação do candidato para lhe ofertar o troféu Vergonha Alheia do Astral.
A dança durou uns cinco minutos, e durante todo o tempo Tata parecia estar bem concentrada, como num transe. No fim, jogou-se ao chão e lá ficou, deitada meio de lado, silenciosa e arfante, o vestido um pouco erguido e a calcinha aparecendo, o que me deixou constrangido. Será que as dançarinas de Aaran usavam calcinha?
Quando entendi que havia terminado, senti-me frustrado. O que de tão especial havia naquela dança? O que podia haver ali para ser lembrado? Logo depois, Tata sentou-se no chão e ajeitou o cabelo despenteado. Olhou para todos e sorriu, meio sem jeito.
– E então? – ela me perguntou, ainda se recuperando do esforço. – O que achou?
– Eu? Ahn… Achei… esquisito.
Todos riram, e isso me fez relaxar um pouco.
– Não lhe veio nada? Alguma sensação, lembrança…
– Ahn… Não.
Pela expressão que os quatro fizeram, senti que eu os decepcionara. Um anticlímax.
– Essa dança era feita num importante ritual da escola – explicou Cris. – Sem a música fica estranho mesmo. Mas acredite, você gostava.
– Bem mais do que pode imaginar… – completou Eduarda, insinuando algo que não compreendi.
– Eu e você éramos muito unidos em Aaran, Ricardo – Tata falou. – Quando percebemos que você não viria, fiz um ritual com velas e usei a energia de nossa relação em Aaran pra te puxar pra cá. Antes das velas apagarem, você chegaria, e você chegou. Não foi muito ético, admito, mas era fundamental que você viesse. Você não fica chateado, né?
E ainda mais aquilo…
– Claro que não. Até porque não foi você quem me puxou. Eu vim porque quis.
Na verdade, eu não entendia por que tinha ido. Pela lógica, não teria jamais abandonado a moreninha no bar.
À porta do elevador, Tata, com sua cordialidade de sempre, agradeceu por eu ter ido e perguntou, quase rindo:
– Você acha que somos um bando de loucas, né?
– Bem…
– Ele acha, sim – falou Eduarda, pondo a cabeça no vão da porta. Falou e sumiu, deixando no corredor o eco de sua risada, que achei meio assustadora.
– Não ligue pras nossas briguinhas. Às vezes, é como se ainda estivéssemos em Aaran…
Quando o elevador fechava a porta, ainda pude escutar a voz da Cris:
– Ele não vai voltar. Conheço meu irmão.
tragédia no trânsito
E, de fato, não voltei. A tal história de vida passada na Dinamarca até que era instigante, mas havia em tudo aquilo uma quase histeria que me incomodava. Ou talvez eu estivesse sendo covarde, como ocorre quando intuímos a chegada do que realmente precisamos em nossas vidas, mas temos medo, inventamos desculpas e fugimos.
De todo modo, os encontros foram suspensos, pois Tata e Cris decidiram viajar. Deu a doida nas doidas e por quatro meses caminharam pelas praias do Ceará, apenas com suas mochilas, acampando, curtindo a Natureza e fazendo amizade com os pescadores e suas famílias, o que me fez mudar meu olhar sobre minhas amigas esquisotéricas. Garotas que faziam aquilo não podiam ser garotas comuns. Doidas, talvez, mas bobas, não. Logo depois, Tata e Cris voltaram a morar em São Paulo e não nos vimos mais.
Naqueles dias de 1993, eu namorava uma bela bailarina* de 20 anos que morava no Rio de Janeiro e passava férias e feriados em Fortaleza. Renata e eu sustentávamos nosso romance interestadual entre cartas, telefonemas e viagens, o que nos exigia certo malabarismo de agenda e finanças. Entre idas e vindas, brigas e recomeços, nossa história durou um ano, intensa e poética. Mas infelizmente trágica, pois Renata morreria no fim do ano em Fortaleza, vitimada por um tiro disparado na direção do carro no qual estava com amigos, após uma discussão de trânsito. Foi uma tragédia que me atingiu fortemente, ainda mais porque na noite fatídica ela me chamara para sair e eu recusei, por estar cansado, uma tragédia que ainda hoje me revolta, pois o assassino segue solto.
Então, fiz o que muitos fazem nessas ocasiões sem perceber: reprimi a tristeza para evitar sofrer e bloqueei as lembranças do que vivemos. E, se eu já tinha medo de me entregar em meus relacionamentos, o medo cresceu e passei a me resguardar ainda mais. Atitudes ingênuas e medrosas, sim. Típicas do belo covarde que eu estava me tornando, eu que me gabava de ser aventureiro da vida, mas que não ousava vivê-la por inteiro.
Intocáveis Putz Band
Se minha vida não estava economizando em intensidade, o ano de 1994 pegaria ainda mais pesado. Agora, eu tinha uma nova banda, a Intocáveis Putz Band*, criada por meu amigo Toinho Martan. Inspirados pelo pop-rock da Blitz e pelo funk-inferninho de Fausto Fawcett, tínhamos vocalistas hipnotizantes e nossos shows transbordavam de irreverência e performances imprevisíveis. Tocávamos músicas nossas e também sucessos consagrados, e a preferência era pelo rock funkeado, mas tocávamos também blues e umas pitadas de disco, forró raiz e bregão de cabaré, e o fio condutor dessa salada musical era o bom humor e a sacanagem. Eu e meus amigos Martan, Karine, Emílio, Flavio e Nonô queríamos apenas nos divertir, e quem quisesse também, era só chegar junto, e muitos chegaram, entre músicos, cantoras, produtores e admiradores.
A Intocáveis Putz Band me enchia os dias com ensaios e shows, tietes generosas e toda aquela grande festa libertina de sexo, drogas e roquenrou. Se eu já tinha dificuldades com a monogamia forçada, tanto a sexual como a afetiva, elas aumentaram. Você sabe, numa banda de sucesso o feio vira engraçadinho e o engraçadinho vira lindo – então eu tratava de aproveitar minha fase de falso lindo, mantendo-me solteiro e me apaixonando duas vezes por semana, o que exigia bastante do Jeitoso. Eu era um sátiro e Fortaleza era um bosque cheinho de ninfas a me atrair com suas minissaias e seus sorrisinhos de falso pudor. E para sair à noite, o sátiro pegava emprestado o carro da clínica veterinária. Na maioria das vezes, era assim: a ninfa descia do prédio toda bonita e perfumada e, quando percebia que iria sair numa ambulância de cachorro, desistia. Mas algumas achavam a coisa, digamos, meio exótica… Tem gosto para tudo.
E assim eu ia, prosseguindo aos trancos e barrancos com o curso de Letras, o trabalho na veterinária e a produção de eventos e festas temáticas, e escrevendo cada vez menos. O dia tinha 36 horas, e a noite tinha o dobro. Que coisa… Como eu podia ter tanta energia e fazer tanta coisa? E olhe que eu nem cheirava cocaína nem bebia energético, era só álcool mesmo, e vez em quando um baseadim. Na verdade, meu verdadeiro combustível era a poesia da vida, principalmente a que vinha da mulher. Eu nada entendia sobre psicologia dos arquétipos, o que só ocorreria após me iniciar nas ideias de Jung*, mas já sabia do grande poder e fascínio que o feminino exercia sobre mim.
A Intocáveis se tornava rapidamente conhecida em Fortaleza. Líderes da banda, Martan e eu realizávamos um velho sonho, compondo juntos e nos divertindo bastante. Como eu não era cantor e nem tocava nada, me dedicava à produção e minha participação nos shows se dava nos vocais de apoio e protagonizando números performáticos, como os dois manifestos. Um deles era o Manifesto das Bem-Aventuranças, em que eu encarnava o profeta da sagrada putaria: metido num manto escuro com capuz, feito monge medieval, homenageava os excluídos do Sermão da Montanha, com destaque para artistas, putas e travestis. O outro era o Manifesto Neomaxista Liberal, em que eu gritava em tom panfletário, com humor sacana, os direitos do homem pós-moderno, e esse se tornou o ponto alto do show, sempre com intensa participação da plateia, homens apoiando e mulheres a vaiar. Era uma grande gozação com o machismo e o feminismo, em que exigíamos, entre outras coisas, o direito de ter um diário, de espelho no banheiro masculino, de uma delegacia do homem, de ver os gols da rodada no motel, de dormir dentro e de brochar sem ter que dar explicação. Festa é o que nos resta – esta era a minha filosofia.
conflito interno
Nove meses de banda, cada vez mais shows na agenda, o cachê aumentando, convites para outras cidades, eu surfando nas ondas do sucesso – a vida era um caleidoscópio a girar cada vez mais rápido. O Brasil vivia o início do Plano Real, que finalmente nos traria redução da inflação e estabilização econômica, e levaria Fernando Henrique Cardoso ao seu primeiro mandato como presidente. Tempos de esperança. Mas, e a literatura?
Antes da Intocáveis, eu começara a publicar crônicas em jornais e preparava meu livro de estreia, de contos – que felizmente não cheguei a publicar, senão seria mais um filho renegado, de tão ruim que era. Porém, com a banda, parara de escrever, o que voltou a me angustiar, ainda mais que antes. Algo em mim sabia que eu não seguia o caminho essencial da minha vida e que jamais me realizaria de verdade se não me tornasse escritor profissional, e que aquilo que eu vivia, embora também fosse verdadeiro, não era prioridade. Se eu queria uma carreira literária, teria que me dedicar muito mais e abdicar da banda, pois seria impossível conciliar as duas coisas. Mas não tinha forças para fazer isso.
Sim, era o clássico conflito interno, no qual eu evitava pensar. E era exatamente por isso que o conflito crescia perigosamente na escuridão do inconsciente. Aos 29 anos, eu sentia cada vez mais fortes os cutucões do deus Saturno, senhor do tempo e da razão, chamando-me para a responsabilidade de assumir meu caminho verdadeiro.
Um dia, alguém da família me falou que acordara na madrugada anterior e me ouviu a trabalhar, tec-tec-tec, em minha máquina de escrever. Porém, eu não dormira em casa naquela noite. Depois, outros familiares contaram que também me ouviram trabalhar de madrugada, e, novamente, aconteceu em noites em que eu dormira fora. Que estranho… Depois, minha tia, que se hospedava lá por uns dias, também ouviu o tec-tec-tec da máquina numa madrugada em que eu não estava em casa, e meus pais lhe explicaram que aquilo era comum, não se assustasse. Como somente eu possuía a chave do quarto e ele ficava trancado quando eu saía, cogitou-se que seria o espírito de algum escritor, apesar dele nunca deixar algo escrito. E eu? Restava-me rir da coisa toda, e até torcia para o tal fantasma surgir para mim. Mas, por enquanto, chega. Prometo que volto ao assunto mais adiante.
Então, Eduarda me avisou que Tata, que agora morava no Rio de Janeiro, estava na cidade, e fui reencontrá-las, matar a saudade das minhas alopradas amigas esquisotéricas. Falei-lhes da banda e contei das participações especiais que Di Bedis fazia nos shows, fantasiado de Chapolim Colorado, e do quanto eu estava me divertindo.
– Você está bem, Ricardo? – Tata perguntou.
Pergunta estranha. Repentina e estranha.
– Eu tô ótimo – respondi, como alguém que diz uma grande obviedade.
– Tem certeza?
– Sim, certeza. Bem… na verdade…
Não precisei falar muito sobre meu momento – de alguma maneira, Tata e Eduarda pareciam saber. Contei que desde aquela noite no apê, um ano antes, eu esquecera dos assuntos do além e nem tinha mais tempo para aquilo. Para minha surpresa, elas revelaram que semanas antes estiveram numa das apresentações da banda.
– Que pena, não vi vocês. A casa estava lotada.
– Viu, sim – Tata refutou. – Você até me mandou um beijo lá do palco, não lembra? Um beijo pra minha amiga de outras vidas…
– Sério? Putz, não lembro. Eu estava bem alucinado. – E era verdade. Naquela noite, agarrei até minha irmã caçula, tascando-lhe um beijão na boca.
– Era aniversário do Jim Morrison, e acho que ele baixou em você. Dessa parte, eu gostei – comentou Eduarda, rindo, e ri com ela.
Entretanto, elas contaram que, apesar da alegria reinante no show, sentiram energias perigosas ao meu redor.
– Você precisa despertar de vez, Ricardo. Antes que seja tarde.
Não me senti à vontade com aquele assunto. Sempre que eu as encontrava, ficava dividido entre sensações confusas. Mas talvez estivessem certas. Às vezes, eu tinha mesmo a impressão de estar sonhando, de que tudo que vivia era de uma realidade onde eu não devia estar. Mas, ao mesmo tempo, a Intocáveis era a realização de um velho sonho, e eu não podia largá-lo, ainda que isso sufocasse meus planos de ser escritor.
Nesse dia, elas demonstraram entender o meu conflito. E me informaram que no fim de semana aconteceria em Fortaleza um estágio avançado do curso do IIPC.
– Tem show neste fim de semana, Ricardo?
– Não. Nem ensaio. Mas não me interessa, obrigado.
– Waldo vai estar presente. Se você fizer o curso, podemos tentar que ele converse pessoalmente com você. Quem sabe ele te ajuda a ter experiências lúcidas, ou te dê esse impulso que falta pra você despertar.
Impulso que falta… Sim, fazia algum sentido. Talvez fosse isso que eu precisava, um empurrão.
Waldo era o fundador e presidente do IIPC. Tinha sessenta e poucos anos, morava no Rio e às vezes viajava para participar daqueles cursos avançados. Senti voltar um pouco da esperança. Talvez Waldo pudesse me ajudar ao menos a ter de volta meus saudosos sonhos de voo. Senão ele, quem mais poderia? Além disso, seria uma boa oportunidade de conhecer pessoalmente aquele que para muitos era um grande guru.
– Ok, Tata – respondi, confirmando presença no curso. – Mas sei que muita gente sempre quer falar com Waldo, e ele não tem tempo de atender todo mundo.
– Deixe isso para os nossos amparadores – ela respondeu, risonha. Mas percebi que falava sério.
com Waldo
Fiz o curso, que aconteceu num hotel, e que não me empolgou, o que me deixou arrependido de ter gastado meu pouco dinheiro naquilo. Porém, Tata me avisou que o plano dera certo e que meu encontro com Waldo estava marcado para o dia seguinte, no hotel. Fiquei surpreso. Caramba, esses amparadores eram competentes…
Na hora marcada, lá estava eu, aguardando. E Waldo chegou. Ele não passava despercebido. Vestia sempre branco, cobria a careca com um chapéu branco e mantinha uma comprida e imponente barba branca. Mineiro de nascimento e médico de formação, ele fora na juventude amigo próximo e parceiro do espírita Chico Xavier, com quem escreveu livros psicografados e ajudou a popularizar a doutrina kardecista nas décadas de 1950 e 60. Após se afastar do espiritismo, Waldo continuou suas pesquisas na área da mediunidade, escreveu livros e em 1988 fundou o IIPC. Lá, ele era não apenas o presidente, mas uma espécie de mentor de reconhecidas capacidades paranormais, uma alma evoluída a quem seus discípulos não ousavam questionar. Ele morreria em 2015, aos 83 anos.
O presidente Waldo me recebeu no salão dos cursos e, apesar de cansado, foi atencioso. Constatei logo que estava diante de um indivíduo perspicaz e de mente muito ágil. Fiz-lhe um breve resumo do meu momento e contei dos meus esforços, dos exercícios feitos, dos livros que lera… Ele escutou e depois esfregou as mãos e segurou minha cabeça com as pontas dos dedos. Fechei os olhos e pude sentir o calor de suas mãos. Segundos depois, ele as retirou e falou:
– Continue tentando.
Putz… Eu esperava qualquer coisa, menos um “continue tentando”.
– Só isso? – perguntei, sem disfarçar a frustração.
Ele me olhou firme nos olhos. Senti dificuldade de sustentar o olhar, aguardando o que ele diria. E o que ele falou, num tom tranquilo, foi:
– Você se acha muito esperto, não é?
Fiquei surpreso com aquela pergunta, que na verdade era uma afirmação.
– Um pouco – respondi, sem saber o que dizer.
Ele, porém, estava certo. Waldo me desmascarava, olhando em meus olhos. Ali, subitamente confrontado com a verdade sobre mim mesmo, não tive condições de assimilá-la, o que só aconteceria anos depois. Ele deu um tapinha em meu ombro e levantou-se. E nosso encontro de cinco minutos terminou.
Voltei para casa numa tristeza resignada. Continuar tentando? Não, na verdade seria começar tudo de novo. E eu não estava nem um pouco disposto a começar de novo. Contei para Tata e Eduarda o que ocorrera e agradeci pelo que fizeram. E fui cuidar da vida. No plano físico.
as gatinhas do Di Bedis
E a vida no plano físico seguiu ainda mais caleidoscópica. A Intocáveis estava a cada dia mais conhecida na cidade, a postura tornava-se mais profissional e, com menos de um ano de existência, a banda alcançava um estágio que a grande maioria demora mais tempo para alcançar.
E havia também a Caboca (Confraria Cearense de Apoio às Boas Causas), uma espécie de maçonaria da putaria que eu criara com uns amigos desocupados, que duraria uma década e, além das festas, tinha como principal missão eleger as 10 Mais do ano, aquelas dez mulheres que mais se destacaram, segundo os nossos critérios, claro. Como as eleitas ganhavam ótimos prêmios, como ingressos de cinema e crédito em lojas, restaurantes e pousadas, toda mulher sonhava ser uma garota Caboca, o que exigia de nós, diretores, muita disposição para nos mantermos atualizados.
Certa noite, bebendo num bar, recebo um bilhete de uma linda candidata a 10 Mais. No papel, na tinta azul da caneta, ela generosamente elencava sete qualidades referentes a minha pessoa. Li e guardei no bolso da calça. Horas depois, em casa, despertei na madrugada, um tanto angustiado. Acendi a luz do abajur, peguei o bilhete e reli minhas sete qualidades: tolo, burro, imaturo, covarde, ridículo, medroso e altamente superficial. Só verdades.
Mas o caleidoscópio girava, e não havia tempo para reflexões profundas. E, assim, o conflito interno se intensificava. De um lado, o sonho distante de uma carreira literária, e do outro, o sonho de ter uma banda, que já era real. A única forma de não pensar no conflito era ocupar as 36 horas do dia trabalhando e estudando e as 72 horas da noite me anestesiando com mais shows, birita e casos descompromissados. Passei a descuidar da saúde, como se a vida já não valesse muito, e incidentes e acidentes tornaram-se frequentes. Eu vivia intensamente o teatro colorido da alegria para não lembrar que, na penumbra dos bastidores, não tinha forças para reagir.
Então, o portal se abriu…
Numa tarde, fim de dezembro de 1994, Di Bedis me ligou, convidando para sair com duas garotas que ele conhecera.
– Duas gatinhas, cara. Fortíssimas candidatas a 10 Mais. E estão a fim de sexo selvagem!
Grande Di Bedis, cumprindo honrosamente seu papel de descobridor de talentos da Caboca.
– Oba! É pra quando?
– Pra hoje. Passo aí às cinco pra te pegar.
– Vamos beber o quê?
– Compramos no caminho.
Um pente no cabelo, duas xiringadas de desodorante no sovaco e seis camisinhas no bolso depois, estou pronto. Saio para a rua e quando abro o portão… quem vejo no carro com meu amigo? Elas, as mirabolantes esquisotéricas, Tata e Eduarda.
– Entra aí, bora dar um passeio – Di Bedis falou, rindo da minha cara de idiota, que, na verdade, sempre foi a minha verdadeira cara.
Fiquei imóvel, sem conseguir processar aquela informação. Eu podia sentir meus neurônios explodindo pela absoluta divergência entre o que eu esperava e o que de fato acontecia.
– Ah, não… vocês de novo…
– Nós não vamos te largar, Ricardo! – respondeu Tata, passando para o banco de trás.
Senti-me o maior dos estúpidos por ter caído na pegadinha. Logo eu, que me achava tão esperto… E com aquelas duas eu sabia que tudo que jamais rolaria era sexo selvagem.
Ali, parado na calçada, tive uma forte sensação de algo importante e decisivo… Acho que foi aí, pela primeira vez, que tive o entendimento intuitivo da existência dos portais conscienciais. Eu estava diante de um deles. Sua mente sabe, seu corpo também sabe, o ser acusa por inteiro, como um alarme. Imediatamente, você sabe que toda a sua vida futura depende da decisão que tomará nesse momento. Você sente medo. Se decidir cruzar o portal, não poderá mais retornar. Se recusar, ele se fechará para sempre e você jamais saberá o que o aguardava do outro lado.
Tentei ganhar tempo para avaliar racionalmente as minhas opções. A situação, porém, não podia ser resolvida pelo intelecto – era algo que dizia respeito somente à intuição. Então, entrei no carro, resignado. Eu, um carneirinho rumo ao abatedouro.
revelações nas dunas
Di Bedis dirigiu para as dunas do lado leste, rumando para o município praiano de Aquiraz. Eu, que sempre tive no intestino o fiel termômetro de meu estado emocional, estava quase pedindo para parar o carro em algum lugar para poder ir ao banheiro. Nervoso, perguntei o que tinham para me dizer, mas Tata respondeu que só contariam quando chegássemos. Todos eles riam, se divertindo com meu ridículo suplício, mas havia uma tensão no ar. Meia hora depois, estávamos no alto de uma duna, sob o céu do entardecer.
– Nós já vimos óvnis aqui, sabia? – comentou Eduarda, admirando o céu enquanto sentávamos na areia.
– Sério?
– Quem sabe eles aparecem hoje. Em sua homenagem.
Eduarda sorriu e piscou um olho para a amiga. Tata sorriu também, mas logo ficou séria novamente.
– Não foi muito legal te enganar, Ricardo, eu sei, mas não havia outra maneira de te fazer vir aqui – Tata se desculpou, meio sorrindo, meio grave.
– Naquela noite, vocês me atraíram pro apartamento com rituais mágicos. Agora, apelaram pros meus instintos sexuais. É claro que não perdoo – brinquei. Ou não. Talvez tenha sido sincero. – Mas vamos em frente.
– Eu e Eduarda estamos morando no Rio. Decidimos vir a Fortaleza porque temos coisas urgentes pra revelar a vocês. Já falamos com Di Bedis ontem. Agora, é sua vez.
Silêncio.
– Ricardo, sua vida nesse momento corre perigo.
Engoli em seco. Aquelas palavras soaram duras para mim. Certamente porque era verdade.
– Vamos te explicar. Só pedimos que escute tudo, tá?
Olhei para eles. Di Bedis estava sério. Eduarda sorria naquele seu jeitão misterioso. E Tata me olhava de uma maneira calma e amistosa. Havia uma certa solenidade no ar. Sacudi a cabeça, entregue.
– Bem, eu já tô aqui, né? Pode começar.
Tata explicou que ela e Eduarda mantinham contato frequente com seus amparadores, e que eles as ajudavam a entender o que acontecia comigo.
– E você também tem um amparador.
– Sério? – perguntei, curioso a respeito do espírito que escolhera um cara como eu para guiar. – É o Jim Morrison?
– É uma mulher. Chama-se Paola. Bonita, de muita classe. Tem certeza que você nunca viu ou sonhou com ela?
– Com certeza eu lembraria.
Tata sorriu, sempre cordial, mas retomou a seriedade e prosseguiu. Disse que elas descobriram que nós todos, Cris incluída, éramos um grupo de almas que evoluía junto pelas sucessivas encarnações, um grupo cármico, e que nos reencontráramos porque tínhamos missão importantíssima a cumprir: ajudar a humanidade a passar para o novo nível de sua evolução espiritual. E para isso teríamos que nos integrar mais ao IIPC, que era a continuação moderna de Aaran.
Tata explicou que a humanidade vivia um momento evolutivo crucial, pois a Terra precisava passar para outro nível energético e somente os mais evoluídos seguiriam vivendo aqui, e o restante sofreria um processo de transmigração, com suas almas enviadas para um planeta mais atrasado. Isso era necessário, senão a parte menos evoluída destruiria o mundo com sua ganância capitalista, as ideologias fascistas, o fanatismo religioso e a negligência ecológica. Seres espirituais superevoluídos monitoravam os acontecimentos com discrição. Os terráqueos que ficassem formariam a nova humanidade, mais harmoniosa e mais justa, sem guerras nem religiões, e o nosso grupo tinha papel fundamental no processo, pois, com nossas capacidades paranormais, a experiência em Aaran e os amparadores, podíamos ajudar o instituto a atuar melhor.
– E nós temos um líder – Tata falou.
– Quem? – perguntei, achando aquele papo muitíssimo louco. Mas estava curioso.
Ela não respondeu. Olhei para os outros. Di Bedis estava de cabeça baixa, como se não se sentisse à vontade com aquele assunto. Eduarda estava séria. Tensão no ar.
– Você – respondeu Tata, num meio-sorriso nervoso.
– Eu?! Tá de sacanagem.
– Você é o nosso líder, Ricardo – ela confirmou, olhando firme em meus olhos.
saltando
Evidentemente, aquilo era um absurdo total. As meninas fumaram maconha estragada, só podia ser. Eu, o maior pinguço do pedaço, líder de um quinteto esotérico que iria salvar o mundo? Mas como, se eu não tinha qualquer capacidade paranormal, não via espírito, não lembrava de vida passada, nada? Elas eram as fodonas naqueles assuntos, não eu. E foi justamente isso que em seguida argumentei. Tata riu.
– Isso foi uma grande surpresa pra nós também. Mas os amparadores nos garantiram. E disseram também que você tá influenciado por assediadores, e por isso tá destruindo sua vida. E, caso não siga sua proéxis, em breve poderá acontecer… ahn… algo muito sério com você.
Explicando. Proéxis (pronuncia-se proécsis) é a programação existencial do indivíduo, elaborada por ele e seus amparadores no plano espiritual, antes de reencarnar. No popular: a missão de vida.
– Algo muito sério tipo o quê? – indaguei.
– Doenças, acidentes – respondeu Tata.
Bem, isso não é novidade, pensei.
– Ou algo pior… – falou Eduarda, muito séria.
Senti um calafrio. Aquilo tudo era muito louco, mas… pensando bem, fazia certo sentido. Em alguma parte profunda de mim, aquelas palavras se abraçavam com meu velho anseio de viver os mistérios e a sincera esperança de que tudo aquilo realmente existisse. E era um abraço numinoso, que tinha a força das coisas antigas e sagradas. Caramba, o que poderia ser mais emocionante que atuar numa missão pelo futuro da humanidade?
E quanto a ser líder? Bem, não me era uma função estranha, pois sempre tivera tendência a liderar grupos. E quanto a estar afastado da minha proéxis, não foi nenhuma surpresa escutar isso: eu sabia que não estava em meu melhor caminho. A diferença é que agora tudo parecia tão óbvio…
– Pense bem, Ricardo – prosseguiu Tata. – Talvez seja um modo de realizar seu sonho de ser escritor. Não é o que mais deseja? Você vai poder escrever sobre esses temas e publicar pelo instituto.
Ser um escritor profissional… Meus olhos devem ter brilhado nesse momento.
– Eu e Eduarda voltaremos pro Rio, queremos ser pesquisadoras do instituto.
– E Cris?
– Ficará em São Paulo, mas manteremos contato e nos encontraremos. Pense bem, por favor. Com você e Di Bedis, estaremos os cinco juntos outra vez, e seremos mais capazes.
– Como já havia dito antes, eu vou – Di Bedis falou.
– Não sei… – murmurei, procurando organizar as ideias. – Como vou largar tudo assim, de uma hora pra outra?
Ninguém respondeu à minha pergunta. Mas, no íntimo, eu sabia a resposta.
Eu tinha um destino, vislumbrado ainda criança, quando me recuperava da pneumonia, e o voto fora renovado aos 18 anos, após ler O Encontro Marcado. Nos últimos anos, porém, esse destino a cada dia fugia um pouco mais e eu não tinha forças para segui-lo. E isso estava me matando. Naquele dia, meu destino de repente ressurgiu. Acho que este trecho ficaria mais belo se eu dissesse que pensei em grupo cármico, causas humanitárias, salvar o mundo… Mas, não. O que reluzia à minha frente era a minha carreira literária. Eu pensei em mim.
Já é noite no alto das dunas. O portal ainda está aberto, eu posso senti-lo, até mesmo com o corpo, como se sente um abismo logo à frente. E sinto também que logo se fechará. Sabe aquela cena clássica de 2001, Uma Odisseia no Espaço, em que o hominídeo primitivo descobre a utilidade de um osso como ferramenta? Milhões de anos depois, ali nas dunas, eu sou um hominídeo moderno, menos peludo mas igualmente espantado diante da própria epifania, e a ferramenta que me levará ao meu futuro é a minha compreensão do fato. Serei, mais uma vez, covarde?
Não, não serei.
Então, respiro fundo e salto.
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cap 3 DO OUTRO LADO DO PORTAL
. o livro de Aaran
Dias após o encontro nas dunas, Tata me passou uma cópia do livro sobre nossa suposta vida no século 14, contada em forma de romance, que ela escrevera e planejava publicar com ajuda do IIPC. Tata achava que a leitura do livro poderia ajudar a me trazer as lembranças.
Li Aaran numa noite, e gostei. Tata não era das letras mas conseguira criar uma trama envolvente, e os conflitos entre os personagens me soavam autênticos. Baseado nas lembranças de Tata, Cris e Eduarda, o livro narra o cotidiano de Aaran, a escola esotérica onde mestres e discípulos viviam em comunidade numa floresta da Dinamarca, lidando com domínio de energias psíquicas e experiências fora do corpo. No clima de terror causado pela Inquisição Católica, que ganhava a Europa, Aaran era um espaço de resistência, onde conhecimentos esotéricos deveriam ser preservados. A maior dificuldade, porém, estava na própria comunidade: os conflitos internos terminariam por levá-la a fechar as portas, fazendo com que todos os seus integrantes partissem, seguindo seus caminhos individuais. Um fim melancólico.
A protagonista era a própria Tata, que na história era Orian, uma garota que se envolvia mais do que devia com a realidade espiritual, o que a prejudicava em seu dia a dia. Em Aaran, uma vez por mês, todos participavam do importante ritual da Lua Negra, no qual Orian era a dançarina principal. Uau… Quem diria que aquela garota desajeitada pudesse ter sido uma chacrete mística do século 14…
Meu personagem chamava-se Aidon. Era irmão de Taena (Cris), uma respeitada mestra, e na juventude foram amantes. Em Aaran, o sexo não era envolto em noções de pecado, como no cristianismo, mas constituía-se em prática importante para a saúde física e psíquica, e o sexo entre irmãos era permitido. Eles eram filhos do líder espiritual da escola, mas Aidon abdicara do futuro que o aguardava, ser um mestre e substituir seu pai, e vivia viajando pelo mundo, voltando com livros e novidades de outras culturas.
Livros?, pensei. Putz, não evoluí nada nesses séculos todos…
Taena ainda era apaixonada pelo irmão e não o perdoava por ele ter renunciado ao seu cargo como líder da comunidade. E tinha ciúmes de seus envolvimentos com suas discípulas, principalmente Orian.
Alira (Eduarda) era a cozinheira da escola, que conhecia os segredos das ervas, uma personagem ambígua, com quem alguns não simpatizavam. E havia também Andrija, uma outra dançarina. Ai, Andrija… Ela era bonita, meio maluquete e safadinha, ou seja, era o suprassumo da tentação escandinava. Pois bem, adivinha quem era Andrija, adivinha. Você não vai adivinhar. Era o Di Bedis. Uau! Sim, meu amigo fora uma mulher em Aaran, e isso viraria motivo de eternas piadas no grupo. Eu não deixava barato.
– Pô, Di Bedis, tu era dançarina de Aaran. Hoje, não consegue nem acompanhar um cabo de vassoura na dança…
– Elas que lembraram, cara – ele respondia, pouco à vontade com o assunto. – Eu não lembrei nada disso.
A piada maior, no entanto, era com o fato de que a maluquete Andrija e o viajante Aidon… os dois… hummm… Adivinha. Isso mesmo, eles tinham um rolo. Eu e Di Bedis fôramos amantes numa vida passada, eu, homem, e ele, mulher.
– Caramba, Di Bedis. Tu piorou muito, viu?
– Vai te lascar.
– Lembra daquela noite em que nós demos uma escapulida no meio da Lua Negra, fomos pro mato e…
– Não, lembro não. Nem quero lembrar.
Façamos as contas. Minha irmã Taena fora minha amante, eu tinha um rolo com sua discípula Orian e ainda chafurdava nos lençóis da taradinha da Andrija, ai, Andrija, que também tinha um rolo com Orian. Isso significa que, tirando Eduarda, em Aaran eu fui para a cama, e também para a sombra dos carvalhos, com todo aquele meu grupo de amigos. Bem, na verdade, para baixar minha bola, isso não significa muito, pois em Aaran o sexo era disciplina obrigatória no aprendizado espiritual.
Durante a leitura do livro, tive sensações curiosas e senti certa familiaridade com tudo aquilo. A história me fez, subitamente, ser mais simpático com a teoria reencarnacionista. De fato, identifiquei-me com Aidon, o viajante estudioso das culturas, e senti que, se existia reencarnação, eu poderia mesmo ter sido ele. No fim, fechei o livro e, enquanto aguardava chegar o sono, experimentei uma nova felicidade, feita da intuição de que encontrara um caminho, muito inusitado, sim, mas um bom caminho para seguir.
óvnis em Guajiru
Guajiru é uma cidadezinha no litoral oeste cearense, que Tata e Eduarda conheciam. No primeiro fim de semana do ano novo, nós quatro fomos para lá. Segundo elas, era um lugar especial, com alta concentração energética, uma espécie de chacra geográfico do planeta, e que naqueles locais os etês costumavam fazer contato. Elas diziam que entre os moradores corriam relatos de avistamentos de óvnis e que lá havia um garotinho especialíssimo, que era um dos etês do bem que estavam encarnando na Terra com a missão de auxiliar os humanos na mudança de nível evolutivo. Elas pressentiam que lá os etês fariam contato com nosso grupo.
Nos dias que antecederam a viagem, fiquei ansioso, e até tive um pesadelo, no qual uma nave pousava em Guajiru, próximo de nós, e um etê saía dela:
– Olá, terráqueos. Levem-me ao seu líder.
– O líder é ele! – Meus amigos apontaram para mim.
– Cês tão de sacanagem… – E os etês começavam a rir.
Poizé. Para mim, ser o líder daquele grupo continuava sendo algo difícil de aceitar, mas eu já admitia para mim mesmo que aquele era o meu grupo, e que, se preciso fosse, iria com eles até mesmo para outro planeta, ainda que tivesse de suportar zombaria de etê.
Em Guajiru, conheci o tal garotinho e… putz, não é que ele tinha mesmo jeito de etê! Chamava-se Isaac, tinha uns olhos estranhos, grandes e meio puxados, um jeito calado e desconfiado… Segundo Tata e Eduarda, ele não sabia que era um etê, mas lembraria quando crescesse. Pelo bem da humanidade, aquele garotinho deveria ser preservado, pois os mega-assediadores certamente já sabiam dele e tudo fariam para eliminá-lo. Babado forte. Mas eu tinha dúvidas.
– Como vocês sabem que esse curumim é um etê?
– Os amparadores nos disseram, Líder. Você não viu o jeito estranho dele?
– Vi. Mas acho que o coitado tá assustado com vocês, isso sim.
O assunto era muito sério para as meninas, mas eu não resistia a umas piadas. Queria que tudo aquilo fosse verdade, porém não conseguia crer do mesmo jeito que elas e Di Bedis. Mas vamos aos óvnis que é o que interessa.
Ao anoitecer, deixamos a pousada e verificamos o céu: poucas estrelas, ótimo. Subimos o morro mais alto e nos posicionamos virados para o mar, sentados na areia. Soprava um ventinho frio. Havia um clima de reverência no ar. A qualquer instante, algo incrível aconteceria.
Estávamos em silêncio, concentrados, quando, de repente, plic, plic, plic… O que é isso? Plic, plic, plic… Gotas. Gotas dágua. Cabruuum!, começou a trovejar. E ventar forte. E chover muito. Em um minuto, desabou uma chuva tão pesada que não tivemos outra opção senão levantar, descer o morro numa correria louca e voltar para a pousada, onde chegamos ensopados e cheios de areia, botando os bofes para fora. Disco voador que é bom, nada. Dia seguinte, pagamos a conta e voltamos para Fortaleza, absolutamente frustrados.
Dias depois, as meninas me mostraram uma notícia no jornal: outro caso de avistamento de óvnis ocorrera em Guajiru, três dias depois daquele fim de semana.
– As naves ficaram presas no trânsito – brinquei.
– Ou nossa energia não estava boa, e eles preferiram não aparecer – sugeriu Tata. – Precisamos nos harmonizar.
desarmonias
Sábias palavras. De fato, não éramos o melhor exemplo de harmonia. Discutíamos por mil motivos e havia conflitos de egos. E eu era um líder absolutamente incapacitado. Além de não me convencer da existência daquelas coisas, eu, ingênuo, não percebia as sutilezas das nossas relações pessoais, o que as garotas viam bem e, por isso, manipulavam as situações. E ainda havia o fato de Eduarda e Di Bedis acharem que eu e Tata formávamos uma dupla evolutiva (pessoas que evoluem juntos no amor romântico em suas proéxis combinadas) e por esse motivo deveríamos namorar, o que nos constrangia, pois não tínhamos interesse. E se éramos mesmo uma dupla evolutiva, então eu estava novamente me afastando de minha proéxis, que merda.
Quanto a Eduarda, ela frequentemente era acusada de usar seus poderes sensitivos para brincar com todos nós, e era óbvio que gostava de ser temida. Se estava tranquila, era doce e companheira, mas o comportamento ambíguo nos causava desconfianças. Di Bedis, por sua vez, não tinha problemas com as garotas, mas, embora não expressasse, e isso eu só saberia depois, não aceitava bem o fato do líder ser eu e não ele, que era ligado ao IIPC havia mais tempo e estudara os livros do instituto.
Quanto a Cris, como voltara a morar em São Paulo, sua participação se dava a distância, sem tanto envolvimento. Ainda assim, entre ela e Tata ressurgiam questões pendentes de Aaran, como se aquela vida ainda prosseguisse no presente: você não me obedeceu naquele piquenique na floresta, você não devia ter dançado nua para Aidon, você usou sem avisar o meu vestido comprado no Reino da Suécia, e ainda devolveu fedido…
despedida
Não foi difícil anunciar à família a decisão de ir embora, tomada naquele entardecer nas dunas, afinal eles sabiam de meus interesses e dos planos de ser escritor profissional. Expliquei aos meus pais que, juntando minhas economias com o seguro-desemprego e economizando bastante, eu me sustentaria por uns seis meses. E depois?, eles perguntaram. Depois a situação melhora, respondi, otimista.
Foi fácil largar a faculdade de Letras e o emprego na clínica. Deixar Fortaleza, minha loirinha desmiolada de sol, era uma ideia incômoda, mas suportável. Aos amigos em geral, Di Bedis e eu preferimos não dar detalhes sobre nossa decisão. À minha irmã Ana, preocupada com a violência no Rio, expliquei que nossos amparadores desviariam de nós as balas perdidas. Putz… Ainda hoje demoro a crer que dei esta resposta esdrúxula, mas você há de concordar que ela foi muito apropriada a um salvador do mundo.
Porém, largar a banda doeu muito. Assim como ocorreu com o Badauê, era um sonho que a vida arrancava de mim quando ele estava no auge. Martan sentiu-se abandonado, e eu tentei animá-lo, dizendo que ele saberia conduzir a banda, mas sabia que realmente estava abandonando meu grande amigo e parceiro. Sim, sei que a vida às vezes nos exige escolhas muito difíceis e que fiz o que precisava fazer, eu sei. Mas mesmo hoje, depois de tanto tempo, essa decisão ainda me dói.
o segurança alado da Tata
Janeiro de 1995. Três semanas após o encontro nas dunas de Aquiraz, Tata e eu pegamos o busão para o Rio de Janeiro. Em minha mala, algumas roupas, livros e, é claro, a camisa do meu Fortaleza Esporte Clube*.
Nas consultas oraculares que fizéramos ao I Ching, que era um constante companheiro de Tata e Eduarda, as mensagens eram positivas, mas alertavam para as dificuldades que enfrentaríamos. Se eu soubesse o tamanho delas, provavelmente teria desistido… Não conhecer o futuro tem suas vantagens.
Fortaleza-Rio de Janeiro, dois dias e duas noites de viagem por aquelas estradas esburacadas. E o ônibus cheio de crianças, com sua natural disposição a infernizar qualquer viagem… Percebendo minha tensão, Tata tentou me tranquilizar, revelando um segredo:
– Tenho um segurança espiritual, de outro planeta, que encontro em sonhos muito nítidos. Ele se chama Urke. Tem asas grandes, é forte, muito bonito…
– Hummm… Já entendi. Vocês têm um caso.
– Deixe de ser bobo.
Resumindo: na viagem, teríamos a proteção do Urke, que seria uma espécie de copiloto invisível, atento às curvas perigosas, aos buracos e aos bois na estrada, enfrentando vento, sol e chuva por dois dias seguidos, coitado. Eu, que seguia me esforçando honestamente para crer naquelas coisas, achei surreal, mas torci que Tata estivesse certa.
O fato é que, contrariando as possibilidades, a viagem foi uma das mais tranquilas que já fiz. E as crianças, uau, parecia que todas eram mudas, tamanho o silêncio. Urke deve ter tirado umas penas de suas asas e enchido a boca dos pimpolhos. Muito sábio o boy magia da Tata.
na estrada do meu destino
Naqueles dois dias de estrada, Tata e eu nos tornamos mais amigos. Éramos dois jovens sonhadores, que se moviam mais por intuições que pela razão, sem muito pé no chão, e ela possuía uma tal confiança na vida que eu ainda não tinha. Conversamos muito sobre seu livro, e tínhamos esperanças de que o IIPC aceitaria publicá-lo, o que poderia nos ajudar financeiramente. Lá, ela deixara uma cópia para as pessoas lerem, principalmente Waldo. Quanto a mim, eu queria escrever sobre aquelas coisas todas e sabia que precisaria primeiro frequentar mais o instituto e aprender mais. Porém, o dinheiro que tínhamos era pouco e, se quiséssemos nos manter no Rio, cidade com custo de vida mais alto que Fortaleza, algo teria que acontecer, e rápido.
– Não se preocupe, querido Líder – Tata dizia, sempre otimista. – Vai dar tudo certo.
– Se ao menos eu tivesse umas experiências lúcidas…
Tata sorria, entendendo minha posição. Eu começava a gostar mais dela e já não a achava tão esquisotérica delirante como antes, mesmo ela tendo um caso com seu segurança alado. E agora Tata tinha o status de velha amiga de outras vidas, ainda que eu não lembrasse, e isso contava muito.
Pela janela, as paisagens que passavam eram partes de mim que ficavam definitivamente para trás. Cinco anos antes, a fracassada experiência de Manaus me enchera de medo das grandes mudanças, e agora lá estava eu a enfrentar meus medos íntimos e a me lançar novamente nas estradas incertas do mundo, sem ter a mínima ideia do que me aguardava. Sim, eu sabia que se tudo desse errado, teria sempre a opção de voltar para a segurança de Fortaleza, mas a sensação que prevalecia era de que a vida começava naquele momento, e, apesar do medo, eu me sentia aliviado por ter aceitado o desafio.
Eu tinha 31 anos e trocava uma banda de rock que queria apenas diversão por um grupo esotérico que pretendia salvar o mundo. Bem, salvar o mundo era importante, mas, em meu sagrado egocentrismo, a prioridade era tornar-me escritor profissional.
Então, fechei os olhos e prometi a mim mesmo que a partir daí eu só trabalharia com o que gostava e que dedicaria todo o meu esforço para cumprir meu destino de escritor, custasse o que custasse. Eu não seria mais covarde. Promete, Ricardo? Prometo.
Ingenuidade? Romantismo? Na verdade, eu era o Louco, das cartas do tarô. Mas ainda não sabia.
trupe riponga da nova era
Tata, Cris, Di Bedis, Eduarda e eu éramos as atuais encarnações de Aidon, Orian, Taena, Andrija, ai, Andrija, e Alira – nesta crença baseava-se a união de nosso grupo. E entendíamos também que, se no século 14, Aaran era uma escola esotérica iniciática, agora, fim do século 20, o IIPC era sua versão modernizada, reencarnada no Brasil. Nosso plano, então, consistia em nos integrarmos a ele e ajudá-lo a guiar a humanidade em seu delicado momento evolutivo.
Nos meses anteriores, Tata e Eduarda, trabalhando como voluntárias na sede do Rio, no início da rua Santo Amaro, na Glória, observaram de perto o dia a dia do instituto e perceberam que em alguns aspectos ele poderia melhorar bastante. Um dia, porém, após saberem que vários computadores da sede foram roubados, deram-se conta de que algo muito sério acontecia… Como isso era possível, já que o IIPC tinha poderosos amparadores a protegê-lo? Elas passaram a desconfiar que o instituto estava sendo vítima de ataques de assediadores igualmente poderosos. Isso era muitíssimo sério. Assim como ocorreu com Aaran, o IIPC poderia enveredar por um rumo muito perigoso. Era preciso agir, e logo.
Nosso grupo era conhecido pelos professores e alunos que formavam o IIPC, pois, além do trabalho voluntário das garotas, havia alguns anos que fazíamos os cursos e Di Bedis ajudara a implantar a filial de Fortaleza. Eles nos viam com curiosidade, pois sabiam de nossa vida comum na Dinamarca, e lembranças de vidas passadas eram mais valorizadas quando coletivas. Porém, desconfiavam do nosso jeito de lidar com tudo aquilo, pois, diferente da abordagem fria e racional que o instituto ensinava, nós conferíamos um tom místico às nossas vivências, éramos emotivos, gostávamos de arte, valorizávamos a música nos exercícios, usávamos incenso e consultávamos oráculos, como o tarô e o I Ching. Para o IIPC, essas coisas eram muletas evolutivas, que podiam ser úteis por um tempo, mas deveriam ser logo descartadas.
Sejamos francos: com nosso jeitão largado e aloprado, estávamos mais para uma trupe de artistas ripongas da nova era que para pesquisadores sérios do IIPC. Se quiséssemos realmente fazer carreira lá, teríamos que rezar pela sua cartilha: mais intelecto e frieza técnica, e nada de arte, emoções e obscurantismos místicos. E, por favor, que nos vestíssemos melhor, uns modelitos mais sóbrios. É, não ia ser fácil.
Sim, éramos um grupo, com um pato desengonçado no papel de líder. Faltavam-me as capacidades sensitivas das garotas e os conhecimentos técnicos do Di Bedis, e eram muitas as dúvidas sobre o que vivíamos. Não passava um dia sem que me questionasse: eu realmente acredito ou, na verdade, quero que essas coisas sejam reais, mas não consigo crer? Apesar das dúvidas, eu me mantinha otimista e esperava que com o tempo eu desenvolveria as tais capacidades, e isso enfim traria a convicção que faltava.
com Beavis e Butt-Head
Chegando no Rio de Janeiro, Tata e eu ficaríamos, inicialmente, no apê do Alan, um amigo que mudara recentemente para o Rio, onde fazia mestrado em informática, e que também fizera cursos do IIPC em Fortaleza. Di Bedis já estava no Rio, hospedado com amigos, e Eduarda chegaria em alguns dias. Após ela chegar, procuraríamos um apartamento para morarmos todos juntos.
Porém, no dia seguinte à nossa chegada, Eduarda nos avisou que precisaria atrasar sua ida para o Rio em um mês, e isso nos obrigou a fazer a primeira mudança de planos em nossa missão de salvar o mundo. Decidimos que o melhor era Tata e eu ficarmos o primeiro mês em São Paulo, e lá eu a ajudaria a revisar seu Aaran, pois no apartamento havia um computador. Naqueles dias, ter um computador em casa era quase um luxo, e os celulares ainda engatinhavam, assim como a internet comercial. Di Bedis não gostou da ideia de nos afastarmos dele, mas teve que se conformar. Pobre Andrija.
O apê em São Paulo ficava no Paraíso, e nele Tata morara com os irmãos Alexandre e André antes de se mudar para Fortaleza, em 1992, e os pais moravam numa fazenda no Mato Grosso do Sul. Tata achou melhor eu dormir com ela em seu quarto, devidamente instalado num colchonete, e tratamos de harmonizar nossos horários de dormir e acordar para que o trabalho rendesse bem.
Alexandre e André eram dois caras tranquilos e divertidos, cultos, torcedores do Corinthians, clube do qual gosto muito, e me receberam bem. Mas… o que pensavam de mim e daquela situação?
Os manos não se ligavam muito em assuntos esotéricos, mas se divertiam com nossas histórias mirabolantes. No início, fiquei envergonhado, afinal não é todo dia que você tem que explicar para dois desconhecidos que você vai morar na casa deles porque você e a irmã deles integram um grupo que vai salvar a Terra e que você é o líder desse grupo… mas que você não está comendo a irmã de ninguém, de jeito nenhum.
Eu nunca passara por algo parecido. Mas os caras eram desencanados e logo relaxei, e pouco depois já dividia umas cervas com eles, rindo com os episódios de seus ídolos na MTV, Beavis e Butt-Head. Além disso, eles tinham amigos mais perturbados do juízo que nós. O fato é que, juntando as doidices de todos, formamos um pequeno e divertido hospício naquele apê do Paraíso.
muriçocas e periguetes
Durante quarenta dias, Tata e eu trabalharíamos juntos diariamente no Aaran, para a história ficar bem compreensível e com bom ritmo. Tata construíra seu romance sobre as lembranças que dizia ter, mas precisou preencher alguns trechos com fatos e diálogos inventados para poder montar a narrativa. Enquanto ela tendia para o tom didático e moralizante, eu puxava para o humor e, se possível, um temperinho de sacanagem…
– Pô, Tata, duas cenas pra explicar que Aidon transava com Orian e também com Andrija?
– Ué? E como seria?
– Elas chamam Aidon pra uma energização a três. Assim, você só precisa de uma cena…
– Ai, Líder, se eu deixar, você transforma meu romance numa suruba só.
– Boa ideia. Criaremos um novo gênero: pornô astral.
Dos amigos que leram o livro, todos comentavam que gostaram. Alguns gostavam até demais, a ponto de achar que também viveram em Aaran, o que nos deixava intrigados. Será que toda a comunidade de Aaran tivera o azar de reencarnar no Brasil? Ou aquilo era apenas efeito de uma boa história?
Eu gostava dos personagens, mas achava que Tata podia aperfeiçoá-los. Andrija, a favorita do meu harém, era uma maluquete declarada, com um pezinho gracioso no sapatinho da futilidade, e uma discípula sempre disposta a aprender um pouquinho mais em nossas aulas a três. Que adorável, não? Andrija não precisava mudar nada, estava perfeita, ai, Andrija. Porém, Orian carecia de uns ajustes, sim.
– Essa Orian é uma grande sonsa. A mim, não engana.
– Por quê, Líder?
– Pra começar, ela dança na Lua Negra vestida com uns paninhos transparentes. E falta às aulas pra ficar no nheco-nheco com um espírito gostosão, que, ainda por cima, numa vida anterior foi general romano.
– O que é que tem?
– Você quer que ela pegue fama de periguete do astral?
Tata analisou minha denúncia e achou melhor redefinir a personagem. Mas não muito. Orian continuou uma sonsa.
– E esse Muriçoca aí?
– Muriçoca, não, Muri. Respeite meu mestre.
Muri era um dos mestres fodões de Aaran. Mais velho, super-hipersábio e sempre tranquilo.
– Não posso chamar seu mestre de Muriçoca?
– Você tá com ciúme porque a Orian adora o Muri.
– Claro que não. Tô justamente defendendo o Muriçoca, pois você está sendo sádica com ele. O coitado precisa de oito capítulos e novecentos conselhos transcendentais pra molhar o biscoito com a Orian. Isso é tortura.
Tata analisou minha denúncia de sadismo feminino e concordou em diminuir a trabalheira do Muri. Ufa! O sindicato dos sábios de Aaran me deve essa.
anotando sonhos
Um caderno grosso de espiral, tendo na capa dura plastificada a imagem dos relógios derretidos de Salvador Dali. Na primeira página, a dedicatória que incluía uma fala do índio yaqui Don Juan, dos livros de Castaneda: Para mim, só existe percorrer os caminhos que tenham coração. No mundo do sonhar ou no mundo dos homens. Por qualquer caminho que tenha um coração. Por ali viajo e o único desafio que vale a pena é percorrê-lo em toda sua extensão. E por ali viajo, olhando, olhando… arquejante. D. Juan
E, finalizando: Bons sonhos, muchacho. 1 beijo, Tata
Foi um presente que ela me deu, para eu anotar meus sonhos. Que mimoso! Tata já me falara sobre a técnica de anotação de sonhos, indicada por psicólogos junguianos, da qual ela fizera uso quando de seu tempo de terapia, anos antes, e fora muito útil.
Para Jung, os sonhos são a contraparte da vida em relação à parte em que estamos acordados, e expressam o estado psíquico por imagens e narrativas simbólicas, cujos significados nem sempre são fixos, mas podem variar de acordo com as vivências do sonhador. Os sonhos são, assim, mensagens reais do inconsciente para a consciência, e saber interpretá-los ajuda o sonhador em seu processo de autoconhecimento e autorrealização, que Jung chama de individuação (e pelo qual todos passam, mesmo sem consciência dele) e Joseph Campbell chama de jornada do herói. Ainda que pareçam sem sentido para o sonhador, o registro dos sonhos pode dar ao psicólogo um utilíssimo material para que ele possa fornecer a melhor ajuda.
Em nossa disciplinada rotina de trabalho, Tata e eu nos deitávamos à mesma hora, com o despertador programado para tocar no meio da madruga. Fazíamos isso para conversar sobre o que estávamos a sonhar, a lembrança fresquinha, e após eu registrar no caderno, voltávamos a dormir. Mais de uma vez constatamos que sonhávamos a mesma coisa, o que podia indicar que estávamos juntos na dimensão espiritual, embora sem lucidez. E outras vezes, nos empolgávamos tanto no papo que perdíamos totalmente o sono.
dupla evolutiva
Nesse período, fui apresentado por Tata a três coisas que a partir de então norteariam minha vida: Jung, a filosofia taoista e o xamanismo, e aproveitei para ler uns livros que ela guardava no apê.
Na psicologia analítica de Jung, assimilei bem a ideia do Si-Mesmo (Self) como centro ordenador da psique total (consciência + inconsciente), algo como o eu maior, e também do ego, o eu menor, como centro da parte consciente. É no Si-Mesmo que se guardam as potencialidades do ser, feito um código que necessita ser ativado pela consciência. O processo de individuação é, portanto, a efetivação do eu potencial em toda sua totalidade, capacitando o indivíduo a viver, finalmente, suas verdades mais íntimas e a se harmonizar consigo mesmo, com as outras pessoas e com toda a realidade.
Na milenar filosofia taoista*, me identifiquei muito com as ideias de unicidade cósmica, de yin e yang e de nos harmonizarmos com a realidade por meio da superação dos opostos, do crescimento cíclico e do equilíbrio dinâmico.
No xamanismo*, comecei pelos livros de Carlos Castaneda, que Tata amava desde a adolescência. Li os dois primeiros, mas como eles não me empolgaram tanto como Jung e o taoismo, preferi prosseguir a leitura em outro momento. Havia tantos livros para ler, tantas ideias a conhecer…
Uma noite, saímos para um bar próximo e tomamos uns chopes, e rimos muito da insistência de Eduarda e Di Bedis sobre sermos uma dupla evolutiva. Eu brinquei, lembrando que minha última namorada fora bailarina, e, assim, faria sentido que minha namorada seguinte fosse a dançarina principal de Aaran, né?
Na volta para casa, caminhando pela avenida Paulista, Tata de repente parou. Achei que ela esquecera algo no bar, mas não era isso. Ela falou:
– Ricardo, me dá um beijo.
– Como assim? – perguntei, surpreso.
– Anda, me dá um beijo.
– Aqui? Agora?
– Vamos descobrir logo se somos ou não uma dupla evolutiva. Não aguento mais essa cobrança.
Foi assim que, seiscentos anos depois, a dançarina Orian e o viajante Aidon voltaram a usar lábios e línguas para trocar energias. Num estranho país dos trópicos chamado Brasil. Em plena Paulista, iluminados pelas luzes dos automóveis.
No fim, eles se afastaram e se olharam desconfiados:
– É, Líder, não tem jeito.
– Não somos dupla evolutiva, Tata.
– Pelo menos, tentamos.
E saíram caminhando abraçados, rindo das vidas.
os cearenses dominarão o mundo
– Vocês me abandonaram! Isso é sacanagem! Cadê a cosmoética?
O protesto era do pobre do Di Bedis, que todo dia telefonava do Rio, enfrentando os orelhões quebrados da Telerj, para reclamar que eu e Tata estávamos demorando demais para voltar. O jeito foi chamá-lo para passar uns dias em São Paulo. No dia seguinte, ele chegou e, assim como fizera comigo, Tata o instalou em seu quarto, que virou de vez um acampamento. Seiscentos anos depois, Aidon, Orian e Andrija dormiam juntos novamente, agora no Paraíso… Era muita emoção para mim.
Alexandre e André gostaram também do Di Bedis, até porque é mesmo difícil não gostar de seu jeitão Di Bedis de ser. Porém, quando Cris nos visitava, nossos papos esquisotéricos rapidamente afugentavam os irmãos da Tata, o que provava que eles eram muito mais ajuizados que nós.
Nessa época, Salviano, amigo meu e do Di Bedis, ator comediante, estava em cartaz em São Paulo com um espetáculo de humor. Que boa coincidência! Fomos ver o espetáculo e adoramos, e Tata o convidou para ir nos visitar.
– Melhor você não fazer isso – Di Bedis a alertou.
– Por quê?
– É, Tata, não faça isso.
– Gente… Mas por quê?
Tarde demais. Salviano já aceitara o convite.
Para quem não sabe, melhor explicar. Um cearense sozinho longe do Ceará geralmente fica quieto e acabrunhado, que nem caramujo. Mas se dois cearenses se encontram aí pelo meio do mundo, tudo vira piada e a festa só termina na segunda-feira. Porém… se eles encontram um terceiro cearense, você pode ter certeza que toda a fulerage, alopração e baixaria do universo estarão concentradas nesse encontro. Pois bem, Tata acabava de evocar, para dentro do apê de sua família, o melhor do pior da espécie humana.
Sabe aquela velha profecia que diz que um dia os cearenses dominarão o mundo? Alguns afirmam que eles já dominam, mas fazem todos rirem deles para ninguém desconfiar de nada. Pois bem. Quando Salviano foi nos visitar, Tata e seus irmãos tiveram uma pequena mostra de como será o mundo quando os cearenses tomarem o poder. Por uma tarde inteira, os três riram das nossas piadas e de todas as marmotas e barbaridades que falamos, e riram até passar mal e nos pedir, por favor, para parar.
– É melhor vocês não tomarem o poder – comentou Tata, o estômago doendo. – Vão matar todo mundo de rir.
Melhor morrer de rir que morrer na guerra. Né não?
tropeçando em espíritos
As semanas em São Paulo foram de muito trabalho, mas foram divertidas e até inspiradoras. Um dia, enquanto via, com Tata e Cris, o filme Highlander, com o ator Christopher Lambert, eu tive uma ideia para um livro. Seria um romance, que falaria de busca pessoal e trataria daqueles assuntos com que lidávamos, numa linguagem descontraída e sem caretices. Então, fiz um esboço da história, sem certeza de que poderia mesmo virar livro. Sim, viraria, e se chamaria O Irresistível Charme da Insanidade, mas, naquele momento, a única certeza que eu tinha era de que precisava urgentemente de um computador para mim.
Outra coisa boa que aconteceu foi conhecermos Wagner. Ele era conhecido no meio esotérico por dominar bem suas experiências fora do corpo, e havia sido parceiro do Waldo antes de se desentenderem anos antes. Em São Paulo, montara seu próprio instituto num espaço na Vila Mariana, o Reviver, onde fazia palestras e cursos. Para Wagner, que se dizia espiritualista sem religião, essas coisas sobrenaturais eram tão rotineiras como escovar os dentes: ontem, me encontrei com uma entidade hindu e ela me passou este texto, aí Ramatis veio me contar uma piada, e quando saí do banheiro, tropecei num espírito… As experiências que ele relatava me pareciam exageradas, mas gostei de seu jeito bem-humorado, muito diferente da sisudez dos professores do IIPC.
Vimos duas palestras de Wagner, depois conversamos com ele e Tata entregou-lhe uma cópia de seu livro. Os amparadores haviam dito que ela deveria fazer isso. Ela ainda não sabia o motivo, mas logo descobriria.
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. Em 2018, com o sucesso do nosso recém-criado bloco Simpatizo Fácil e da camiseta É Golpe no Brasil!, que vendeu mais de mil unidades e foi copiada em várias cidades do Brasil, eu, Vaninha e Paulo Henrique pensamos que seria ótimo termos um espaço físico para algumas atividades do bloco. Procuramos um local adequado em Fortaleza, com condições favoráveis para investimento, mas não encontramos.
Eis que em julho de 2020, em plena pandemia de Covid-19, a oportunidade nos aparece, e decidimos segurá-la, mesmo cientes dos riscos envolvidos. E assim, no fim de agosto, o Simpatizo Amor de Bar iniciou suas atividades, atento às orientações sanitárias. Localizado numa bucólica esquina da área central da Aldeota, nosso bar nasceu com a ideia de não ser apenas um lugar de entretenimento, mas também, seguindo a filosofia do bloco, um espaço de valorização da arte e da nossa cultura, tendo como bandeiras a defesa da democracia, a luta por justiça social e a liberdade de sermos quem somos.
Queremos que nosso bar seja também uma referência para a cena artística e literária de Fortaleza, um lugar sempre de braços abertos para receber e celebrar artistas e escritores, um ponto de encontro de todos que fazem, sonham e vivem arte. Seguindo esse lema, daremos atenção especial a lançamento de livros e exposições, oferecendo nossa estrutura física e de divulgação para os autores e os artistas que desejam divulgar sua obra.
Trinta e um anos após o Badauê, que tive na Praia de Iracema com os sócios Paulo Marcio e Nelsinho, eis que sou novamente dono de bar. Os tempos são outros, muita coisa mudou, e eu envelheci, mas ainda sou aquele cara idealista e um tanto ingênuo, que sonha em contribuir para a cultura de sua terra e reunir velhos amigos para celebrar a vida. Espero você em nossa esquininha.
SIMPATIZO AMOR DE BAR Instagram: @simpatizoamordebar Rua Sabino Pires, 6 – Aldeota esquina com Leite Albuquerque, ao lado do Frangolândia
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Se tem uma coisa que não é nada criteriosa em relação aos atributos dos candidatos, é a felicidade. Qualquer idiota pode ser feliz
MOMENTOS FELIZES
. Sabe o que eu acho, meu amor? Que a felicidade não passa de uma preocupação inútil, que inventaram para vender margarina, casamento e previdência privada. Aliás, se tem uma coisa que não é nada criteriosa em relação aos atributos dos candidatos, é a felicidade. Qualquer idiota pode ser feliz, já percebeu?
Desculpa falar assim a essa hora do domingo, você ainda de camisola, mal saída de seus sonhos azuis. É que essa pandemia, tanta gente morrendo… A morte à espreita tem me feito questionar a vida. E se a felicidade for um terreno no céu, que passamos a vida inteira a pagar, sem receber sequer um recibo? Vem logo que o café está esfriando.
Olha, certíssimo está Odair José, que há quarenta anos nos diz, na sabedoria simples de sua canção, e que ainda ontem ouvíamos no meio do nheco-nheco, lembra?, felicidade não existe, o que existe na vida são momentos felizes. É tão óbvio, mas tão óbvio… que não captamos. Tivéssemos entendido, não desperdiçaríamos a vida suando desesperadamente para ser feliz, como se a felicidade estivesse sempre a dez metros no futuro, e jamais no aqui do agora. Acabou o adoçante.
Vem, me dá um abraço bem acochado e esqueçamos desse negócio de ser feliz. Vamos parar de pagar o terreno no céu. Em vez da tal felicidade, que ninguém sabe que horas vai chegar ou se ficou mesmo de vir, melhor viver a vida hoje, vivendo as nossas verdades mais íntimas enquanto estamos vivos, antes que venha uma nova pandemia e nos extermine como a baratas inconvenientes. Você viu minha chinela?
Meia hora depois, nós nos despedindo na pracinha, ela me perguntou: Se eu viver as minhas verdades mais íntimas, isso me fará feliz, ou apenas estarei sendo honesta comigo mesma? Ela ali sob a luz suave da manhã, o vento a brincar com seu cabelo, o olhinho dela ainda sonolento pela noite que mal dormimos, tão linda… Suspirei, sem saber o que dizer. Quem me salvou do silêncio inquisidor foi o ônibus, que chegou zuadento a abrir suas portas. Sábado você me responde, ela falou, enquanto baixava nossas máscaras para o derradeiro beijo. Lá dentro, fez coraçãozinho com as mãos, e achei gracioso, como não achar? O ônibus saiu e eu o acompanhei correndo pela calçada, feito um idiota feliz. Outros passageiros viram a cena ridícula, mas ela não, já havia sentado.
Voltei para casa pensando nisso. Seriam os cães felizes exatamente por correrem atrás dos carros sem perceberem a inutilidade do que fazem?
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ODAIR JOSÉ – A NOITE MAIS LINDA DO MUNDO
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. Em 2018, o bloco Simpatizo Fácil, de Fortaleza, homenageou Diego Armando Maradona com uma provocativa camiseta que estampava uma marcante característica do craque portenho: o engajamento político. Antenado com as questões sociais de seu tempo, o hermano fez questão de demonstrar seu apoio a Lula, unindo-se às forças de resistência contra a perseguição ao ex-presidente e diferenciando-se de Pelé, que na política tem o feio hábito de vestir todas as camisas. Gracias, Dieguito. Hasta la victoria siempre!
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. Nos próximos dias, em Fortaleza e cidades próximas, farei o lançamento do meu livro VIAJANDO NA MAIONESE ASTRAL – Memórias exóticas de um escritor sem a mínima vocação para salvar o mundo (formato físico). Os eventos seguirão as orientações sanitárias. Para quem preferir, posso enviar pelo correio.
O livro está disponível para venda também no formato eletrônico (em PDF e na Amazon).
– Livro físico: R$ 30. Para quem participou da pré-venda: R$ 25 – Livro físico pelo correio: R$ 40. Para quem participou da pré-venda: R$ 35 – PDF com dedic. personalizada: R$ 9
– Na Amazon (kindle): R$ 9 – Edição conjunta (PDF com dedic ou na Amazon, kindle) Viajando na Maionese Astral + Quem Apagou a Luz?: R$ 15
AGENDA
– 12nov, quinta-feira, 19h, no Simpatizo Amor de Bar. Com show com Moacir Bedê, Fábio Amaral e Rodrigo BZ – 13nov, sexta-feira, 19h, no Simpatizo Amor de Bar. Com DJ Estácio Facó – 14nov, sábado, 19h, no Simpatizo Amor de Bar. Com DJ Albano Seletor – 17nov, terça-feira, 19h, no Abaeté Boteco. Com DJ Alan Moraes – 18nov, quarta-feira, 19h, no Simpatizo Amor de Bar. Com show de Os Transacionais – 20nov, 19h, em Paracuru-CE (Centro) – 26nov, 19h, no Bar Serpentina. Com show de Moacir Bedê e Fábio Amaral – 27nov, 19h, no Simpatizo Amor de Bar. Com DJ Estácio Facó – 02dez, 19h, no GB. Música ao vivo com Dedé Nunes – 03nov, 19h, no Simpatizo Amor de Bar. Com DJ Estácio Facó – 04dez, 18h, no Cantinho do Frango. Com DJ Alan Morais – 18dez, 18h, no bar Alpendre. Música ao vivo com Ricardo Barsotelli .
VIAJANDO NA MAIONESE ASTRAL Memórias exóticas de um escritor sem a mínima vocação para salvar o mundo
Miragem Editorial, 2020
Enquanto relembra as pitorescas histórias de quando largou uma banda de rock para liderar um aloprado grupo esotérico e lançou-se como escritor com um livro espiritualista de sucesso (Quem Apagou a Luz? – Certas coisas que você deve saber sobre a morte para não dar vexame do lado de lá) que depois renegou, o autor fala, com bom humor, sobre sua suposta vida no século 14, carreira literária, amores, sexo, drogas ilegais, prostituição e crises existenciais, reflete sobre sua relação com o feminino, o xamanismo, a filosofia taoista e a psicologia junguiana e narra sua transformação de líder de jovens católicos em falso guru da nova era e, por fim, em ateu combatente do fanatismo religioso e militante antifascista.
Quem Apagou a Luz? Certas coisas que você deve saber sobre a morte para não dar vexame do lado de lá
(ensaio)
Lançado em 1995, este livro resume, numa linguagem descontraída, as crenças e vivências que norteavam o grupo esotérico do qual o autor participou nos anos 1990, abordando temas como experiências fora do corpo, reencarnação, vida após a morte, extraterrestres e guias espirituais.
A partir de 2000, quando o autor assumiu seu ateísmo, este livro deixou de ser publicado, interrompendo uma trajetória de sucesso. Porém, em 2020, para divulgar seu livro Viajando na Maionese Astral – Memórias exóticas de um escritor sem a mínima vocação para salvar o mundo, ele decidiu relançá-lo numa edição especial, junto com o Maionese.
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. Nós, do coletivo Flor de Resistência, estamos muito felizes. O segundo livro do nosso projeto será lançado neste mês de outubro, em Fortaleza, primeiramente no Simpatizo Amor de Bar (Aldeota) e depois em outros espaços, sempre seguindo as orientações sanitárias relativas à pandemia de Covid-19.
Organizado por mim e Alan Mendonça, o livro, assim como no primeiro volume, traz textos, desenhos e fotos de diversos escritores e artistas reunidos sob os temas democracia, cidadania, direitos humanos, justiça social e ecologia/sustentabilidade. O projeto não tem fins lucrativos, e uma parte da tiragem é vendida (R$ 5) e a outra parte é distribuída entre a população que trabalha ou mora nas ruas. Este segundo volume conta com o apoio de Transforme Coworking e Feira Funerária Brasil.
PARTICIPANTES DESTE VOLUME
Alan Mendonça, Alana Girão de Alencar, Alberto Perdigão, Aluísio Martins Rodrigues, Alves de Aquino, Bruno Paulino, Carlos Nóbrega, Carlos Vazconcelos, Chico Araújo, Cleudene Aragão, Francélio Alencar, Jansen Viana, Kelsen Bravos, Laodicéia A. Weersma, Leite Jr., Léo de Oliveira, Levy Motta, Lidia Valesca, Luciano Dídimo, Magna Maricelle, Mailson Furtado, Marcos Oriá, Meire Viana, Pantico Monteiro, Ramos Cotôco, Renato Pessoa, Ricardo Kelmer e Roberta Laena.
SIMPATIZO AMOR DE BAR
Rua Sabino Pires, 6 – Aldeota – Fortaleza-CE
. Ricardo Kelmer 2020 – blogdokelmer.com
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APOIO
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O barco kelmérico tá meio avariado, admito, e ainda não me acostumei totalmente com o eu que não mais sou e até dia desses ainda era
A FUGAZ ETERNIDADE DO AGORA
. Povo da minha aldeia. Hoje, 21out, guardo mais um aninho no baú das vivências. Putz, foi um ano difícil, viu? Várias tormentas por atravessar. O barco kelmérico tá meio avariado, admito, e ainda não me acostumei totalmente com o eu que não mais sou e até dia desses ainda era – estará o sátiro incansável evoluindo pra velhote safado? Bem, o fato é que cá estou eu, sobrevivido no agora pra contar a história.
Foi em meio à tormenta, porém, que coisas boas aconteceram. Consegui finalizar meu livro de memórias exóticas (Viajando na Maionese Astral, em fase de pré-venda), o livro que abre o terço final da minha jornada. E, pra minha sorte, Tereza Lana tá ao meu lado, e adoramos parar na estrada só pra capturar a fugaz eternidade do nosso poético agora. Obrigado, amada.
A outra novidade é o Simpatizo Amor de Bar, que montei com Vaninha e Paulo Henrique. Com ele, além de proporcionar entretenimento às pessoas, pretendo contribuir um pouco mais pra cena cultural e literária de Fortaleza, a minha loirinha desmiolada de sol. Como você pode ver, o tempo não desbotou meus idealismos, que bom.
Estarei no bar na quinta e na sexta, quem puder, apareça. Quem não puder, brinde aqui mesmo comigo ao agora, esse relâmpago de tempo tão implacavelmente fugaz.
SIMPATIZO AMOR DE BAR
22out, quinta-feira: Show com Moacir Bedê, Natasha Faria e Fábio Amaral
23out, sexta-feira: DJ Estácio Facó
Quarta a sábado, 17h a 23h
Rua Sabino Pires, 6 – Aldeota – Fortaleza-CE
esquina com Leite Albuquerque, ao lado do Frangolândia
. Ricardo Kelmer 2020 – blogdokelmer.com
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Culpado por estupro, Robinho diz que Deus está no comando e que fará um gol para homenagear Jair Bolsonaro
. ROBINHO, BOLSONARO, DEUS E A CULTURA DO ESTUPRO
. A pressão funcionou: temendo perder seus patrocinadores, o Santos Futebol Clube desistiu de contratar o jogador Robinho, que foi condenado na Itália, em primeira instância, a nove anos de prisão por participar de estupro coletivo contra uma jovem de 23 anos no camarim de uma boate. Pelo relato do próprio Robinho, ele “apenas” pôs o pênis em sua boca. “Estou rindo porque não estou nem aí, a mulher estava completamente bêbada, não sabe nem o que aconteceu”, contou o jogador a um amigo, segundo consta no processo.
Robinho culpou a Rede Globo por persegui-lo, disse que ela está a serviço do Diabo e que Deus está no comando de sua vida, e afirmou ainda que fará um gol e homenageará seu ídolo Jair Bolsonaro, aquele que falou para uma mulher que não a estupraria porque ela não merecia, e que se gaba de ter feito quatro filhos homens, mas no quinto deu uma fraquejada e nasceu uma mulher.
No mundo ainda muito machista do futebol, coisas abomináveis acontecem e não vêm a público. É uma bolha, onde imperam leis mafiosas que visam defender o jogador mau-caráter, especialmente quando ele é rico e famoso e as ocorrências envolvem mulheres. Esse caso do cristão e cidadão do bem Robinho é típico, e quando ele, canalhamente, busca refúgio na religião e evoca o auxílio do presidente misógino e fascista, o caso revela-se em toda sua podridão e expõe a tragédia moral de uma sociedade que elegeu como presidente a aberração de nome Jair Bolsonaro.
Que as torcidas antifascistas (como a Resistência Tricolor, do Fortaleza, da qual eu e minha namorada fazemos parte) e os torcedores conscientes cobrem de seus clubes, cada vez mais, a postura correta, não apenas em relação à cultura do estupro e à violência contra a mulher, mas a todas as formas de preconceito e opressão.
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Após ter uma visão do futuro, no qual o mundo, em 2022, sofria com uma devastadora pandemia virótica e o Brasil, sob um governo neofascista, padecia numa violenta convulsão social, Adélio decide agir para impedir que Jail Bozonaro, um militar reformado com ambições políticas, torne-se presidente do Brasil
AS DUAS MORTES DE JAIL BOZONARO
. A placa na estrada nos avisa que logo chegaremos ao nosso destino, a cidade de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Eu dirijo o carro, e Kátia, minha namorada está comigo. Ela é fotógrafa e fará as fotos da entrevista para a matéria que estou escrevendo para uma revista. Olho para ela e percebo sua apreensão. É compreensível, afinal é a primeira vez que fotografará um assassino.
– Está com medo, meu amor?
– Um pouco… – ela responde, forçando um meio-sorriso. Em seu colo, repousa sua bolsa com os equipamentos.
– Relaxe. Ele ficou muito tempo numa prisão. Certamente, não deve estar com vontade de voltar.
Kátia fecha os olhos por alguns segundos e solta um forte espirro.
– Saúde! – eu digo, oferecendo-lhe a caixinha de lenços de papel.
– Obrigado. Acho que vou gripar.
Ela assoa o nariz com o lenço e o deposita no saquinho que serve de lixeira.
– Leandro, você acha que ele é louco?
Demoro um pouco a responder. É exatamente sobre isso que eu matutava momentos antes.
– Não sei.
O homem que iremos entrevistar cometera um assassinato vinte anos antes, em 1990, na cidade do Rio de Janeiro, e, por ter sido diagnosticado como portador de transtornos mentais, foi considerado inimputável e enviado a um manicômio judiciário, onde ficou por vinte anos. Eu o conheci lá, um ano atrás, quando entrevistava alguns internos para uma matéria. Ele veio espontaneamente falar comigo, perguntou se eu era jornalista e, após minha confirmação, disse que quando estivesse em liberdade, o que ocorreria em alguns meses, gostaria de me contar sobre seu caso. Dei-lhe meu número de telefone e pedi que entrasse em contato. Naquele momento, ele não me pareceu ser louco, mas um homem calmo e equilibrado. Então, dois meses atrás, ele me telefonou e marcamos um encontro. Aproveitei esse tempo para estudar seu caso e li todo o processo.
– Ainda acho que você deveria ter me contado que viríamos encontrar um assassino.
– Se eu contasse, Kátia, você não estaria agora comigo – respondo e belisco sua bochecha para ajudá-la a relaxar.
– O que você vê de tão interessante no caso dele?
– Seu depoimento é muito curioso e o caso tem algumas inconsistências. Em nosso encontro no manicômio, ele me falou que contaria toda a verdade.
– Espero que essa entrevista passe bem rápido.
– Fique tranquila, meu amor. Todos com quem falei na administração do manicômio me garantiram que ele é de índole pacífica e que sempre se comportou muito bem durante sua estadia lá.
Entramos na cidade e logo chegamos ao endereço, num bairro periférico. Paro o carro em frente ao portão da casa e, no jardim, uma mulher de meia idade nos espera. Ponho a cabeça para fora da janela, para que ela me veja. Ela acena, sorridente, e abre o portão.
– A senhora deve ser a dona Marisa – digo, após parar o carro e descer.
– E você deve ser o Leandro – ela responde, simpática, ajeitando o cabelo solto. Veste um vestido simples vermelho e calça chinelo de dedo. Parece ser uma mulher elegante.
– Sim, e ela é a Kátia, nossa fotógrafa.
– Sejam bem-vindos. Adélio está esperando por vocês. Venham, por favor.
Seguimos Marisa pelo jardim, por um caminho de pedrinhas entre a grama. É um terreno pequeno, com a casa ao centro. Muitas árvores e plantas de folhas coloridas, com borboletas saltitantes a alegrar ainda mais a paisagem. Deve ser um lugar gostoso para se viver, longe da confusão das grandes cidades. Olho para Kátia e ela parece mais relaxada, admirando a beleza do lugar.
Passamos por uma varanda e entramos na sala. Ao nos ver, Adélio caminha até nós, sorridente. Está descalço e vestido com bermuda e camiseta brancas.
– Leandro! Bom ver você novamente.
– Igualmente, seo Adélio. Esta é Kátia, minha namorada.
– Muito bom gosto você tem, rapaz.
– Ela também tem bom gosto – diz, por sua vez, Marisa, e todos rimos.
– Sentem-se, fiquem à vontade. Se quiserem usar o banheiro, é aquela porta. Aceitam algo para beber?
– Água, por favor – respondo, e Kátia pede o mesmo.
Enquanto Marisa vai à cozinha, eu e Kátia nos sentamos no sofá, e Adélio numa das poltronas. A decoração da casa é simples e o ambiente é aconchegante. À minha frente, está um simpático senhor de sessenta e quatro anos, alto e forte, que durante os últimos vinte anos viveu internado num manicômio, sob tutela do Estado, e que há dois meses foi desinternado para ser reintegrado à sociedade. Parece bem de saúde, e movimenta-se com tranquilidade.
De repente, um gato preto salta sobre a poltrona vazia e me assusto. Adélio ri, e Kátia também.
– Essa aí é a Amanda. Veio lhes dar as boas-vindas.
– É linda – diz Kátia, admirando o bichano.
– Não se preocupem, ela é mansinha. Vai ficar um tempo aqui e depois irá para o jardim caçar borboletas. Não me alegra a morte das borboletas, mas procuro me consolar imaginando que elas já morreram uma vez, quando eram lagartas, e talvez estejam acostumadas.
Marisa chega trazendo uma bandeja com três copos e uma jarra com água, e a põe sobre a mesinha de centro, sentando-se em seguida na poltrona. Amanda se acomoda em seu colo. Retiro da mochila o gravador e um caderno.
– Acho importante dizer, inicialmente – Adélio fala –, que Marisa e eu não nos importamos se as pessoas vão acreditar ou duvidar da nossa história. Decidimos contar porque achamos que ela pode ser útil para o mundo em que vivemos.
– Perfeitamente – digo, sentindo a solenidade emanada por suas palavras. – Gravarei nossa conversa e, enquanto conversamos, Kátia fará algumas fotos. Podemos começar?
– Antes, me digam, por favor, em que ano vocês nasceram – pede seo Adélio.
– Nasci em 1970 – respondo eu.
– No auge da ditadura militar.
– Sim. Escapei por pouco de seus horrores.
– Sorte sua.
– Eu sou de 1979 – responde Kátia.
– Ano em que o Pink Floyd lançou The Wall.
– Gosto muito deles.
– Não liguem – comenta Marisa. – É mania de historiador.
– Bem, agora que finalmente conheço vocês, acho que estamos prontos – Adélio diz, piscando o olho para a esposa.
Ligo o gravador sobre a mesinha e posiciono o caderno em meu colo.
– Seo Adélio, por que o senhor matou o vereador Jail Bozonaro?
Adélio ajeita-se na poltrona, junta os dedos das mãos pelas pontas, cada dedo com o seu correspondente da outra mão, e fecha os olhos. Respira algumas vezes. Penso que talvez ele esteja se concentrando para reavivar as memórias ou selecionando o que exatamente irá me contar. Olho para Marisa, que olha para mim e sorri, fazendo um gesto para eu aguardar. Um minuto depois, Adélio abre os olhos e pergunta:
– Estamos em que ano?
– Estamos em 2010, meu amor – Marisa responde, como se já aguardasse pela pergunta. E, olhando para mim e Kátia, fala baixinho: – É assim mesmo, ele está bem.
– Sim, 2010… – prosseguiu Adélio, agora olhando para o jardim pela porta aberta – Naquele tempo, 1988, Marisa e eu éramos um casal de namorados com a idade de vocês dois. Morávamos juntos, no Rio de Janeiro. Eu era professor de História em cursinho de pré-vestibular e ela era assistente social. Eu já era louco por ela, como sempre fui.
– E eu por ele – Marisa emenda.
Eles se olham com carinho e sorriem. A relação deles parece ser bastante harmoniosa.
– Numa certa noite, Marisa me acordou no meio da madrugada porque eu estava chorando. Eu havia tido um pesadelo. Nele, eu estava no Brasil, trinta e quatro anos depois, em 2022.
– O senhor sonhou que estava no futuro? – perguntei, enquanto Kátia buscava novos ângulos para suas fotos.
– Podemos chamar de sonho, mas era real. Eu acessei o futuro. Eu, realmente, estava lá.
Adélio fica olhando para mim, com uma expressão de quem diz algo óbvio. Fico um pouco desconcertado.
– Não se constranja, por favor. Sei perfeitamente que o que conto é muito estranho. Você tem todo o direito de achar que foi apenas um sonho.
Sorrio, e me ajeito no sofá, atento.
– Eu estava no futuro, mas naquele momento, era o presente, e eu me sentia absolutamente lúcido. Naqueles dias, em 2022, o Brasil vivia uma situação terrível. Um vírus surgido na China se alastrara em poucas semanas pelo mundo inteiro, contaminando milhões de pessoas e afetando a economia de todos os países. No Brasil, o sistema de saúde, tanto o público como o privado, entrou em colapso, sem conseguir atender os doentes. Um milhão já haviam morrido.
– No mundo?
– Apenas no Brasil. A doença foi batizada de covid-19, e matava em poucos dias. No Brasil, o enfrentamento da pandemia foi prejudicado pela negligência do governo federal, que se preocupou mais com a economia que com a vida das pessoas, e temia que medidas rígidas de isolamento social, como foram feitas na Europa, prejudicassem as atividades econômicas. Por incrível que pareça, o governo assumiu a postura de negacionista do vírus, surpreendendo o mundo. Alguns governos estaduais se contrapuseram ao governo federal e insistiram nas medidas, instituindo quarentenas, fechando o comércio e obrigando o uso de máscaras higiênicas, e as duas posições antagônicas confundiram a população. A maior parte desaprovava o governo e apoiava as medidas rígidas, mas os que não apoiavam, geralmente da classe empresarial, sabotavam como podiam os esforços dos governadores e prefeitos, para que a população se revoltasse contra eles. Como você pode ver, era um sonho muito detalhista.
– Sim, bastante… – concordo, e realmente estou surpreso com tantos detalhes. – Prossiga, por favor.
– Além da crise sanitária, havia também a crise econômica, que perdurava havia alguns anos e se agravara com a pandemia. Como se não bastasse, o país vivia uma forte crise política, com um governo de extrema-direita de orientação fascista, militarista e evangélica, que fora eleito numa eleição que se revelaria fraudada e que agora aparelhava ideologicamente o Estado para corroer, dia após dia, as bases da democracia no país. O governo tinha o apoio do capital financeiro, das grandes igrejas evangélicas e de parte das polícias estaduais, e, apostando no caos institucional, buscava armar a população para poder contar com milícias organizadas em sua defesa. Aliado incondicional de Estados Unidos e Israel, e se inspirando em governos autoritários de direita, o governo contrariou a tradição diplomática brasileira e rompeu com a ONU, a OMS, os BRICS, o Mercosul, a Unasul, o Vaticano, os árabes e os chineses. O governo perseguia implacavelmente os opositores, e vários políticos, artistas, cientistas e intelectuais se viram forçados a sair do país, temerosos por sua segurança. Os partidos de oposição tentavam reagir, o poder judiciário freava como podia os ímpetos autoritários do governo e a imprensa se dividia entre críticas ao autoritarismo e apoio às medidas econômicas ultraliberais que tiravam direitos dos trabalhadores e devastavam a Natureza em nome da exploração comercial.
– Desculpe interromper, seo Adélio… – falo, procurando não ser ríspido – Talvez estejamos desviando da minha pergunta.
– Pelo contrário, estou indo direto ao ponto – ele rebate, piscando um olho para a esposa.
– Acho até que você está sendo conciso demais – ela concorda, sorrindo para o marido, e por um instante tenho a impressão de que brincam comigo.
– O presidente, um ex-militar que quase fora expulso do Exército, se dizia enviado por Deus para liderar o Brasil. Ele e seus três filhos políticos, que agiam como ministros tresloucados, eram defensores da ditadura militar, idólatras assumidos de torturadores assassinos e propagavam teorias paranoicas anticomunistas. Posavam para fotos com armas e praticavam discursos de ódio, incitando seus apoiadores contra as instituições e os opositores, e mantendo-os atiçados para irem às últimas consequências na defesa do governo, que contava com uma rede de distribuição sistemática de mentiras e notícias falsas. A situação do Brasil se tornara grotesca e surreal.
Adélio faz uma pequena pausa e esfrega o rosto com as mãos.
– Finalmente – ele retoma a história –, as reações se tornaram mais articuladas: muitos apoiadores do governo se afastaram e aumentaram as cobranças para punição aos crimes cometidos pelo presidente e seus filhos, que eram a cada dia mais evidentes, e eles foram denunciados. Percebendo que fatalmente seria afastado do cargo, o presidente tentou um golpe com apoio da ala militar de seu governo e as polícias milicianas dos Estados. O alto escalão das Forças Armadas não o apoiou e ele se refugiou no Palácio do Planalto com um grupo de apoiadores. Uma situação absurda, que escandalizou o mundo. Enquanto isso, nas cidades do país inteiro, grupos pró e contra o governo brigavam nas ruas. O Brasil mergulhara numa convulsão social.
Adélio faz outra pausa. Olho para Kátia e ela está sentada no braço do sofá, atenta ao relato.
– O presidente se chamava… Bozonaro.
– Jail Bozonaro – completa Marisa.
Finalmente, penso eu. Parece que chegamos ao ponto central da questão.
– Bozonaro resistiu, mas vendo que seria preso e julgado até por crimes contra a humanidade, preferiu o suicídio, atirando na cabeça. Mas, antes, matou a esposa. Morreu com uma arma na mão e a bíblia na outra.
Adélio para de falar e toma um gole dágua. Há um certo peso no ar.
– E a pandemia? – indago.
– Levaria muito tempo para ser totalmente controlada, pois sempre surgiam novas ondas que obrigavam a novas medidas para contenção. Foi uma imensa tragédia, que aumentou a distância entre ricos e pobres, mas que fatalmente faria a humanidade repensar muitas coisas, como a questão ecológica, os sistemas de saúde e seguridade social, as relações de trabalho, as leis de mercado…
– E vocês?
– Marisa e eu éramos um casal de velhinhos saudáveis, sem filhos, que gostava de passear na praça ao entardecer e de tomar vinho na varanda admirando as estrelas. Mas, agora, a vida se resumia a se proteger da pandemia e do caos social. Agora, o que víamos eram os confrontos nas ruas, muito desespero. Um dia, passou em frente ao nosso prédio uma carreata de apoio a Bozonaro, com muitas pessoas armadas, e um homem com a camisa da seleção brasileira de futebol deu vários tiros para o alto. Um deles atingiu Marisa, que estava na varanda. Foi assim que perdi minha companheira.
– Ela morreu? – Kátia pergunta, curiosa.
– Com os hospitais lotados, morreu no mesmo dia. Tinha sessenta e quatro anos. A idade que tenho hoje.
Eu quase digo um “sinto muito”, de tão envolvido que estou na história. Olho para Kátia e vejo que ela também está impactada.
– A vida para mim se tornou uma tristeza sem fim. Agora, estava sozinho para enfrentar os perigos da pandemia, sem família ou amigos por perto, mas o mais difícil era suportar o sofrimento de não ter mais Marisa comigo. Já não via sentido em continuar vivo. Marisa e eu ainda tínhamos um futuro juntos pela frente, e agora ele de repente não existia mais, um tiro acabou com ele…
Ele interrompe a fala. Parece emocionado.
– Então, uma noite, despertei de madrugada. Estava chorando, e entendi que chegara a minha hora. Fechei os olhos e, enquanto aguardava, pensei que se fosse possível ter de volta minha Marisa, eu faria o que tivesse que fazer para que isso acontecesse. Morri com esse pensamento.
Um silêncio estranho desce sobre nós todos. No colo de Marisa, Amanda mia baixinho, salta para o chão e vai para o jardim.
– Certo, morreu no sonho – comento, para que eu mesmo não me perca no relato.
– Sim, e acordei em 1988, ao lado de Marisa. Estava chorando, ainda envolvido por aquela imensa tristeza… E impressionado com o sonho, os detalhes…
– Ele ficou mudo por três dias – interrompe Marisa, rindo. – Quando tentava falar, desistia, e só dizia assim: Meu amor, você está aqui…
– Sim. O sonho foi tão forte que eu tinha medo de contá-lo, para não reviver aquela tristeza horrível que era a ausência de Marisa. Além disso, havia a angústia pela situação do país, o sofrimento do povo com a pandemia, todo o caos social… Então, de repente, compreendi que eu havia, de fato, acessado o futuro. Compreendi que naquela noite eu vivi no Brasil de 2022. Eu estive no fundo do poço da história brasileira.
– Seo Adélio… – prossigo, dividido entre seguir com o roteiro da entrevista e saber mais sobre o Brasil de 2022 – Esse seu sonho é muito interessante. Do ponto de vista ecológico, por exemplo. Ano passado, tivemos a gripe suína, e antes, em 2002, tivemos a SARS. Na minha opinião, é óbvio que o comportamento antiecológico da nossa espécie tem causado essas epidemias e talvez surja uma outra em breve, ainda mais perigosa. Mas nem imagino como é viver num cenário de pandemia como esse que o senhor sonhou.
– Em países ricos, com população bem informada, já é desesperador, mas em países como o Brasil, com grande desigualdade social, é ainda mais difícil. Porém, aprendi coisas importantes. Se aceitar, posso dar um conselho.
– Aceito, sim.
– Não se apegue ao que não é importante. Quando a vida que tínhamos, de repente não temos mais, e qualquer um pode morrer a qualquer momento, tudo vira supérfluo, menos o que é realmente fundamental.
– Entendi. Obrigado.
Por um instante, penso no que pode ser realmente fundamental em minha vida. Mas a entrevista tem que seguir.
– Voltando ao que eu estava dizendo… – continuo. – Do ponto de vista político, longe de mim desmerecer a experiência que o senhor teve nesse sonho, mas acho improvável que cheguemos, no Brasil, a uma situação assim tão catastrófica, um governo de extrema-direita, neofascista, violento…
– Eu estive lá, Leandro.
Tomo fôlego para prosseguir em minha argumentação. Não é fácil conversar com alguém que tem certeza de que já viveu no futuro.
– Sei que nossa democracia não é perfeita, seo Adélio, e temos muito a melhorar, mas, sinceramente, não vejo tal risco no horizonte.
– A chegada de Bozonaro à presidência não se deu de um dia para o outro. O ovo da serpente foi gerado por um conjunto de fatores que se avolumaram durante anos, incluindo a pusilanimidade das instituições diante dos avanços antidemocráticos. Anos antes, a banda podre do Congresso, usando de ardilosos malabarismos jurídicos e interessada apenas em vantagens pessoais, afastou a presidenta e isso rompeu o contrato da normalidade democrática, abrindo caminho para toda sorte de oportunismos extremistas. Bozonaro era a face brasileira de um fenômeno que ocorria também em outros países. Era o fascismo tentando ressuscitar, aproveitando-se das falhas da democracia em sua lida com os problemas do mundo.
Aproveito a pausa para beber água. Adélio relata os acontecimentos como se, de fato, os houvesse vivido, e sei que devo respeitar sua experiência, seja ela um mero sonho ou algo mais.
– Kátia e Leandro… – ele retoma sua fala, olhando para mim e minha namorada – O fascismo é um fenômeno histórico do século 20, mas suas ideias vivem na alma humana. É lá, nas sombras, que o fascismo aguarda, sorrateiro, pela situação propícia, com predileção pelas crises econômicas e políticas, esperando pelo messias que o representará. Ele é mutante e sutil, sabe se adaptar aos novos tempos. Suas ideias seduzem porque são simplistas, reluzem como um elixir mágico para os problemas, e legitimam todos os ódios e preconceitos latentes que, numa democracia, não têm espaço para se manifestar. Por natureza, ele é a antipolítica, pois despreza o diálogo e só entende a disputa pela ótica da violência. Nunca subestimem o fascismo. Ele está entre nós, agora mesmo, se espalhando pelas mentes suscetíveis, como um vírus.
– O senhor é historiador, seo Adélio, respeito muito seu conhecimento. Só acho que nossas instituições já amadureceram o suficiente para não permitir que a democracia retroceda a tal ponto. Mas sei dos perigos do fascismo, claro que sei.
– Eu também achava que sabia.
O olhar sério de Adélio me incomoda. Ele continua:
– O fascismo é como uma epidemia. Tudo o que fizermos antes para preveni-lo soará como exagero, e tudo que fizermos depois será tarde demais.
Na sala, fica um silêncio um tanto constrangedor. Desvio meu olhar para minhas anotações.
– Pronto, já dei minha aula de hoje – Adélio brinca, diminuindo a tensão no ar.
– Se deixar, ele vai até amanhã – Marisa emenda, dando uma boa risada.
– Foi uma aula curta e precisa, obrigado – comento, mais descontraído.
– Sim, foi ótima! – Kátia também reconhece.
– Mas precisamos seguir em frente com a entrevista, não é?
– Por favor, seo Adélio.
– Onde estávamos?
– Em 1988 – Marisa acode o marido nas lembranças.
– Sim – ele fala, ajeitando-se na poltrona e direcionando novamente o olhar para o jardim. – Uma semana depois, consegui contar o sonho para Marisa. Contei tudo, todos os detalhes, e ela ficou bastante impressionada. Quando terminei, nós dois chorávamos, eu pela dor de ter perdido minha grande companheira, com quem vivi por quarenta anos, e ela por ter me deixado sozinho naquele apocalipse. Então, tivemos medo, muito medo, do futuro. Eu sabia que ele chegaria, trazendo todo aquele pesadelo social e político, todas aquelas mortes que poderiam ter sido evitadas… Não posso explicar essa certeza, só posso dizer isso: eu sabia. Aquele futuro chegaria, e nem eu e nem Marisa queríamos vivê-lo.
– A senhora acreditou na experiência que ele teve? – pergunto, curioso sobre o modo como Marisa compreende tudo aquilo.
– Sim. Eu vi em seus olhos que era tudo verdade.
– Ainda acredita?
– Mais do que antes – ela responde. Seu olhar encontra o de Adélio e eles sorriem. Parecem dois ímãs a se atrair onde quer que estejam.
– O que aconteceu depois, seo Adélio?
– Sentimos que deveríamos fazer algo para evitar aquele futuro cheio de trevas. Mas o quê, exatamente? Então, um dia, lendo o jornal, vimos uma notícia sobre Jail Bozonaro, um capitão reformado do Exército que era candidato a vereador no Rio de Janeiro. E a ficha caiu: ele representava o sinistro futuro. Por causa dele, duas décadas depois, o Brasil viveria uma imensa tragédia política e social. E por causa dele, Marisa e eu não envelheceríamos juntos.
– Vocês já o conheciam?
– Um pouco. Dois anos antes, em 1986, Bozonaro escrevera um artigo na revista Veja no qual reclamava melhores salários para a classe militar e isso lhe dera certa popularidade entre as baixas patentes. Porém, isso lhe valeu quinze dias de prisão. Depois, envolveu-se em outro caso de insubordinação, dessa vez com planos de atentados com bombas em dependências do Exército e numa adutora de água que abastece a cidade do Rio de Janeiro. Ele foi julgado por um tribunal militar e absolvido, mas o caso não ficou bem esclarecido. Após isso, foi para a reserva com a patente de capitão.
– Um capitão do Exército terrorista?
– Sim. Infelizmente, as escolas militares formam muitos deles, e não apenas no Brasil – Adélio responde. Toma mais água e continua. – Bozonaro era casado e tinha três filhos pequenos, todos homens. Então, fingi ter interesse em ajudá-lo em sua campanha eleitoral e ele me falou de suas ideias e me entregou folhetos de campanha. A impressão inicial que tive dele foi a de um indivíduo de personalidade forte e agressiva, com rígidos valores morais conservadores e com ideias políticas um tanto confusas. E me chamou a atenção o seu espírito ambicioso e determinado.
– Ele não desconfiou de nada?
– Desconfiava de todos, tinha certa mania de perseguição. Mas consegui levar o plano adiante. Pouco antes das eleições, pedi uma reunião com ele, a sós, e nela falei que tivera uma visão de seu futuro. Falei que se ele seguisse a carreira política, seria vereador e deputado federal, e que sua atuação seria medíocre, mas que, mesmo assim, ele seria eleito presidente da República. Falei do atentado que ele sofreria, e que quase o mataria. Falei que ele teria seguidores fanáticos que o veriam como a um messias, mas seria considerado uma aberração pela comunidade democrática internacional. Falei do quanto ele atacaria os grupos sociais vulneráveis e do quanto contribuiria para a destruição da Natureza em nome de sua exploração comercial. Falei também sobre sua péssima atuação na pandemia de covid-19 e que seria responsabilizado pela morte de milhares de pessoas. Falei sobre seu fim terrível, com muito sofrimento para ele e sua família.
– Ele não o interrompeu?
– Não. Escutou a tudo atento. Porém, enquanto eu falava, percebi que seus olhos brilhavam e tive medo de que tudo aquilo, em vez de lhe provocar repulsa ou medo, na verdade pudesse agradá-lo. O certo é que Bozonaro ficou encantado com tudo que o futuro lhe reservava. Hoje, sei que eu estava diante de um sádico psicopata, capaz de fazer tudo aquilo que o futuro me mostrou que ele faria. Ao fim, pedi que pensasse seriamente a respeito e avisei que estava abandonando a campanha. E saí da sala.
– Pelo jeito, ele não seguiu seu conselho.
– Não. Quando soubemos que manteve a candidatura, Marisa e eu ficamos muito tristes. Todo o nosso esforço foi em vão.
– O senhor não teve medo dele lhe fazer algo?
– Consideramos essa hipótese. Tanto que nunca lhe informei meus dados verdadeiros. Sumi da vida dele tão rápido quanto me aproximei.
Aproveito que Adélio acaricia Amanda, que voltou do jardim, e faço anotações no caderno. Eu achava que, nessa altura da entrevista, teria uma boa noção sobre a saúde psíquica do meu entrevistado e saberia dizer se ele era louco ou não. Mas me enganei. Ainda não sei o que concluir. Em meu trabalho de jornalista estou acostumado com relatos estranhos e alguns totalmente fantasiosos, mas, apesar de parecer filme de ficção científica, a história de Adélio está me parecendo sincera. Pelo menos até agora.
Eu pesquisei sobre o vereador assassinado. Jail Bozonaro tinha um perfil conservador, e nos dois anos em que atuou na Câmara foi pouco participativo. Usou o mandato, principalmente, em pró de causas militares. Tive acesso a documentos do Exército, feitos na década de 1980, que mostram que os superiores do então tenente Bozonaro o avaliaram como sendo dono de uma “excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente”. Um coronel, seu superior na época, afirmou que Bozonaro “tinha permanentemente a intenção de liderar os oficiais subalternos, no que foi sempre repelido, tanto em razão do tratamento agressivo dispensado a seus camaradas, como pela falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos”. Portanto, o que Adélio falou a respeito da personalidade do capitão parece concordar totalmente com a opinião dos seus superiores militares.
– Marisa e eu analisamos a situação – Adélio prossegue – e percebemos que fomos ingênuos em nossa estratégia. Os argumentos que usei, em vez de fazê-lo desistir de seguir a carreira política, provavelmente serviram como combustível. Então, decidimos que mudaríamos o futuro de outra forma e começamos a nos programar para viver fora do Brasil. Se não podíamos evitar aquele futuro terrível para nosso país, ao menos podíamos estar longe quando acontecesse. Estudamos possibilidades em vários países, mas dois anos depois, em 1990, quando soubemos que Bozonaro se candidatara a deputado federal, desistimos.
– Por quê?
– Porque entendemos que seria egoísmo de nossa parte. O sonho havia deixado em nossas mãos uma missão. Ele havia nos revelado o futuro para que pudéssemos mudá-lo, e nós não tínhamos o direito de fugir dessa responsabilidade, mesmo que fosse para proteger o nosso futuro particular.
Uma missão… É um termo comum no discurso de muitos loucos. Eles se consideram predestinados a realizar algo importante para seu povo, para a humanidade, ou para o deus em que acreditam. Nas entrevistas que fiz no manicômio em que Adélio esteve, ouvi esse termo de alguns internos.
– Então, pensamos num novo plano – ele continua. – Dessa vez, estudamos os hábitos de Bozonaro e analisamos com atenção sua agenda de compromissos. Descobrimos que ele marcava encontros secretos no Hotel Brilhante, no centro da cidade. Chegava sozinho, pegava a chave do quarto na recepção e subia, sempre no décimo sétimo andar. Nossa primeira suspeita foi de que se tratava de negócios ilegais, mas depois desconfiamos que ele poderia ter uma amante.
– Vocês descobriram isso sozinhos ou contrataram um detetive?
– Achamos arriscado envolver outras pessoas naquilo. Então, fizemos tudo nós dois. E decidimos nós mesmos registrar as imagens. Nosso plano consistia numa chantagem: ou ele desistia da candidatura a deputado federal ou nós enviaríamos o material para a imprensa. Bozonaro planejava eleger a esposa como vereadora nas eleições de 1992. Se fosse eleito deputado federal, isso ajudaria nos planos dele. Um escândalo de traição conjugal naquele momento, sendo ele o moralista cristão que era, poderia lhe custar a eleição e até mesmo o casamento.
– Mas mesmo que ele concordasse, poderia se candidatar nas eleições seguintes, e assim seguiria normalmente na carreira política.
– É verdade. Mas nossa ação poderia ser o suficiente para alterar o futuro.
Que história louca…, eu penso. Agora, ela já parece um filme de suspense policial. Será tudo um grande delírio? Será Adélio tão criativo a ponto de inventar tudo isso que me conta? Bem, ele ficou vinte anos preso, é tempo suficiente para criar muitas histórias, com infinitos detalhes. E Marisa? Se ele é louco, o que dizer dela? Todas essas ideias me passam pela mente ao mesmo tempo, mas sei que preciso estar atento ao relato.
– Então, soubemos que Bozonaro se hospedaria novamente no Hotel Brilhante – Adélio retoma a narrativa. – Dessa vez, Marisa e eu decidimos nos hospedar lá também. Era véspera do feriado de Sete de Setembro. Chegamos de manhã. À noite, na hora de sempre, Bozonaro chegou, pegou a chave do quarto e tomou o elevador para o décimo sétimo andar. Marisa, que aguardava na recepção, fez uma ligação para o nosso quarto, no mesmo andar. O telefone tocou apenas uma vez, era o sinal. Saí do quarto e fui até o vaso de plantas que ficava no fim do corredor, próximo à porta do quarto que ele reservara.
– Que quarto era?
– Acho que… 1709.
– Sim, era o 1709 – confirmou Marisa. – E nós estávamos no 1701. Ambos ficavam nas pontas do corredor. E o elevador ficava no meio.
Anoto os números no caderno. Mas sei que ela fala a verdade.
– A câmera filmadora já estava lá no vaso – prossegue Adélio –, camuflada entre as folhas, devidamente posicionada para a porta do 1709. Pressionei o botão e ela começou a filmar. Corri e entrei no quarto. Como não havia câmeras de vigilância nos corredores, pude agir tranquilamente. Meia hora depois, o telefone tocou outra vez. Então, abri um pouco a porta do quarto e ouvi a porta do elevador se abrindo. Espiei com cuidado e vi uma mulher caminhando pelo corredor, de costas para mim e de frente para a filmadora. Lembro bem do som de seus saltos no chão, poc, poc, poc… Não consegui ver bem seu rosto, mas era ruiva e alta, e usava um minivestido preto. Imaginei que pudesse ser uma prostituta. Ela passou pela porta do 1709 e se aproximou do vaso de plantas. Tive medo de que ela houvesse visto a filmadora, mas o que ela queria era jogar algo na lixeira, talvez um chiclete. Após isso, ela voltou, foi até a porta do 1709, bateu e esperou. A porta se abriu e ela entrou. Logo depois, surgiu a cabeça de Bozonaro, ele olhando para um lado e para o outro do corredor, certificando-se de que ninguém havia visto nada. Pensei comigo: perfeito.
De fato, é uma história muito interessante, eu penso enquanto Adélio bebe um pouco dágua. E, como li o processo e sei de alguns detalhes do que aconteceu aquela noite, fica mais interessante ainda, pois posso acompanhar o relato e, ao mesmo tempo, compará-lo com as informações oficiais. Até agora, tudo se encaixa perfeitamente.
– Peguei a filmadora e fui para o quarto e, logo depois, Marisa chegou. Vimos as imagens com atenção e ela também achou que era uma prostituta. Fosse ou não, consideramos que já tínhamos o material que precisávamos. Como ficaríamos no quarto até a manhã seguinte, agora era hora de relaxar. Abri a janela do quarto para podermos respirar o ar da noite e fui tomar banho. Pouco tempo depois, escuto uma voz de homem. Era ele, Bozonaro. Do lado de fora da janela, no parapeito que circundava o prédio, ele apontava uma arma para Marisa. Nesse momento, eu já havia desligado o chuveiro e fiquei escutando em silêncio, apavorado e calculando como agir.
– E a visitante?
– Ele a mandara embora. Provavelmente, foi ela quem o avisou sobre a filmadora no vaso de plantas.
– Ele entrou e me mandou sentar na cama – Marisa segue com o relato, revelando sua visão dos fatos. – Estava espumando de ódio, os olhos vermelhos, e seu hálito cheirava a bebida. Com a pistola apontada para mim, falou assim: “Não conheço aquela travesti, ela errou de quarto, tá ok, tá ok?”. Disse e repetiu várias vezes. Depois, perguntou quem havia me contratado, citando alguns nomes.
– Que nomes ele falou?
– Não lembro, eu estava muito nervosa. Só pensava em Adélio e torcia para que ele continuasse quieto no banheiro, pois temia que Bozonaro o matasse.
– Também não lembro – Adélio emenda. – Certamente, eram adversários políticos. Mas como ele tinha mania de perseguição, podia ser qualquer pessoa.
– Sem saber o que dizer, falei que fui contratada pela esposa dele – continua Marisa. – Ele pareceu ficar confuso. Então, pegou a filmadora e a minha bolsa e disse que se eu contasse a alguém sobre aquela noite, mandaria me matar. Pensei que sairia pela porta, mas ele parou e me olhou de um jeito estranho. E me mandou tirar a roupa e ficar nua. Achei melhor fazer o que ele queria. Porém, ele desistiu, e disse que eu era muito feia, que não merecia ser estuprada. Quando tocou a maçaneta para sair, viu as roupas de Adélio e perguntou se havia alguém no banheiro. Respondi que estava sozinha. Ele foi até o banheiro e tentei impedi-lo, e caímos sobre a cama. Nesse momento, Adélio saiu e se jogou sobre ele.
– Ele o reconheceu, seo Adélio?
– Não nesse momento – responde Adélio, retomando a narrativa. – No meio da briga, consegui pegar a pistola e o golpeei na cabeça. Ele cambaleou e ficou encostado na parede, tonto, com a cabeça sangrando. Apontei-lhe a arma, falei quem eu era e disse que não queríamos matá-lo, apenas propor um acordo. Ele riu com sarcasmo e disse que ninguém o impediria de cumprir seu glorioso destino, que Deus o escolhera para guiar o Brasil. Então, virou-se e passou uma perna para fora da janela. Marisa e eu nos olhamos, nervosos, sem saber o que fazer. Ele passou a outra perna e ficou lá, do lado de fora, de pé no parapeito. Falei para ele que entrasse, pois podia cair, mas ele respondeu fazendo um gesto com os braços, me dando uma banana, e saiu caminhando pelo parapeito na direção de seu quarto. Nós vimos tudo da nossa janela. Ele parou na janela do 1709, ficou imóvel por alguns segundos e, em seguida, despencou no vazio. Foi horrível.
Adélio para de falar. Agora, olha novamente para o jardim. Sua expressão é calma e suas mãos estão juntas novamente, as pontas dos dedos se tocando. Marisa se levanta, posta-se ao lado dele e toca delicadamente seu ombro. Olho para Kátia, que olha para eles aparentemente impressionada.
– Você me disse que leu o processo – diz Adélio, agora olhando para mim. – Está tudo lá.
– Sim. O corpo dele foi encontrado logo depois no pátio dos fundos do prédio – falo, expondo o que sei. – Como a janela do 1709 estava aberta, a polícia suspeitou logo da travesti, que ela o teria empurrado pela janela. Porém, nunca conseguiu localizá-la, nem descobriu seu nome verdadeiro, apenas o nome que deixou no registro da recepção: Zarla Cambelli, que ela, provavelmente, não mais usou. Dias depois, o senhor se apresentou à delegacia com a pistola de Bozonaro e contou que veio do futuro com a missão de evitar que ele se tornasse presidente do Brasil, e sustentou isso por todo o processo. Dona Marisa confirmou sua versão e chegou a ser considerada suspeita, mas não havia provas contra ela. O senhor realmente achava que havia matado Bozonaro? Ainda pensa assim?
– Não sabemos se ele perdeu o equilíbrio ou se ele se atirou, nem jamais saberemos o que pensou em seus últimos momentos. Talvez o golpe na cabeça o tenha feito se desequilibrar, ou talvez não. De todo modo, a sensação de culpa me atormentava, e foi por isso que me entreguei à polícia.
Anoto a palavra “suicídio” e penso na relação entre as mortes de Bozonaro. No sonho de Adélio, ele, derrotado, se mata com um tiro na cabeça. Na vida real, ele é golpeado na cabeça e cai do alto de um prédio. Do alto de suas ambições políticas…
– O que fizeram com a filmadora e o filme?
– Destruímos.
– O senhor foi diagnosticado como sendo portador de transtornos psicológicos, e por isso considerado inimputável. Ficou por vinte anos num manicômio judiciário. Como foi essa experiência?
– Não foi fácil. Precisei conviver diariamente com pessoas com muitos sofrimentos mentais e existenciais. Vivi, na própria pele, a imensa dificuldade que a sociedade tem de lidar com aquilo que ela não compreende. Mas tive o apoio de Marisa, que nunca faltou nos dias de visita.
Neste momento, por trás do casal, Kátia os fotografa: Adélio sentado na poltrona e Marisa em pé ao seu lado, a mão em seu ombro, a silhueta deles contra a luz que vem da porta aberta, e ambos a olhar na direção do jardim lá fora… Acho que será uma bela foto.
– E para a senhora, dona Marisa, como foi?
– Ele sofreu muito mais do que eu naquele lugar.
– Claro que não – rebate Adélio. – Ela chorava todos os dias.
– Vamos morrer bem velhinhos, discordando – brinca Marisa, e em seguida eles se beijam.
– Bem, acho que estou satisfeito – falo, e Kátia me faz um sinal de positivo. – O senhor gostaria de dizer algo mais?
– Sim – responde Adélio. – Você lembra que, quando conversei a primeira vez com Bozonaro, falei que, caso seguisse na carreira política, ele sofreria um atentado que quase o mataria?
– Sim, lembro.
– Foi durante a campanha presidencial. Num comício na rua, um homem o esfaqueou e ele precisou ser operado. As investigações da Polícia Federal concluíram que o homem agiu sozinho, mas ficaram muitas dúvidas, inclusive suspeitas de que o atentado foi forjado. O fato é que isso virou o jogo a favor de Bozonaro, serviu de motivo para ele não comparecer a nenhum debate e foi fundamental para ele vencer as eleições no segundo turno. Sabe como se chamava o homem que o esfaqueou? Adélio.
– Adélio? Tinha o mesmo nome do senhor?
– Sim.
Penso um pouco. O que isso pode significar?
– Coincidência? – pergunto.
– Não sei. Assim como eu, ele também foi considerado inimputável por ter transtornos mentais. Mas há algumas diferenças entre ele e eu. Aquele Adélio foi missionário evangélico e afirmou que agiu a mando de Deus. E eu sou ateu. Ele tentou matar Bozonaro. Em nenhum momento, Marisa e eu pensamos nisso. O que fizemos foi tentar convencê-lo por argumentos e, depois, por chantagem. Se aquele Adélio tentou evitar o futuro tenebroso que se anunciava muito próximo no horizonte do Brasil, seu ato teve o efeito contrário: ele ratificou o futuro. O futuro que eu anulei.
Penso um pouco sobre o que ele acaba de falar. São ideias instigantes.
– E sabe em que cidade ocorreu o atentado? Juiz de Fora.
– Foi por isso que vieram morar aqui?
– Na verdade, conhecemos Juiz de Fora no início do namoro, antes do sonho, e adoramos a cidade. Desde então, planejávamos vir morar aqui. Coincidência? Não sei.
Mais um detalhe intrigante na história… Então, anoto algumas informações no caderno, agradeço e dou por encerrada a entrevista. Em seguida, é servido um café, que tomamos enquanto o casal nos mostra as árvores do terreno, orgulhosos delas. O sol se põe por trás da casa quando deixamos o sítio.
Enquanto dirijo de volta para a cidade do Rio de Janeiro, é impossível não pensar sobre tudo que escutamos naquela sala. Penso que demorarei um bom tempo até chegar a uma conclusão sobre a incrível história de Adélio e Marisa. Ou talvez jamais chegue.
O que Adélio falou sobre o fascismo me deixou com a pulga atrás da orelha, mas continuo achando que uma desgraça daquele tamanho não tem condições de acontecer no Brasil, nem agora em 2010 e nem nos próximos anos. Um governo neofascista de extrema-direita… Não, não mesmo. Pelo menos desse perigo estamos livres.
Porém, quanto a uma pandemia mundial devastadora, acho que, infelizmente, é só uma questão de tempo para acontecer. Espero que quando ela chegar, nosso sistema público de saúde esteja melhor do que hoje e que os políticos e empresários entendam que a economia demora mas se recupera, mas os mortos não ressuscitam.
– Como ficaram as fotos? – pergunto para Kátia, enquanto ela observa no visor as fotos que fez.
– Parecem boas. As fotinhas da Amanda estão ótimas, ela é superfotogênica.
– Você acha que ele é louco, meu amor? – devolvo-lhe a pergunta que ela me fez na ida.
– Claro que não, Leandro. Você acha?
– Não sei.
– Acho que eles são muito lúcidos. E acho que ele acessou mesmo o futuro, e eles conseguiram alterá-lo. Você não acredita?
– Também não sei.
– Pois eu acredito. Naquele futuro de 2022 eles não puderam ficar juntos na velhice, mas nesse eles podem. E numa casinha linda.
– Parece que eles se amam, né?
– Com certeza, e é uma história de amor maravilhosa. Ela esperou vinte anos por ele!
De fato, é algo admirável, penso eu.
– Você faria isso por mim, Leandro?
– Eu?
– Sim, você.
– Sinceramente?
Kátia olha para mim, aguardando a resposta. Eu rio, e aperto sua bochecha.
– Esperei por você durante quarenta anos, meu amor. Vinte a mais não será problema.
Ela ri. E rimos juntos.
Ligo os faróis para enxergar melhor a estrada. Temos um futuro pela frente para nós dois. E quando a pandemia vier, espero lembrar do conselho de Adélio.
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As duas mortes de Jail Bozonaro – Após ter uma visão do futuro, Adélio quer impedir que Jail Bozonaro, um militar reformado com ambições políticas, torne-se presidente do Brasil.
No museu da pandemia– Definitivamente, a humanidade fracassou…, ela pensou, triste
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. Gente, eu podia estar roubando ou matando, mas tô aqui lançando meu livro de memórias exóticas VIAJANDO NA MAIONESE ASTRAL. Adquirindo a versão eletrônica, que custa R$ 9, você poderá descontar o valor no lançamento do livro físico, que farei em breve com o que eu conseguir arrecadar com o livro eletrônico.
Diverti-me bastante escrevendo esse livro, principalmente na parte em que conto sobre meu grupo esotérico que iria salvar o mundo e revelo minha polêmica vida passada na Dinamarca medieval, na qual eu tinha uns rolos com uma escritora paulista da atualidade e um músico muito conhecido de Fortaleza, que hoje é um grande amigo.
Bem vindo à minha maionese. Garanto que você dará boas risadas. 🙂
VIAJANDO NA MAIONESE ASTRAL Memórias exóticas de um escritor sem a mínima vocação para salvar o mundo
Miragem Editorial, 2020
Enquanto relembra as pitorescas histórias de quando largou uma banda de rock para liderar um aloprado grupo esotérico e lançou-se como escritor com um livro espiritualista de sucesso (Quem Apagou a Luz? – Certas coisas que você deve saber sobre a morte para não dar vexame do lado de lá) que depois renegou, o autor fala, com bom humor, sobre sua suposta vida no século 14, carreira literária, amores, sexo, drogas ilegais, prostituição e crises existenciais, reflete sobre sua relação com o feminino, o xamanismo, a filosofia taoista e a psicologia junguiana e narra sua transformação de líder de jovens católicos em falso guru da nova era e, por fim, em ateu combatente do fanatismo religioso e militante antifascista.
Na Amazon (Kindle): R$ 9 Direto comigo: R$ 9 (PDF com dedicatória)
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Quem Apagou a Luz? Certas coisas que você deve saber sobre a morte para não dar vexame do lado de lá
(ensaio)
Lançado em 1995, este livro resume, numa linguagem descontraída, as crenças e vivências que norteavam o grupo esotérico do qual o autor participou nos anos 1990, abordando temas como experiências fora do corpo, reencarnação, vida após a morte, extraterrestres e guias espirituais.
A partir de 2000, quando o autor assumiu seu ateísmo, este livro deixou de ser publicado, interrompendo uma trajetória de sucesso. Porém, em 2020, para divulgar seu livro Viajando na Maionese Astral – Memórias exóticas de um escritor sem a mínima vocação para salvar o mundo, ele decidiu relançá-lo numa edição especial, junto com o Maionese.
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Gabi só queria um namorado que realizasse seu grande fetiche
O NAMORADO PERFEITO
. Quando o namoro completou seis meses, Gabi decidiu que já era tempo de revelar seu preciosíssimo fetiche. Naquela noite, após a transa, os dois ladinho a ladinho na cama, ela falou para o namorado, lânguida como nunca:
– Dorival, eu quero que você me estupre…
– Quer o quê? – ele perguntou, surpreso, virando-se para ela.
– Isso mesmo que você ouviu, paixão…
Só podia ser brincadeira, ele pensou. Mas Gabi prosseguiu, acariciando delicadamente seu rosto:
– É uma fantasia antiga que eu tenho.
– Mas…
– Parece estranho, eu sei.
– Mas…
– Acho que posso confiar em você. Posso, não posso?
Ele olhou para a namorada, esperando que ela de repente desse uma daquelas suas risadas escandalosas e dissesse que era tudo brincadeirinha. Mas ela não riu, e continuou acariciando seu rosto, toda dengosa.
– Claro que pode confiar, meu amor. Mas… como alguém pode desejar ser estuprado?
Gabi ficou séria. E recolheu a mão. A languidez sumira.
– É só uma fantasia, Dorival.
– Mesmo assim. É uma fantasia muito…
– Meu aniversário é na quinta.
– …
– Você… – novamente lânguida e carinhosa – vai me dar esse presente, não vai?
Ele percebeu que não tinha outra opção senão ceder. Assim, quatro dias depois, Gabi despertou de manhã sentindo que algo forçava passagem por entre suas pernas. Abriu os olhos assustada, mas logo em seguida lembrou-se do combinado e manteve-se quieta, fingindo que ainda dormia. Deitada, nua e de barriga para cima, ela sentiu quando Dorival enfiou um pano em sua boca e amarrou seus punhos à grade da cama. Agora ela está em casa, estudando no sofá, e de repente surge um homem desconhecido, todo de preto, usando uma máscara tipo ninja, que a ameaça com uma faca e ordena que tire a roupa e se debruce sobre a mesa. Tremendo de medo, ela obedece. O mascarado a amordaça com um pano, abaixa sua calcinha e a violenta ali mesmo, sobre a mesa, com seu pau enorme. Quando a excitação chega ao auge, Gabi solta um longo gemido, enquanto o namorado mete com força, e o mascarado a puxa pelos cabelos, e é assim que ela goza, abundantemente, o corpo se sacudindo em sucessivos espasmos sobre a mesa. O melhor aniversário de sua vida.
Os estupros matinais continuaram nas semanas seguintes, e, embora Dorival achasse aquilo realmente estranho, não via motivos maiores para recusar participar da fantasia da namorada. Um dia, Gabi deu-lhe uma máscara de Zorro, comprada na sex shop, que ele relutou bastante em usar porque se achou ridículo, mas acabou aceitando. Dias depois, ela apareceu com uma fantasia de vampiro, com a capa vermelha e até os dentes afiados, que Dorival usou com certo constrangimento.
Até que uma tarde, Gabi chegou em casa com duas dúzias de máscaras, que comprara numa loja de artigos de carnaval. Dorival não acreditou.
– Olha que demais, Dorivalzinho.
– Que coisa horrível é essa, amor?
– É o ET de Varginha. Não é sexy?
A partir de então, Gabi passou a ser violentada por uma legião de insaciáveis fantasmas, esqueletos, demônios, lobisomens, nosferatus, frankensteins, bonecos Chuck e outros monstros horripilantes, desta e outras galáxias. Um deles, o Lagarto Saturniano, tinha a língua tão comprida que ela se sentia duplamente estuprada quando Dorival a beijava. O monstro de três cabeças era angustiantemente sedutor, pois ela nunca sabia para qual delas devia olhar. O Crustáceo Belzebu, com suas garras afiadas, chegou a cortar-lhe o rosto, o que deixou Dorival preocupado, mas o gosto de sangue só a deixou mais excitada, e ele passou a ser o seu estuprador preferido.
Um dia, quando passavam o fim de semana acampados na serra, ela despertou com Dorival mexendo-se entre suas pernas e preparou-se para mais um estupro monstruoso. Porém, logo viu que ele não usava nenhuma máscara, estava de rosto limpo. Frustrada, ela tentou concentrar-se na lembrança do Crustáceo Belzebu, mas não conseguiu. Tentou o Chupa Cabra, mas foi inútil. Desesperada, tentou também os Minions, uma centena de Minions enlouquecidos de cocaína em cima dela, mas não funcionou. E Dorival percebeu.
– O que foi, Gabi?
– Você esqueceu de trazer as máscaras, né?
– Foi – ele mentiu. – Desculpa. Mas vamos continuar, tava tão bom…
Ela não quis. E empurrou-o para o lado, mal humorada.
– Pô, Gabi, você não acha que tá indo longe demais com essa sua fantasia?
– É só uma fantasia, você sabe disso.
– Que já foi longe demais, né? Agora você só se excita se for estuprada por seres bizarros. Se rolar sangue, então, é o máximo.
– Qual é o problema?
– O problema é esse mesmo, você não percebe?
– O que percebo é que você estragou nosso passeio – ela respondeu secamente, levantando e saindo da barraca.
– Gabi… eu tô realmente preocupado com você.
– Cada um tem suas preferências. Se você não estiver satisfeito com as minhas…
O namoro acabou naquele mesmo dia, e dá para imaginar o climão, os dois desmontando a barraca num completo e ridículo silêncio.
A partir daí, Gabi não teve muita sorte com namorados. A maioria chegou a Vampiro, alguns avançaram até o nível Ogro Desdentado e poucos toparam vestir a fantasia de Gorilão Tarado do Congo, que era insuportavelmente calorenta, por sinal. Quanto ao Crustáceo Belzebu, somente um topou, mas como não aceitou sangrá-la com as garras, foi logo demitido por justíssima causa.
Atualmente, ela está solteira. E seu nível de exigência aumentou. Agora, sonha todos os dias com o Zumbi Esfomeado. Ser raivosamente violentada por um zumbi asqueroso, que tem os miolos da cabeça expostos e um olho ensanguentado escapulindo da órbita, a baba gosmenta escorrendo da boca, e ele comendo seu cérebro com vinagrete, dia após dia, até sua cabeça ficar oca… Ah, seria o namorado perfeito.
Semana passada, Gabi começou a anunciar em jornais. Ela já leu bastante sobre o tema, sabe que zumbis existem de verdade, sim, há cada vez mais relatos pelo mundo. Não é possível que um, ao menos um zumbizinho, não se sensibilize com sua precária situação. Ela não exige amor, muito menos fidelidade. Mas tem que ter muita fome. E o vinagrete ela mesmo prepara, ele nem precisa se preocupar com isso.
Uma advogada que adora fazer sexo por dinheiro… Um ser misterioso e sensual que invade o sono das mulheres… Os fetiches de um casal e sua devotada e canina escrava sexual… Uma sacerdotisa pagã e seu cavaleiro num ritual de fertilidade na floresta… A adolescente que consegue um encontro especial com seu ídolo maior, o próprio pai… Seja provocando risos e reflexões, chocando nossa moralidade ou instigando nossas fantasias, inclusive as que nem sabíamos possuir, as indecências destes 23 contos querem isso mesmo: lambuzar, agredir, provocar e surpreender a sua imaginação.
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. A escritora Lya Luft, 81 anos, autora de Perdas e Ganhos, é mais uma a engrossar as fileiras dos arrependidos. Frustrada com o presidente da República que ajudou a eleger, ela afirma estar muito entristecida com a situação do país.
A senhora está triste, dona Lya? Puxa… Olha, eu respeito seus sentimentos, mas deixe-me dizer algo. Jair Bolsonaro não enganou a ninguém. Ninguém. Durante anos, ele atacou as mulheres, ofendeu homossexuais, negros, índios e nordestinos, afirmou que as minorias teriam que se curvar à maioria, disse que iria metralhar os opositores, assumiu-se admirador de um torturador assassino, a quem homenageou em pleno Congresso, incentivou a sonegação de impostos, apoiou milícias armadas e lamentou que a ditadura militar não matou trinta mil pessoas, entre muitas outras coisas deploráveis.
Durante anos, a senhora, como todos nós, ouviu esse perigoso discurso fascista, típico de quem despreza a democracia e os direitos humanos. A senhora sabia disso tudo, mas, mesmo assim, votou nele, conscientemente. Por esse motivo, a senhora não tem o direito de reclamar. Mas tem o dever moral de nos ajudar a consertar essa tragédia nacional, que só aconteceu graças a pessoas que, como a senhora, votaram num demente psicopata e cruel para ser o governante do país porque não queriam a esquerda no poder.
Bem, a senhora ao menos teve a decência de assumir publicamente seu erro, coisa que a grande maioria não fará.
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Definitivamente, a humanidade fracassou…, ela pensou, triste
NO MUSEU DA PANDEMIA
. No museu, mãe e filho viram muitas coisas, e a criança se impressionara com a animação que mostrava a terrível pandemia de covid-19 como uma reação da Terra às atitudes antiecológicas do Homo sapiens. E ela se horrorizou com as notícias falsas espalhadas durante o caos. Definitivamente, a humanidade fracassou…, ela pensou, triste. Na saída, o filho viu o monumento aos profissionais de saúde mortos na defesa da população e lhe sussurrou: Mãe, quero ser enfermeiro pra cuidar das pessoas na próxima pandemia. Ela não soube o que dizer. Não, tive uma ideia melhor, ele continuou, vou ensinar as pessoas a respeitarem o planeta, pra não ter outra pandemia. Ela sorriu e o abraçou, pedindo perdão em silêncio por seu pessimismo, e uma lágrima de esperança brotou em seu olho. O futuro era uma criança…
No museu da pandemia – Definitivamente, a humanidade fracassou…, ela pensou, triste
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. Tudo é política, inclusive o silêncio. Não existe neutralidade nem isenção num momento decisivo como este, em que ideologias fascistas ameaçam fortemente a democracia.
Sim, o fascismo é um fenômeno histórico do século 20, mas suas ideias vivem na alma humana. É lá, nas sombras, que o fascismo aguarda, sorrateiro, pela situação propícia, com predileção pelas crises econômicas e políticas, esperando pelo messias que o representará. Ele é mutante e sutil, sabe se adaptar aos novos tempos. Suas ideias seduzem porque são simplistas, reluzem como um elixir mágico para os problemas e legitimam os ódios e preconceitos latentes que, numa democracia, não têm espaço para se manifestar. Por natureza, ele é a antipolítica, pois despreza o diálogo e só entende a disputa pela ótica da violência. Nunca subestimemos o fascismo. Ele está entre nós, agora mesmo, se espalhando pelas mentes suscetíveis, como um vírus.
O fascismo é como uma epidemia. Tudo o que fizermos antes para contê-lo soará como exagero, e tudo que fizermos depois será tarde demais.
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Um patrimônio artístico-literário brasileiro que também é seu. Aproveite
CURSO DE LITERATURA CEARENSE
. O Ceará é um estado que traz a marca de grandes histórias, muitas delas fincadas na imaginação e em papel e, injustificadamente, ainda pouco conhecidas do público em geral.
Neste curso básico de extensão, com inscrições abertas a todo o país e certificação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), você conhecerá um pouco mais sobre a literatura aqui produzida, desde o século XIX à contemporaneidade, através de alguns de seus autores(as), grupos/agremiações literárias e obras referenciais, em consonância com os estudos da Literatura Brasileira, por meio de fascículos, videoaulas, podcasts e webconferências, material complementar da Biblioteca Virtual, e muito mais.
Aproprie-se desse patrimônio artístico-literário brasileiro que também é seu.
Lugar de literatura é solta pela cidade – Com esses livretos, consigo que minha arte frequente as mesas dos bares, integrando-se à dinâmica boêmia da cidade e atraindo novos leitores
O dilema do escritor seboso – Certos escritores amadurecem cedo. Tenho inveja desses. Porque nunca viverão o constrangimento de não se reconhecerem em suas primeiras obras
O encontrão marcado – Fechei o livro, fui até a janela e olhei pro mundo lá fora. E disse baixinho, com a leveza que só as grandes revelações permitem: tenho que ser escritor
Pesadelos do além – O pior pesadelo para um escritor é ser psicografado. Ou melhor: ser mal psicografado
Meu fantasma predileto– Diziam que era a alma de alguém que fora escritor e que se aproveitava do ambiente literário de meu quarto para reviver antigos prazeres mundanos
Kelmer no Toma Lá Dá Cá – Aqueles aloprados moradores do condomínio Jambalaya descobriram meu livro maldito
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Escritor, ateu, socialista, antifascista. Amante da arte, devoto do feminino, ébrio de blues. Fortaleza Esporte Clube. Simpatizo Amor de Bar. Fortaleza-CE.
VIAJANDO NA MAIONESE ASTRAL
Um grupo de amigos que viveu na Dinamarca do sec. 14 se reencontra no sec. 20 no Brasil para salvar o mundo de malignas entidades do além. Resumo de filme? Não, aconteceu com o autor. Líder desse grupo aloprado, Kelmer largou uma banda de rock e lançou-se como escritor com um livro espiritualista de sucesso, que depois renegou: Quem Apagou a Luz? – Certas coisas que você deve saber sobre a morte para não dar vexame do lado de lá. As pitorescas histórias desse grupo são contadas com bom humor, entre reflexões sobre carreira literária, amores, sexo, crises existenciais, prostituição e drogas ilegais. Kelmer conta também sobre sua relação com o feminino, o xamanismo, a filosofia taoista e a psicologia junguiana e narra sua transformação de líder de jovens católicos em falso guru da nova era e, por fim, em ateu combatente do fanatismo religioso e militante antifascista.
PENSÃO DAS CRÔNICAS DADIVOSAS
Nesta seleção de textos, escritos entre 2007 e 2017, Ricardo Kelmer exercita seu ofício de cronista das coisas do mundo, ora com seu humor debochado, ora com sobriedade e apreensão, para comentar arte, literatura, comportamento, sexo, política, religião, ateísmo, futebol, gatos e, como não poderia deixar de ser, o feminino, essa grande paixão do autor, presente em boa parte desta obra.
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INDECÊNCIAS PARA O FIM DE TARDE
Contos eróticos. As indecências destas histórias querem isso mesmo: lambuzar, agredir, provocar e surpreender a sua imaginação.
Agenda
jul22 – Região do Cariri (CE)
Lançamento do livro Para Belchior com Amor, 3a edição (Assaré, Crato, Juazeiro do Norte, Nova Olinda e Campos Sales)
ago a dez22 – Várias cidades
Lançamento do livro Para Belchior com Amor, 3a edição (Fortaleza e outras cidades)
O IRRESISTÍVEL CHARME DA INSANIDADE
Romance. Dois casais, nos séculos 16 e 21, vivem duas ardentes e misteriosas histórias de amor, e suas vidas se cruzam através dos tempos em momentos decisivos. Ou será o mesmo casal?
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GUIA DE SOBREVIVÊNCIA PARA O FIM DOS TEMPOS
Contos. O que fazer quando de repente o inexplicável invade nossa realidade e velhas verdades se tornam inúteis? Para onde ir quando o mundo acaba?
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PARA BELCHIOR COM AMOR
Organizada pelos escritores Ricardo Kelmer e Alan Mendonça, esta terceira edição foi enriquecida com ilustrações e novos autores, com mais contos, crônicas e cartas inspirados em canções de Belchior. O livro traz 24 textos de 23 autores cearenses, e conta com a participação especial da cantora Vannick Belchior, filha caçula do rapaz latino-americano de Sobral, que escreveu uma bela carta para seu pai.
Usando a mitologia e a psicologia do inconsciente numa linguagem descontraída, Kelmer nos revela a estrutura mitológica do enredo do filme Matrix, mostrando-o como uma reedição moderna do antigo mito da jornada do herói, e o compara ao processo individual de autorrealização, do qual fazem parte as crises do despertar, o autoconhecer-se, os conflitos internos, as autossabotagens, a experiência do amor, a morte e o renascer.
Ciganas, lolitas, santas, prostitutas, espiãs, sacerdotisas pagãs, entidades do além, mulheres selvagens... Em cada um dos 36 contos e crônicas deste livro, encontramos o brilho numinoso dos arquétipos femininos que fazem da mulher um ícone eterno de beleza, sensualidade, mistério… e inspiração.
Os pais que decidem fumar um com o filho, ETs preocupados com a maconha terráquea, a loja que vende as mais loucas ideias… RK reuniu em dez contos alguns dos aspectos mais engraçados e pitorescos do universo dos usuários de maconha, a planta mais polêmica do planeta. Inclui glossário de termos e expressões canábicos. O Ministério da Saúde adverte: o consumo exagerado deste livro após o almoço dá um bode desgraçado…