A cidade das almas boas

27mai2021

Arlindo de dia, Michele de noite. De dia, no banco, de gravata. De noite, fazendo caridade na esquina

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A CIDADE DAS ALMAS BOAS

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Arlindo de dia. Michele de noite. Das dez às quatro na agência da Caixa da avenida Santos Dumont, todo sério, camisa social fechada no punho, gravata, cabelo penteado. Depois das nove da noite numa esquina da rua Clarindo de Queiroz, salto plataforma e uma minissaia de couro sem nada por baixo, para facilitar na hora de mostrar o pauzão enorme aos carros que passam pela esquina diminuindo a velocidade.

Uma noite, passava pouco das nove, quando o fusca parou, e ele, ou melhor, ela foi lá falar com o sujeito. Era um velhinho. Michele sorriu, hummm, velhinho que curte travesti, faltava um desse em sua clientela. Putz, sujeira, era aquele velhinho da agência, setenta e seis anos, que todo mês ia lá receber a aposentadoria com a mulher, seu Claudemiro e dona Núbia, os dois sempre juntinhos de braços dados, gostavam tanto dele que queriam que namorasse a neta, uma tal de Ilana, quem sabe não saía um casamento.

Mas o velhinho felizmente não reconheceu Arlindo naquela esquina penumbrosa. Também pudera, toda montada com aquela roupa, peruca, maquiagem. Michele abriu a porta do carro e o velhinho afastou o pacote de pão para ela sentar. Depois, no motel ali pertinho, ele pediu que ela fosse com jeito, era sua primeira vez. Michele foi com jeito, claro, mas seo Claudemiro, de quatro na cama, com o fundo de garantia para cima, logo largou de besteira e disse que ela podia depositar tudo, tudo que ele tinha direito, e Michele, sempre profissional, seguiu as ordens do cliente. Uma hora depois o velhinho pagou os cem reais, agradeceu e a deixou de volta na esquina, muito distinto ele.

No mês seguinte, quando o casal voltou à agência para receber a aposentadoria, Arlindo não notou nada de diferente no comportamento dele, tudo normal. Ainda bem. Horas depois, à noite, não é que lá estava o velhinho novamente parando o fusca na esquina penumbrosa? Michele sorriu, satisfeita pelo retorno do cliente. Ele afastou o pacote de pão para ela sentar e tomou o rumo do motel, e repetiram a dose.

Um mês depois, na agência, enquanto seo Claudemiro contava o dinheiro sacado, dona Núbia comentou com Arlindo que qualquer dia levaria a Ilana para ele conhecer, que ele ia ver só a belezura de neta que ela tinha, que ele ia se apaixonar, e depois falou que Fortaleza estava cada vez mais violenta, que seu marido, coitado, fora assaltado duas vezes nos dois últimos meses quando voltava da padaria, nas duas vezes lhe levaram cem reais, coitado, não respeitavam mais nem um pobre velho. Arlindo escutava, solícito. E era um dinheiro que fazia muita falta, prosseguiu dona Núbia, pois a aposentadoria era pouca, os remédios caros, o filho era doente e não podia ajudar, ô mundo ingrato, ninguém dá a mão a ninguém. Tenha fé, Arlindo consolou-a, tenha fé que Deus vai prover.

Pois não é que Deus proveu mesmo? Desde então, seo Claudemiro nunca mais foi assaltado na volta da padaria. Coincidentemente, e isso cá para nós, é claro, também nunca mais pagou pelo programa com Michele. É que ela passou a sortear, todo mês, um cliente para ganhar um programa grátis, e o velhinho tem uma sorte danada, ganha todas.

A senhora tem razão, dona Núbia, a cidade está muito violenta. Mas, se procurar, a gente encontra umas almas boas por aí.

(Este conto integra a série Interações da Sacanagem, com contos baseados em termos de busca no Blog do Kelmer. Divirto-me bastante vendo os termos que as pessoas usam nos mecanismos de busca e que as fazem chegar em meu blog. Termos deste conto: travesti michele em fortaleza.)

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Ricardo Kelmer 2013 – blogdokelmer.com

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Este conto integra os livros

Indecências para o Fim de Tarde
Ricardo Kelmer – contos

Uma advogada que adora fazer sexo por dinheiro… Um ser misterioso e sensual que invade o sono das mulheres… Os fetiches de um casal e sua devotada e canina escrava sexual… Uma sacerdotisa pagã e seu cavaleiro num ritual de fertilidade na floresta… A adolescente que consegue um encontro especial com seu ídolo maior, o próprio pai… Seja provocando risos e reflexões, chocando nossa moralidade ou instigando nossas fantasias, inclusive as que nem sabíamos possuir, as indecências destes 23 contos querem isso mesmo: lambuzar, agredir, provocar e surpreender a sua imaginação. > saiba mais

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Quarentena Erótica
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