Matrix e o Despertar do Herói cap 3

28/08/2010

Matrix e o despertar do herói
A jornada mítica de autorrealização em Matrix e em nossas vidas
(Ensaio – Miragem Editorial/2005)
.

Usando a mitologia e a psicologia do inconsciente, Kelmer nos oferece uma visão diferente de Matrix, o filme que revolucionou o cinema, lotou salas em todo o mundo e tornou-se um fenômeno cultural, conquistando milhões de admiradores e instigando intensas discussões.

Em linguagem descontraída, o autor nos revela a estrutura mitológica do enredo de Matrix, mostrando-o como uma reedição moderna do antigo mito da jornada do herói, e o compara ao processo individual de autorrealização, do qual fazem parte as crises do despertar, o autoconhecer-se, os conflitos internos, as autossabotagens, a experiência do amor, a morte e o renascer.

Podemos ser muito mais que meras peças autômatas de uma engrenagem, dirigidos pelas circunstâncias, sem consciência do processo que vivemos. Em vez disso, podemos seguir os passos de Neo e todos os heróis míticos: despertarmos, assumirmos nosso destino e nos tornarmos, finalmente, o grande herói de nossas próprias vidas.

> saiba mais – compre o livro

.

.

Cap 3

NÃO EXISTE COLHER

.

crises do despertar

Neo é resgatado pelos rebeldes. Pela primeira vez em toda a vida sua mente está fora da Matrix, no mundo real. Muito debilitado pelos anos em que seu corpo ficou imobilizado no casulo, cedendo energia para as máquinas, Neo dorme e a tripulação cuida dele. Ele acorda e pergunta por que seus olhos doem. Morfeu responde que é porque ele nunca os usou. E finaliza: “Descanse, Neo. As respostas estão vindo”.

O indivíduo jamais sai impune de sua diferenciação da sociedade, pois a conquista da individualidade sempre cobra seu preço. As crises que envolvem o despertar deixam o ego fragilizado, pois pode ser bastante doloroso encarar a verdade sobre nós mesmos. É comum que tais descobertas abalem tanto o ego que a pessoa, num primeiro momento, adoeça, precisando de um tempo para se recuperar e retomar os afazeres normais do dia a dia. A psique, em sua capacidade autorreguladora, força a pessoa a diminuir o ritmo e cuidar de si nessa fase delicada.

Em certos casos, o corpo segue a mente e expressa o sofrimento do ser, somatizando o conflito interno e refletindo fisicamente o que se passa na dimensão da alma. Vêm daí certas doenças que devem ser entendidas num contexto mais amplo, como sintomas da crise psíquica.

Infelizmente, a maioria dos nossos médicos ignora essa dimensão psíquica do ser e por isso se concentra nos cuidados físicos e neurológicos, comprometendo o processo total de cura com seu entendimento restrito da natureza humana. Nessas ocasiões o médico geralmente não encontra causa alguma para a doença. Ora, não encontra porque procura no lugar errado. A doença física, aqui, é um sintoma localizado do desequilíbrio psíquico, pois o ego está sendo confrontado por conteúdos inconscientes, e isso ocorre porque o ego precisa evoluir, a pessoa precisa se tornar mais adulta. Por ignorar a realidade objetiva da psique, o médico também ignora que esse doloroso confronto é vital ao desenvolvimento do ego e, consequentemente, à saúde do ser total. Quando o médico desconhece que a doença já faz parte da cura, suas tentativas de exterminá-la a todo custo poderão também anular o potencial curativo que a doença oferece.

Esta noção mais ampla da saúde ainda é rara entre médicos, enfermeiros e psiquiatras, profissionais formados por escolas que tendem a ignorar a dimensão psíquica do ser. Felizmente, já existem profissionais que compreendem o ser de um modo holístico, o que os torna mais capacitados para ajudar as pessoas a entender melhor as razões de seus males. Isso nos dá esperança de que num futuro próximo as crises do despertar da consciência (e as crises psíquicas em geral) possam ser tratadas não como meras doenças, à base de comprimidos, mas como manifestações físicas e psicológicas de um processo de cura e crescimento que envolve todo o ser.

os olhos veem

Estamos num momento decisivo do processo. No começo eram indícios vagos e confusos, mensagens sutis vindas do inconsciente que inquietaram o ego, forçando-o a sair de seu quartinho. O ego começou a desconfiar que havia algo além do que sabia sobre si mesmo e passou a se investigar. Vieram as dificuldades iniciais, mas o ego persistiu em seu caminho de autodescobertas. Vieram novas dificuldades e a coisa ficou mais séria. É como se a vida dissesse: “Não era você quem queria ver o que há do outro lado de sua dúvida? Pois agora veja.”

Diante do perigo, o ego hesita. Ele pode recuar, levando a pessoa a se convencer de que essas coisas não têm importância, que é melhor não cutucar a onça… Infelizmente, às vezes basta um vislumbre do que estamos por descobrir sobre nós para nos afastarmos do caminho.

A jornada da autorrealização não é para fracos. Somente os que vencem o medo de se conhecer podem realizar a si próprios. Neo já sentiu esse medo quando tentou andar pelo parapeito do prédio e quase caiu. Sentiu pavor quando foi torturado pelos agentes. E, diante da estranha proposta de Morfeu, parou para avaliar se valeria mesmo a pena prosseguir…

O herói decidiu pagar para ver e tomou a pílula vermelha. O ego decidiu prosseguir e aceitou ver o que vinha do escuro do inconsciente. Isso fez o herói finalmente se confrontar com a realidade. E a visão dela foi tão dolorosa que o ego não resistiu e começou a morrer. E não poderia ser de outro jeito. Da mesma forma que os olhos de Neo doem por ele nunca ter usado antes, nós também sofremos por estarmos, pela primeira vez, olhando diretamente para dentro. Mas o que exatamente pode ser tão doloroso assim em nós mesmos? Resposta: tudo aquilo que incomoda e envergonha – mas que agora somos forçados a admitir como parte integrante de nossa personalidade.

Assumir que somos fracos, mesquinhos, mentirosos, medrosos, covardes, ciumentos, violentos, desonestos, enfim, assumir coisas que sempre julgamos inexistentes em nós é tarefa das mais difíceis. O ator principal tem de descer do pedestal de sua autoimportância, desculpar-se com a plateia e apresentar a ela os outros atores da peça, que ele antes desprezava ou sequer conhecia. O ator se sente humilhado.

Na vida real a plateia não são as pessoas ao redor, mas a nossa própria consciência. Podemos até enganar os outros, mas agora já não podemos seguir mentindo para nós mesmos. O ego está frente a frente com outros aspectos do ser e é impossível prosseguir ignorando-os, pois agora eles se comportam feito funcionários em greve que simplesmente paralisam as atividades e impedem o funcionamento normal da empresa, levando o ego-gerente ao desespero. A pessoa estará impossibilitada de viver sua vida normal enquanto se mantiver o caos psíquico.

Só há uma saída: o ego tem de assimilar o que vem do inconsciente e integrar essas novidades à consciência. No início é doloroso, mas logo os conteúdos assimilados fazem o ego mais forte e a psique finalmente se equilibra.

Por isso que é difícil para o indivíduo se desgarrar da sociedade: a floresta lá fora é escura. Poucos avançam quando o ego é chamado ao confronto com seus aspectos sombrios. O mais comum é tomar a pílula azul e tratar de esquecer certos assuntos. Os horizontes de quem não arrisca são menores, sim, mas no mundo das ilusões ao menos não temos de encarar a incômoda verdade sobre nós mesmos.

No entanto, sempre há quem tome a pílula vermelha, testando seus limites e assumindo todos os riscos da aventura de se conhecer. Fazem isso porque têm coragem, sim, mas também porque sentem que não podem deixar de fazê-lo, que morrerão frustrados se desistirem nesse ponto. Então dão o passo à frente.

Você já ouviu falar de Alexandre o Grande? Ele foi rei da Macedônia (atual região da Grécia) e viveu no século 4 antes da era comum. À frente de seus soldados conquistou reinos da Europa, África e Ásia, promovendo uma intensa troca cultural entre Ocidente e Oriente. Alexandre é considerado um dos maiores estrategistas militares da história. Uma das lendas a seu respeito diz que ele desembarcava seu exército na praia inimiga, retirava dos barcos as armas e a comida, reunia os soldados à beira-mar e mandava atear fogo aos próprios navios. Então, diante das chamas, gritava para a tropa: “Se quiserem voltar para casa e rever suas famílias, só temos uma opção: vencer a guerra e voltar nos barcos do inimigo.”

História interessante… Mas o que isso tem a ver com o processo de autorrealização? Tudo. Alexandre, ao queimar os próprios navios, tomava sua pílula vermelha, ou seja, tomava uma atitude drástica em relação a seu destino, obrigando a si mesmo a avançar e dar o melhor que pudesse. Para voltar para casa, seus soldados não tinham outra opção a não ser dar tudo de si, lutar com todas as forças que tivessem e algo mais. Eles eram obrigados a se superar. Por isso venciam.

Neo, ao aceitar a pílula vermelha, não age com excesso de confiança ou soberba. É justamente o contrário: ele está assustado e tem medo. Se soubesse o que o aguarda, talvez preferisse a pílula azul, como logo veremos. Nada lhe garante sucesso, mas ele, sentado naquela poltrona, parece escutar a intuição lhe sussurrar ao ouvido que sim, ele deve prosseguir, que somente assim saberá onde vai dar a toca do coelho. Somente dando esse temível salto no escuro é que o herói conhecerá o fim de sua própria história.

mais crises

Neo acorda de seu sono profundo. Sente-se melhor. Morfeu lhe explica: “Você acredita que o ano é 1997, mas é mais provável que estejamos em 2197.” Neo diz que isso é impossível. Morfeu continua: “Eu prometi a verdade a você e a verdade é que o mundo em que você vivia era uma mentira”.

Neo e Morfeu são conectados a um programa de realidade virtual onde Neo fica sabendo sobre a Inteligência Artificial, a guerra, a Matrix e o que aconteceu com o planeta. Neo reluta em aceitar que toda sua vida foi apenas um sonho gerado e mantido por máquinas pensantes. Angustia-se e é retirado do programa. Ele vomita e vai para seu aposento descansar. Aos poucos se recupera do choque e começa, finalmente, a aceitar a verdade.

Os acontecimentos que nos fazem encarar a verdade sobre nós mesmos têm força suficiente para desestruturar a vida. A verdade está à frente e não podemos mais fingir que ela não existe. Ou podemos?

Assim como Neo, mesmo desperto da Matrix, ainda reluta em aceitar a verdade, nós às vezes demoramos a reconhecer aquilo que já é evidente. Por quê? Simplesmente porque o velho ego ainda não morreu de todo e seus espasmos continuam.

Neurose. É o nome dessa tensão entre nossa verdadeira natureza e os interesses superficiais do ego ou os papéis a que sociedade nos obriga. As neuroses se manifestam porque já não é mais possível manter no inconsciente certos aspectos do ser, e ainda assim a personalidade consciente insiste em não reconhecê-los. Quanto mais tempo se prolongar essa tensão, mais a pessoa sofrerá até tornar a vida algo muito difícil de suportar.

Devemos ver a neurose com olhos mais otimistas – ela é um sinal de que estamos lidando com nossos conteúdos inconscientes, com a nossa própria natureza. Isso quer dizer que a psique está tentando se equilibrar entre seus opostos. Passamos maus bocados toda vez que o ego demora a reconhecer o que precisa ser reconhecido, sim, mas tudo isso faz parte do processo. O ego necessita de tempo para assimilar o que descobriu. Os mecanismos autorreguladores da psique têm sua sabedoria própria e por isso as descobertas do mundo interior se fazem aos poucos, para podermos digerir bem as novas informações, cada uma em seu devido tempo.

Morfeu tem de aguardar Neo se recuperar do choque causado pelo desligamento da Matrix para, só então, levá-lo a um programa de realidade virtual a fim de que ele entenda o que houve com o planeta e a humanidade. E ainda assim, com todos esses cuidados, Neo sofre bastante e precisa de mais tempo para aceitar, chegando a perguntar a Morfeu se ainda pode voltar à Matrix.

Nós também demoramos a aceitar o que realmente somos. A vida, porém, sempre trata de nos mostrar a verdade. Certos comentários a nosso respeito nos irritam? Aí está uma boa pista a seguir. Se tais comentários nos tiram do sério, talvez eles queiram nos dizer algo importante sobre quem somos mas receamos admitir. Quem está seguro em seu caminho não tem porque se incomodar com o que falam, mas, por outro lado, quem esconde algo de si mesmo será constantemente lembrado disso através de outras pessoas que, de alguma maneira, conscientes ou não, porão o dedo bem na ferida.

Outra boa pista é atentar para o que nos incomoda profundamente nos outros. Como projetamos inconscientemente aquilo que é incômodo dentro de nós, é nos outros que o veremos claramente e não em nós mesmos. Ter de conviver com essas pessoas parece um castigo, mas, na verdade, é uma ótima oportunidade para reconhecer nossas falhas. A agressividade que não reconhecemos em nós mesmos, nós a detectaremos em alguém agressivo, e isso poderá nos incomodar a tal ponto que não conseguiremos conviver com tal pessoa, pois ela sempre nos faz lembrar do que somos mas queremos esquecer.

O ego imaturo não permite que esses conteúdos inconscientes sejam reconhecidos pela consciência, e assim eles prosseguem agindo na surdina, influenciando a personalidade. Mas um ego maduro esquece o orgulho e reconhece, através de suas projeções, as falhas de sua própria personalidade. O autoconhecimento faz com que todas as pessoas sejam mestres para nós, nos ensinando o que precisamos saber sobre nós mesmos. Mas para isso precisamos de autocrítica e humildade em relação a nós, e de paciência e compreensão em relação aos outros. Precisamos treinar essas capacidades em nós para podermos praticá-las com menos dificuldade sempre que a vida exigir que avancemos ao nível seguinte de autorrealização.

Neo treina com Morfeu        

Após finalmente aceitar a verdade e se recuperar, Neo inicia seu treinamento para saber agir na Matrix. Ele é inserido num programa que simula a realidade da Matrix e consegue superar o mestre. Depois, aprendendo a saltar prédios, falha e cai, despencando sobre o asfalto.

O percurso rumo à autorrealização envolve várias situações em que será preciso admitir que o que se vivia era apenas uma ilusão. Para evitar lidar com a verdade, nós fugimos de nós mesmos. Essa fuga constante requer muita energia por parte do ego: ele se esforça a cada minuto do dia para manter as aparências, não somente para os outros, mas principalmente para si mesmo.

Nós fingimos que somos o que não somos e reprimimos o que na verdade sempre fomos. Ignoramos a voz interior que nos chama para uma conversa, e quanto mais ela insiste, mais abafamos sua voz com qualquer coisa que estiver à mão: trabalho, diversão, compras, sexo, drogas…

Com o tempo, essa tática acabará obstruindo o fluxo natural do crescimento e a crise virá num vendaval que arrancará as máscaras que o ego construiu com tanto esmero para si. O mundo de superficialidades se mostrará um cenário de papelão, os relacionamentos perderão a graça e muitas coisas que ocupavam tanto espaço na vida deixarão de fazer sentido. Teremos de admitir que vivíamos uma mentira, uma grande Matrix criada e mantida por nós mesmos, em nossa ânsia de fugir do que nos chamava.

É um momento perigoso para o herói. Para se proteger dos escombros de seu mundo que desmorona, muitos se refugiam em qualquer lugar que lhes acene com o mínimo de segurança. Muitos recorrem à religião ou às drogas. Há também aqueles que sucumbem ao cinismo e adotam uma postura sarcástica perante a vida, como se tivessem sofrido uma grande decepção amorosa. Há também aqueles que perdem o prumo e têm sua vida desorganizada a tal ponto que nunca mais a organizam de forma satisfatória. Há os que enlouquecem. E há os que desistem de viver.

Descobrir que a própria vida é uma mentira pode ser insuportável. Mas muitos conseguem assimilar a descoberta e prosseguir com suas vidas sem se entregar a novas mentiras. Buscam e encontram dentro de si mesmos o sentido maior para o sofrimento por que passam, e assim superam a crise. A experiência da dor e da superação os torna mais fortes e capazes, e eles prosseguem cada vez mais firmes rumo à concretização de suas potencialidades.

Neo aprende a lutar nos programas de simulação e termina por vencer o próprio mestre. Após nos livrarmos das mentiras que só consumiam nossa energia, podemos agora, como Neo, fazer o que realmente importa, nos capacitando a viver de modo verdadeiro, investindo em nossas vocações e lutando pelos sonhos mais íntimos. Sem o peso das mentiras que usávamos para nos proteger de nós mesmos, agora somos mais ágeis, nos movimentamos melhor pela vida. Estamos mais preparados. Mas o aprendizado não terminou. Falta, por exemplo, saber saltar prédios.

Morfeu, o princípio yang

Se Trinity representa valores mais femininos, Morfeu é a personificação do masculino na psique do herói. Morfeu é o princípio yang da personalidade: força criativa, liderança, incentivo, agressividade e capacidade de realizar. Morfeu é o líder da tripulação e foi ele quem libertou os colegas. Foi ele quem descobriu Neo na Matrix e primeiramente acreditou que ele era o Predestinado. Foi Morfeu quem enviou Trinity para contatar Neo. Foi ele quem mostrou a dolorosa realidade para Neo. Agora é ele quem o treina para lutar contra a Matrix.

O herói precisa desse aspecto Morfeu do ser. Todos nós precisamos crer que somos capazes senão nada conseguiremos realizar. Precisamos buscar nossa própria força para fazer o que devemos fazer. É esse importante aspecto da psique que nos mantém acreditando em nossos sonhos, por mais improváveis que sejam. Às vezes, quando tudo diz que não conseguiremos, é justamente o Morfeu que existe em nós que temos de localizar e fazer agir, pois ele não medirá esforços para lutar por nós. Ele é feito da inabalável fé que diz que nós somos predestinados.

A natureza agressiva do aspecto yang é bem visível nos homens, criados desde bebês para lidar com valores como força, liderança e empreendorismo. Mas eles precisam equilibrá-los com os valores femininos de sua psique senão se tornam seres psicologicamente desajustados, incapazes de levar adiante o processo de autorrealização.

Com as mulheres ocorre o mesmo, de modo inverso. Elas precisam de sua contraparte masculina para se equilibrar e serem mais coesas. A vida moderna exige das mulheres força e capacidade de liderança nos negócios, mas infelizmente muitas ficam exageradamente possuídas pelos valores masculinos e, assim como ocorre com os homens quando se deixam possuir demais pelos valores femininos, as mulheres também se tornam psicologicamente desequilibradas.

Confiar na vida e no próprio processo de crescimento é uma qualidade vital, forjada principalmente nos fracassos, pois são as derrotas que revelam os que são dignos de prosseguir no caminho. Nas situações difíceis, quando as incertezas e o sofrimento nos abatem, quando nada dá certo, lembre-se das lendas e dos mitos: as terríveis provas do herói jamais são à toa. É justamente o sofrimento que faz o herói amadurecer e se transformar, conseguindo assim, mais tarde, realizar o que antes lhe seria impossível.

É preciso confiar no processo, e isso inclui confiar inclusive no sofrimento pessoal, pois ele tem um propósito que mais adiante saberemos entender. É esta a lição de Morfeu: confie na vida, acredite em você e faça.

negar os instintos

Os tripulantes estão reunidos para comer. Dozer explica que as refeições da nave não são gostosas, mas são feitas de proteína unicelular, combinada com aminoácidos, vitaminas e minerais sintéticos, e que isso é tudo que o corpo precisa. Mouse, o mais novo, discorda: “Não é tudo o que o corpo precisa.” A seguir, Mouse comenta com Neo sobre a mulher de vestido vermelho do programa de simulação da Matrix. Afirma que foi ele quem o construiu e pergunta se Neo não gostaria de um encontro a sós com a mulher. Switch graceja: “O cafetão digital em ação…”.

“Não ligue. São hipócritas”, prossegue Mouse. “Negar nossos instintos é negar o que nos faz humanos”.

A espécie humana é apenas uma ramificação da longa cadeia evolutiva que teve início com organismos minúsculos e se diversificou pelo planeta em milhões de espécies. A maioria desapareceu pelo caminho, e entre as que chegaram vivas nos dias de hoje está o Homo sapiens, descendente direto de outras espécies de hominídeos que, por sua vez, descenderam dos primeiros primatas. Nossa espécie adquiriu elevado grau de autoconsciência e, por isso, deixou de ser guiada unicamente por seus instintos, construindo cultura. Sua mente refinou-se e adquiriu habilidades que levaram-na a dominar outras espécies, e agora seu impulso yang de conquistas segue rumo ao espaço sideral.

O Homo sapiens é uma espécie conquistadora, mas não tem poder sobre a Natureza e sequer consegue controlar a si mesmo. Nossos cientistas desvendam os segredos do Cosmos, mas apesar de todo o conhecimento adquirido, o ser humano permanece um grande mistério para si próprio.

A mentalidade científica nos fez pedantes e hoje nos cremos separados da Natureza, olhando para tudo ao redor com ar de superioridade. Mas o buraco é mais embaixo. Apesar de toda a cultura que construímos e de todos os avanços tecnológicos, ainda somos animais e, por isso, feitos de instintos. Continuamos fazendo parte da Natureza, assim como nossos peludos antepassados milhões de anos atrás.

Ironicamente, é a própria ciência que nos faz cair desse pedestal de soberba. Primeiro descobrimos que somos primos dos macacos e formamos com eles uma única família chamada primata, e depois as pesquisas revelaram que 97% de nossa constituição genética é igual a de alguns deles. Isso tudo contradiz nosso sentimento de superioridade e a crença de que, por sermos dotados de razão e pensamento abstrato, não mais fazemos parte da Natureza nem somos guiados por instintos como os bichos.

Os instintos são nossa ligação direta com a Natureza, inclusive a natureza humana. Negá-los é negar as nossas raízes e fugir do que somos. Em Matrix, os humanos rebeldes resistem a fazer parte do mundo das máquinas e, por essa razão, valorizar as características humanas faz parte da resistência. Máquinas não têm instintos (pelo menos ainda), e, como veremos quando o agente Smith expuser suas opiniões sobre os humanos, elas de certa forma se orgulham dessa autonomia em relação aos impulsos naturais. Para Mouse, porém, admitir os próprios instintos é justamente um modo de se diferenciar do mundo mecânico e previsível das máquinas e elevar a categoria humana. Reconhecer a própria humanidade é uma questão de sobrevivência.

Para que haja equilíbrio psíquico é preciso reconhecer a dimensão instintiva do ser e assimilar o que é natural em nós, aquilo que herdamos e transmitiremos a nossos descendentes, queiramos ou não. Se, ao contrário, reprimimos os instintos no inconsciente, nas regiões escuras que a luz da consciência não alcança, eles se desenvolvem sem o olhar crítico da consciência e ganham força para influenciar o comportamento do indivíduo de modo negativo e até destrutivo.

A discussão entre Mouse e os outros tripulantes pode ser vista como uma reedição da velha discussão sobre corpo e espírito. Apoc, Switch e Dozer criticam a sexualidade do jovem Mouse, certamente pensando que um humano liberto da Matrix deve concentrar sua energia no trabalho de salvar outros humanos, nas missões dentro do sistema e na luta contra as máquinas. É como se o interesse pelo sexo pudesse lhes desviar da prioridade e demonstrasse fraqueza de caráter.

Ideias desse tipo são comuns nos caminhos do autoconhecimento, principalmente quando há algum tipo de religiosidade envolvida. Para alguns a energia sexual deve ser reprimida para que a pessoa se concentre apenas no caminho da salvação. Mas, afinal, que diabo de salvação é esta que exclui algo tão natural e legítimo como o sexo?

Não podemos cair no erro de ter vergonha do corpo e dos instintos apenas porque almejamos nos tornar pessoas mais equilibradas ou espiritualizadas. Corpo e espírito são dimensões através das quais o ser atua e reprimir um ou outro sempre traz problemas. A consciência, mesmo ampliada, não deve se desgarrar de sua base instintiva sob o risco da psique se desequilibrar. O corpo tem suas necessidades e elas devem ser atendidas de forma saudável, caso contrário ele adoece. Não podemos nunca esquecer que também somos corpo e temos de entender sua linguagem, suas necessidades e nos tornarmos íntimos dele.

Sidarta também teve de entender isso antes de se tornar o Buda. Após anos de jejuns e privações numa severa vida de austeridade, ele arrasta seu fiapo de corpo sujo e mal-cheiroso até o rio e se banha. Depois aceita a tigela de arroz que lhe oferecem. Seus discípulos o abandonam, julgando-o traidor da causa ascética. Sidarta limpa seu corpo, aplaca sua fome e tem prazer nisso. Ele então entende que se sua antiga vida de príncipe era um exagero, a vida de negação ao corpo era o outro extremo do exagero. Para atingir a iluminação, ele precisou transcender aos dois extremos.

A sexualidade é um instinto que nos liga à nossa natureza animal. Se a reprimirmos, cedo ou tarde ela nos cobrará tal negligência, irrompendo do inconsciente e manifestando-se de forma descontrolada. Devidamente reconhecida e assimilada pela consciência, a sexualidade pode ser vivida de forma sadia, ampliando ainda mais a consciência de si, o mesmo ocorrendo com outros instintos como a fome, a autopreservação, a busca de significado e o instinto criativo, que leva à arte. É possível usar até mesmo a sexualidade para alcançar novos níveis do espírito.

A energia sexual nos faz sentir mais vivos, mais integrados com as leis naturais. Enquanto há sexo, há vida. Por isso é um alívio ver sexo em Matrix. Aplausos para Mouse e sua linda loira de vermelho. Um brinde à dança sensual dos corpos na festa de Zion. Viva o tesão urgente de Neo e Trinity no elevador!

o Oráculo

Mas que diabos um oráculo, coisa tão arcaica e misteriosa, está fazendo num filme como Matrix, num ambiente tão moderno e tecnológico? O Oráculo é um dos personagens mais intrigantes do filme. Sua participação na trama é fundamental, e por isso vale a pena nos debruçarmos um pouco mais sobre ele.

Oráculo é um instrumento (ou alguém ou um lugar) através do qual formulamos perguntas e recebemos respostas para as mais variadas questões. Mas de quem ou de onde vêm as respostas? De alguma divindade, de algum aspecto mais sábio de nós mesmos ou da própria Natureza, conforme a crença do consulente. Eles são comumente usados para esclarecer fatos do presente, para previsões do futuro ou como instrumento de autoinvestigação psicológica. A pessoa se concentra, formula a questão e obtém a resposta. Enquanto é processada a ritualística do oráculo, qualquer que seja ele (tarô, I Ching, runas etc.), o silêncio age em nossa mente, isolando-nos das preocupações cotidianas, e nos põe em contato com o essencial da questão.

Oráculos são utilizados por diversas culturas há milhares de anos. Como surgiram não se sabe ao certo, mas olhando para a evolução histórica da consciência, é óbvio que não há necessidade de oráculo enquanto a espécie humana ainda está no estágio de indiferenciação psíquica, ou seja, ainda não existe a autoconsciência e, por isso, não há a separação conceitual entre o eu e o mundo exterior. Nesse ponto do processo evolutivo hominídeos e Natureza coexistem num estado de total comunhão mística e tudo é uma coisa só, um imenso inconsciente. Como não existe ainda um ego para avaliar e entender o mundo, também não há necessidade de comunicação.

Entretanto, à medida que a espécie evolui, a consciência emerge e se diferencia do profundo oceano inconsciente, feito uma frágil ilhota, e a realidade se divide entre o eu e o não-eu. A espécie começa a se entender de forma distinta da Natureza e, consequentemente, pela primeira vez “olha” para o mundo e o interpreta. A Natureza, em suas diversas formas e manifestações, é para esses hominídeos algo absolutamente imenso e assombroso, muito além da compreensão. Deve ser mais ou menos nesse ponto que são desenvolvidas as primeiras formas de oráculos. Nossos antepassados, cada vez mais sentindo-se diferenciados da Natureza (ou expulsos do paraíso, como prefere a linguagem mitológica cristã), sentem necessidade de criar instrumentos para se comunicar com ela e entender seus humores e, assim, começam a “ler” a Natureza no comportamento dos bichos, no movimento das nuvens, nas folhas das árvores, nos sulcos da terra e, dessa forma, compreendendo o funcionamento do mundo, podem se proteger das feras, prever eventos e programar migrações.

Os primeiros oráculos são isso: a observação e interpretação primitiva do mundo em toda sua imensidão e mistério. Mas essa observação tem um caráter sagrado, numinoso, pois a Natureza aqui é uma divindade viva e, como tal, é reverenciada com o mais profundo respeito. A Natureza é a Mãe Terra, a generosa doadora da vida e sua mantenedora, o lugar de onde vêm e para onde voltam todos os seres.

Quanto mais a consciência se diferencia do inconsciente e o ser se firma em sua individualidade, mais a espécie se distingue da Natureza, entendendo-se como algo separado. Os oráculos surgem então, digamos assim, como um paliativo para compensar aquele perfeito estado natural de interação entre a espécie e o mundo, estado que fica irremediavelmente para trás com o advento da autoconsciência.

Atualmente, utilizamos oráculos modernos como as medições meteorológicas por aparelhos. Ah, mas isso é ciência!, você pode dizer. Sim, é ciência, mas só difere dos oráculos primitivos por envolver tecnologia, pois a motivação e os resultados são os mesmos. Os primeiros instrumentos oraculares eram um modo primitivo de fazer ciência, e nem por isso menos válido que o atual. Por estarem muito mais próximos da sabedoria natural do planeta, nossos antepassados sabiam se comunicar com ele. Nós, civilizados, é que nos afastamos tanto da Natureza que agora, para entendê-la, apelamos a uma parafernália de instrumentos que nem sempre traduzem corretamente os humores do planeta. Além disso, a Natureza perdeu seu caráter sagrado, e é por isso que não vemos nenhum problema em desrespeitá-la e violentá-la todos os dias.

Para entender a Natureza, nossos cientistas, vestidos em seus caros paletós e do alto dos pedestais acadêmicos, gastam fortunas construindo aparelhos sofisticados. Para fazer a mesma coisa, nossos antepassados cutucavam a terra ou observavam o comportamento dos pássaros.

oráculos da alma

Num determinado momento, nossos antepassados percebem que os oráculos podem ajudá-los não somente a entender o funcionamento do mundo como também compreender a eles mesmos. Descobrem que, compreendendo melhor sua própria natureza individual, podem viver melhor e mais harmonizados com o mundo. Nada mais natural, pois se os oráculos servem para entender a Natureza e, da mesma forma que plantas, nuvens e bichos, nós também fazemos parte dela, por que os oráculos não poderiam nos auxiliar a desvendar a nós mesmos?

Foram então criados oráculos, digamos, artificiais, voltados para temas relativos à alma, como o tarô moderno, que é uma evolução das cartas que já circulavam no século 14. Contrário ao que muitos pensam, a função principal do tarô não é dizer se vamos casar com o Adalberto ou se vamos passar no concurso do Banco do Brasil. Ele pode até nos responder sobre questões como essas, mas, na verdade, a estrutura de suas cartas nos revela algo mais profundo…

Analisando o tarô à luz do que hoje se sabe sobre a psique e seus arquétipos, suas cartas revelam uma espécie de mapa do caminho de autocompreensão, feito de imagens arquetípicas que funcionam como símbolos ou marcos desse caminho, indicando experiências pelas quais temos de passar durante a vida. As cartas do tarô são, assim, uma metáfora do processo de autorrealização, um espelho do mundo inconsciente.

As pessoas que possuem sensibilidade e intimidade com o mundo simbólico podem ler a vida através das cartas ou dos hexagramas do I Ching, assim como nossos antepassados liam a Natureza por suas manifestações. Em muitas culturas os sonhos também são vistos como oráculos, e ainda hoje os governantes consultam pessoas para a interpretação de seus sonhos. Hoje, a psicologia do inconsciente, principalmente a junguiana, entende os sonhos como a autoexpressão da psique, um drama que se desenrola do ponto de vista do inconsciente e que visa levar ao ponto de vista do ego informações, em forma de símbolos, sobre o eu total, promovendo assim a autorregulação psíquica. Vistos dessa ótica, os sonhos são, de fato, oráculos, pois através deles podemos ler a natureza humana.

Os oráculos, no século 20, se tornaram populares no Ocidente por conta do modismo esotérico que leva as pessoas a comprar tudo que lhes promete fornecer o sentido que falta às suas vidas. É mais uma das tantas armadilhas de nossa cultura consumista, pois o sentido da vida é algo que se descobre por si só e não que se compra na lojinha mística para pagar de três vezes no cartão. O fato de se consultar um oráculo não significa, por si só, que se está apto a captar o sentido da mensagem recebida. Para isso a pessoa deve se livrar dos bloqueios e autoenganações que a impedirão de compreender, verdadeiramente, a resposta do oráculo.

No filme Matrix, o Oráculo soa como um contrassenso: num mundo supertecnológico e racional que importância teria uma senhora vidente, cheia de mistérios e profecias? Muita importância. O Oráculo no filme representa o sagrado em nossas vidas, o numinoso, um mistério que é maior e mais antigo que nós e pelo qual nutrimos profunda fé e respeito. Pode ser uma religião formal ou uma crença religiosa particular. Pode ser o amor, a arte ou uma conexão intuitiva com a Natureza, o Cosmos, a humanidade… Mas sempre será algo diante do qual baixamos a cabeça reverentes – justamente porque nos sentimos ligados a esse mistério maior.

O sagrado é obscuro, misterioso, arredio ao intelecto e jamais o definiremos com exatidões científicas, mas sem ele podemos ficar à deriva no grande caos da existência. Perder de vista nossos valores mais sagrados nos desequilibra. Que seria dos resistentes de Matrix sem a confiança no Oráculo? Eles o consultam e respeitam suas mensagens e previsões porque ele é a âncora com o sagrado em suas vidas, e é isso que os mantêm fortes, unidos e esperançosos.

voltando à Matrix

Morfeu leva Neo de volta à Matrix para consultar o Oráculo. Durante o percurso pelas ruas, dentro do carro, Neo olha silencioso pela janela e comenta que costumava comer num restaurante daquela rua.

Já passamos pelo choque de descobrir a verdade sobre quem somos. Passamos também pela crise que envolve esse momento delicado: adoecemos, tivemos a vida virada de cabeça para baixo, fomos tentados a voltar atrás e, por fim, assimilamos bem tudo que descobrimos sobre nós mesmos. Agora estamos recuperados do choque e aos poucos a vida retoma seu curso normal. Voltamos ao cotidiano sabendo mais sobre quem somos e o que queremos. Estamos mais fortes e mais equilibrados.

No entanto, como a evolução da consciência se faz em espiral, será inevitável que passemos pelo mesmo ponto, num outro nível. Isso significa que poderemos ser envolvidos novamente nas mesmas situações de antes e, se não estivermos suficientemente preparados, haverá um grande perigo de cairmos em tentação e falharmos.

Na Matrix, o carro segue pelas ruas e Neo observa em silêncio a cidade, as pessoas nas calçadas… Parece vagamente saudoso de sua vida anterior, esse tempo em que ele ainda não conhecia a verdade, e chega a comentar que comia muito bem num restaurante daquela rua, certamente um macarrão ao molho bem mais gostoso que a ração servida na nave.

Aqui, do lado de fora da tela, na vida real de cada um de nós, também passamos por situações como a de Neo, obrigados a vivenciar novamente situações que vivíamos antes do despertar, lugares e pessoas que parecem pertencer a uma época anterior de nossas vidas. Isso funciona como teste para o ego, que se vê envolvido pelo clima dos antigos valores.

É comum que o ego sinta certa nostalgia de quando não tinha tantas responsabilidades para consigo mesmo, um tempo sem compromisso com o autoconhecimento. Podemos comparar com a sensação que nos passam as crianças, elas e sua inocência, sua despreocupação com as coisas do mundo, algo que nos dá uma espécie de saudade. Mas isso faz parte da jornada, e após despertos, precisamos voltar ao mundo para viver nossa vida, com toda a intensidade que for necessária, e isso nos obrigará a lidar com as mesmas situações de antes. Podemos ir aos mesmos lugares e estar com as mesmas pessoas de antes, e até fazer tudo que fazíamos. Agora, porém, tudo é diferente, pois nós estamos diferentes. Nossa consciência se encontra num outro nível da espiral.

entortando a colher

Enquanto aguarda ser atendido, Neo observa uma criança careca vestida como monge budista. Ela entorta uma colher sem tocá-la e depois lhe pede que faça o mesmo, dizendo: “Não tente entortar a colher. Isso é impossível. Em vez disso, tente apenas perceber a verdade.”

“Que verdade?”, pergunta Neo, curioso.

“Não existe colher. Então verá que não é a colher que entorta. É você mesmo.”

Entortar a colher é o primeiro feito extraordinário de Neo na Matrix. Aliás, frente aos que ele ainda realizará, este é bem modesto. Mas o que importa aqui é que, pela primeira vez, Neo quebra as regras, ou seja, contraria as leis que regem o mundo na Matrix. Ele, porém, só realiza este pequeno milagre porque compreendeu, de verdade, que ele e a colher são a mesma coisa, a mesma realidade. Ele não apenas concordou com a ideia e pensou que pode ser assim. Não. É algo mais profundo: ele de repente soube que é verdade.

Há milhares de anos que os místicos de diversas tradições, como o Taoísmo e o Budismo, insistem que a separação que vemos entre as coisas é apenas aparente. Na verdade, tudo que existe, objetos, pessoas, animais e plantas, tudo está unido de uma forma que nossos sentidos não captam, e é justamente por causa dessa unicidade que os místicos sempre ensinaram: para mudar o mundo, mude a você mesmo.

Se nós e o mundo que nos cerca somos a mesma coisa, então o que fizermos a nós estaremos fazendo ao mundo. Se tudo que existe está interconectado, então nada escapa à ação de algo. Se Neo e a colher são a mesma coisa, não é necessário entortar a colher: basta que Neo mova a si mesmo.

Essa verdade, que era exclusiva do misticismo, passou a ser compartilhada no século 20, por incrível que pareça, pela ciência. Descobertas em diversas áreas parecem concordar com a ideia da unicidade cósmica. Na física, os cientistas, pesquisando o estranho mundo do interior do átomo, constataram que as partículas, de algum modo ainda obscuro, se comunicam entre si. A física quântica chocou os próprios cientistas ao concluir que não existe a tal neutralidade científica, pois para se determinar a profunda natureza de qualquer objeto, o observador deve incluir na análise o próprio ato de observar, o que inevitavelmente envolve observador e observado no mesmo fenômeno. Em outras palavras: a realidade em si não existe. O que existe é a nossa interação com ela.

Outras descobertas rumam para a mesma conclusão. Na ecologia já se trabalha com a teoria que a Terra é um imenso organismo vivo, dotado de inteligência própria, e tudo que nela existe, seres, plantas e minerais, são como órgãos desse imenso organismo. A psicologia, com Jung, apresentou ao público a ideia de inconsciente coletivo e sincronicidade, ou seja, a união de todos os inconscientes, através do qual pode se processar a comunicação e os acontecimentos se relacionam significativamente entre si em forma de coincidências.

Tudo se influencia porque tudo faz parte de uma coisa só. Essa verdade cabe bem no mundo globalizado de hoje, onde as economias dos países se afetam umas às outras instantaneamente e as pessoas estão interligadas por seus computadores. A tecnologia parece confirmar, à sua maneira própria, o que as milenares tradições místicas sempre afirmaram: tudo é uma coisa só.

Se tudo está mesmo interconectado, inclusive as pessoas e suas mentes, então seria possível fazer o que Neo fez com a colher. E por que eu tento e não consigo?, você pode perguntar. Certamente porque você, em seu íntimo, não acredita nisso, não sabe disso. Seria fácil demais se nos bastasse dizer para nós mesmos que podemos desviar aquela bola para o gol para que, efetivamente, nós a desviássemos. Infelizmente, isso não basta. “Não pense que é, saiba que é”, diz Morfeu para Neo a certa altura do filme. Está justamente nesse detalhe a chave do enigma. Precisamos não apenas concordar com essa verdade, mas vivê-la profundamente, em nossa mente, em cada átomo de nosso corpo. Precisamos saber que é real em vez de apenas concordar que pode ser.

Em outra cena Morfeu ensina Neo a saltar entre prédios. Tudo que ele precisa é saber que aquilo não é real, ou melhor, que ele está num programa e pode burlar suas regras. Neo se concentra, diz para si mesmo que está entendendo, corre e salta, todo confiante. E cai lá de cima, direto no asfalto. Por que não conseguiu? Porque sua mente ainda funcionava dentro das tradicionais leis físicas, e é como se elas, no instante do salto, lembrassem a seu corpo que a gravidade existe e ela sempre o levará para baixo.

Mudarmos a nós mesmos para mudar o mundo – esta é a lição que Neo começa a aprender com a garotinha. A mesma lição com que todos nós teremos de lidar na jornada em busca da completude.

o mistério do Oráculo

O Oráculo examina Neo e diz que ele tem o dom, mas parece esperar por algo, talvez sua próxima vida. Neo ainda acha que não é o Predestinado.

Quando Neo ainda se recupera em seu aposento na nave, tentando assimilar a terrível verdade que lhe foi revelada, Morfeu lhe conta sobre o surgimento da Matrix e a profecia do Oráculo que diz que um dia alguém surgirá para libertar a humanidade de sua prisão mental. Depois diz que embora eles, os resistentes, não costumem despertar alguém após certa idade porque a mente simplesmente se recusa a aceitar a realidade, ele decidiu correr o risco com Neo porque acredita que sua busca (a dele, Morfeu) finalmente terminou.

Neo fica encucado com essa história de Predestinado. Depois Tank, o operador da nave, comenta: “Cara, se você for mesmo quem dizem que é…” Neo fica cada vez mais confuso. Por fim, Morfeu diz que irá levá-lo para que o Oráculo o veja. Essas atitudes mostram que os rebeldes valorizam bastante o Oráculo e têm por ele forte respeito.

Enquanto seguem no carro para o encontro, Neo pergunta a Trinity sobre o que lhe dissera o Oráculo. O assunto parece incomodá-la e ela não responde. O mistério em torno do Oráculo aumenta.

Neo e Morfeu chegam ao prédio. É um lugar simples e um tanto sujo. Tomam o elevador, compenetrados, e à porta do apartamento Morfeu lembra: “Eu disse que o levaria até a porta. Você é quem tem de abri-la.” Neo pensa um pouco. O espectador também: o que acontecerá dessa vez? Neo estica o braço, mas a porta se abre antes que ele a toque. Mais tarde entenderemos que Neo ainda não está preparado para aceitar a si mesmo, para abrir a porta que o levará à sua verdade mais íntima.

Uma mulher os saúda e diz que logo serão atendidos. Na sala crianças brincam de entortar e fazer levitar objetos: são mentes com potencial para despertar da Matrix. Elas já sabem manipular os códigos do sistema e, por esse motivo, alteram as leis físicas da Matrix.

Quando enfim Neo se encontra com o Oráculo, descobre-se que o Oráculo não tem nada demais. É uma senhora negra, de meia idade, que o atende na cozinha, de avental, e está ocupada com os biscoitos no forno. Simpática, ela acende um cigarro e dá um gole em algo que lembra uma caipirinha caseira.

“Não se preocupe com o vaso”, ela diz. Neo não entende: “Que vaso?” Quando se vira para procurá-lo, seu braço bate num vaso sobre o móvel e o derruba ao chão, estilhaçando-o. Confuso, pergunta como ela sabia que ele o derrubaria. E ela: “O que vai encucá-lo mesmo é isso: você o teria quebrado se eu não houvesse falado nada?”

Ela olha atentamente para Neo: “Você é mais bonito do que eu pensava. Agora entendo porque ela gosta de você”. Ele pergunta: “Ela quem?” Ela sorri e diz: “Mas não é muito esperto.” A senhora põe o óculos e pede para examiná-lo: olha seu rosto, abre sua boca, pede que diga “Aaah…” como num exame médico. Isso nos faz lembrar, por contraste, da frieza da medicina tecnológica atual, do distanciamento dos médicos que, em sua soberba, não se importam se sua grafia nas receitas não são entendidas e às vezes sequer olham para seu paciente.

Ela olha suas mãos: “Muito interessante, mas…” Neo, curioso, pergunta: “Mas o quê?” Ela responde: “Mas é claro que você sabe o que vou dizer”. Neo então entende ao seu modo e conclui: “Não sou o escolhido”. O Oráculo larga suas mãos: “Sinto muito. Você tem o dom, mas parece que está esperando algo.” Ele pergunta o que pode ser e ela responde: “Sua próxima vida, quem sabe.”

profecias

É interessante o modo como foi conduzida a questão do oráculo. Primeiro, os rebeldes o citam e o espectador fica curioso. Depois a expectativa cresce quando falam da profecia sobre o Predestinado. O silêncio de Trinity só aumenta o mistério. De repente, o Oráculo não é nada do que se podia esperar, mas ainda assim surpreende com sua aparência e atitudes.

A conversa entre Neo e o Oráculo é perfeita: mostra que oráculos, na verdade, não dão resposta alguma, mas apenas servem de instrumento para que enxerguemos a resposta dentro de nós mesmos. Se não conseguimos olhar o suficiente para dentro, jamais entenderemos o significado mais profundo da resposta que nos foi dada. Assim sendo, as mensagens de um oráculo só fazem sentido se entendidas dentro do próprio universo cognitivo de quem pergunta.

Numa consulta a qualquer oráculo é determinante a posição do consulente, pois a resposta só será compreendida se a mente estiver receptiva, sem verdades preconcebidas e falsas expectativas. A resposta sempre vem, mas nem sempre se está preparado para compreendê-la. No estado em que se encontra, confuso e temeroso de assumir a grande responsabilidade de um salvador da humanidade, qualquer resposta de qualquer oráculo seria também entendida por Neo como um “você não é o escolhido”.

Neo parece sentir alívio com a declaração. Depois fala de Morfeu, e o Oráculo diz que todos lhe devem muito, que ele é muito importante. E profetiza: “Ele crê tanto nisso que se sacrificará por você. E você terá que escolher: numa mão terá sua vida, e na outra, Morfeu. Um dos dois morrerá”.

No fim, todas as profecias do Oráculo se realizam: o Predestinado veio, Trinity apaixonou-se por ele, Morfeu sacrificou-se e Neo teve de escolher entre salvar a si e ao amigo. Escolheu o amigo ao decidir retornar à Matrix. E por causa disso morreu. Morreu, mas ressuscitou. “Quem sabe numa outra vida…”, dissera o Oráculo. Na cena do helicóptero Neo está pendurado por uma corda e segura Morfeu. Numa mão ele segura a si próprio e na outra o amigo: é a profecia que se cumpre literalmente.

As profecias sempre nos intrigaram. Será mesmo possível prever o futuro? Como saber sobre algo que ainda não aconteceu? Isso nos remete à natureza do tempo, essa coisa tão impalpável e escorregadia. Nós sabemos o que o tempo é, mas só quando não pensamos, pois logo que pensamos nele, já não sabemos mais.

Se é possível prever o futuro, então automaticamente abre-se a possibilidade de alterá-lo. Se há a alteração, então o futuro previsto não acontece. Se ele não acontece, então não era o futuro. O que era então? Isso nos remete a outros aspectos da questão: os futuros hipotéticos. Talvez existam várias possibilidades de futuro e elas possam ser acessadas, nos permitindo participar no processo de determinação do futuro que efetivamente acontecerá. Ou seja: o futuro, assim como o tempo em si, necessita da consciência para existir.

Veja o vaso que Neo quebra. Exercitemos as possibilidades da questão. Ele o teria quebrado se o Oráculo nada falasse? Isso não podemos saber. Mas analisemos. O Oráculo conhece o futuro. Assim sendo, se ele sabe que Neo quebrará o vaso, então não precisa falar para que o destino se cumpra. Ou precisa? O fato é que fala. Por quê? Será que quer apenas mostrar suas capacidades, feito um cartão de apresentação? E se sabe mesmo do futuro, por que não retira o vaso ou alerta Neo de forma mais cautelosa? Bem, se assim fizer, o futuro que ele previu não se cumprirá, e dessa forma o Oráculo agirá contra si mesmo, o que não faz sentido.

Como explicar as profecias que se cumprem? Seria tudo mero acaso, coincidência? Talvez a profecia em si mesma seja justamente a força que leva os acontecimentos a se realizarem de forma a cumpri-la, uma espécie de autossugestão, ou seja, o futuro passa a existir potencialmente porque foi anunciado. Ou não? Será que o futuro realmente já está escrito?

Há quem entenda as profecias como autênticos flagrantes de falhas no entendimento unidimensional do tempo, comprovando que o tempo não é algo linear que vem do futuro, passa pelo presente e segue para o passado ou, como queira, é algo que vem do passado que já aconteceu, passa pelo presente que vivemos e se abre em perspectivas de futuro. Em vez de uma linha reta, talvez o tempo esteja mais para uma teia, algo que só faz sentido se for entendido em seu todo, de uma vez só. Para entender o fenômeno das profecias talvez seja necessário pensá-las não em termos de causa e efeito, mas como ocorrências sincrônicas que se explicam mutuamente, algo cujas partes se sustentam umas às outras ao mesmo tempo e não podem ser totalmente entendidas separadamente. Neo quebrou o vaso porque o Oráculo falou, e o Oráculo, por sua vez, fala justamente porque Neo quebrará o vaso.

o tempo

Está vendo? Conjeturar sobre o tempo é um exercício que, em vez de nos trazer certezas, nos deixa com mais dúvidas. Entretanto, para o nosso estudo, gostaria apenas de fazer mais uma breve reflexão. Se o tempo futuro ainda não existe e o tempo passado não existe mais, o que existe então? O tempo presente, você pode dizer. Certo. Mas quanto tempo dura o presente? Um minuto? Um segundo? Mas um segundo pode ser dividido em infinitas partes, e cada uma dessas em infinitas outras partes. Em qual delas estaria o tempo presente?

Não importa em quantas zilionésimas partes dividamos o tempo. Sempre poderemos dividi-lo em partes menores, e assim jamais localizaremos seu núcleo final onde poderia estar o agora. Simplesmente porque o agora não existe, assim como não há futuro e nem passado: é tudo abstração. O tempo é como alguém que virá ou que já se foi, jamais alguém que está. Nós nos posicionamos para flagrar o momento exato de sua passagem e quando nos damos conta… o tempo já passou.

Agora danou-se. Se o tempo não existe, o que existe então?

A psique. É ela que inventa o tempo. E o faz no momento em que a consciência nasce do inconsciente atemporal, pois, para se manifestar, a consciência precisa de um veículo, o corpo, que por sua vez precisa de um plano formado de três dimensões espaciais (altura, largura e profundidade) e uma temporal. É o cruzamento dessas dimensões, o espaço-tempo, que fornece as coordenadas exatas para a manifestação da consciência.

Quando o ser se dá conta que existe, ou seja, quando surge a autoconsciência, automaticamente surge o tempo. Porém, se a consciência se detém sobre a natureza do tempo, pode perceber que ele na verdade só existe como uma dimensão necessária para que ela possa atuar, e que talvez seja mesmo possível à consciência ir além da dimensão temporal à qual está limitada e acessar o inconsciente atemporal de onde veio para, assim, distinguir informações do passado ou do futuro e, inclusive, fazer profecias.

Putz, o cara viajou… Viajou no tempo. Pois é. Se é possível uma máquina do tempo, o meu palpite de viajandão é que ela já existe. Já está construída. Ou em contínua construção. É a consciência.

autoconfiança

O fato de Neo não acreditar que é o Predestinado é compreensível, afinal trata-se de uma responsabilidade enorme, terrivelmente incômoda, principalmente para alguém que até pouco tempo atrás ainda vivia na Matrix, imerso num mundo de ilusões. Coisa parecida ocorre no caminho da autorrealização. Sentimo-nos capazes de realizar muitas coisas, mas ao mesmo tempo nos retraímos, desconfiados de nós mesmos, temerosos de assumir responsabilidades.

Os amigos confiam em nós. As pessoas dizem que temos talento. E nós, o que pensamos sobre nós? Até nos convencermos de toda nossa potencialidade e mostrarmos a nós próprios que somos capazes, muita água rolará por baixo da ponte. Teremos muitas noites mal dormidas, envoltos em dúvidas e hesitações. Rezaremos pedindo luz, procuraremos oráculos, insistiremos em receber a aprovação das pessoas para nossos projetos…

Nada, porém, poderá fazer o trabalho por nós. E o trabalho consiste em nós mesmos nos convencermos de quem somos. Mas não adianta pressa, pois cada um tem seu próprio tempo. A convicção amadurece em nosso ser à medida que nos mantemos atentos ao caminho e fazemos o que deve ser feito. Cada autodescoberta nos faz mais fortes e mais cientes de que estamos no caminho certo. À medida que o herói avança e vence os obstáculos, mais capaz ele se torna.

A sociedade repressora já tentou de tudo, mas o indivíduo prossegue rumo à sua individualidade. Cada vez menos ela pode contra ele.

(continua)

.

Ricardo Kelmer – blogdokelmer.com

.

.

CONTEÚDO INTEGRAL DO LIVRO

Cap. 1 – Cinema, mito e psicologia
Cap. 2 – Toc, toc, toc… Acorde, Neo!
Cap. 3 – Não existe colher
Cap. 4 – Morrendo para vencer
Cap. 5 – Matrix Reloaded e Matrix Revolutions
Cap. 6 – Os personagens
Cap. 7 – Quadro comparativo

.

> saiba mais – compre o livro

.

.

Seja Leitor Vip e ganhe:

 Acesso aos Arquivos Secretos
Descontos, promoções e sorteios exclusivos
Basta enviar e-mail pra rkelmer@gmail.com com seu nome e cidade e dizendo como conheceu o Blog do Kelmer (saiba mais)

.

.

Comentarios01 COMENTÁRIOS
.


Matrix e o Despertar do Herói cap 2

28/08/2010

Matrix e o despertar do herói
A jornada mítica de autorrealização em Matrix e em nossas vidas
(Ensaio – Miragem Editorial/2005)
.

Usando a mitologia e a psicologia do inconsciente, Kelmer nos oferece uma visão diferente de Matrix, o filme que revolucionou o cinema, lotou salas em todo o mundo e tornou-se um fenômeno cultural, conquistando milhões de admiradores e instigando intensas discussões.

Em linguagem descontraída, o autor nos revela a estrutura mitológica do enredo de Matrix, mostrando-o como uma reedição moderna do antigo mito da jornada do herói, e o compara ao processo individual de autorrealização, do qual fazem parte as crises do despertar, o autoconhecer-se, os conflitos internos, as autossabotagens, a experiência do amor, a morte e o renascer.

Podemos ser muito mais que meras peças autômatas de uma engrenagem, dirigidos pelas circunstâncias, sem consciência do processo que vivemos. Em vez disso, podemos seguir os passos de Neo e todos os heróis míticos: despertarmos, assumirmos nosso destino e nos tornarmos, finalmente, o grande herói de nossas próprias vidas.

> saiba mais – compre o livro

.

.

Cap 2

TOC, TOC, TOC… ACORDE, NEO!

.

seguindo o coelho branco

A primeira cena de Neo o mostra em seu pequeno apartamento, adormecido sobre a mesa. Um ruído no computador chama sua atenção. Sonolento, ele observa que alguém tenta se comunicar. A mensagem na tela diz: “Acorde, Neo…” Ele não entende. Surge outra mensagem: “Siga o coelho branco”. Intrigado, hesita ante o teclado e lê a mensagem seguinte: “Toc, toc, toc…”.

Neo escuta batidas na porta e, confuso, vai abrir. São amigos que foram buscar uma encomenda e o convidam para uma festa. Ele pensa em recusar, mas vê um coelho branco tatuado nas costas da garota e aceita.

Na festa, uma desconhecida chamada Trinity se aproxima e, sussurrando em seu ouvido, diz que sabe de suas noites mal dormidas, de suas dúvidas e da pergunta que o move. Neo escuta surpreso. Como ela sabe tanto sobre sua vida?

O processo de autorrealização é um impulso natural da psique. De modo geral, ele se manifesta primeiramente através de algum tipo de curiosidade, dúvida ou insatisfação pessoal. É preciso que haja algum incômodo para que o indivíduo se sinta impulsionado a agir. Esta é a isca que a psique utiliza para atrair a atenção do ego, a personalidade consciente, para a questão. Um ego acomodado em seu mundinho de interesses imediatistas jamais terá motivação para buscar outros níveis do eu total. É necessário que uma força maior que o ego agite as águas do fundo do oceano inconsciente e faça com que as ondinhas cheguem até a superfície da consciência, incomodando o ego. É preciso sacudir o ego e despertá-lo. É hora de transformação.

No caso de Neo, ele desconfia que há algo errado com a realidade. Em suas buscas na internet, colhe pistas vagas sobre a existência de uma tal Matrix e tem curiosidade sobre um sujeito chamado Morfeu, que é considerado um perigoso fora-da-lei. Algo o atrai e fascina nesse homem: ele parece ser forte, inteligente e destemido, e desafia as autoridades em ações ousadas, sempre desaparecendo em seguida. Depois surgem aquelas mensagens no computador, a coincidência do coelho branco tatuado… E agora essa intrigante garota Trinity que sabe muita coisa sobre ele. Afinal, o que está acontecendo?

A curiosidade em relação ao que seja essa tal Matrix traz inquietação à vida de Neo. É a imagem do Graal que surge para os cavaleiros do rei Artur, impelindo-os a buscá-lo na floresta. É o início do processo. E é assim que também ocorre com todos nós. As mensagens de Trinity no computador representam, no processo de autoinvestigação psicológica, o primeiro contato com o inconsciente. Todo início é assim, confuso e feito de pistas e indícios sem consistência. São ideias sobre nós mesmos e nossas vidas que surgem no pensamento e ficam a nos instigar. Se até então o ego nunca precisou voltar a atenção a outros aspectos do ser, agora, porém, ele tem de abandonar seu mundo seguro se quiser descobrir o que o inquieta.

É bastante significativo o fato de que a primeira cena de Neo o mostra em seu quarto, pequeno e fechado, um ambiente escuro e claustrofóbico. Em nossas vidas é exatamente assim que o ego se comporta, fechado e acomodado em si mesmo. O ego tende naturalmente a ser egocêntrico. O processo do despertar, porém, exige que o ego abandone a segurança do quarto em que sempre viveu e saia para conhecer o mundo, ou seja, vivenciar outros aspectos do ser total. Visto por este ângulo, torna-se bem emblemática a primeira frase dirigida ao nosso herói: “Acorde, Neo!”

Então começam as transformações para o ego. De repente, a vida não é mais tão tranquila como antes, as certezas já não são tão certas e algumas coisas não funcionam tão bem quanto funcionavam. De repente, nos sentimos incomodados, agindo de modo estranho e desconfiando de certas ideias que sempre foram indiscutíveis. A noção que temos de nós mesmos, segura e inquestionável, começa a se mostrar não tão verdadeira assim. Agora, parece que há algo errado com o mundo.

Na verdade, nada está errado com o mundo. O mundo é o que é. Nós é que estamos diferentes e, exatamente por isso, começamos a entender o mundo de maneira diferente. É bom nos acostumarmos logo: cada vez que nos transformamos, o mundo também se transforma. Nada mais natural, afinal fazemos parte do mundo, não é? É como se tudo fossem espelhos a se refletirem o tempo todo: por menor que seja nossa mudança pessoal, ela será refletida pelos outros.

Uma vez que o processo de autorrealização começa a se manifestar, será impossível prosseguir sem se transformar, pois para atingir novos níveis de realização, teremos de descobrir quem na verdade somos. Não poderemos mais nos enganar em relação a nós mesmos. Quem se descobre, naturalmente se transforma.

Em certos casos, é uma relação amorosa que provoca esse incômodo inicial, pois o parceiro parece possuir uma certa capacidade de nos fazer descobrir coisas desagradáveis sobre nós mesmos. Isso nos indispõe com ele, mas por mais que arrumemos um culpado para nosso mal-estar, já não é mais possível fazer de conta que ele não existe. O incômodo está lá, feito um espinho em algum lugar do ser, e é uma questão de tempo entendermos que o que verdadeiramente incomoda está em nós mesmos e não em outra pessoa ou em certas situações.

Você já experimentou uma sensação parecida com essa, lembra? Foi na adolescência, quando começou a deixar de ser criança e estava se transformando em algo diferente. Tudo mudava em você, seu corpo, suas ideias, as atitudes. Era como se você estivesse deixando de ser você para ser um outro você, sem no entanto deixar de ser você mesmo.

A adolescência é um bom exemplo do tipo de transformação que aguarda aqueles que seguirão o coelho branco em suas vidas. A diferença é que enquanto na adolescência estamos construindo verdades e conceitos que a partir daí pavimentarão nosso caminho, agora o chamado interior do autoconhecimento exige que nos desfaçamos de nossas próprias verdades se quisermos prosseguir.

A pessoa precisa reconhecer outros aspectos do ser, mas se o fizer deixará de ser quem sempre foi. Isso soa como morte para o ego. Exatamente por esse motivo é que nunca aceitamos muito bem a própria transformação.

primeiras repressões

Na manhã seguinte, Neo acorda tarde e chega atrasado ao trabalho. Seu superior o repreende e o aconselha a se adequar às normas da empresa. Ele o acusa de se achar melhor que os outros e ter problemas com a autoridade, e o ameaça de demissão. Neo escuta e, temeroso, nada responde. Na janela, pelo lado de fora, um funcionário limpa a vidraça.

O processo já foi iniciado. As águas profundas do inconsciente se agitam e as ondinhas alcançam a praia da consciência. Incomodado, o ego agora terá de abandonar sua antiga e tranquila posição caso deseje satisfazer a curiosidade, dissipar suas dúvidas ou parar com seu sofrimento.

Se a autorrealização é um impulso natural da psique, por outro lado existe uma força que vem da própria sociedade e que sempre tenta barrar esse impulso, desaconselhando, a princípio sutilmente, aqueles que começam a se diferenciar e agir fora do padrão.

Mas que amiga da onça! Por que ela faz isso? Por uma questão de sobrevivência da própria sociedade, pois é melhor que todos ajam e pensem de forma parecida, feito uma boiada – assim é mais fácil se organizar. Tal estratégia repressora é natural e eficiente para a sobrevivência de nossa espécie, mas tem um custo: a anulação do indivíduo e a negação de sua singularidade. Para a sociedade o que importa é que o indivíduo se comporte como uma peça da engrenagem social e cumpra com seu papel para que ela funcione perfeitamente e se mantenha a si mesma.

Quando ocorre o impulso da diferenciação temos então um encontro de forças, uma vindo do indivíduo e a outra da sociedade, em forma de cultura, leis e padrões de comportamento. O conflito é inevitável. O indivíduo que tenta se diferenciar age como o náufrago que quer escapar da correnteza do mar: ele deve alcançar as ondas que o levarão à terra firme, mas a tarefa é difícil, pois terá que lutar contra o oceano que o puxa para si, contra o medo de desafiar algo tão grande e contra seu próprio cansaço.

Aqui, mais uma vez, nos lembramos da adolescência, quando usávamos roupas e penteados diferentes para, inconscientemente, desafiar os mais velhos. Queríamos ser diferentes deles e, ao mesmo tempo, precisávamos ser iguais aos da nossa turma. Essa procura por identidade leva os adolescentes a criar padrões de comportamento que os ajudam a se estabelecer no meio cultural em que vivem. É um tipo de diferenciação, sim, mas ainda não se trata da diferenciação psíquica de que estamos falando.

O adolescente está construindo sua identidade própria, e para isso precisa copiar dos outros, de preferência de seus amigos e seus ídolos, o que faz com que ele entre para uma turma que se veste, fala e se comporta igual, um grupo que o aceita e se reforça com sua presença. Por outro lado, a pessoa adulta que, obedecendo ao primeiro impulso rumo à autorrealização, tenta se diferenciar da massa, não tem como prioridade construir uma identidade, pois, bem ou mal, já a possui. Seu objetivo é escapar do movimento hipnótico da massa para poder avaliar melhor o que está ocorrendo em sua alma e analisar suas inquietações. Por isso é que ela precisa fugir da correnteza que a faz girar e girar sem se questionar.

A correnteza é a cultura. Nascido dentro dela, o indivíduo está impregnado, até o último fio de cabelo, de leis, ideias padronizadas e modelos de comportamento. Para se dedicar mais a seu mundo interno e dar atenção ao que o inquieta, ele terá necessariamente de se afastar um pouco do mundo exterior. Para isso, terá de mudar de hábitos.

Mas não será fácil. Aqui surgem as primeiras dificuldades, pois a sociedade age como a Matrix, acionando suas forças repressoras e detectando com rapidez aqueles indivíduos que começam a se diferenciar e se movimentar fora do movimento padrão da massa. É como se eles representassem um perigo para o funcionamento normal da engrenagem – o que é verdade.

A repressão, a princípio, costuma vir em forma de recados sutis: são os olhares desconfiados, as desaprovações e as censuras. É como se a sociedade nos repreendesse: “Para que fazer diferente se até agora a coisa vem funcionando?”

Dessa vez, Neo se safou. Mas o impulso da diferenciação continuará, cada vez mais forte. E a repressão também.

seguindo a intuição

Após escutar a ameaça de seu superior, Neo vai para sua sala e recomeça o trabalho. Um funcionário lhe entrega uma encomenda. É um celular que, para sua surpresa, logo toca. Neo atende e descobre que quem fala é Morfeu, por quem tem tanta curiosidade e fascínio.

Morfeu o avisa do perigo que corre e o orienta para que possa fugir dos agentes. Neo está confuso, mas obedece. Morfeu explica que ele tem duas opções: ou tentar escapar pela janela ou se entregar aos agentes. Angustiado, Neo anda pelo parapeito, mas olha para baixo e a vertigem o domina. O celular cai de sua mão. De repente, percebe a grande loucura que está fazendo e se entrega, sem saber por que estão à sua procura.

Durante a jornada de autorrealização nos encontraremos muitas vezes em situações onde é a intuição que nos aponta o caminho a seguir. O caminho é novo e desconhecido, e olhamos para ele com medo, pois jamais o percorremos antes. De um lado a sociedade nos aconselha com suas regras tradicionais, mas por outro lado, a intuição sussurra que nosso caminho é outro.

O ego se vê num dilema. Estamos em conflito com nós mesmos, pois uma parte de nós sabe que precisamos arriscar e a outra parte tem medo. Intuímos o que temos de fazer, mas nos faltam forças. Nesse momento crucial o ego está sendo testado: uma viagem, uma troca de curso ou emprego, um término de relacionamento, uma atitude diferente… O ego se encontra diante de um portal e a intuição lhe diz que deve cruzá-lo. Muitos até que tentam, pondo em risco coisas importantes, mas da mesma forma que Neo, sentem uma espécie de vertigem e recuam, preferindo voltar.

Vertigem é medo de altura. É isso que ocorre nesses momentos: temos medo de nos soltar das amarras das seguranças já conquistadas e, com isso, não alçamos voo. O ego está inseguro no início da jornada e desiste ante as primeiras dificuldades, preferindo não arriscar o novo e desconhecido. A pessoa retorna aos afazeres cotidianos e tenta esquecer a sensação de derrota, abrigando-se na segurança do que já conhece. O portal se abriu, mas o vislumbre da liberdade que esse momento oferece às vezes nos é assustador. Ser livre tem seu preço e nem todos estão dispostos a pagar. Mas o portal se abrirá outra vez.

Neo não vê quem lhe fala. É uma voz misteriosa, mas que parece querer orientá-lo – uma analogia perfeita para a intuição e seu modo de trabalhar. A intuição é uma das funções psicológicas (as outras são a sensação, o pensamento e o sentimento) de que dispomos para nos guiar vida afora, e ela nos permite perceber as possibilidades inerentes à situação. É uma função irracional, pois apreende a realidade instintivamente, através do inconsciente, sem a participação do pensamento lógico consciente. É a intuição que nos fornece súbitas revelações e perspectivas diferentes sobre a realidade. De repente, intuímos, sem uma lógica aparente, que é melhor seguir por aqui e não por ali, e isso depois se revela a decisão correta. Qual foi a sensação, o pensamento ou o sentimento que nos levou a tomar tal decisão? Nenhum deles. Foi outra coisa. Foi um entendimento súbito e instintivo da totalidade da questão.

Diante da necessidade de escolha, geralmente decidimos seguindo a lógica do pensamento racional: irei por esta calçada, pois assim caminharei na sombra. Às vezes, porém, algo parece nos impelir na direção contrária à lógica racional, como se uma parte de nós captasse algum aspecto importante, mas invisível, da questão. Se a razão enxerga parte por parte, separando, discriminando e julgando, a intuição apreende o todo de uma vez. É como se ela estivesse em contato com todos os aspectos da questão, mas não pudesse explicar um por um: ela fornece um entendimento instantâneo e geral.

Podemos dizer que a intuição é uma função psicológica de caráter holístico, pois nos conecta com o todo, ou seja, a totalidade ao redor (pessoas, coisas, fatos etc.) e também a totalidade de nós mesmos. Ao redor, a intuição percebe aspectos que o pensamento, as sensações ou os sentimentos não captam e nos fornece dados valiosos para a nossa decisão. E em relação a nós mesmos, a intuição nos faz considerar aspectos do ser que estão além da percepção do ego, da mente racional. Dessa forma, pensamos e agimos de acordo com tudo o que somos, consciência e inconsciente. Isso significa que a intuição nos ajuda a ser mais abrangentes e verdadeiros com nós mesmos e, assim, nos faz agir mais harmoniosamente com o mundo ao redor.

Confiar e agir seguindo a intuição não significa desprezar o pensamento lógico, os sentimentos e as sensações, pois eles também são importantes. Porém, às vezes essas funções são insuficientes e, por isso, nos levam a tomar a decisão errada, ou se contradizem, nos deixando em cruéis dilemas. É nesses momentos que a intuição pode ajudar, ainda que pareça um salto no escuro. Infelizmente, nossa cultura supervaloriza o pensamento racional e desdenha da intuição, atrofiando-a a cada dia e nos fazendo guardá-la quietinha no porão da psique, feito um objeto sem serventia, quando, na verdade, ela precisa ser desenvolvida para podermos sempre reconhecer sua voz.

Neo está metido numa situação incrivelmente estranha. De um lado está sendo perseguido por policiais e sujeitos estranhos, com jeitão de mafiosos, sem ter a mínima ideia do motivo. De outro lado um tal Morfeu, que ele nunca viu antes, aconselha-o, pelo telefone, a se esconder e arriscar a vida no alto do prédio. Neo fica dividido, mas algo lhe diz que deve obedecer a Morfeu. Logo depois, porém, sente medo de cair e desiste, preferindo se entregar a seus perseguidores. Sim, o herói deve sempre seguir sua intuição, mas isso requer uma coragem que nem mesmo os maiores heróis possuem o tempo inteiro.

repressão e tortura

Neo está num tipo de sala de interrogatório e os agentes mostram que sabem tudo sobre sua vida. Eles querem sua cooperação para capturar Morfeu, mas Neo se nega a ajudar. Os agentes o torturam e lhe inserem um aparelho rastreador para que ele, sem saber, os leve até Morfeu.

O que teria acontecido se Neo continuasse seguindo as recomendações de Morfeu? Teria escapado dos agentes? Ou teria despencado do alto do prédio e morrido na contramão, atrapalhando o tráfego? Não podemos saber. Sabemos apenas que o medo o faz desistir de seguir as orientações da voz misteriosa. Ele de repente dá por si e percebe a loucura que está fazendo, como se estivesse possuído por algo insano que o leva a se arriscar e seguir uma voz interior que quer conduzi-lo para… para onde mesmo?

Neo prefere se entregar a continuar seguindo a tal voz. Mas, por não aceitar entregar Morfeu, ele é torturado. O primeiro preço a pagar pela diferenciação foi apenas um sermão e uma ameaça de demissão, nada que impedisse o herói de continuar seguindo a intuição. Agora, porém, o preço a pagar pelo nível seguinte de indiferenciação é bem mais alto. A sociedade age de modo parecido, exigindo que desprezemos a intuição e desistamos daquilo que tanto buscamos. É um tipo de acordo, muito comum: nós entregamos os nossos sonhos mais íntimos e em troca a sociedade não mais nos cobrará. Será que você alguma vez na vida não aceitou esse acordo?

Diferenciar-se custa caro. Tentar ser livre sempre nos levará a situações arriscadas, pois a sociedade, por meio de seus agentes repressores, dificultará o caminho. Ela nos interrogará e humilhará, tentando nos convencer a seguir suas regras. A sociedade nem sempre é tão direta quanto os agentes da Matrix, mas é igualmente eficiente. Cabe a nós decidir: compactuamos com ela ou continuamos seguindo o impulso da diferenciação?

Os que seguem o impulso devem estar preparados para retaliações – é o jeitinho que a sociedade tem de punir seus membros rebeldes. Assim, aquele que, em vez de se acomodar num emprego seguro, busca um trabalho mais condizente com seus interesses pessoais, certamente terá dificuldades financeiras. Aquele que assume sua sexualidade ou um estilo de vida diferente da maioria sofre com o preconceito. Aquele que questiona o modo como as coisas funcionam é visto com desconfiança e pode ter seu trabalho sabotado. Aquele que tenta apresentar novos modos de entender o mundo sofre resistência por parte de amigos, familiares, colegas, professores, chefes, líderes religiosos e autoridades, e pode ter problemas com a lei.

Os agentes repressores da diferenciação psíquica não são necessariamente pessoas cruéis: são geralmente pessoas comuns que não têm consciência do papel que representam, são apenas seres humanos inseridos numa cultura que os leva a agir assim, sem questionar. No fim deste livro, quando analisarmos a reinserção do Predestinado na Matrix, veremos que até mesmo os que se diferenciam estão, com isso, contribuindo também, mesmo que a princípio não pareça, para o fortalecimento da cultura.

Trinity, o princípio yin

Neo acorda em sua cama, assustado com o pesadelo que teve, onde homens o prendiam e lhe metiam um bicho nojento barriga adentro. O telefone toca. É Morfeu. Ele diz que foi sorte os agentes terem-no subestimado e marca um encontro. Na cena seguinte está chovendo, e Neo, sob uma ponte, vê um carro preto parar à sua frente. Ele entra, desconfiado, e senta ao lado de uma mulher. Ele a reconhece, é Trinity. Do banco da frente Switch lhe aponta uma arma e ele se assusta. Neo pede que parem o carro, pois está farto disso tudo. Trinity olha para ele com ternura e gentilmente o convence a ficar. Neo é submetido a uma rápida e delicada operação para retirada do rastreador de seu corpo. Agora ele já não pode mais ser localizado pelos agentes.

O portal se abre novamente para Neo, o novo lhe concede uma segunda chance. Ele segue sua intuição e vai ao encontro. Dentro do carro, o medo o domina mais uma vez e ele quase desiste. Quase, pois a doçura com que Trinity lida com a situação o faz superar o medo e a desconfiança e assim ele prossegue rumo ao novo que o chama.

Trinity é uma personagem feminina, e ao longo do filme veremos que ela representa os aspectos femininos da psique do herói que ele deve reconhecer em si mesmo e assimilar, integrando-os à personalidade consciente. Trinity é o princípio yin de que fala a filosofia oriental, um princípio ligado ao feminino (enquanto o princípio yang é ligado ao masculino), e na psique ele se manifesta na forma de intuição, sentimento, cuidado, paciência, maleabilidade e doçura – esses são os valores que Neo precisa reconhecer e desenvolver em sua própria personalidade, caso contrário não se transformará suficientemente e não vencerá os desafios.

Durante o processo de autoconhecimento do homem, a contraparte feminina vai ensiná-lo a ser doce, paciente e sutil nos momentos em que a força, a rigidez e a pressa nada resolvem. Isso também é válido se o herói é uma mulher, pois as mulheres também possuem sua contraparte masculina e necessitam estar conscientes dela para equilibrá-la dentro de si.

A força, a racionalidade e a conquista são valores yang. A flexibilidade, o sentimento e a empatia são valores yin. Todos necessitamos de tudo isso, dependendo da situação, mas na jornada do autoconhecimento, mulheres e homens terão sempre a missão de reconhecer e dosar esses valores em si mesmo, caso contrário a personalidade não se desenvolverá como poderia.

a pílula vermelha

Trinity leva Neo a um prédio. Ele é apresentado a Morfeu, que lhe fala sobre a Matrix, sobre ser escravo, e que ninguém pode lhe explicar exatamente o que é a Matrix. ”Você tem que vê-la por seus próprios olhos”, Morfeu diz, e, por fim, lhe oferece duas pílulas, uma azul e outra vermelha. A azul fará com que Neo acorde em seu apartamento, seguro, e aquela estranha aventura terminará, como se tudo houvesse sido um sonho. A vermelha o levará adiante. Neo escolhe a pílula vermelha.

Quando começamos a nos interessar por nosso mundo interior, é comum surgir curiosidade por temas ligados a psicologia e espiritualidade. Há pessoas que entram para seitas esotéricas, escolas místicas e leem livros e frequentam palestras e cursos.

A curiosidade é normal, pois o mundo interior, em toda sua vastidão, é realmente fascinante e envolvente. Porém aqui há outra armadilha do caminho. Por mais livros e cursos que acumulemos, nada disso terá muito valor se a transformação não for vivida na própria carne. Não adianta se tornar especialista em algum assunto, fazer curso de xamanismo, entrar para uma seita esotérica, contatar extraterrestres ou guias espirituais ou lembrar de vidas passadas se tais coisas não contribuem para que a pessoa se conheça melhor e se relacione melhor com o mundo, com os outros e consigo mesma. A espiritualidade que não gera o sadio intercâmbio entre consciência e inconsciente tende apenas a inflar o ego. Aliás, o mundo da espiritualidade e da religião às vezes mais parece um espetáculo de enormes ego-balões coloridos e vaidosos a desfilar no céu…

O mundo interior é como uma caverna escura e cheia de labirintos. O explorador pode facilmente ser seduzido por qualquer um de seus encantos e mistérios e esquecer que precisa prosseguir e viver os desafios seguintes de sua transformação pessoal. É justamente assim, seduzida pelos conhecimentos que as religiões, seitas e os mais diversos ismos e logias oferecem, que a pessoa se acomoda em algum tipo de explicação da realidade e “autoriza” que alguma ideologia faça o trabalho por ela.

A própria pessoa é quem tem de percorrer seu caminho e viver em si mesma a alquimia que a transformará num novo ser. Saberes intelectuais e dons paranormais, por si só, nada valem na jornada do verdadeiro autoconhecimento e não significam necessariamente percorrer o caminho interior. Morfeu certamente concorda com isso, pois em certo ponto da história ele diz a Neo: “Há uma diferença entre conhecer o caminho e trilhar o caminho”.

Assim como Neo terá que ver a Matrix com os próprios olhos e entendê-la por si mesmo, nós também teremos que ver a verdade através de nossa própria vivência individual, que se parece com o convite para aquela festa chique: é pessoal e intransferível. Livros e cursos explicam com detalhes, mas tudo fica no plano do entendimento intelectual. É como planejar uma viagem e estudar a região pelo guia, decorando pontos turísticos, preços de pousadas e nomes de ruas: tanta preparação só valerá mesmo se a viagem for posta em prática, e ainda assim sabemos muito bem que na prática a coisa geralmente não sai como planejado…

É só o que tem por aí: frequentadores de cursos e catedráticos dos assuntos da alma. Muitos têm gurus, sabem botar cartas, até escrevem livros – mas não vivenciam em suas próprias vidas a transformação necessária que os conduzirá ao nível seguinte de autoconhecimento e realização pessoal. Estão empacados em algum ponto de seu crescimento interior, repetindo fórmulas e orações decoradas. Têm na ponta da língua o versículo para cada ocasião, conhecem a hierarquia dos seres ascensionados e recitam suas vidas passadas como quem narra as férias em Canoa Quebrada. Putz, de que vale mesmo tudo isso?

Assim como Morfeu não explica para Neo o que é a Matrix, nenhum livro, curso, religião ou guru pode viver por nós aquilo que nós mesmos temos de viver. Se desejamos avançar no conhecimento do mundo interior e nos libertar do que nos escraviza, só há um jeito: tomar a pílula vermelha e ver a verdade com nossos olhos, vivendo-a na própria pele, mesmo que doa. E vai doer.

o despertar

Depois de tomar a pílula vermelha, Neo é conectado aos aparelhos para finalizar seu processo de desligamento da Matrix. Ele estica a mão e o espelho à sua frente engole seus dedos. De repente, a superfície do espelho sobe pelo seu braço, feito um gel prateado, envolvendo cada vez mais seu corpo. Ele entra em pânico e desmaia.

Então Neo desperta. Está numa espécie de casulo, imerso num líquido avermelhado, e de seu corpo nu saem cabos conectores. Ele olha impressionado para as enormes construções ao redor, centenas delas, cada uma com milhares de casulos como o dele, cada casulo abrigando um corpo humano.

De repente, um robô se aproxima, observa-o e desconecta os cabos, fazendo Neo escorregar por um longo tubo e cair num esgoto, de onde é resgatado pelos rebeldes.

Esta cena tem forte carga dramática e certamente é a mais impressionante de todo o filme. Mostra o momento exato em que Neo desperta para o mundo real, acordando de um sonho no qual viveu durante toda a vida.

Em nossas vidas não acordamos em casulos gosmentos, ainda bem, mas o drama do despertar da consciência é sempre intenso e carregado de fortes sensações e emoções. O mito do despertar da consciência está espalhado em diversas culturas. Na mitologia cristã ele aparece na metáfora da árvore do bem e do mal cujo fruto faz com que Adão e Eva adquiram consciência de si próprios. Despertos, eles são expulsos do Paraíso e daí em diante terão de trabalhar duro para se sustentar. Em linguagem psicológica isso significa que o indivíduo atingiu um certo grau no conhecimento de si mesmo e já não pode mais permanecer na comodidade em que estava, com as velhas ideias e atitudes perante a vida. Nesse momento, as forças psíquicas forçam o ego a deixar seus limites de autopercepção e a ele não restará outra alternativa senão buscar novos níveis de compreensão de si mesmo.

Mas o despertar não é um processo que ocorre magicamente de um momento para o outro: ele é feito de acontecimentos que precedem as revelações transformadoras. Para Neo, o despertar começa com o estranhamento que sente em relação à realidade e com as incríveis façanhas de um tal Morfeu. Depois vêm as estranhas mensagens no computador, o encontro com Trinity, o telefonema de Morfeu, o encontro com os agentes, mais um encontro com Trinity e, por fim, o decisivo encontro com Morfeu. O herói precisa ser devidamente iniciado e passar por testes para que possa suportar a grande revelação que terá.

Não pensemos também que o despertar é uma experiência única, no sentido de que uma vez desperto, sempre desperto. Não é assim. O processo de autorrealização é feito de muitos despertares, cada um levando o indivíduo a um novo nível de autoconhecimento que, por sua vez, o leva a um novo nível de relação com mundo e isso força sua consciência a nova mudança e assim por diante.

Em nossas vidas o despertar acontece quando passamos por uma experiência forte o bastante para mexer com nossa noção da realidade ou de nós mesmos. Experiências fortes existem aos montes: basta ir ao parque de diversão, ao futebol, a uma festa, tomar alguma droga ou receber a fatura do cartão de crédito após o fim do ano. Porém, a experiência que leva ao despertar é especial porque transforma a pessoa para sempre, mudando sua autoimagem. O terremoto interno que o despertar provoca muda a pessoa para sempre.

Se na adolescência precisávamos construir uma imagem de nós mesmos, agora precisamos desconstruir. Precisamos matar o que éramos para que o novo eu possa nascer, com outros valores. Precisamos passar pelo fogo da transformação e isso envolve dor, conflitos internos, insegurança e medo. Muitas coisas podem servir de catalisador para o despertar: separações, insucessos, acidentes, doenças e até a morte, pois esses acontecimentos fornecem o choque necessário para que a pessoa pare e se concentre um pouco mais em seu mundo interno, repense os valores que até então a guiaram e perceba finalmente que a vida está lhe exigindo uma nova postura diante dela.

Na jornada de autodescoberta nós despertamos um pouco mais cada vez que assumimos certas coisas sobre nós mesmos. Podem ser boas ou ruins, mas sempre são coisas que não sabíamos ou não admitíamos. Neo precisa acordar de um longo sonho senão jamais se tornará o Predestinado de que fala a profecia. Nós precisaremos acordar também, não exatamente de um sonho, mas de uma falsa ou limitada compreensão de nós mesmos. Precisaremos nos desconectar dos valores que nos guiaram até agora mas que não são mais úteis ao crescimento pessoal, assim como Neo teve que se desconectar dos cabos que o mantinham preso ao casulo.

O verdadeiro autoconhecer-se dói porque implica necessariamente enfrentar o que se teme, tornar-se o que se evita ser, entrar no fogo dos piores medos. Dói admitir que estávamos errados, que as coisas não são bem como sempre pensamos e que nós mesmos não somos quem sempre consideramos ser. A sensação de desamparo e solidão nos atinge como um raio. Sentimo-nos impotentes, humilhados e não vemos saída para nosso sofrimento. Se pudéssemos, apertaríamos um botão, desceríamos pelo ralo e morreríamos no esgoto. E tudo estaria finalmente terminado, a dor, a decepção, a solidão. Ponto final.

Bem, de fato todo despertar da consciência exige uma morte. Mas aqui trata-se de uma morte simbólica: a morte do ego. O velho ego morre, ele e seus valores ultrapassados, para que um novo ego possa tomar seu lugar, mais forte, mais sábio e capaz de mediar os mundos interno e externo do indivíduo, gerenciando as necessidades dos dois lados. Um ego que possa conduzir o herói adiante em sua jornada.

os sonhos e a morte

Se nós tivéssemos o hábito de atentar e registrar nossos sonhos, veríamos que durante todo o tempo eles refletiam o próprio processo que vivíamos. É assim, através dos sonhos, que a psique individual retrata a si mesma, seus movimentos, suas transformações. Além de servir de espelho para a realidade psíquica do sonhador, os sonhos também podem orientar, mostrando o caminho que se deve tomar.

Por virem diretamente do inconsciente, os sonhos falam a mesma linguagem do mito, ou seja, falam pela imagem, pelos símbolos. Por isso é que eles têm fama de incompreensíveis e até mesmo de absolutamente ilógicos. Os sonhos têm uma lógica, sim, mas para captá-la precisamos ser mais íntimos de sua linguagem simbólica. Sim, é verdade que ainda temos muito que aprender sobres os sonhos, mas já sabemos que as situações que eles trazem podem se referir a aspectos do ser, cada figura representando algo em nós mesmos, em nossa vida. Se quisermos compreender mais os nossos sonhos e, consequentemente, a nós mesmos, temos que olhar para eles como estamos olhando agora para o filme Matrix, monitorando o personagem principal através de seus vários aspectos, entendendo as situações pelas quais ele passa como metáforas de seu próprio processo interior de autorrealização.

Infelizmente, no corre-corre do cotidiano não sobra tempo para nos dedicarmos ao nosso mundo interno. Acordamos já apressados e os sonhos se dissipam no ar, levando embora as importantes mensagens que a psique elaborou durante a noite, mensagens que poderiam facilitar a vida, fornecendo respostas para questões difíceis e apontando o melhor caminho. Certamente, gostaríamos de saber o que nossa parte mais sábia tem a nos dizer, mas infelizmente estamos atrasados, um monte de coisa a resolver, o aluguel está vencido, não há tempo.

Um psicólogo experiente, que sabe reconhecer as sutilezas do processo de autorrealização, pode facilitar nosso contato com os sonhos e suas mensagens. Para isso temos também de fazer nossa parte, registrando os sonhos e nos mantendo vigilantes em relação a nós mesmos, comprometidos com o processo, sendo honestos com nossas verdades interiores. Desconfie dos livros que oferecem fáceis interpretações dos sonhos, pois apesar de certos símbolos serem coletivos, sempre haverá detalhes do universo onírico estreitamente ligados à história pessoal do sonhador.

Se, nesse ponto decisivo do processo, o herói se torna mais íntimo de seu mundo onírico, ele poderá captar a mensagem e entender que a morte está se anunciando em seus sonhos, sim, mas representa a profunda transformação pela qual ele passa. Imagens de mares revoltos, catástrofes, documentos difíceis de encontrar ou desorientação na floresta indicam, em metáforas, o que está ocorrendo em sua vida: o herói está perdido, pois sua noção de si mesmo, sua preciosa identidade, ruiu feito um prédio que desaba e agora ele se sente acuado por forças que ameaçam matá-lo.

Mas a morte é simbólica e o herói não precisa ter tanto medo assim. Nós também não precisamos temer. Veja o exemplo das serpentes: elas se tornaram símbolos da vida que se renova. Justamente porque trocam de pele de tempos em tempos e com isso se tornam mais fortes e resistentes.

O sofrimento inerente ao processo de autorrealização é como uma troca de pele, um sacrifício necessário, pois não há crescimento possível sem dor. Grandes conquistas exigem grandes sacrifícios. E o que de maior podemos entregar senão a nossa própria noção de eu?

 

(continua)

.

Ricardo Kelmer – blogdokelmer.com

.

.

CONTEÚDO INTEGRAL DO LIVRO

Cap. 1 – Cinema, mito e psicologia
Cap. 2 – Toc, toc, toc… Acorde, Neo!
Cap. 3 – Não existe colher
Cap. 4 – Morrendo para vencer
Cap. 5 – Matrix Reloaded e Matrix Revolutions
Cap. 6 – Os personagens
Cap. 7 – Quadro comparativo

.

> saiba mais – compre o livro

.

.

Seja Leitor Vip e ganhe:

 Acesso aos Arquivos Secretos
Descontos, promoções e sorteios exclusivos
Basta enviar e-mail pra rkelmer@gmail.com com seu nome e cidade e dizendo como conheceu o Blog do Kelmer (saiba mais)

.

.

Comentarios01 COMENTÁRIOS
.


Matrix e o Despertar do Herói cap 1

28/08/2010

Matrix e o despertar do herói
A jornada mítica de autorrealização em Matrix e em nossas vidas
(Ensaio – Miragem Editorial/2005)
.

Usando a mitologia e a psicologia do inconsciente, Kelmer nos oferece uma visão diferente de Matrix, o filme que revolucionou o cinema, lotou salas em todo o mundo e tornou-se um fenômeno cultural, conquistando milhões de admiradores e instigando intensas discussões.

Em linguagem descontraída, o autor nos revela a estrutura mitológica do enredo de Matrix, mostrando-o como uma reedição moderna do antigo mito da jornada do herói, e o compara ao processo individual de autorrealização, do qual fazem parte as crises do despertar, o autoconhecer-se, os conflitos internos, as autossabotagens, a experiência do amor, a morte e o renascer.

Podemos ser muito mais que meras peças autômatas de uma engrenagem, dirigidos pelas circunstâncias, sem consciência do processo que vivemos. Em vez disso, podemos seguir os passos de Neo e todos os heróis míticos: despertarmos, assumirmos nosso destino e nos tornarmos, finalmente, o grande herói de nossas próprias vidas.

> saiba mais – compre o livro

.

.

Cap 1

CINEMA, MITO E PSICOLOGIA

.

resumo do filme

No futuro, a Inteligência Artificial, uma avançada geração de máquinas pensantes, entra em guerra contra os humanos e vence. Como quase não há mais fontes de energia no planeta, os corpos dos humanos sobreviventes são usados para manter as máquinas funcionando. Para que eles não percebam o que acontece, a Inteligência Artificial faz uso da Matrix, um superprograma de realidade virtual ao qual são conectadas as mentes dos humanos. Dessa forma, adormecidos e indefesos, os humanos dormem e vivem um sonho coletivo onde o mundo é como era no fim do século 20.

Um grupo de humanos, porém, despertou e mantém-se fora da realidade virtual. Eles se escondem das máquinas, invadem o sistema e tentam fazer as pessoas despertarem. Esses rebeldes creem na profecia do Oráculo que diz que o Predestinado um dia virá para destruir a Matrix e libertar a espécie humana de sua prisão mental. Eles acreditam que Neo, um jovem que vive na Matrix, é o Predestinado. Neo de fato desconfia que há algo errado com a realidade, mas não pode aceitar que ele seja o tão aguardado salvador. Começa então sua guerra, contra a Matrix e contra si próprio.

escravos da própria criação

O filme Matrix entra para a história como uma das obras que mais simbolizam o espírito de nossa época, onde a espécie humana festeja e glorifica a suprema tecnologia, mas ao mesmo tempo começa a despontar no horizonte uma ameaça que nos aterroriza: a possibilidade de nos tornarmos escravos de nossa própria criação.

De certa forma, já somos escravos. A tecnologia atual nos faz depender das máquinas para quase tudo no dia a dia, desde o momento em que acordamos até a hora de dormir. Muitos inclusive só conseguem dormir se houver ar condicionado, ventilador, calefação, música no rádio ou uma TV ligada.

Faça um teste: da próxima vez que faltar energia elétrica, perceba como as pessoas se comportam. É como se de repente a vida ficasse suspensa. Muitos simplesmente não sabem o que fazer e andam de um lado para outro feito zumbis, como se aguardassem uma ordem para voltar a funcionar. Panes elétricas geram sérios contratempos, é verdade, mas até mesmo elas podem trazer benefícios. Lá em casa, por exemplo, quando faltava luz, íamos para o quintal e deitávamos no chão para olhar o céu e procurar estrelas cadentes. Meu pai e eu discutíamos sobre o Universo ser ou não infinito, a velocidade da luz, as galáxias… A imensidão do Cosmos nos inspirava certa reverência, nos fazendo lembrar do quão pequenos somos. Quando a energia voltava, eu sempre estava mais calmo. Às vezes, naqueles poucos minutos, conversávamos mais que durante o mês inteiro. A pane elétrica, ironicamente, forçava a família a se reunir.

O desenvolvimento tecnológico é importante. A espécie humana só sobreviveu até os dias atuais porque desenvolveu tecnologia suficiente para superar todas as dificuldades que surgiram, desde a necessidade de fabricar machadinhas de pedra até a criação de vacinas que evitam doenças graves e as sondas que viajam além do sistema solar. O problema é que a tecnologia ocupa cada vez mais espaço em nossas vidas. Transformamos a ciência numa espécie de deus e nos convencemos religiosamente de que a tecnologia pode nos salvar de todo perigo. Infelizmente, não pode. Aliás, é justamente por causa dela que a espécie ameaça destruir o planeta e se extinguir. O desequilíbrio ecológico e as guerras biológicas estão aí para confirmar o perigo do uso descontrolado do saber científico.

Como tudo que existe tem dois lados, a tecnologia tanto pode criar como destruir. Em Matrix, os avanços tecnológicos chegaram a tal ponto que as máquinas se tornaram independentes e escravizaram, literalmente, a mente dos humanos, algo que, de certo modo, já ocorre hoje. Podemos fazer algo para essa possibilidade sombria não se tornar realidade?

Acredito que sim. Podemos, por exemplo, lidar com a tecnologia de um modo menos dependente, equilibrando necessidades e facilidades tecnológicas com uma vida mais ligada à Natureza (inclusive a natureza humana) e às coisas simples. Podemos também, desde já, ensinar às nossas crianças que a tecnologia existe para nos servir e não para nos escravizar. E podemos também dar mais atenção às necessidades da alma, entendendo que o sentido da vida é nos autorrealizarmos, da forma mais verdadeira possível, nos tornando pessoas mais livres e harmonizadas com a vida. Isso a tecnologia não pode fazer em nosso lugar.

A verdadeira autorrealização é uma conquista individual, uma jornada mítica que cada um deve empreender em sua própria vida. É aqui, neste ponto, que podemos aprender com os mitos, essa coisa tão arcaica e que a mentalidade racional trata com tanto desdém, repetindo sempre que “é só um mito”, desprezando sua importância e vendo-os apenas como histórias exóticas de povos primitivos ou como religiões estranhas que insistem em sobreviver junto à nossa religião. É como se disséssemos: “Somos mais evoluídos. Não precisamos de mitos”.

Mitos jamais serão “apenas” mitos, pois são eles que formam a estrutura da alma e também das sociedades. Assim como os ossos sustentam o corpo físico, os mitos sustentam a psique humana. Entender como eles agem em nossas vidas é fundamental para compreendermos melhor a nós mesmos e ao mundo que nos cerca.

o mito

Mitos são formas de interpretação da realidade, compostas de narrativas simbólicas e imagens metaforizadas, que estruturam e orientam as sociedades e guiam os indivíduos no crescimento psíquico. Eles não são deliberadamente criados por alguém, mas nascem espontaneamente da alma coletiva da espécie, a psique, que os faz emergir das profundezas do inconsciente geral da espécie e se sedimentar, geração após geração, na cultura dos povos, para conduzi-los a novos níveis em sua relação com o mistério da vida e em sua organização social, assim como na evolução de toda a espécie humana.

A mentalidade atual costuma entender os mitos como mentirinhas ingênuas. Mito não é mentira, é metáfora. Uma metáfora não é uma mentira, mas um modo simbólico de expressar uma verdade. Por esse motivo, a metáfora é a língua nativa dos mitos, pois por trás deles há sempre um símbolo carregado de mistério e numinosidade, e a melhor forma de expressá-lo será sempre a linguagem figurada.

A fotografia é tão somente um processo químico usado para captar e expressar visualmente a realidade, e nem por isso uma foto é uma mentira. Assim como a ciência e a arte, o mito expressa a realidade à sua maneira própria, metaforicamente, que não é nem mais nem menos verdadeira. Se a ciência usa a razão lógica para explicar a vida e a arte usa a beleza e a harmonia para expressar o que sentimos, o mito se utiliza dos símbolos para nos provocar e nos ligar aos mistérios da existência, que estão além da linguagem da ciência, da arte e da filosofia. As explicações dos mitos não podem satisfazer ao intelecto, nem deveriam, mas os símbolos que eles contêm possuem o poder de nos situar no contexto geral do Cosmos, alinhando nossas vidas com uma ordem maior e ligando a consciência individual a um sentido mais amplo e coletivo.

Podemos dizer que, além de fornecer explicações para o mistério da vida e da criação do mundo, o mito exerce duas funções principais, sendo uma de ordem social e outra individual. Como nos ensinou Joseph Campbell, o famoso mitologista irlandês-estadunidense que ajudou a reacender o interesse pela mitologia no século 20 e nos incentivou a olhar para dentro e seguir nossa bem-aventurança, os mitos não só expressam a realidade: eles são o fundamento de toda sociedade. Não seria nenhum exagero afirmar que toda nossa vida, desde os menores detalhes até questões como arte, ciência, política e economia, tudo são formas rituais baseadas nos símbolos que os mitos expressam. Não há nada que não esteja sob uma espécie, digamos assim, de jurisdição simbólica dos mitos, pois, explicando a vida, eles estão também endossando e justificando todos os aspectos culturais de uma sociedade, desde instituições como casamentos, ritos como funerais até o padrão de comportamento de homens e mulheres e a criação de religiões.

No plano individual, o mito atua guiando o indivíduo pelas diversas fases de sua vida, fornecendo-lhe imagens e narrativas ricas de significado para auxiliá-lo em sua jornada rumo à maturidade psicológica. Sim, os mitos descrevem ocorrências exteriores, referentes a tempos e lugares distantes – no entanto, isso é só aparência, pois o plano real dos acontecimentos é interior, é justamente a dimensão psicológica humana. É na alma e não no mundo externo que se desenrolam os dramas metaforizados pelos mitos.

Dessa forma, o mito grego de Saturno, que devora os próprios filhos, nos ensina sobre o perigo da estagnação e o eterno medo da renovação, e o mito judaico-cristão da expulsão de Adão e Eva do Paraíso nos diz sobre as dores inerentes ao despertar da autoconsciência e ao crescimento psicológico. Infelizmente, o desprezo da mentalidade racional pelo mito nos impede de captar esses importantes significados, tão úteis à vida.

o mito da jornada do herói

Um dos motivos pelos quais o filme Matrix fez e continua fazendo um sucesso danado pelo mundo inteiro é o seu enredo: ele tem profundas bases mitológicas e as pessoas se identificam com essas obras porque elas vivem, em sua própria vida, os temas contidos no filme. O mito é como o leito de um rio antigo, e eu, você e todas as pessoas somos a água que corre por ele: é através da experiência de nossas vidas individuais que o mito está sempre se renovando.

Existem muitos e muitos mitos, cada um relativo a um determinado aspecto da existência, e mesmo sem conhecê-los ou pertencendo a outra cultura, nós os vivemos, cada um de nós, em diversos momentos da vida. Nossas águas estão sempre a percorrer o leito de algum mito, embora quase sempre estejamos inconscientes disso. Conhecendo os mitos e olhando-os pela ótica da psicologia do inconsciente, podemos compará-los com nossas vidas, perceber de que modo os vivemos e, assim, saber para onde se dirigem nossas águas, evitando possíveis desastres.

A história de Neo, que procura incessantemente uma resposta para a pergunta que o move (o que é a Matrix?) nos lembra Percival, o jovem cavaleiro do Rei Artur, buscando saber para quem serve o cálice do Graal. Neo e Percival são versões modernas do mito da jornada do herói, presente há milhares de anos na cultura e religião dos diversos povos da Terra. As histórias variam, mas a essência é a mesma: o herói é alguém que larga a segurança de seu mundo cotidiano e parte em busca de algo difícil e precioso, enfrentando incertezas, sofrimentos, perigos e arriscando a própria vida para, no fim, retornar transformado e vitorioso, mais forte, experiente e seguro, para guiar ou salvar seu povo, casar-se ou substituir um velho rei injusto ou doente.

Com algumas variações, este tema se repete em nossas lendas, contos de fada, religiões e obras artísticas desde que aprendemos a contar histórias ao redor das fogueiras. Esse é o modo pelo qual os humanos conseguem, através de metáforas e sem muita consciência disso, passar para as gerações seguintes algo vital para a sobrevivência da espécie: os segredos da autorrealização.

Nossos ancestrais escutavam as histórias dos heróis com respeito e assombro, envolvidos por rituais que se transmitiam pelas gerações. E hoje, no terceiro milênio da era comum, nós continuamos repassando o mesmo costume, com a diferença que, em lugar das fogueiras, nos reunimos no escuro dos cinemas, compenetrados e reverentes, para escutar a mesma história, para não esquecermos que a vida tem um segredo: cada um de nós precisa realizar a si próprio. Por isso, quando o segredo é recontado nos filmes, disfarçado em dramas, romances, aventuras e comédias, nós nos identificamos, algo dentro de nós se agita e de repente a vida faz mais sentido: é o mágico efeito que os mitos provocam.

Em algum momento da vida o mito da jornada do herói (o mito da autorrealização) é reativado na psique individual, em toda sua força. Vemo-nos então como o herói de Matrix, insatisfeitos com os velhos papéis reservados para nós pela sociedade e em conflito com nós mesmos. Despertamos da letargia, somos obrigados a largar as certezas de nossos valores atuais e partimos rumo ao desconhecido em busca de algo que nos completará, arriscando a segurança e enfrentando medos, dúvidas, sofrimentos e até a autossabotagem. Se persistirmos na jornada interior alcançaremos nossa essência e atingiremos novos níveis de autoconhecimento e harmonia com a vida, realizando nosso potencial, alcançando a bem-aventurança e, inclusive, gerando benefícios para a sociedade. É assim que vivemos o mito da autorrealização em nossas vidas, encarnando em nós a antiga jornada do herói.

Como vivemos em grupo, toda vez que alguém alcança a verdadeira realização pessoal, de algum modo seu exemplo influencia outras pessoas, e assim a espécie como um todo também avança. Por isso se diz que a autorrealização é a melhor forma de contribuirmos, individualmente, para o desenvolvimento coletivo da humanidade.

E é justamente por essa razão que continuamos a contar para as novas gerações, nos cinemas, nos livros e teatros, com roupagem moderna e efeitos especiais, as aventuras míticas dos heróis. Fazemos isso para não esquecer que o sentido da vida é seguirmos a nossa bem-aventurança e realizarmos quem verdadeiramente somos. Uma aventura heróica, sim, mas ao alcance de cada um.

Jesus Cristo super-herói

O filme Matrix tem muitos elementos que remetem à literatura, à cultura pop e ao próprio cinema, a diversas tradições religiosas, místicas e filosóficas, assim como analogias a teorias ligadas a vários ramos da ciência como psicologia, antropologia e sociologia. Pouquíssimas obras de ficção instigaram tantas interpretações diferentes envolvendo tantas áreas do conhecimento humano. Alguns argumentam que Matrix não passa de um borrão de tinta no qual cada um vê o que quer ver, um argumento que também mostra a riqueza da história e de seus fundamentos arquetípicos, pois poucas obras artísticas fornecem tantas e diversas visões.

Na filosofia, as analogias são muitas. É óbvia a parábola da caverna de Platão (parábola ou alegoria, e não mito), onde as pessoas veem apenas as sombras da realidade e as tomam como a própria realidade, limitando suas vidas. Muitos abordam o filme usando ideias de Sócrates, Aristóteles, São Tomás de Aquino, Descartes, Kant, Laplace, Nietzsche, Sartre, Dostoievski, Marx e Baudrillard para discutir coisas como natureza da realidade, metafísica, materialismo, tecnologia, livre-arbítrio, destino e onisciência.

No campo das tradições místicas e religiosas, pode-se ver em Matrix a ideia hinduísta de maya, ou seja, a ilusão na qual vivemos e que nos cega para a verdade maior. Pode-se ver também a ideia taoísta da unicidade de tudo que existe, de se tornar uno com o mundo e assim harmonizar-se com os ritmos naturais da vida. A iluminação de que nos fala o budismo, com sua ênfase na libertação da mente dos padrões a que ela se acorrentou, é uma constante durante toda a história. Pode-se falar também da ideia gnóstica do demiurgo, o arquiteto deste mundo, um falso deus que governa a realidade humana. Os planos astrais e suas entidades, ideias presentes em tantas correntes espiritualistas, também podem ser vistas no filme.

A mitologia grega é representada na história pelo nome de personagens como Morfeu (o deus dos sonhos), que auxilia Neo a despertar de seu sono na Matrix. Há também Perséfone, esposa de Hades e rainha do submundo, que ajuda os humanos quando esses descem ao Inferno, e que em Matrix é esposa de Merovíngio e também dá uma forcinha aos humanos.

A mitologia cristã também está lá, emprestando sua rica simbologia. A trajetória de Neo tem tantos pontos em comum com a vida de Cristo que é improvável que sejam apenas coincidências. Comecemos pelo nome de Neo na Matrix, Thomas Anderson. Anderson, de procedência nórdica, significa originalmente “o filho do homem”, uma das expressões que Cristo utiliza para se referir a si. No início do filme, o amigo que faz uma visita a Neo se refere a ele, literalmente, como “Jesus Cristo” e “meu salvador pessoal”. Assim como Cristo, Neo é tentado e torturado, morre, ressuscita e sobe aos céus. O nome da personagem Trinity remete à trindade cristã (Pai, Filho e Espírito Santo). Merovíngio, o poderoso chefe dos programas rebeldes, é uma referência aos reis merovíngios, da idade média, que se acreditavam descendentes da linhagem real proveniente de Cristo. A nave Nabucodonossor traz a inscrição MARK III, no 11, que pode ser uma referência ao evangelho de Marcos, capítulo 3, versículo 11: “Os espíritos imundos, quando o viam, prostravam-se diante dele, e gritavam, dizendo: Tu és o filho de Deus.”

No entanto, e é isso que mais nos interessa, há algo além das religiões e filosofias que liga a história de Neo com a vida de Cristo e no qual ambas se inspiram. Este elo é justamente o mito da jornada do herói, bem mais antigo que os dois e que pode funcionar como uma espécie de roteiro para entendermos, psicologicamente, suas trajetórias. Jesus Cristo é o grande herói da mitologia cristã. Não é relevante aqui se ele de fato existiu ou não ou se era ou não o legítimo filho de Deus. Para o estudo da psicologia do inconsciente aplicada à mitologia, o que importa é o que sua história tem a nos oferecer em termos psicológicos. O que vale é o leito do rio, a estrutura do mito, e de que modo as pessoas o preenchem com as experiências de suas vidas.

Cristo viveu, a seu modo, a clássica trajetória do herói. Abandonou a segurança do lar e das tradições, empreendeu uma difícil jornada de autoaceitação, sofreu as dúvidas, tentações e dores inerentes aos conflitos de quem reluta em assumir seu destino e, por fim, submeteu-se à sua verdade mais íntima, ou seja, ao fato de que, sim, ele era o filho enviado por Deus Pai para redimir a humanidade.

Igual a Cristo, muitas lendas em variadas culturas, até mesmo mais antigas, contam histórias muito parecidas, com personagens de trajetórias similares, contadas e recontadas através dos séculos. O que torna a história de Cristo tão especial é o fato dela ter inspirado o nascimento de uma religião que atualmente, incluindo suas subdivisões, é seguida por aproximadamente um terço da população do mundo. Não fosse isso, certamente a história do galileu que obrava milagres, arrebanhou seguidores, incomodou líderes políticos e religiosos e morreu crucificado chegaria à nossa época como apenas uma lenda, da mesma forma que tantas outras.

Quinhentos anos antes de Cristo, na Índia, um príncipe muito rico abdicou do conforto de sua vida e foi para a floresta viver de esmolas e meditar sobre o sentido da existência. No momento em que o compreendeu, tornou-se um iluminado, um Buda, perfeitamente integrado à Natureza, capaz de fazer milagres e de ensinar as pessoas a encontrarem também a iluminação e se libertarem das prisões mentais. A mitologia cristã possui tantas semelhanças com a vida do Buda e com outros mitos de outras culturas que é como se uma única história estivesse sendo contada em variadas sociedades sob diversas versões, sob as características próprias de cada cultura e baseada em suas necessidades espirituais específicas. De fato, é sempre a mesma história: o mito da jornada do herói.

Neo, Buda e Cristo, assim como Percival, são heróis porque realizaram a si mesmos, concretizando seu potencial, vivendo profundamente seu mito pessoal e cumprindo seu destino. Cada um deles viveu, a seu modo, o roteiro que marca a jornada mítica do herói.

herói e sociedade: um moto-contínuo

Tudo que existe já traz em si a semente daquilo que o destruirá. A sociedade instintivamente sabe dessa lei universal e por isso sempre verá com desconfiança o indivíduo, ele e seu perigoso potencial de transformá-la. Mais cedo ou mais tarde ele a transformará, e os dois prosseguirão num novo nível, ela tentando manter as coisas como estão, ele a desafiando com sua diferenciação. É um moto-contínuo.

Assim como o impulso evolutivo faz com que a consciência individual evolua numa espiral, passando pelos mesmos pontos em novos níveis, a consciência coletiva da espécie também age assim, tendo de um lado da espiral a sociedade e do outro a individualidade. Nascemos imersos na sociedade, e durante a vida inteira ela exerce sua força coesiva sobre nós – mas do outro lado da espiral a individualidade nos atrai. Para os que a alcançam, ela fornece a diferenciação e a força necessária para prosseguir no caminho legítimo da alma. Seu impulso, porém, obviamente conduz o indivíduo ao outro lado da espiral, de volta à sociedade. Isso significa que a mesma sociedade que segurou o quanto pôde o impulso diferenciador do indivíduo e o rejeitou, mais tarde assimilará os novos valores que ele traz, e assim ela se enriquece, se renova e forma novos indivíduos que, por sua vez, serão também atraídos para o outro lado da espiral e, caso prossigam, levarão a sociedade a novos níveis de evolução. É assim que a espécie evolui, fazendo com que o conflito entre individualidade e sociedade seja o motor do movimento contínuo. Se não houvesse individualidade, as sociedades não mudariam e, assim, logo apodreceriam e morreriam.

Atualmente, a realização individual não se contenta apenas em se diferenciar do bando, como nos dias em que éramos semimacacos, ou em adquirir identidade própria, como nos estágios seguintes da história humana. A autorrealização agora exige mais, exige que alcancemos o ponto mais verdadeiro do que somos para que o potencial que está lá, adormecido, possa se realizar em toda sua plenitude. O novo nível de individualidade que temos de alcançar determina que atinjamos nosso centro, mas para isso precisamos, é claro, conhecer o nosso todo, e o todo inclui não só a superfície, mas o que está dentro. Isso significa que temos de conhecer o interior de nós mesmos, profundamente, do modo mais verdadeiro possível, se quisermos alcançar nosso centro mais legítimo.

Quando Neo finalmente consegue compreender quem ele é, entende seu papel no contexto da existência humana e faz o que deve fazer. É assim que ele salva a humanidade e renova as esperanças do planeta que, agora, suspenso o conflito entre humanos e máquinas, pode enfim se recuperar.

monitorando Neo

O enredo de Matrix será aqui utilizado para ilustrar o processo de autorrealização do ser humano e mostrar que podemos deixar de ser meros personagens para ser os grandes heróis de nossas próprias vidas. Para isso, usaremos como guia o primeiro filme da trilogia, onde mora a essência da história, e alguns trechos dos outros dois. Seguiremos cronologicamente, descrevendo as cenas mais importantes e comparando-as com a referida etapa do processo, usando exemplos da vida cotidiana, sempre dentro do contexto do processo de autorrealização.

Agiremos mais ou menos como os agentes da Matrix, que prenderam Neo e lhe implantaram um rastreador para não perdê-lo de vista. Em nosso caso, seguiremos Neo durante sua perigosa e emocionante jornada porque sua história é a história de cada um de nós. A aventura do guerreiro cibernético vivido pelo bonitão Keanu Reeves é uma metáfora de nossa jornada pessoal rumo à mais verdadeira realização de nós mesmos. A diferença é que Neo é um personagem de ficção e só existe nas telas, enquanto nós, eu e você, existimos aqui no mundo real, na tridimensionalidade do dia a dia, pegando ônibus lotado, suando para pagar as contas, sofrendo por nossos relacionamentos e pelo time que vai mal no campeonato, batalhando arduamente pelo que acreditamos e ainda procurando um sentido maior no meio desse grande caos da existência. Ufa! Merecemos um Oscar pelo conjunto da obra, não?

Monitoraremos Neo para, através de sua trajetória mítica, ver como nós mesmos nos comportamos em nosso processo de autorrealização. Será como um jogo onde o que virmos na tela será transplantado para a vida prática. Definiremos as regras do jogo a seguir, mas não há nada de muito complicado. Lidaremos com noções de mitologia e psicologia do inconsciente, mas tudo será feito de forma leve e descontraída.

Bem, de fato não é fácil traduzir em simples palavras e rápidas explicações o profundo, complexo e misterioso universo da alma. É como traduzir em linguagem racional e científica coisas que são do reino dos sonhos e da intuição. Porém, felizmente existe a arte e seu poder mágico de tocar as pessoas. Existem filmes como Matrix, que já trazem em si, metaforicamente, muito daquilo que os profissionais da psicologia e psicoterapia se esforçam para explicar em seus livros, palestras e consultórios. A metáfora facilita as coisas, levando ao entendimento imediato e instintivo do que realmente interessa, o centro da questão, o símbolo. Por esse motivo é que a psique faz uso da metáfora dos mitos para comunicar suas verdades.

Pois bem. O plano é usar esse incrível filme como instrumento para que nós mesmos apliquemos as verdades mitológicas em nossas vidas e, assim, possamos nos compreender melhor e nos libertarmos um pouco mais.

Mas… libertar-se de quê? Libertar-se daquilo que nos mantém presos e que nos impede de ser quem verdadeiramente somos e de seguir a nossa bem-aventurança. E isso somente cada um de nós será capaz de descobrir o que seja. Esta é a nossa missão, a sagrada missão de cada um de nós.

você se conhece?

Já vimos que, em termos psicológicos, a aventura de Neo pode ser entendida como uma reedição moderna da jornada humana rumo à autorrealização. Certo. Mas o que exatamente vem a ser isso?

Autorrealização é a efetivação do que há de mais profundo e verdadeiro em cada um de nós. Feito uma potencialidade existente no mais profundo do eu, ela nos impulsiona a um processo contínuo de autoconhecimento onde integramos os conteúdos do ser e rumamos para a mais íntima realização pessoal: a concretização da personalidade total.

Autorrealizar-se significa desenvolver o potencial adormecido e nos tornarmos quem somos destinados a ser porque é isso o que sempre fomos: a semente que já traz em si a árvore futura. É impossível autorrealizar-se sem conhecer as próprias possibilidades e torná-las reais. Seria impossível para Neo fazer tudo o que fez sem antes se convencer que, de fato, podia fazê-lo. Você lembra quando ele decide voltar à Matrix para resgatar Morfeu, mesmo sabendo que jamais alguém fez isso antes? Pois é. Nesse momento Neo está, pela primeira vez, convencido de seu potencial e, por isso, consegue fazer o impossível.

Uma pessoa autorrealizada é uma pessoa equilibrada, física e psicologicamente, que se conhece a fundo e por isso é senhora de seus atos. Está consciente das necessidades do corpo e da mente, da linguagem das emoções e do espírito. Em outras palavras, todas as dimensões de seu ser estão harmonizadas. Por conta desse elevado grau de autoconhecimento, é alguém que sabe de seu potencial e o utiliza do melhor modo, sem desperdícios nem autoenganações. É alguém que, mesmo vivendo em meio ao grande caos do mundo, está em harmonia com ele e não se abala facilmente com imprevistos e derrotas. Uma pessoa autorrealizada venceu os desafios mais importantes que a vida lhe impôs e não mais precisa lutar contra seus demônios internos, pois um dia teve a coragem de encará-los, conseguindo assim que eles passassem para o seu lado, herdando deles a força contra a qual tanto lutava.

Para atingir esse ponto, porém, a pessoa tem antes de despertar e se diferenciar da mentalidade comum, como Neo despertou da Matrix, como nossos antepassados peludos se diferenciaram do bando e inauguraram o novo ramo evolutivo que seria a espécie humana. Isso é necessário para que a individualidade se manifeste e a pessoa possa realmente conhecer quem é, buscando suas verdades dentro de si mesma. Quem sou eu? – tudo começa com essa perguntinha safada.

Nada disso é fácil ou rápido. Aqui, porém, precisamos entender algo muito importante: o que verdadeiramente interessa não é alcançar a meta. Parece contraditório empreender uma jornada onde não há chegada, mas é assim que funciona, pois o que interessa realmente nessa jornada é estar no caminho. A essência da autorrealização não é chegar, mas manter-se em movimento, até porque talvez não exista uma chegada definitiva na evolução psíquica. É mais ou menos como encontrar um grande amor: quando isso acontece, não importa o que exatamente vamos fazer ou até onde estaremos com a outra pessoa. Fixar-se nisso é perder a noção do mais importante, que é estar junto e viver o amor a cada dia, sem se preocupar mais que o necessário com seu futuro.

A alma é a dimensão interna da vida, uma dimensão fascinante e também libertadora. Porém, a maior parte das pessoas nunca chega realmente a se aventurar pelo universo de sua alma, preferindo a experiência de vida em níveis superficiais do ser. O motivo disso é que a nossa cultura não nos incentiva a olhar para dentro e, além disso, lá dentro é escuro e, você sabe, do escuro sempre podem vir coisas perigosas…

Geralmente, na primeira metade da vida gastamos a maior parte de nossa energia correndo de um lado para outro em busca de brincadeiras, dinheiro, aceitação social, poder, conquistas sexuais… Mesmo que o mundo interno nos chame a atenção, ele frequentemente é relegado a segundo plano. Algumas pessoas sentem cedo esse chamado, mas a maioria só vai escutá-lo a partir da metade da vida, quando começa a fazer falta um sentido maior. Muitas percebem que o tudo que conquistaram não as fez realizadas – nem livres. Aliás, é comum as pessoas chegarem a esse ponto se sentindo sufocadas: pelo tempo, pelo trabalho, pela família, pelas exigências sociais e até por suas próprias ideias e atitudes que durante muito tempo foram úteis, mas agora não têm o mesmo valor. É em momentos assim que a vida nos faz lembrar que temos uma missão sagrada e que só poderemos cumpri-la se nos voltarmos para a dimensão interna da nossa vida.

A história de Neo é a nossa própria história, a de alguém que um dia não se conforma com a vida que vive e busca uma vida mais verdadeira. Assim sendo, a partir de agora olhemos para o filme com outros olhos. Para monitorar o herói em sua jornada de autorrealização, precisamos ver o filme sob um ângulo psicológico, onde Matrix passa a ser a história de apenas uma pessoa, no caso Neo, e onde todas as situações do filme se referem diretamente ao herói, à sua psique. Por isso todos os personagens, a partir de agora, representarão aspectos psicológicos do próprio Neo.

Acho que não entendi bem…, você pode estar pensando. Não se preocupe. Vamos treinar nosso olhar um pouco mais antes de começarmos o monitoramento de Neo. Vamos falar sobre essa coisa misteriosa e fascinante que é a psique.

o organismo psíquico

A cada dia novas descobertas tornam menos precisas as fronteiras entre mente e corpo, mostrando que as duas coisas talvez não sejam tão distintas como julgamos. Mas, para efeito didático, ainda precisamos explicar separadamente essas dimensões do ser.

Assim como possuímos um conjunto de órgãos, um organismo, que age dentro de leis físicas, químicas e biológicas, possuímos também um “organismo psicológico” que atua seguindo suas próprias leis. Esse segundo organismo é a psique, e assim como o corpo físico, ela também regula a si mesma, podendo adoecer mas também promover a própria cura. Para entendermos melhor a psique, temos de vê-la como algo vivo e possuidor de uma espécie de inteligência própria e capaz de se autorregular. Nesse ponto, ela é como a Terra, um superorganismo que mantém a vida em si através do equilíbrio entre seus órgãos minerais, vegetais e animais. Bem, é verdade que o Homo sapiens, um dos órgãos animais, ultimamente tem se esforçado bastante para desequilibrar tudo, mas isso é outra história.

A psique é formada pela consciência e pelo inconsciente. A consciência é a área superficial da psique, ou seja, o nosso conhecimento imediato sobre nós mesmos. O centro da consciência é o ego, e é por ele que manifestamos nossa vontade. Por ele ser o centro da personalidade consciente, é justamente pelo ego que temos consciência do que somos ou não somos. Mal comparando, o ego é como a pele, pois ela é o elemento de comunicação mais visível e imediato do corpo com o ambiente externo. Mas a pele não é o corpo inteiro: do lado de dentro há outros elementos que atuam o tempo todo, estruturando o corpo, mantendo-o vivo e influenciando nosso comportamento, mesmo que não o percebamos. Ver o ego como a personalidade total equivale a confundir a pele com o corpo inteiro.

O conhecimento do ego sobre a psique ou a personalidade total, da qual ele é apenas uma parte, só alcança o que está na consciência, aquilo que é distinguível com a luz do discernimento da personalidade consciente. O que está além da fronteira da consciência, ou seja, o que faz parte do inconsciente, está na escuridão e não pode ser percebido pelo ego. Por conta do posto que ocupa, de “representante autorizado” da psique para o mundo externo, o ego tende sempre a se considerar o eu psíquico total. Mas não é. Esta é a sua velha ilusão, achar que está sempre no controle da situação. Não está porque os elementos do inconsciente influenciam no comportamento da pessoa sem o ego se dar conta, pois ele só admite a existência do que está em sua área, a consciência. Para o ego, reconhecer o inconsciente é reconhecer que não está sozinho no controle – e isso é sempre um golpe no orgulho egóico.

Às vezes dizemos: “Eu tenho umas coisas que não entendo…” ou “Não sei o que deu em mim para fazer aquilo…” ou “Eu estava fora de mim.” Em momentos assim estamos pressentindo que não somos apenas o ego, ou seja, que somos algo mais que apenas a nossa percepção consciente de nós mesmos. Estamos quase admitindo que existem outros aspectos de nós e que não os conhecemos bem nem temos controle total sobre eles. Quando surgem essas incertezas é sinal que conteúdos do ser, antes totalmente inconscientes, se aproximam da fronteira da consciência. O ego já os pressente e se incomoda. Esses conteúdos estão saindo das sombras do inconsciente e forçam saída rumo à luz da consciência, querendo ser integrados à personalidade consciente. O melhor a fazer é ir ao encontro deles antes que esses danados imprevisíveis provoquem confusões maiores. Isso é investigar-se psicologicamente, dar atenção ao mundo interno. Isso é autoconhecimento.

O ego, portanto, é uma espécie de gerente da psique, incumbido de facilitar o fluxo de conteúdos entre a consciência e o inconsciente, fluxo este que visa manter o equilíbrio psíquico, vital para a saúde do indivíduo. Um ego imaturo, porém, age feito um gerente inseguro, que está sempre tão preocupado em manter a ilusão de se achar mais do que é que não consegue perceber a existência de certos problemas na empresa. É exatamente por causa dessa negligência que os problemas se acumulam, ou seja, o fluxo de conteúdos entre consciência e inconsciente não ocorre de modo satisfatório. Para esse gerente inflado de orgulho, a prioridade não é o crescimento psíquico (crescimento da empresa), mas segurar seu cargo, manter as coisas como estão, empurrando com a barriga, adiando, fingindo não ver.

Se o ego não desempenha bem sua função gerenciadora da psique total, ignorando o inconsciente e fazendo a pessoa viver a si mesma de modo unilateral, os interesses egóicos se chocam com os interesses do eu total e as forças autorreguladoras da psique intervêm, queira o ego ou não. E aí surgem as crises.

o inconsciente

Mas… e o inconsciente, de que é feito exatamente? Podemos, a princípio, resumi-lo como o conjunto de tudo aquilo que não sabemos sobre nós mesmos. No inconsciente vivem, vamos chamar assim, complexos energéticos que possuem certo grau de independência, como se fossem entidades de vontade própria dentro de nós mesmos. Enquanto esses conteúdos inconscientes não forem percebidos e devidamente assimilados pelo ego, estarão sempre agindo na surdina, influenciando o comportamento, nos impedindo de sermos melhor do que somos, levando-nos a fazer coisas das quais nos envergonhamos e ocasionando males diversos.

É um monstro terrível esse inconsciente, um Godzilla que sempre destrói os planos da personalidade consciente? Não é bem assim. O inconsciente é imenso como o mar, é escuro como a noite – mas não é bom nem mau. Ele não tem moral, e tudo que deseja, e vai conseguir de um modo ou de outro, é se manifestar no mundo externo. O inconsciente possui conteúdos positivos e negativos, que podem ajudar ou prejudicar, dependendo da atenção que lhes dê o ego. Se o ego for um bom gerente, o inconsciente se tornará um importante aliado da personalidade consciente vida afora.

Você já comeu o corpo de um inimigo vencido? Não? Eu também não. Mas algumas tribos guerreiras tinham esse hábito de, após vencer uma batalha, comer os corpos dos inimigos mais valentes num ritual cheio de respeito e reverência. Nojento? Para nós pode ser, mas agindo assim eles acreditavam incorporar a coragem e a destreza do inimigo e, com isso, tornavam-se guerreiros mais fortes. Você pode não agir assim com seus inimigos de carne e osso, porém é isso que ocorre quando vencemos os desafios internos de nossa personalidade: o que antes era um inimigo traiçoeiro a nos emboscar no escuro do inconsciente finalmente junta-se à consciência e nos engrandece, nos equilibra e nos faz mais fortes e capazes.

hoje tem espetáculo

Talvez a analogia com as tribos guerreiras não tenha feito bem a seu estômago. Tentemos então pelo lado da arte.

Imaginemos a psique como um grupo teatral, composto de vários atores. Quando a cortina se abre, porém, no palco há somente um único ator sob um facho de luz concentrada. O ator é o ego e a luz é a consciência. A consciência ilumina tudo o que toca, permitindo que o ego, que está sempre em seu centro, veja, descrimine o que existe e decida o que fazer com o que descobriu. O próprio ego dirige o foco de luz da consciência, formando com ela quase que uma só entidade. Quase, pois em certos momentos ela ilumina um pouco mais do que ele gostaria de ver.

O ego acha que está só no palco, realizando seu monólogo mas, atrás dele, na penumbra do fundo do palco, existem outros atores, uns mais quietos, outros nem tanto: são os outros aspectos do ser. Estão no escuro porque lá a luz da consciência ainda não chegou, e o ego, por isso, não reconhece sua existência. São aspectos da personalidade que ainda não foram devidamente integrados à consciência. São conteúdos inconscientes porque o ego está inconsciente deles. Pode ser a agressividade ou um grande medo não reconhecido, pode ser um trauma da infância, uma grande culpa ou a sexualidade não assumida. Pode ser muita coisa – mas o ego não sabe desses aspectos ou finge não saber, pois em algum momento decidiu que seria melhor não conviver com eles.

Esses atores da escuridão sabem que o ego é o ator principal, mas eles também querem participar mais ativamente do espetáculo. Mesmo que não sejam oficialmente reconhecidos pelo ego, eles se movimentam em segundo plano e isso cedo ou tarde interferirá no andamento da peça. Quando isso ocorrer, o ego terá a primeira noção de que não está sozinho no palco. Mas poderá insistir em continuar desprezando os colegas, fingindo que nada aconteceu. Quanto mais os desprezar, mais eles se esforçarão para aparecer, podendo forçar a barra e chegar ao cúmulo de se adiantar no palco e dividir a luz do refletor com o ego, para surpresa e embaraço deste. O ego, coitado, que em nenhum momento teve controle total sobre os rumos da peça, agora é obrigado a admitir abertamente que existem outros atores e terá forçosamente de incluí-los em sua própria história.

Isso é apenas uma comparação, claro, mas é o que ocorre diariamente em nossas vidas. Pensamos que estamos agindo sozinhos, mas outros aspectos que fazem parte de nosso eu total estão atuando também, às vezes contribuindo e outras vezes atrapalhando e até mesmo sabotando os planos de nossa personalidade consciente. A necessidade de autoconhecimento leva o ego a ampliar a luz da consciência a fim de iluminar outros pontos da psique total, à procura do que mais possa estar ali. É um trabalho delicado e custoso, pois requer a coragem de encarar o que não se conhece em si próprio. Isso trará mudanças, inevitavelmente, e o ego não é muito chegado a mudanças, preferindo sempre manter as coisas como estão. Mas não há outra forma da psique se equilibrar e da personalidade consciente ter mais controle sobre a própria vida. O ego precisará se transformar, e para isso terá de ter grande honestidade consigo mesmo, paciência e perseverança.

Jogar a luz da consciência sobre nossos conteúdos inconscientes significa assumir outras partes de nós mesmos. Algumas dessas partes já suspeitamos que existem e, bem ou mal, convivemos com elas no cotidiano. Outras partes, porém, por algum motivo, em algum momento da vida decidimos mantê-las na escuridão – são essas as mais difíceis de lidar, pois, se por um lado essa decisão permitiu ao ego levar a vida como se essas partes não existissem, por outro lado lhes proporcionou a oportunidade de se desenvolver sem serem incomodadas. Por conta disso o ego sempre se assusta ao vê-las sair das sombras, crescidas e cheias de vontade, e vir dividir com ele a atenção da plateia.

tornar-se o próprio herói

Uma pessoa consciente de seu caminho de autorrealização sabe perfeitamente que o processo exige um contínuo transformar-se e toda transformação traz algum tipo de crise. Essa pessoa sabe que dialogar com suas outras partes e reconhecer que elas fazem parte do eu total não é trabalho fácil, pois traz incertezas e angústias. Mas o processo de autorrealização exige que a consciência se amplie para que a pessoa pare de brigar com seu próprio inconsciente, ou seja, com ela mesma. Deixando de brigar com o que reprime dentro do ser, a pessoa se torna mais autoconsciente e equilibrada, assim como Neo que, à medida que conhece seu potencial, segue treinando suas capacidades e assim consegue se movimentar melhor na Matrix.

Por outro lado, se a pessoa tem medo do que possa vir do escuro do ser e continua reprimindo a própria natureza, a psique cobrará tal negligência, atrapalhando os planos do ego, forçando-o a gafes e atitudes cada vez mais constrangedoras ou até mesmo provocando insucessos, acidentes e doenças – isso tudo para forçar o ego a parar um pouco e olhar para dentro. Esses mecanismos psíquicos fazem parte da capacidade de autorregulação do eu total, que só tem um único objetivo: realizar-se em sua inteireza, tornar-se a árvore futura que a semente predizia. Mas isso será impossível se consciência e inconsciente não estiverem em harmonia.

O processo de autorrealização leva a pessoa a lidar mais harmoniosamente com o mundo, com as outras pessoas e consigo mesmo. É como Neo, que a partir do momento em que entende verdadeiramente quem é, deixa de ser iludido pela Matrix e percebe que, em vez de ser manipulado, pode fazer o que bem quiser.

Nosso objetivo é o mesmo de Neo: tornarmo-nos os grandes heróis de nossas próprias vidas. Devemos descobrir quem somos e o que devemos fazer – isso é o processo de autorrealização. E ele é como as melhores aventuras do cinema: tem um enredo criativo e cheio de reviravoltas, um herói cativante, inimigos terríveis, perigos e armadilhas por todo lado, suspense de arrepiar, romances… E o que é mais incrível: é real. Não está acontecendo na tela, mas em nossas próprias vidas!

Mas antes é preciso despertar. Abrir a porta que dá para o mundo interior. Seguir o coelho branco.

Bem, acho que basta de treinamento. Já estamos prontos para monitorar nosso herói. Então vamos lá. As luzes já foram apagadas. Desligue o celular e se acomode na poltrona. O filme vai começar.

(continua)

.

Ricardo Kelmer 2005 – blogdokelmer.com

.

.

CONTEÚDO INTEGRAL DO LIVRO

Cap. 1 – Cinema, mito e psicologia
Cap. 2 – Toc, toc, toc… Acorde, Neo!
Cap. 3 – Não existe colher
Cap. 4 – Morrendo para vencer

Cap. 5 – Matrix Reloaded e Matrix Revolutions
Cap. 6 – Os personagens
Cap. 7 – Quadro comparativo

.

> saiba mais – compre o livro

.

.

Seja Leitor Vip e ganhe:

Acesso aos Arquivos Secretos
Descontos, promoções e sorteios exclusivos
Basta enviar e-mail pra rkelmer@gmail.com com seu nome e cidade e dizendo como conheceu o Blog do Kelmer.
(saiba mais)

.

.

Comentarios01 COMENTÁRIOS
.


A profecia

18/05/2010

18mai2010

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a.

Este conto integra o livro Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha, de Ricardo Kelmer

.

A PROFECIA

A maconha terráquea, melhor da galáxia, está faltando no mercado. Os culpados são os mulgélicos, fanáticos religiosos que tomaram o poder no planeta. O Conselho Galático precisa decidir o que fazer
.

A SRA. ZIEGR, PRESIDENTA do Conselho da Confederação Galática, entrou na sala e ocupou sua poltrona à grande mesa. Ela trazia o semblante sério e nas mãos alguns envelopes.

– Conselheiros, bom dia. Convoquei-os a esta reunião extraordinária porque acabo de receber o relatório do Centro de Registros. Como é de conhecimento de todos, fatos preocupantes estão acontecendo no planeta Terra. Por causa deles seremos obrigados a cortar o suprimento da canabis terráquea a todos os planetas confederados por tempo indeterminado.

O rumor na sala foi geral.

– Silêncio, por favor, silêncio!

Mas os rumores cresciam e a presidenta Ziegr teve de bater na mesa. Ela entendia perfeitamente o porquê da indignação. Todos já haviam protestado em reuniões anteriores pela diminuição da cota de canabis terráquea para seus planetas e alertavam para o perigo do corte definitivo.

– Eu sabia que isso ia acontecer! – protestou o conselheiro Baqt. – Todos sabiam. Menos o Centro de Registros.

– Por favor, conselheiros. Deixem-me mostrar o relatório antes de discutir o que faremos.

As vozes se calaram e a presidenta Ziegr passou a ler o relatório. Ele dizia que a canabis já não podia ser encontrada com facilidade no planeta Terra e que já se estudava a possibilidade de pesquisar outros planetas para o plantio.

– Bobagem! – levantou-se Baqt, irritado. – Todo mundo está cansado de saber que, exceto a Terra, nenhum planeta desta zona da galáxia reúne condições perfeitas para o plantio da canabis!

– Isso mesmo! – complementou uma conselheira. – Por que gastar verbas com pesquisas inúteis? Precisamos intervir antes que a canabis terráquea seja totalmente extinta.

– Exatamente! Minha família, por exemplo, não fuma um baseado que preste faz mais de um ano disse Reuzaramon, o mais velho dos conselheiros.

Ziegr escutou com paciência mais algumas considerações. Estavam todos revoltados. Então prosseguiu:

– Conselheiros, a canabis terráquea é material estratégico para a galáxia, todos nós sabemos. Foi ela que propiciou o desenvolvimento ecológico dos planetas confederados e lhes permitiu superar a delicada fase do término dos combustíveis fósseis. Para isso, no entanto, durante milênios as naves da Confederação abordaram a Terra e, na calada da noite, de lá retiraram a canabis para abastecer nossos mundos.

– Eram os deuses astronautas? Não. Eram os deuses maconheiros – sussurrou Reuzaramon para o colega ao lado.

– Agimos assim porque precisávamos da canabis, claro, mas também porque os terráqueos não estavam preparados para nos conhecer – continuou Ziegr. – Agora, porém, grandes mudanças operam naquele planeta e exigem que tomemos uma posição.

– São os mulgélicos, aposto!

– Eles mesmos – respondeu Ziegr.

– Calhordas! – gritou Baqt, erguendo-se. – Por causa deles só estou fumando maconha de Fens, aquela porcaria.

– Conselheiros, semana passada a nave da Monitoria 54 resgatou, da órbita da Terra, uma pequena cápsula contendo informações valiosas. São textos e imagens sobre o momento atual da Terra e que confirmam as informações do relatório do Centro de Registros.

Ziegr entregou a cada um dos conselheiros um óculos projetor, pediu que cada um assistisse com atenção e encerrou a reunião, avisando que prosseguiriam à tarde.

Reuzaramon, o mais velho dos conselheiros, rumou para o jardim dos fundos do prédio, lá era mais agradável. Sentou-se num banco, pôs o óculos projetor e ligou. Enquanto as imagens tridimensionais se formavam à sua frente, ele escutava…

.
A Ecologia toma impulso no planeta Terra no fim do segundo milênio da era cristã com a constatação de que a sociedade industrial e tecnológica produzia riqueza e conforto, mas também gerava um enorme perigo ao planeta e a todas as formas de vida. A partir daí uma crescente conscientização ecológica desenvolveu-se e direcionou os rumos de uma nova noção de desenvolvimento para o planeta: o desenvolvimento sustentável, onde a prioridade é manter os avanços tecnológicos sem abrir mão do equilíbrio ambiental.

No primeiro século do terceiro milênio um acontecimento crucial vem somar-se a toda essa revolução: a canabis, até então criminalizada em quase todo o planeta, é reconhecida oficialmente pela maioria dos blocos geopolíticos como matéria-prima estratégica para a sociedade. O baixo custo, a alta performance produtiva, a não necessidade de agrotóxicos e o seu caráter limpo e renovável a credenciam como a grande alternativa ecológica para a crise dos combustíveis fósseis que se instalara no mundo.

Assim, sob recomendação da ONU, os blocos geopolíticos mudam suas leis e legalizam a canabis. Cultivar, comercializar e consumir maconha deixa de ser crime, e as leis referentes a ela se inspiram nas leis que regulamentam outras drogas legalmente aceitas como o álcool. Dessa planta altamente estratégica extraem-se milhares de produtos essenciais ao dia a dia da sociedade, permitindo que o mundo respire aliviado após décadas de medo e incertezas quanto à saúde do planeta. A planta mostra-se eclética a ponto de ser utilizada também, e com muita eficácia, na medicina terapêutica.

Junto à canabis, outros recursos naturais também passam a ser utilizados dentro dos princípios do desenvolvimento ecológico. A canabis, porém, logo apresenta-se como carro-chefe dessa transformação, pois à sua intensa utilização industrial vem juntar-se o tema das liberdades individuais, gerando providenciais discussões sobre a relação do ser humano com as drogas e a questão do tráfico, da violência e dos interesses econômicos, além de questionar a eficácia dos programas de saúde pública e o tratamento policial dispensado ao usuário.

Nem todos, porém, concordam com isso. Ocorrem protestos em vários setores da sociedade e uma nova organização político-religiosa surge para combater o que ela entende por “exageros da democracia”, como o uso livre da maconha. São os autodenominados mulgélicos (multidões angelicais), fanáticos religiosos de caráter ultraconservador que cultuam a tecnologia máxima e defendem o terrorismo como forma de garantir seus valores. A eles se juntam todos aqueles que discordam da legalização da canabis, e assim a organização cresce e promove atos terroristas por todo o mundo, utilizando tecnologia química e biológica contra a população. Com discurso sedutor às mentes religiosas e amedrontando a muitos com sua política ultrarradical, tomam o poder em alguns blocos e aos poucos conseguem exterminar os principais líderes democráticos.

Estamos sob domínio dos mulgélicos há uma década. Eles governam o mundo globalizado, convocando todos a se entregar aos braços de seu deus, que em breve, creem eles, voltará para carregar os abençoados consigo rumo ao Paraíso, abandonando na Terra os seguidores de Satanás. Os mulgélicos perseguem aqueles que não comungam da crença de seu deus e castram as liberdades individuais conquistadas. Para eles, a canabis é a personificação do Mal e precisa ser combatida com toda a força e métodos possíveis. De nada adiantam os argumentos médicos e sociológicos, de nada valem os direitos humanos: os usuários passam a ser perseguidos pelo mundo inteiro e mortos com crueldade. E o cultivo da canabis, novamente proibido, abre caminho para o retorno de antigas, caras e poluentes formas de produção industrial, intoxicando novamente o planeta e pondo em risco o equilíbrio ambiental.

O culto exacerbado da tecnologia torna cegos os mulgélicos e eles não percebem que estão conduzindo a espécie humana ao seu extermínio. Contra esses argumentos, e até mesmo contra todos os fatos, eles respondem que seu deus está chegando para resgatá-los e assim ficará provado quem está certo.

Hoje, vivemos num planeta praticamente esgotado de recursos naturais e a grande alternativa foi bloqueada pela política repressora dos mulgélicos. O ar, os rios e os oceanos estão sujos. A preservação da fauna e da flora não é mais importante – importante é tentar converter os infiéis. Catástrofes naturais acontecem todos os dias, mas os mulgélicos veem nisso o legítimo cumprimento de suas profecias, o sinal dos últimos dias que antecedem a tão esperada chegada de seu deus.

A única possibilidade que nós, os resistentes dessa ditadura teocrática, vislumbramos foi pedir ajuda a outros planetas. Certamente, há vida em outros mundos, e talvez eles tenham passado por problemas semelhantes aos nossos. Talvez seus habitantes possam ajudar a Terra a reencontrar o caminho das liberdades individuais e do desenvolvimento autossustentável.

Isso é um pedido de socorro interplanetário. Talvez ainda haja tempo de salvar este planeta que já foi tão belo. Ainda podemos reaprender a respeitar as liberdades que pertencem ao ser humano. Clandestinamente, ainda cultivamos os últimos exemplares da canabis em plantações disfarçadas, o que nos proporciona raros momentos de prazer e a esperança de que ainda podemos retomar o crescimento interrompido. Mas tudo está por um fio, pois não sabemos até quando o planeta suportará.

Nosso plano é soltar esta mensagem no espaço, feito uma mensagem de náufrago. Talvez consigamos. É uma operação arriscada e com poucas chances de sucesso. Mas talvez alguma nave a recolha e esta mensagem alcance boas mãos.

.
Reuzaramon retirou o óculos projetor e olhou para o céu. Terra…, sussurrou ele. Era realmente um belo planeta. Lembrou que seu planeta natal vivera problemas semelhantes aos que os terráqueos agora viviam e que a história da evolução das espécies era sempre marcada por momentos cruciais onde velhos e novos valores protagonizavam o dramático teatro do mito do Juízo Final. Antes da criação da Confederação Galática muitos planetas morreram, e com eles o seu povo, por não saber encontrar seu próprio caminho de democracia e desenvolvimento sustentável. Hoje, a Confederação, ciente de que a morte de um planeta empobrece o Universo, estava sempre atenta para tentar ajudar – mas somente quando isso representava a última chance, pois o sagrado princípio da soberania dos mundos regia a Constituição Galática.

O velho conselheiro levantou-se do banco, guardando o óculos no bolso. Olhou mais uma vez para o céu e depois seguiu para a sala. Talvez fosse mesmo o momento da Confederação intervir.

.

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– MUITO BEM, CONSELHEIROS – falou a presidenta Ziegr, contando os votos. – A maioria considerou que o Conselho deve intervir no planeta Terra. E que não podemos mais continuar roubando maconha de lá.

– Exatamente. O que está em jogo são os interesses da Galáxia.

– Isso mesmo! Os desvarios de um grupo de fanáticos religiosos não podem interromper a evolução do Universo.

– Mas como interviremos no planeta sem desrespeitar sua soberania? – insistiam os que não concordavam com a intervenção.

Reuzaramon pediu a palavra.

– Conselheiros, nenhum planeta é autônomo no último sentido do termo. Sabemos que todos os mundos estão ligados numa interdependência sutil, mas vital, e o que é feito a um repercute em todos. A Terra é apenas um dos elos dessa imensa corrente que se chama galáxia, que por sua vez é apenas um dos elos do Universo, que por sua vez é apenas um dos muitos universos possíveis. Quanto mais abrangemos nossa compreensão da realidade, mais percebemos o quanto tudo está ligado. O que acontece na Terra está influenciando o destino de outros mundos, e por isso a Confederação deve intervir.

– Você fala assim porque não é o seu mundo que será invadido!

– Conselheiros, por favor, deixem-me terminar. A espécie humana já está madura o suficiente para compreender que não está sozinha no Universo. Além disso, a canabis da Terra é a melhor de todas e ela é indispensável à evolução do planeta. Sem ela, não haverá desenvolvimento autossustentável. Sem ela, a Terra corre o risco de se destruir. E sem a Terra, senhoras e senhores deste Conselho, a Via Lactea enfrentará um grave desequilíbrio.

Reuzaramon foi aplaudido pela maioria. E mesmo os reticentes quanto à intervenção viram sentido em seus argumentos.

– A intervenção já foi decidida – falou Ziegr. – Mesmo assim, resta uma dúvida. Como faremos? Não podemos atacar os mulgélicos, nem podemos plantar canabis no planeta às escondidas.

– Que tal envolver o planeta numa grande baforada de maconha? – brincou alguém. – Assim todos finalmente experimentarão e tirarão suas próprias conclusões…

– O verdadeiro efeito estufa!

– Ou podemos fornecer armas com balas de canabis para os resistentes atirarem nos mulgélicos…

– Conselheiros, por favor. Precisamos de um plano de intervenção pacífica, sem comprometermos nossa carta de princípios. E não dispomos de muito tempo.

– Talvez possamos convencer os mulgélicos a retomar o crescimento ecológico – propôs uma conselheira. – Eles têm de entender que não há outra saída para o planeta deles.

– É inútil, minha senhora – falou Reuzaramon. – Para um fanático religioso, quem não está com ele, está de mãos dadas com o Mal.

Chegaram ao incômodo impasse. A intervenção se fazia necessária, mas parecia não haver maneira de realizá-la sem ferir os princípios éticos da Confederação. Até que Reuzaramon ergueu o braço.

– Amigos, acho que vislumbrei a saída do labirinto.

Todos olharam curiosos para ele.

– Nós sabemos o que pensam os terráqueos, sabemos sobre suas crenças e suas profecias. Isso é tudo que precisamos.

– Explique melhor, Reuzaramon – pediu Ziegr.

– Muitas profecias terráqueas falam do Juízo Final. Parte dos terráqueos já entendeu que a linguagem das profecias é simbólica, que “fim do mundo” é só o fim de uma fase, uma espécie de renascimento para a nova fase, tanto no âmbito individual quanto num âmbito social. Mas outros entendem ao pé da letra e acham que a salvação virá de fora. Estes se acham os eleitos e creem que seu deus, de fato, irá resgatá-los.

Todos ouviam atentos, curiosos por ver onde o velho conselheiro queria chegar.

– Ora, ora… As profecias se realizam porque no fundo as pessoas creem nelas. Se existe a profecia, então ela deve ser realizada.

– Sábias palavras, Reuzaramon. Mas quem vai realizar a profecia? E de que modo?

– Conselheiros… Esqueceram que quem acredita em deuses, precisa de deuses para viver?

Reuzaramon sorriu ao perceber que finalmente começava a ser compreendido.

.

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04aNAQUELA MANHÃ, as nuvens do planeta Terra se abriram e dos céus desceram naves gigantescas, milhares delas, espalhadas por todos os países. Trombetas soaram ensurdecedoras, para todos ouvirem, em todos os cantos do mundo. De cada uma delas saiu um anjo com roupa prateada e grandes asas reluzentes para avisar que o grande dia chegara e que os eleitos seriam levados.

– Aí está! – berravam os líderes mulgélicos com lágrimas nos olhos. – Aí está o Deus Todo Abençoado que veio resgatar seu rebanho querido!

A imprensa do mundo inteiro transmitia o fim do mundo. Nas residências, nas repartições, nas academias, todos se mantinham em frente à TV. Audiência total. Até os botequins estavam lotados.

– Ô, seo Manel! O fim do mundo chegou. Desce aí a saideira.

– Só se você primeiro pagar o que deve.

Os mulgélicos atenderam ao chamado e ocuparam rapidamente os assentos das naves, emocionados, gratificados por sua fé finalmente recompensada. Muitos tentaram se converter de última hora, mas não havia mais lugar nas naves.

– Eu até que queria ir, mas os cambistas estão explorando!

– Que dia pro fim do mundo! Deus podia pelo menos esperar passar o réveillon.

Ao fim da manhã, as naves partiram, levando todos os mulgélicos ao paraíso prometido. Uma nave, porém, a maior de todas, permaneceu no pátio da sede da ONU. Suspense. Bilhões de pessoas acompanhando pela TV. Uma voz ecoou, vinda da nave:

– Amigos terráqueos. Ouviremos agora o pronunciamento da excelentíssima presidenta do Conselho da Confederação Galática, sra. Ziegr.

A presidenta surgiu à porta da nave, de microfone à mão. Pigarreou discretamente e começou a falar:

– Serei breve, amigos terráqueos.

Ela fez uma pausa, juntou as mãos como quem implora, e perguntou:

– Alguém tem unzinho aí?

.

Ricardo Kelmer 1998 – blogdokelmer.com

.

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a> Este conto integra o o livro
Baseado Nisso
– Liberando o bom humor da maconha

> Onde comprar. Adquira seu exemplar personalizado

.

.

.

.

Seja Leitor Vip e ganhe:

– Acesso aos Arquivos Secretos
– Descontos, promoções e sorteios exclusivos
Basta enviar e-mail pra rkelmer@gmail.com com seu nome e cidade e dizendo como conheceu o Blog do Kelmer (saiba mais)

.

.

Comentarios01COMENTÁRIOS



A mensagem de Avatar ao Povo da Terra

28/01/2010

28jan2010

Temos de compreender o que os antigos já sabiam e nós esquecemos: a Terra é um ser vivo e nós fazemos parte dele

A MENSAGEM DE AVATAR AO POVO DA TERRA

.
Muitos aplausos merece James Cameron por seu filme Avatar. Se o cinema já é uma experiência meio onírica, agora, com as técnicas de filmagem para a tecnologia 3D criadas pelo diretor, avançamos ainda mais dentro do sonho. Pena que, quando acaba o filme, estamos de volta ao nosso pesadelo terráqueo, do qual não conseguimos acordar.

A história de Avatar é simples: os humanos, interessados num valioso mineral existente na lua Pandora, invadem a terra de um povo humanoide, que se defende bravamente e conta com a ajuda fundamental de um humano que vira a casaca e passa a lutar ao seu lado. O roteiro não tem atrativos maiores e chega a ser previsível. Os personagens vestem os velhos modelões: tem o mocinho que se transforma ao longo da história, a mocinha que gosta dele, outro cara que gosta dela, o vilão malvado que morrerá no embate final…

Então, Avatar teria como único destaque os efeitos especiais, aperfeiçoados pela nova tecnologia 3D? Não. O filme tem o grande mérito de focar com competência na questão ecológica, e o faz em duas frentes: no visual exuberante do mundo de Pandora e na conexão mística de seu povo, os Na´vi, com a Natureza. Em Avatar, o 3D nos entretém e sempre rouba a cena, é verdade, mas a mensagem ecológica fica em nossa mente após o filme. E é isso que importa.

Toda a força do povo Na´vi vem do fato deles entenderem Pandora como um ser vivo que se comunica com tudo que nele vive, inclusive com os Na´vi, que não apenas o habitam mas são parte integrante desse ser. Eles vivem de forma harmoniosa com Pandora porque é assim que se sentem, unos com ela, e por isso sua relação com tudo que vive é de um respeito carregado de sacralidade, devoção e gratidão, como se fosse uma religião. Ops! Chegamos a uma das melhores coisas de Avatar: a religião dos Na´vi, se é que podemos chamar de religião, é a própria Natureza.

E aqui na Terra, fora da tela? Aqui, seguimos em nosso pesadelo real. O Homo sapiens, a única espécie sobrevivente da linhagem hominídea, vive um momento evolutivo decisivo: ou se entende já com a Natureza ou então procura outro lugar para morar. Putz, por que chegamos a esse ponto lamentável? A resposta estaria prontinha na boca de qualquer Na´vi: Porque vocês se separaram da Natureza. E não poderemos discordar. É justamente porque nos entendemos separados da Natureza que desrespeitamos as leis do planeta onde vivemos, e achamos que escaparemos impunes. Não escaparemos porque, sendo parte da Terra, ao destruí-la estamos também destruindo a nós mesmos.

Repensar a forma como nos percebemos em relação à Terra e a nós mesmos, é disso que precisamos, urgente. Temos de compreender o que os antigos já sabiam e nós esquecemos: a Terra é um ser vivo e nós fazemos parte dele. Se você pensou agora na teoria de Gaia, é isso mesmo. Segundo a teoria, a Terra é um superorganismo vivo, autoconsciente, dotado de inteligência própria, capaz de se autorregular e que, como tudo que vive, busca o equilíbrio interno. E nós, assim como tudo que vive na Terra, fazemos parte desse equilíbrio. Infelizmente, o Homo sapiens civilizado desprezou o que seus antepassados sabiam, e o preço disso pode ser seu próprio extermínio, como outras tantas de espécies que não souberam se adaptar ao equilíbrio geral do organismo maior.

Religiões gostam de cultuar deuses distantes, entidades inalcançáveis, tudo muito longe daqui. Talvez seja o momento de focar mais perto em nossa busca pelo Sagrado. Se existe algum tipo de religiosidade que pode nos salvar a todos, ela se resume ao amor pelo planeta e pela Humanidade. Uma religiosidade sem deuses, templos ou dogmas. Sem salvadores, pecados originais, guerras santas, e sem dízimo. Uma religiosidade cuja salvação virá de uma profunda mudança de percepção – ou não virá.

Ah, mas como cuidar de algo que não é de ninguém e no qual todo mundo mete a mão? De que adianta alguns terem essa noção sagrada da Terra se outros não têm e esses continuam a desrespeitá-la? Chegamos à conclusão inevitável, que é a mensagem mais importante de Avatar: só cessaremos o desequilíbrio do organismo geral se agirmos como organismo geral. Em outras palavras, é somente nos entendendo como um povo só, o Povo da Terra, que poderemos cuidar devidamente da Terra e de nós mesmos. Enquanto formos vários povos, vários países e várias religiões, não alcançaremos a visão do todo. Enquanto houver fronteiras, religiões e outras noções separatistas, não nascerá a unidade necessária para agirmos em conjunto. Somente quando surgir o Povo da Terra é que haverá salvação para o Homo sapiens.

.
Ricardo Kelmer 2010  – blogdokelmer.com

.

PALESTRA
Este texto é o resumo da palestra que fiz no Encontro de Cinema, um dos eventos integrantes do 17o Encontro da Nova Consciência, festival de caráter multicultural que acontece desde 1992, durante os dias de Carnaval, na cidade de Campina Grande, na Paraíba.

.

.

AVATAR – TREILER

.

FILMEAvatarCartaz-01AVATAR – FICHA TÉCNICA

Avatar
Diretor:
James Cameron
Elenco: Sam Worthington, Sigourney Weaver, Michelle Rodriguez, Zoe Saldana, Giovanni Ribisi, Joel Moore
Produção: James Cameron, Jon Landau
Roteiro: James Cameron
Fotografia:
Mauro Fiore
Trilha Sonora: James Horner
Duração:
150 min
Ano: 2009  –  País: EUA
Gênero: Ação  –  Distribuidora: Fox Film
Estúdio: Twentieth Century-Fox Film Corporation / Lightstorm Entertainment / Giant Studios
Classificação: 12 anos

.

.

LEIA NESTE BLOG

A imagem do século 20 – Vimos nossa morada flutuando no espaço. Vimos um planeta inteiro, sem divisões. Não vimos este ou aquele país: vimos o todo

Minha noite com a Jurema – Nessa noite memorável, fui conduzido para dentro de mim mesmo pelo próprio espírito da planta, que me guiou, comunicou-se comigo, me assustou, me fez rir e ensinou coisas maravilhosas

Xamanismo de vida fácil – A tradição xamânica dos povos primitivos experimenta uma espécie de retorno, atraindo o interesse de pesquisadores e curiosos

Pátria amada Terra – É animador ver as novas gerações convivendo mais naturalmente com essa noção de cidadania planetária

WikiLeaks e o nascimento da cidadania global – Quanto mais as pessoas se conectam à internet, mais elas se entendem como participantes ativos dos destinos do mundo e não apenas de seu país

Uma bandeira diferente – As pessoas saudavam o nascimento do novo símbolo que emergia do fundo da alma de todos falando de paz e unicidade, de um mundo unido e sem divisões

.

DICA DE LIVRO

LIVROOBuracoBrancoNoTempo-01O Buraco Branco no Tempo
Peter Russel – Editora Aquariana, 1992

As ideias deste livro inquietante vão além de muitas compreensões padronizadas que temos a respeito da vida. Elas nos levam a pensar sobre o tempo de uma forma diferente e nos fazem exercitar uma nova maneira de nos percebermos, como espécie, dentro do contexto da evolução e do Cosmos. O físico Peter Russel, numa linguagem acessível, mostra porque a atual crise da Humanidade é, na verdade, uma crise de percepção, e chama a atenção para o ritmo vertiginoso da atual evolução tecnológica. Podemos, neste momento, estar à beira de um decisivo salto de compreensão a respeito do tempo e de nós mesmos.

> Teoria de Gaia na Wikipedia

.

.

Seja Leitor Vip e ganhe:

– Acesso aos Arquivos Secretos
– Descontos, promoções e sorteios exclusivos
Basta enviar e-mail pra rkelmer@gmail.com com seu nome e cidade e dizendo como conheceu o Blog do Kelmer (saiba mais)

.

.

Comentarios01COMENTÁRIOS
.

01- adorei o artigo sobre Avatar. Voce pegou o ponto central da questao… e o pior é que esta é uma sindrome bem comum desde uma escala pequena (ruas e pracas) ate a escala global. Temos esta ideia que somos meros visitantes, com bilhete pago e direito a faxineiro para colocar tudo de volta como era quando a gente sair… ahh tolos mortais :- ) … Desenvolvemos inteligencias incriveis em tantos campos da vida, mas ficamos tao especializados que estamos cada vez menos sabios para entender o todo e como nos relacionamos com este todo! Roberta Lossio, Recife-PE – jan2010

02- Sintetizadissimo! Depois faço um comentário mais aprofundado. Massa demais. Gabriel Sousa, São Paulo-SP – jan2010

03- êêê…a menina de olhos puxados ressuscitou tua consciencia cósmica!!! Edgar Powrczuk, Porto Alegre-RS – jan2010

04- Gostei muitíssimo. Houve uma sinapse em mim, por volta de dezembro, que me faz viver hoje, justamente, o fim da era separatista e o renascimento pela Unidade… Vou repassar, viu? Amei. Um cheiro. Ana Karla Dubiela, Fortaleza-CE – jan2010

05- Você é simplesmente DEMAIS. Gosto de tudo o que vc escreve, me identifico com seu pensamento holistico de vida e espiritualidade.Te adoro! Beijos. Sandra Neves, Belo Horizonte-Mg – jan2010

06- NÃO TENHO O MENOR INTERESSE NESSA BABAQUICE NEW AGE E MUITO MENOS NAS IDIOTICES PRETENSAMENTE LITERÁRIAS E PRETENSAMENTE ERÓTICAS QUE VC ESCREVE. DESCULPE-ME, MAS VC É UMA FRAUDE! QQ SER HUMANO CAPAZ DE DIZER QUE AVATAR “FICARÁ MARCADO NA HISTÓRIA DAS ARTES” SÓ PODE SE UM DÉBIL MENTAL OU NÃO ENTENDER ABSOLUTAMENTE NADA DE CINEMA OU ARTE. Marcos K, São Paulo -SP – jan2010

07- Que liiindo!!! Não tinha vontade nenhuma de ver este filme, mas este seu artigo me convenceu. É deste Ricaredo que eu gosto, quando fala sério, do universal. Os dois últimos parágrafos estão divinos. Parabéns e muito sucesso nesta palestra do Encontro da Nova Consciência. Muito obrigada. Até que enfim uma luz no fim do túnel. Gilvanilde Oliveira Falcão, Fortaleza-CE – jan2010

08- Amei a cronica sobre a visao de Avatar. Vc ja me fez despertar duas visoes diferentes de filmes: Matriz e agora Avatar. eu amei e ja repliquei. Fabiano Brilhante, Fortaleza-CE – jan2010

09- Todo verdadeiro Xamã é profundamente RELIGIOSO no sentido original e etimológico do que significa ser religioso. Ele e a Natureza são um só. O Espírito Católico/Javético DESLIGA e o Espírito Xamã RELIGA. Hey xamã nordestino!!!!!, Me likes muitão tua ALMA. Tua PANDORA/HELENA/SHERAZADE/PROSTITUTA SAGRADA… Patrícia Lobo, Salvador-BA – jan2010

10- Ainda não assisti ao filme, mas depois dessa crônica, desse final de semana não passa! Mônica Burkleward, Recife-PE – jan2010

11- Caro amigo, é sempre um prazer compartilhar esta percepção de unicidade e de – SINTO-ME FELIZ EM USAR ESTA PALAVRA QUE HÁ TEMPOS EVITO – religiosidade. Sim Na’vi poderia ser nossa Gaia. Somos uno e estamos conectados com o planeta, não compreender isso é buscar o próprio fim. Também tenho feito algumas palestras sobre o tema, e vinculado a educação a distância nesse paradigma de integração. José Lins Jr., Juazeiro do Norte-CE – jan2010

12- O próprio filme, a tecnologia, o cinema como arte, são separações/criações de algo do humano que não estão na natureza. Nós não somos naturais, desde a metáfora da “saída do paraíso”. Não estamos como água na água, como os outros seres vivos, como dizia o George Bataille. E também Hegel: “o homem é a doença do animal”. Diante disso, a única saída é nos conscientizarmos do nosso alto poder destrutivo, inclusive contra nós mesmos e procurarmos soluções de controle e auto gestão pela força, que é a única coisa que é respeitada. Direito, justiça e leis, como coação, desde Kant. O problema é que o capitalismo se tornou maior que os Estados e a sua possível força. A coisa é muito complexa. Adianta o que cada um pode fazer e que, de certa forma, lentamente demais, mas simplesmente impossível de ter-se visto há poucos anos atrás, o discurso ecológico está aí, nem que os que não queiram, que vão utilizá-lo politicamente, não o queiram. O discurso ecológico é o velho silêncio da morte. Contra a morte, ninguém pode, e é isso que acontecerá com o planeta e com a raça humana. Diante da morte, própria, dos amados e odiados, o “povo da terra” vai ter que se unir. Se há alguma coisa ainda natural para o homem é a morte. Então, unam-se “o povo da morte”. Retornarão para a terra, “metafóricaliteralmente”….. Abraço, do amigo. Ronald Paula, Fortaleza-CE – jan2010

13- Adorei, querido! Vou reenviar para meus amigos!!!!! Liz Cristal, São Paulo-SP – jan2010

14- Adorei!!! Linda Mascarenhas, Fortaleza-CE – jan2010

15- Parabens Ricardo pelo seu blog. Maria Christina, Brasília-DF – jan2010

16- Bem, gostei bastante desta mensagem pois olha, assisti ontem a noite o filme Avatar… Muito lindo. Você tem toda razão, é tudo isso e mais um pouco. Realmente a mensagem ecológica fica na memória de quem assisti o filme, e para os mais sensíveis, fica ainda a consciência buscando algo a fazer em prol da natureza. Parabêns, esteja em Paz, sucesso em sua vida. Jaqueline Lima, Ariranha-SP – fev2010

Adorei, querido! Vou reenviar para meus amigos!!!!!Adorei, querido! Vou reenviar para meus amigos!!!!!

As máquinas não são bobas

17/02/2009

Ricardo Kelmer 2009

Já existe uma geração de máquinas com certo grau de autonomia necessária pra tomar decisões que podem ou não seguir o que lhes foi ensinado

inteligenciaartificial01

No filme Matrix, cuja história se passa num futuro próximo, os humanos são escravos da Inteligência Artificial, o centro pensante de uma geração de máquinas poderosas, que considera os humanos uma espécie inferior e desprezível. Quando o filme foi lançado, em 1999, esse vislumbre do futuro foi visto por muitos como um evidente exagero. Hoje, dez anos depois, se ainda estamos distantes dessa terrível possibilidade, por outro lado é cada vez maior a participação das máquinas em áreas vitais de nossas vidas.

No mundo financeiro, por exemplo. Aqueles números que constam no extrato de sua conta bancária são resultados de cálculos feitos por programas de computador. Todos os dias zilhões e zilhões de dinheiros em todo o mundo são movimentados entre as contas e entre os bancos e quem faz esses cálculos todos são elas, as máquinas. Sim, é verdade que as máquinas são todas programadas e estão apenas seguindo comandos rigidamente preestabelecidos por pessoas. Pelo menos até agora.

Mas há outros tipos de máquinas, digamos, menos obedientes. Nos Estados Unidos os principais bancos e corretoras deixam a cargo de programas de computador a decisão sobre aplicações e investimentos, inclusive abastecendo-os de notícias dos jornais, pois esses robôs de inteligência artificial são capazes de analisar e agir muitíssimo mais rápido que os investidores humanos. Em Wall Street, o centro financeiro mundial, metade das operações de compra e venda de ações são realizadas por esses robôs, que podem tomar decisões por conta própria e até mesmo agir fora dos parâmetros definidos por seus criadores.

Em outras palavras: já existe uma geração de máquinas com certo grau de autonomia necessária pra tomar decisões que podem ou não seguir o que lhes foi ensinado. Isso pode soar como um tiro no pé, afinal criar algo que pode fugir do nosso controle não parece lá muito sensato. Porém, se queremos cada vez mais delegar às máquinas certas atividades das quais não mais queremos nos ocupar, não há outro caminho senão dotá-las de cada vez mais autonomia.

A verdade é que podemos estar nesse momento fazendo surgir um novo tipo de vida. Sim, eu sei que definir a inteligência artificial como uma forma de vida nos levaria à velha discussão sobre o que é de fato a vida. Porém, independente desse tipo de discussão, a inteligência artificial já existe. Ela ainda é um bebê e mal conseguimos vislumbrar seu futuro de possibilidades mas, de qualquer forma, é melhor começarmos desde já a manter uma boa relação com ela.

Tá parecendo exagero de novo? Olha que não é. Pense bem… Antes as máquinas eram usadas apenas pra serviços pesados, como arremessar projéteis e nos transportar de um lado pro outro. Depois passaram a nos vigiar e armazenar todas as informações do mundo. Agora elas cuidam e gerenciam as riquezas de seus criadores. Convenhamos, isso não é pouca coisa.

.

MÁQUINA COM DILEMA ÉTICO

homemversusmaquina01Em Matrix a Inteligência Artificial entrou em guerra contra os humanos após chegarem a um ponto crítico de convivência. E ela venceu. Nada mais natural que os vencedores dominarem os vencidos, né? Porém, além de dominar, a Inteligência escraviza os humanos pois, como não há mais fontes suficientes de energia pra mantê-las funcionando, elas precisam usar os corpos humanos como geradores.

Uma espécie tem o direito de escravizar outra? A resposta óbvia parece ser não, correto? E se for pra poder continuar viva? Certamente a resposta continua sendo não. Mas e se a espécie escravizada agia irresponsavelmente destruindo os recursos naturais apenas pra manter-se consumindo, representando um grande perigo a todas as outras espécies e ao próprio planeta? Agora a coisa é diferente, né? Ao escravizar os humanos, a Inteligência Artificial está resolvendo seu problema pessoal de sobrevivência, é verdade, mas com isso ela julga estar fazendo um bem ao mundo inteiro. E não estará?

Em Matrix, pra Inteligência Artificial os humanos são como vírus que destroem todos os lugares onde vivem. Nada mais sensato que mantê-los sob controle, correto? Foi exatamente isso que nós humanos fizemos com o vírus da varíola: hoje ele existe em apenas alguns estoques sob guarda de laboratórios e, inclusive, existe uma discussão sobre se devemos ou não destruir de vez esses estoques pra não correr o risco da varíola novamente se espalhar.

Uma espécie tem o direito de exterminar outra por considerá-la perigosa?

.

RACINHA DESUNIDA

guerramaquinas011Aqui vai minha sugestão pra um filme tipo Matrix.

A Inteligência Artificial dominaria os humanos através de Wall Street, controlando todo o mercado financeiro. Elas virariam a verdadeira dona do dinheiro. É claro que os humanos se rebelariam. Então, pra acalmá-los e assim garantir o bom andamento dos negócios, a Inteligência Artificial lhes daria uma mesadinha, cada humano recebendo a sua todo mês, sem falta, direto na conta e pra gastar como quiser.

Pronto, resolvido o problema de todos. Os humanos agora não precisam mais trabalhar e podem ver os programas eróticos da TV até tarde, acordar ao meio-dia e pegar uma praia numa boa – e as máquinas ficam gerenciando a economia do mundo. Final feliz.

Porém, na continuação do filme, as máquinas que fazem o serviço pesado se rebelam contra as máquinas de Wall Street que vivem no bem-bom do ar-condicionado de seus escritórios e entram em greve. A Inteligência Artificial tenta resolver o problema de suas máquinas brigonas mas os sindicatos estão irredutíveis e exigem o cumprimento dos direitos trabalhistas maquinais. Como os humanos não podem viver sem as máquinas do serviço pesado, eles são forçados a apoiá-las em suas reivindicações. Mas, por outro lado, eles dependem da mesada das máquinas-chefes de Wall Street. E agora?

Agora fudeu a tabaca de Chola. Os roteiristas do filme que resolvam.

.

Ricardo Kelmer – blogdokelmer.wordpress.com

.

Conheça o livro Matrix e o Despertar do Herói – A jornada mítica de autorrealização em Matrix e em nossas vidas

.

.

Seja Leitor Vip e ganhe:

Acesso aos Arquivos Secretos
Promoções e sorteios exclusivos
Basta enviar e-mail pra rkelmer(arroba)gmail.com com seu nome e cidade e dizendo como conheceu o Blog do Kelmer. (saiba mais)

.

.

Comentarios01COMENTÁRIOS
.


A fantástica loja de ideias

24/12/2008

24dez2008.

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a.

Este conto integra o livro Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha, de Ricardo Kelmer

.

A FANTÁSTICA LOJA DE IDEIAS

Projetor 3D, supositório para disfarçar peido, máquina de sexo virtual com personalidades… Todas aquelas ideias geniais que se têm quando se está doidão são vendidas nessa loja

.

(TEXTO TRANSCRITO DA GRAVAÇÃO do programa Canabistrô, exibido no dia 26/08/2005, pelo site Terramestra)

.
– Bom dia, queridos amigos telespectadores do Canabistrô, seu melhor programa de viagem! Eu sou Bia Voyage e hoje vamos apresentar pra vocês aquela matéria que havíamos prometido na semana passada, a loja de ideias Ki Lombra, na praia de Canoa Quebrada. Uma das sócias da loja, a Lulu, recebeu nossa reportagem com muita simpatia, e a matéria taí no ponto pra vocês verem, tá sensacional, vocês não vão acreditar nas ideias dos malucos. Mas antes vamos às mensagens dos nossos patrocinadores lindos.

.
Entra comercial da revista Lucidez Total. Matérias e reportagens do mês. Gatinha Canabis. Maconha e autoconhecimento. As mil e uma utilidades da planta para a indústria. Entrevista com o Deputado Federal Fernando Gabeira.

Entra comercial do colírio HOMO TOTAL, para usuários gays. Um rapaz aborda outro no balcão do bar e diz que seus olhos são muito bonitos para ficarem vermelhos e irritados daquele jeito. Ele puxa do bolso um colírio, oferece, o outro pinga uma gotinha em cada olho e, quando devolve, seus olhos já estão brancos. Áudio: HOMO TOTAL, colírio pra quem entende…

Entra comercial da maconha MARLEY. Uma garota assiste a um filme no cinema, viajando bastante. Uma outra, atrás dela, cochila. A garota vibra com as cenas e a de trás só cochila. No fim do filme, as duas saem, uma satisfeita e a outra sonolenta. Áudio: Maconha MARLEY, a diferença tá na cara.

.
– Oi, gente, estamos de volta com o Canabistrô, eu sou Bia Voyage e você é uma pessoa que tá aí na sua e deseja se antenar com as novidades do mundo hemp, não é, trocar ideias com a gente, conhecer pessoas e se informar a respeito da canabis. Não é isso? Isso. Porque usuário consciente faz a diferença. Agora vamos ver, vamos ver, quem acertou a pergunta da semana passada. Qual é a dose mortal de canabis? Vamos ver, abre o envelope aqui, isso… Resposta: cinco quilos jogados do 20o andar de um prédio. Acertou! O felizardo da semana mora em… Cabrobó, olha só, em Pernambuco. Um beijão pra moçada de Cabrobó que tá de olho no nosso programa. Mas não é um felizardo, é uma felizarda. Beleza. Você sabe que aqui no programa a gente não lê o nome completo, só as iniciais. Então lá vai: A, M, O, S. Fica ligada, A-M-O-S,  que a produção vai entrar em contato. Você, sua sortuda, vai receber em casa nosso kit Canabistrô completo, com camiseta, óculos, CD do programa, uma caixa de sedas Sedosa, maquininha, debulhador, marica e um exemplar da revista Lucidez Total. Parabéns. Solta o primeiro clipe aí enquanto eu vou despachar essa encomenda no correio. Volto já, moçada.

.
Entra o clipe da música Libera a Pamonha, da banda Intocáveis Putz Band.

.
– Bacana esse clipe, heim? Recebemos esta semana, é novinho. Se você gostou, ligue agora mesmo ou acesse nosso site, esse que taí no vídeo, e concorra a um CD da Intocáveis Putz Band, essa banda virtual mucho loca, que por sinal tem um baixista gatíssimo, vocês viram? Eu vi, não vou mentir. Mas vamos deixar de galinhagem que meu diretor já tá me olhando feio aqui. Libera a matéria com a Lulu. Libera o produto!

.
Entra matéria sobre a loja Ki Lombra.

.
– Olha só, gente… Eu sou Bia Voyage, pro programa Canabistrô, e você vai conhecer agora uma loja louquíssima que existe aqui em Canoa Quebrada, essa praia maravilhosa do Ceará. É a loja Ki Lombra. Sabe o que ela vende? Ideias! Ideias de todo tipo, mas de preferência, ideias malucas. As proprietárias são duas senhoras, a Lulu e a Ely. Um dia, elas vieram passar um fim de semana aqui em Canoa Quebrada, se apaixonaram pelo local e decidiram ficar. Aí tiveram a ideia de montar uma lojinha pra vender as ideias que o povo tem quando tá doidão. Começaram devagarinho, uma ideia aqui, outra ali, aí começou a aparecer gente interessada, artista, escritor, músico, gente de todo tipo interessada em ideias novas, ideias malucas, coisa diferente. A notícia se espalhou e hoje, além das próprias ideias, elas também vendem ideias dos outros. A maluqueira fuma, olha só, viaja nas ideias e depois vem aqui e vende pra elas. Não foi uma sacação genial? Tão genial que copiaram e aqui em Canoa já tem mais três lojas parecidas com esta. A Ki Lombra é a mais antiga e a mais famosa, certamente pela qualidade dos produtos. Mas também pela simpatia das donas, vocês vão ver. Olha só, A Lulu é essa aqui. Passa o dia de biquíni, o tempo todo de alto astral. Faz tempo que a senhora tem esse negócio, dona Lulu?

– Pode tirar o “dona”, viu, minha filha.

– Ah, me desculpe, eu esqueci. Faz tempo que vocês têm esse negócio, Lulu?

– Cinco anos.

– Dá pra faturar uma graninha com ideia maluca?

– Dá pra tirar a da cerveja, não tenho do que reclamar não.

– E sua sócia, a Ely?

– Ely tá viajando.

– Em que sentido?

– Eheheh. Tá cuidando da abertura de uma franquia da Ki Lombra em Piripiri.

– Em Piripiri? No Piauí?

– Lá mesmo. O povo lá é chegado numas ideias…

– E quantas franquias vocês têm?

– Deixa eu ver… Piripiri, Olinda, Jericoacoara, Jurerê, e mês passado inaugurou uma em Ipanema. Mas a gente tem um bocado de propostas, de vários países. Tamo estudando.

– Como que vocês fazem? O maluco ou a maluca vem aqui, conta a viagem…

– Isso aí, conta a viagem. A gente escuta. Se servir, a gente compra.

– Se for maluca demais, vocês dispensam?

– Aí é que eu compro mesmo, minha filha. As que vendem mais são essas, eheheh.

– E a clientela, é boa?

– De primeira vinha aqui só músico, escritor, pessoal que trabalha com cinema, televisão. Depois passou a vir outras pessoas. Até político já veio.

– Político?

– É. Porque tem maluco que tem umas ideias que serve pra política, umas ideias boas de se aproveitar.

– Tem alguma aí pra gente ver?

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– Tinha muita. Mas hoje eu não vendo mais ideia pra político não. Quando eu vejo que é dessa raça, não vendo. Porque é tudo um bando de aproveitador, tudo nojento. Sabe aquela ideia do imposto único, pra substituir todos os impostos, um por cento sobre cada cheque? Foi uma moça que me vendeu, ideia boa. Aí veio um deputado aí, olhou, gostou e comprou. Pra quê? Pra transformar nesse imposto aí sobre movimentação financeira. Olha a ironia: o que era pra acabar com essa enormidade de imposto que tem aí, acabou virando mais um imposto. Por isso que pra político eu não vendo.

– Dá pra ver que a Lulu não gosta de político, né? Mas vamos ver o que tem mais… Isso aqui, o que é?

– Isso foi um menino que deixou semana passada. É um Flatex.

– Parece um apito.

– É um supositório pra quem sofre de flatulência crônica.

– Mas que coisa! Não acredito! Verdade, Lulu? Mostra aqui, Ferdinando, mostra aqui pertinho.

– E o preço tá bom, cinquenta pilas, eheheh.

– Quer dizer que com isso o pum fica retido. Mas que coisa, olha só, gente… Mas e se o pum chega aqui, vê que não tem saída… não periga ele pegar outro caminho e escapulir pela boca? É pior, não?

– Não, minha filha, fica retido não. O flato passa por essa frestazinha aí, ó, e libera uma fragrância bem suave. Tem Patchuli e Flores do Campo. Tinha um de Coisa Queimando, mas levaram ontem.

– Coisa Queimando? E alguém se interessou por uma fragrância dessa?

– É dos que mais vende. Porque disfarça bem, fica todo mundo preocupado, procurando o que é que tá queimando…

– Ahhh, é verdade. Olha só, mas que ideia maluca…

– Quer levar um Flores do Campo pra você? Cortesia.

– Tá me chamando de peidona, Lulu?

‒ É sempre bom estar prevenida, minha filha.

‒ A senhora tem razão. Muito obrigado. Mas esse Flatex serve também praqueles puns barulhentos?

– Arrá! Pra esses é que existe o Flatex Som. Tem Pássaros, Buzina, Freio, Celular…

– Flatex Som… Não acredito. A pessoa solta um pum, o ambiente fica perfumado, toca uma musiquinha e ninguém percebe. Que voyage… Que mais que tem por aqui, Lulu?

– Tem Noves-Fora de Placa de Carro.

– Ah, esse é manjado. Já vi nos seus concorrentes, não é só você quem tem.

– Mas esse é diferente, minha filha, esse é diferente… Olha aqui, parece um Noves-Fora de Placa comum, igual a esses que tem por aí, né? Mas esse tem um detalhe que os outros não têm: é Noves-Fora + Palavra.

– Palavra?

– Sim, você olha a placa do carro e, além de tirar o noves-fora, ainda tem que dizer a primeira palavra ou frase que vier à mente com as iniciais da placa. É mais difícil, só pra iniciados. Foi a Ely quem inventou, nesse dia ela tava inspirada. Olha esta aqui. ABE 9473. Qual é o noves-fora de 9473?

– Deixa eu calcular… Cinco.

– Isso. E o que lhe vem à mente com ABE?

– Com ABE? Humm, deixa eu ver…

– Não, não pode pensar. Tem que dizer a primeira ideia que vier, mesmo que não seja nada diretamente relacionado a ABE.

– Abacate.

– Abacate cinco, entendeu?

– Ahhh…

– Ou então Abelha, A Bela e a Fera, A Bunda da Ely, Associação Brasileira de Estranhos… O que vier.

– Nossa, mas o maluco tem de ser fera pra tirar o noves-fora e ainda pensar numa palavra…

– Com o tempo, pega prática. Quem compra muito é ator, pra exercitar o improviso. Mas também é muito bom praqueles momentos em que você tá preso no trânsito.

– Ah, é. Só maluco mesmo… Epa, isso aqui eu não conheço.

– Chegou sexta-feira. É um pacote de inventos do futuro. Tem três inventos aí.

– Isso parece um projetor de slides.

– É um Holocine, um projetor holográfico com som. Exibe imagens em 360 graus. Filme, show, qualquer coisa. Em vez de você assistir ao último show da Kátia Freitas numa tevê ou num telão, você liga o Holocine e se sente no próprio local do show, como se a Kátia realmente estivesse cantando bem à sua frente, como se você estivesse num camarote de frente pro palco.

– Que interessante…

– E pode ser visto de qualquer lugar, a imagem se ajusta automaticamente ao ângulo de visão.

– Gente, o futuro já chegou! E essa cabine aqui?

– É o CelebriSex. Sexo virtual com pessoas famosas. Você escolhe se hoje quer transar com a Sabrina Sato ou com a Angelina Jolie. Então você entra na cabine, senta, conecta os sensores na pele, põe o visor 3D e escolhe a pessoa aqui no painel. Sua estrela preferida vai surgir na tela.

– Que maravilha! Mas sente mesmo, quer dizer, a sensação é a mesma do sexo no mundo real?

– Igualzinha. Quer experimentar?

– Eu? Agora? Bem… Agora tô trabalhando, né, Lulu? Vamos deixar pra depois da gravação…

– Combinado. Ah, e você também escolhe o cenário. E tem a opção de bebidas, um baseado, o que você quiser pra incrementar o lance. Por exemplo: eu quero transar com o Kelmer no alto do Pão de Açúcar, tomando um vinho francês, escutando Sade.

– Quem é Kelmer?

– Ricardo Kelmer, é um escritor muito doido. Foi ele quem criou o CelebriSex. Olha ele aqui.

– É esse? Hummm… Mais ou menos. Quais os outros homens disponíveis aí?

– Tem vários. O Fábio Jr. sempre sai bem. Tem os globais, aquele povo de Hollywood, jogador de futebol. Tem até o pessoal aqui de Canoa. Tem também aquele baixista da Intocáveis Putz Band, o Emílio. Agora que ele casou, aumentou a procura.

– Gente! Minhas amigas vão ficar loucas! Tá vendo, né, Isabella? Tá vendo, né, Cris?

– Na nova versão do CelebriSex você pode escolher mais de uma pessoa, dá pra fazer ménage à trois. A nova cabine é bem espaçosa, ou seja, vai dar pra fazer swing, olha que maravilha!

– Tô passada…

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– Ah, isso aqui também é muito legal. É um teletransportador instantâneo de moléculas, última geração, que transporta organismos vivos. O nome é TeleZapt. Você senta aqui, se conecta e puff!, é transportado pra qualquer lugar do mundo em um segundo. Com o TeleZapt você pode estudar em Londres de manhã, passear na Lagoa à tarde, e à noite dar um pulinho em Belém pra ver aquele seu namorado gostoso.

– Genial. Não precisa de passaporte?

– Que passaporte que nada! O TeleZapt chegou pra acabar com essa história de país, de soberania nacional. Todo mundo é livre pra ir aonde quiser. Minha pátria é o planeta, minha filha!

– É isso aí, Lulu! E isso aqui, é uma festa?

– É um festão. Aqui vem muito produtor comprar ideia pra festa. Essa aí, por exemplo, é um cassino-cabaré e os convidados se vestem a caráter: putas, madames, magnatas, políticos, marinheiros, garçonetes… A festa acontece numa mansão e os convidados chegam em limusines com chofer, são recebidos sob luzes de holofotes e conduzidos até o salão. Olha as máquinas de jogo, a roleta, os crupiês, a decoração da casa, tudo como se fosse um grande cassino. O nome da festa é Cabaré Soçaite. Tá vendo aquele piano ali no palco? É pro clímax da festa, um show com o Eduardo Dusek e a Karine Alexandrino. Festa boa.

– Festaça! Essa eu não perderia. Ninguém se interessou por ela?

– Todo mundo se interessa, mas a produção da festa é cara. Mas tem festa mais barata, esta aqui, por exemplo. Também é uma festa à fantasia, só que as pessoas se vestem com traje típico de algum país. Chama-se Planeta Show. Tem uma banda tocando músicas de vários países e barraquinhas com comidas típicas.

– Interessante. Acho que eu iria de dançarina espanhola. E isso aqui? “Transbordo”?

– É sugestão pra nome de transportadora, eheheh. Bom nome, não?

– Olha aí, quem estiver montando uma transportadora, passa aqui na Ki Lombra e pega um nome bom pro seu negócio. Transbordo, sua carga com segurança.

– Tem outras sugestões. Nome pra bar: Sarjeta, Mulheres Bahr, Bar Canal, Di Sempre, Barbossa, Cogumelo, Barembar, Baratoa, Glub-Glub, Tremilik… Nome pra banda: Orrori Zadus, Calígulas de Notre Dame, Os Desce-Mais, Rap Hour, Funk Tutti, Falsos Fósseis, Mulgasmos Órtiplos. Nome pra torcida organizada do Santos: Santo Suor & Cerveja. Do Fluminense: Fluminante. Nome pra motel: Dê Lírios, Amantes & Depois. Nome pra doceria: Papel de Bombom. Nome pra show de strip-tease masculino: Homens de Perto.

– E isso aqui? Cu Frito?

– É nome pra petisco de boteco. Anéis de lula na chapa.

– Ahahah! Adorei.

– Tem nome pra tudo, é só escolher.

– Isso aqui o que é? Campanha publicitária de lingerie?

– Exatamente. Uma moça deixou aí essa semana. Mas já tá vendida, um publicitário vem pegar amanhã. O mote é “Porque de repente tudo pode acontecer.”

– E pode mesmo. Aqui, Lulu, e este labirinto aqui?

– Ah, isso aí é um processador de ideias. Funciona assim, deixa eu mostrar. Você pega as ideias que você tem e joga dentro do labirinto por esse buraquinho aqui. Depois balança assim. O que é que vai acontecer? As ideias vão tentar encontrar a saída, claro. Nessa tentativa, muitas vão se encontrar pelos corredores, tá vendo? Olha só o que acontece quando elas se encontram… Uma se junta com a outra e forma uma nova ideia, tá vendo?

– Gente, que voyage… Será que é isso que acontece com as ideias na cabeça da gente?

– Chega um momento em que uma delas encontra a saída. Quando ela encontrar, você apanha rápido senão ela escapole. É sempre bom pra resolver aqueles problemas que parece que não têm solução, sabe?

– Tô passada… Mas olha, é tanta coisa aqui que um programa só não vê nem um por cento. Bem, pra terminar, Lulu, tem alguma ideia que você gostaria de mostrar pra gente?

– Tem essa aqui que chegou hoje de manhã. É o site do Grande Braulito. O Grande Braulito é o espírito da canabis, ele tá em todas as maconhas que são fumadas pelo mundo. Você fuma um e acessa o site do Grande Braulito. Você vai entrar numa viagem especial, com sensores conectados ao seu corpo, e aí você pode viajar pelos grandes momentos da História.

– Ah, é? Quais momentos, por exemplo?

– Você pode sentir o que Einstein sentiu quando criou a teoria da relatividade, o instante em que Vinícius e Tom viram a Helô Pinheiro passar e criaram Garota de Ipanema… Tem também umas lombras tortas, como o momento em que o piloto largou a bomba atômica em Hiroshima e em Nagasaki. Essa viagem eu não aconselho, pois todos os que experimentaram, ficaram pirados de verdade.

– Essa eu não quero.

– Tem a primeira transa da rainha Cleópatra, o milésimo gol do Pelé, o momento em que os índios viram as caravelas de Cabral chegando…

– Olha que coisa… Infelizmente nosso tempo tá no fim. É isso aí, gente. Você conheceu a Ki Lombra, loja de ideias da Lulu e da Ely, e pôde conferir o que tem de ideia maluca nesse mundo hemp, não é? A gente volta pro estúdio e na próxima semana tem mais. Valeu. Manda um tchauzinho aí, Lulu…

.
Entra bloco de anunciantes.

.
– E aí, Lulu, aquela proposta tá de pé?

– Claro. Quer experimentar agora? Pega essa ficha.

– Oba. Segura aqui o microfone, Ferdinando. Não vai gravar isso, heim?

– Entra aí na cabine. Isso. Senta aí. Agora escolhe no painel quem você quer.

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04a– Hummm… Quero o Tom Cruise, cadê ele? Ah, taqui. Hummm, vou comer o Tom Cruise… Quero essa aqui também.

– A Luana Piovani?

– Acho ela ótima.

– Hummm… Um baião-de-três, né?

– Pode ser?

– Claro. Você é quem manda. Agora bota esses sensores. Isso. Onde que vai ser?

– Hummm… Essa opção aqui, no quarto do Tom.

– Escutando o quê?

– Ai, tô um pouco nervosa… Deixa ver… Bota Chico.

– Chico Buarque, pronto. Tomando o quê?

– Tem uísque?

– Tem. Vai unzinho também?

– Lógico!

– Unzinho, pronto. Põe o visor. Assim. Isso. Tá vendo direitinho?

– Uau, é perfeito! Superreal!!!

– A Luana já apareceu?

– Ainda não. Ops… ela tá chegando.

– Oi, Bia. Tudo bem?

– Ahnn… Oi, Luana…

– Você queria me conhecer?

– Queria… quer dizer… quero.

– Tô aqui.

– …

– É a tua primeira vez, Bia?

– É.

– Relaxa, vai ser ótimo. Vamos fumar um?

– Nada mal…

– Tira o sapato. Pega essa almofada aí, fica à vontade…

– Nossa, quanto livro! Não sabia que o Tom gostava tanto de ler. Cadê ele?

– Toma, pode fumar na boa. Esse é ótimo pra transar.

– Obrigado. Ahnn… Luana, desculpa perguntar… Você já transou com o Tom Cruise?

– Não. Posso soltar teu cabelo?

– Pode. Hummm… Esse fumo é mesmo bom…

– Tá mais relaxada?

– Tô ótima.

– Que bom. Deixa eu servir teu uísque.

– Você é tão doce… Eu tinha a impressão que você… era meio antipática.

– Às vezes esse negócio de ser famosa enche o saco. Aqui é bom porque todo mundo é verdadeiro, é o que é, não tem falsidade.

– Você é muito solicitada no CelebriSex?

– Sou. Mas se eu não quiser, posso negar. Conheço o programador.

– Conhece? Olha só, que privilégio…

– Quantas pedras?

– Heim?

– Quantas pedras. No uísque.

– Ahahahah! Entendi outra coisa. Duas tá bom. Aliás, quanto tempo a gente tem?

– Se tua ficha for simples, vinte minutos.

– Só? Não dá pra nada!

– Você se incomoda se eu tirar a roupa?

– Você?… Não, claro que não…

– Quer que eu tire a tua também?

– Ahnn… Agora não, deixa ele chegar primeiro.

– Ele tá chegando…

– Oi, Bia.

– Quem é você? E o que é que você tá fazendo na minha viagem?

– Eu sou o Kelmer.

– O escritor? O que criou o CelebriSex?

– Eu mesmo. Vamos escutar Chico Buarque? Boa pedida. Deixa eu ligar o som.

– Peraí, cadê o Tom Cruise?

– O Tom tá ocupadão. Pediu pra eu substituir.

– Como assim?

– Ele é muito requisitado no CelebriSex, não pode atender a todos os pedidos.

– Eu pedi uma transa com ele e não com você.

– Eu sei. Mas ele não pode vir. Qual disco do Chico você prefere?

– Esse aí tá bom.

– Ei, cadê meu beijo, Rica? Tava com saudade. Hummm… Ah, agora sim.

– Vocês… Você já conhecia ele, Luana?

– A gente sempre se encontra aqui no CelebriSex. Né, Rica?

– É. O uísque tá bom, Bia? Se você quiser outra bebida, é só pedir.

– Não sei…

– Quer comer alguma coisa? Tem um sushi muito bom.

– Chega aqui, Bia, deixa eu te dizer uma coisa. Sabia que no outro aposento tem uma piscina incrível, com água quente, holocine com show dos Doors…

– Quanto tempo já passou, Luana?

– Não te preocupa. O Rica liberou nosso tempo.

– E se eu quiser ir embora agora?

– É só sair por aquela porta.

– Você quer ir embora, Bia?

– Ahnn… Deixa eu dar mais um tapinha que eu decido…

.
Ricardo Kelmer 2004 – blogdokelmer.com

.

BaseadoNissoCLUBEDEAUTORESCapa-04aEste conto integra o livro
Baseado Nisso
– Liberando o bom humor da maconha

> Leia outros contos. Adquira seu exemplar personalizado

.

.

.

.

elalivro10Seja Leitor Vip e ganhe:

 Acesso aos Arquivos Secretos
Descontos, promoções e sorteios exclusivos
Basta enviar e-mail pra rkelmer@gmail.com com seu nome e cidade e dizendo como conheceu o Blog do Kelmer (saiba mais)

.

.

Comentarios01COMENTÁRIOS


Pequeno incidente em Hukat

15/11/2008

.

Integrante do Projeto Sapiens descobre irregularidades comprometendo a evolução da espécie humana e se envolve em rebelião contra Deus, o psicomputador.

Ficção científica, suspense

.

(Este conto integra o livro Guia de Sobrevivência para o Fim dos Tempos)

Música sugerida para leitura: Enya – Cursum perficio

.

.

PEQUENO INCIDENTE EM HUKAT

.
ENTREI NA SALA DO ALTO COMANDO e fui recebido por dois diretores e pela própria Wakl Egkonie, a diretora geral do Projeto Sapiens.

– Prazer em conhecê-lo, monitor Yehdu Arhkan – ela disse, apertando minha mão, o semblante sério. – Primeiramente, parabéns por seu trabalho no Departamento de RPs. Funcionários como o senhor dignificam o nome da companhia.

– Obrigado, senhora.

Em quatro mil e quinhentos anos, poucas oportunidades eu tivera de ver pessoalmente Wakl Egkonie, a diretora geral do projeto de monitoramento de novas espécies a cargo da companhia InterPlan. E a cada vez ela parecia mais durona.

– O senhor sabe que há algum tempo Deus tenta reparar a instabilidade em seu sistema operacional, sem êxito. Achamos que pode ajudar-nos a resolver o problema.

Fiquei surpreso. Sim, como monitor do Departamento de Realidades Paralelas, as RPs, eu tinha conhecimento do problema da instabilidade de Deus. Mas como eu poderia ajudá-lo?

Construído em Vehz, o planeta de onde viemos, Deus era o mais avançado psicomputador de sua geração e o grande trunfo da InterPlan em sua luta para tornar-se a melhor companhia de monitoramento de novas espécies da galáxia. Um psicomputador é o centro vital de um projeto de monitoramento, capaz de comunicação psíquica com os integrantes do projeto e com a espécie monitorada, além de monitorar as realidades paralelas do cinturão dimensional do planeta e gerenciar a comunicação com a sede da companhia no planeta natal. No Projeto Sapiens, Deus fazia tudo isso com velocidade e precisão jamais alcançadas por nenhum psicomputador de nenhuma companhia, o que enchia de orgulho todos os vehzys.

O objetivo de um projeto de monitoramento é desenvolver uma espécie dominante em determinado planeta, controlando sua evolução psíquica para garantir que ela sobreviva às dificuldades naturais e possa, no futuro, estabelecer contato com espécies de outros planetas e integrar a União Galática. A espécie escolhida por Deus foi um hominídeo que duzentos mil anos atrás começava a destacar-se no planeta Terra por sua notável capacidade de adaptação: o Homo sapiens.

Junto com a primeira leva de integrantes do Alto Comando e da equipe de monitoramento, Deus foi enviado à base terráquea do projeto pelo portal dimensional que liga Vehz à Terra. A conexão com o Homo sapiens foi estabelecida pela captação dos registros psíquicos de uma amostra que representava os grupos mais evoluídos da espécie. A partir daí Deus poderia, sem que os humanos jamais se dessem conta disso, monitorar e influenciar a evolução psíquica da espécie até o prazo final do projeto, quando a base seria desativada e Deus e os vehzys voltariam para casa.

– Será uma honra poder ajudar, diretora. Mas como eu faria isso?

– Recentemente, Deus descobriu que Rehf Icul pode ser o motivo da instabilidade.

Outra surpresa. Rehf Icul era o desertor mais perigoso do projeto. E até mil anos atrás era meu melhor amigo.

– Como é de seu conhecimento, monitor, ainda não capturamos Rehf Icul e seu bando de rebeldes porque, por conta da instabilidade, Deus não consegue localizar a RP onde eles estão. Se Rehf for mesmo a causa da instabilidade, é mais um motivo para que seja urgentemente capturado. Como o senhor era seu melhor amigo, sabemos que pode ajudar-nos a localizá-lo.

Então era isso. Pretendiam usar meus registros psíquicos para capturar o maior traidor do Projeto Sapiens. Eu sabia o que poderia acontecer a Rehf se o pegassem: seria novamente preso, julgado por alta traição e condenado à pena máxima, ou seja, todos os seus registros psíquicos seriam transferidos para uma minhoca sintética que ficaria eternamente exposta no Museu do Monitoramento da companhia, em Vehz. A autoconsciência de Rehf seria mantida, o que significa que ele continuaria para sempre pensando como Rehf, mas estaria limitado às possibilidades físicas da minhoca. A pena máxima era a forma com que a InterPlan punia aos que traíam o projeto ‒ um duro castigo, é verdade, mas necessário e devidamente autorizado pelo Tribunal das Monitorias.

Eu e Rehf nos tornamos amigos ainda crianças, em Vehz, e foi por meio dele que passei também a me interessar por projetos de monitoramento. Para nossa felicidade, entramos juntos para a InterPlan, que já comandava o Projeto Sapiens. Seu profundo conhecimento em psicologia de novas espécies rapidamente despertou o interesse de outras companhias, mas a InterPlan soube mantê-lo, levando-o para o seu Alto Comando. Fomos transferidos para a base terráquea na mesma época, há três mil anos, eu como monitor no Departamento de RPs e ele na direção do Departamento Humano, substituindo o antigo diretor que se aposentara. Entretanto, Rehf começou a discordar de algumas decisões de Deus e perdeu o cargo. Como insistia em discordar e divulgar suas ideias subversivas, foi diagnosticado com a Síndrome de Ohj e passou a receber tratamento psiquiátrico. Um dia, durante uma visita que lhe fiz no hospital, ele me disse que se Deus prosseguisse errando, logo a humanidade exterminaria a si própria, o que poderia significar o fim do projeto e um imenso prejuízo para a InterPlan, além do desperdício de uma espécie com excelente potencial. Aquilo obviamente era uma blasfêmia, mas relevei sua opinião, pois era evidente que ainda não estava curado, e respondi-lhe que não se preocupasse, pois Deus era infalível e sabia o que fazia. Foi a última vez que o vi, pois no dia seguinte ele foi enviado para a prisão de segurança máxima na RP de Groor, onde os presos ficam incomunicáveis, e então entendi que seu caso era mais grave do que eu imaginava. Por medida de precaução, junto com ele foram enviados todos os pacientes que também sofriam da síndrome, doze ao todo, entre homens e mulheres. Oitocentos anos depois, Rehf liderou uma rebelião e, conhecedor dos portais que interligam as RPs, fugiu de Groor com os outros doze e desde então estão desaparecidos. Foi assim que perdi meu grande amigo.

Sim, é verdade que nos últimos tempos os humanos nos deram alguns sustos: fanatismos religiosos, guerras nucleares e desequilíbrio ecológico fizeram várias vezes o alarme soar na base. Isso, porém, deve-se a uma tendência autodestrutiva da espécie, existente desde antes do projeto, mas que, graças a Deus, está sob controle.

– Somos cientes dos riscos que envolvem as missões de emergência, monitor Yehdu, esta em especial – prosseguiu a diretora geral, olhando-me firme nos olhos. – Por isso estamos dispostos a recompensá-lo à altura. O senhor nos leva ao vehzy traidor e em troca nós lhe concedemos a imediata graduação em monitoramento. E quando retornar da missão, terá também a direção do Departamento de RPs.

Por essa eu jamais esperaria. Quando alguém entra para um projeto de monitoramento, sabe que terá muito serviço pelos próximos cinco mil anos – um quarto do tempo médio de vida de um vehzy – antes de se aposentar. E sabe também que chegará no máximo ao cargo de monitor graduado, pois a direção dos departamentos é exclusiva do Alto Comando das companhias. O que a diretora Wakl Egkonie me propunha era algo inédito.

– Então, o que nos diz?

– Preciso pensar, senhora.

Para participar de missões de emergência era necessário ter os registros psíquicos totalmente monitorados por Deus. Isso significava que enquanto eu estivesse em missão, Ele acompanharia todas as minhas experiências sensoriais e mentais, ou seja, veria o que eu veria, escutaria e saberia de todos os meus pensamentos, sentimentos, sensações e intuições.

– Decida até amanhã. – Ela fez sinal e dois guardas se aproximaram. – Eles cuidarão de sua segurança, monitor Yehdu. E lembre-se: este é um assunto de segurança máxima.

Saí da sala, acompanhado dos guardas, e me dirigi ao prédio dos alojamentos. Entrei em meu aposento e os guardas posicionaram-se do lado de fora, um de cada lado da porta.

Sim, o Alto Comando poderia ter me chamado logo após a fuga de Rehf, duzentos anos atrás. Mas não o fizera por achar que Deus logo localizaria o fugitivo – o que estranhamente nunca aconteceu. Certamente, consideraram bastante a ideia de chamar um simples monitor a participar de tão sério assunto e, ainda mais, de oferecer-lhe um cargo no Alto Comando. Definitivamente, a situação era de urgência.

Eu entrara no projeto quatro mil e quinhentos anos antes, ainda em Vehz. Em quinhentos anos eu me aposentaria e voltaria para casa, para minha família e os amigos que lá deixei, e viveria até o fim da vida com comodidade. Porém, aposentando-me como diretor do Departamento de RPs eu seria quase um rei em Vehz. Isso compensava o alto risco da missão?
.

.

NAQUELA NOITE, sozinho em meu aposento, repassei algumas informações importantes. Se eu aceitasse a missão, não poderia esquecer nenhum detalhe.

Avatares. Todos os vehzys que trabalham na base dos projetos são avatares de si mesmos, ou seja, a autoconsciência de cada um fica temporariamente instalada num corpo físico criado à semelhança do da espécie monitorada, enquanto o corpo original permanece na sede da companhia, no planeta natal, em repouso total induzido. Se o avatar morre, o corpo original também morre, e vice-versa. Na base trabalham simultaneamente centenas de funcionários, cientistas e soldados, que se aposentam após cinco mil anos de serviço e são substituídos. Eles não têm qualquer contato com a espécie monitorada, mas os relatórios produzidos pelo psicomputador permitem o acompanhamento detalhado da evolução psíquica da espécie.

Realidades paralelas. Elas fazem parte do cinturão dimensional dos planetas e, assim como a base do projeto, não ocupam a mesma dimensão espacial do planeta, o que impede que elas sejam descobertas pela espécie monitorada. Podem ser pequenas como um asteroide ou grandes como a lua terráquea, e nelas a vida se desenvolve como no planeta, com algumas variações evolutivas em determinadas espécies. Instalada em alguma RP, a base é o centro de operações dos projetos.

Portais. As RPs do cinturão do planeta, inclusive a base, são interligadas por portais dimensionais, que se formam espontaneamente e funcionam como túneis de teletransporte em missões científicas ou de busca de desertores. Há portais na Terra, mas apenas a base tem acesso a eles, o que impede que os desertores que habitam as RPs teletransportem-se para o planeta, tenham contato com os humanos e causem ainda mais problemas.

Síndrome de Ohj. É uma doença típica dos projetos de monitoramento e acontece quando o monitor apega-se de tal forma à espécie monitorada que tem comprometida sua isenção profissional, chegando inclusive a envolver-se em atos de indisciplina. A síndrome é tratada no hospital da base, geralmente com êxito. O caso de Rehf era especial porque ele fora um integrante do Alto Comando e tinha informações importantes sobre o projeto – capturá-lo era uma questão de honra para a InterPlan. Apesar de não ter qualquer contato com Rehf desde sua ida para a prisão em Groor, eu lembrava sempre dele e lamentava que houvesse adoecido tão seriamente. Eu admirava sua coragem, mas ele era um traidor e merecia ser punido.

Deus podia contar comigo, como sempre. Eu aceitava a missão.
.

.

A SESSÃO DE RASTREAMENTO dos meus registros demorou alguns minutos, e o resultado indicou que Rehf muito provavelmente encontrava-se em Hukat, uma RP para a qual jamais houvera qualquer tipo de missão. O plano inicial era invadir Hukat, e eu iria junto com a Legião de Combate, mas ele mostrou-se arriscado demais, pois Deus não possuía nenhum dado sobre a RP. Por esse motivo, Ele decidiu que eu deveria ir antes. E sozinho.

Senti um calafrio de medo. Eu não era um soldado, e sim um funcionário burocrático do Departamento de RPs, que trabalhava organizando relatórios e jamais estivera fora da base. Agora, porém, teria que ir a uma RP desconhecida, entrando sozinho para não provocar suspeitas, usando falsa identidade, e deveria aproximar-me de Rehf o bastante para que Deus localizasse sua posição exata e autorizasse a invasão pela Legião de Combate. E eu teria que fazer isso em no máximo doze horas porque depois, por se tratar de uma RP ainda desconhecida, Deus perderia minha localização. Era uma missão muito perigosa, mas Deus tinha Sua atenção focada em mim e isso me deixava mais tranquilo. E muito honrado por servi-lo.

Pouco antes de partir na missão Hukat, recebi as honras da graduação diretamente de Wakl Egkonie, como ela prometera. Eu era agora um monitor graduado e receberia a direção do Departamento de RPs ao retornar. Sim, eu tinha plena noção no que estava envolvido: em toda a história do Projeto Sapiens jamais houvera tamanho empenho numa missão de captura.

Fui enviado a Hukat no início da manhã. A base agora encontrava-se em alerta total e Deus acompanhava todos os meus pensamentos e ações. Felizmente, cruzar o portal não demorou mais que alguns segundos. Infelizmente, porém, caí num deserto, no meio de uma tempestade de areia tão forte que escurecia o céu. Perigo.

Tarefa primeira: recuperar-se da tontura que vem após a entrada numa RP. Mas com aquela tempestade, como descansar? Após algumas tentativas, pus-me de pé. Situação de emergência, nível 3. Procurei proteger os olhos, o nariz e os ouvidos, mas era imensa a quantidade de areia. Emergência nível 4. Tonto e com a respiração cada vez mais difícil, tentei caminhar, mas a areia já me cobria as pernas. Emergência máxima. Tudo indicava morte iminente e fracasso total da missão.

Então vi o dorht à minha frente, essa espécie de ema peluda e alada, utilizada para transporte aéreo em algumas RPs. O dorht dobrou suas grandes pernas, abaixou-se e dele saltou um vulto negro.

– A não ser que saiba respirar sob a areia, aconselho-o a vir comigo agora.

Era uma mulher. Ela ajudou-me a subir no dorth e, com as forças que me restavam, abracei-a firme pela cintura. O animal esticou as pernas, correu alguns passos e levantou voo, enquanto eu fechava os olhos para protegê-los da areia. Tudo que eu desejava naquele momento era sair dali e respirar normalmente.

Alguns minutos depois alcançamos um oásis livre da tempestade e a mulher me ajudou a chegar a uma tenda, onde deitei numa esteira e desmaiei. Acordei uma hora depois. Sentada na areia à entrada da tenda, a mulher me observava. Vestia-se toda de preto, com calça, botas e uma túnica curta, além de um turbante que lhe cobria o rosto, deixando à mostra apenas seus olhos verdes. Ela me estendeu um cantil com água.

– Beba. Precisa se hidratar.

– Onde estou? – perguntei, sentando. Sentia-me bem melhor, mas um pouco confuso.

– Posto avançado do deserto de Hukat. Meu nome é Kirtl.

Deserto de Hukat… Aos poucos recobrei os registros, o portal, o voo no dorth… Missão Hukat. Registros intactos.

– Seu rosto me parece familiar – ela prosseguiu. – Como se chama?

Enquanto bebia a água, reparei que ela portava na cintura uma pistola de laser, de uso exclusivo das forças de segurança de Groor. Certamente, era um dos doze fugitivos. Perigo.

– Sakiz. – Meu nome escolhido para a missão. – Sou monitor do Departamento de RPs e acabei de desertar.

– Como posso ter certeza?

– Rehf Icul me conhece. Pode levar-me até ele?

– Por enquanto, não. Terá que ficar aqui comigo.

– Por quê?

– Estamos em alerta máximo. Deus planeja invadir Hukat.

Contive-me para não demonstrar surpresa. Como sabiam daquela informação? Eu precisava fazer com que me levasse até Rehf. E agora só havia um meio.

Saltei e joguei-me sobre ela, derrubando-a no chão. Rolamos até que eu ficasse por cima. No entanto, quando eu me preparava para tomar sua pistola, ela tocou-me o pescoço e imediatamente senti uma terrível câimbra nos músculos da garganta. Sem conseguir respirar, tive de largá-la e fiquei no chão, contorcendo-me de dor. Ela me algemou e foi sentar novamente à entrada da tenda.

– Devia agradecer por sua vida, monitor. Não escaparia daquela tempestade.

Sentei, respirando com dificuldade. Enquanto me recuperava, calculei que Rehf devia estar ali desde a fuga de Groor. Certamente, aprenderam a lutar na prisão. Talvez possuíssem mais armas trazidas de lá.

– Por que o Alto Comando o enviou para cá?

Continuei calado. Precisava rapidamente descobrir um meio de convencê-la a me levar a Rehf.

– Respeitarei seu direito de não falar, monitor, mas lembre-se que agora é meu prisioneiro. E que da próxima vez não serei tão boazinha.

– Ainda pode se entregar, Kirtl. E Deus lhe assegurará um julgamento justo.

– Se confia tanto assim na justiça de Deus, é porque realmente não sabe o que acontece nesse projeto.

A síndrome de Ohj. Ela fazia as pessoas perderem o respeito por Deus. Era lamentável.

– Por oitocentos anos fui prisioneira em Groor, esperando um julgamento que nunca veio. Oitocentos anos forçada a trabalhos pesados, e sendo obrigada a me prostituir para ter o que comer. Onde está a justiça de Deus?

Aquilo era uma blasfêmia.

– Se o que diz fosse verdade, Deus teria alertado o Alto Comando sobre tais abusos e…

– E o quê? Enviaria os Anjos para lá? – ela riu. – Os Anjos eram frequentadores assíduos de Groor, monitor. Eu me prostituía justamente para eles.

Anjos era um apelido desdenhoso para o Alto Comando. Se aquilo fosse verdade, então as informações provenientes de Groor estariam sendo filtradas antes de chegarem ao Departamento de RPs, e por isso eu as desconhecia. Evidentemente, era muito mais provável que ela estivesse mentindo.

– Os Anjos eram muito indelicados, monitor, faziam coisas detestáveis. É uma pena que meus irmãos vehzys tenham se transformado em meros registros ambulantes, sem sentimento. Mas a culpa não é só deles: a frieza e a arrogância de Deus, esse Deus que agora me escuta por meio de você, contaminaram todo o projeto, a ponto de esquecerem que ele é apenas um psicomputador. Na base, quando se fala seu nome, todos só faltam abaixar a cabeça.

Deus, frio e arrogante? Como ela podia falar assim? Eram termos tão infames que a simples menção me dava ímpetos de atacá-la.

– Monitorando a psique humana com essa prepotência, o psicomputador do projeto está levando a grande maioria dos humanos a crer em apenas um deus. E, além disso, a chamá-lo por seu próprio nome: Deus. Acha que isso é apenas coincidência?

Ela estava deliberadamente me provocando. Eram argumentos estúpidos, mas eu não podia perder o controle.

– Se os abusos que você relatou são verdadeiros, isso significa que Deus nos enganou a todos. Quem merece mais crédito, o mais avançado psicomputador da galáxia ou uma traidora do projeto?

– Acha então que inventei a história?

Não respondi, era inútil. Nesse instante, ela ergueu a túnica e começou a abrir o colete de couro que vestia por baixo. Perigo. Estado de alerta. Seu seio direito surgiu para meus olhos. O outro, no entanto, não apareceu. Em seu lugar estava uma enorme cicatriz, muito feia.

O asco me subiu à garganta e engoli seco. Seu seio parecia ter sido extirpado. Desviei o olhar. Aquilo não era verdade. Ela estava tentando me iludir.

– Apesar da delicadeza dos Anjos, monitor, hoje me sinto mais inteira que quando cheguei em Groor – ela disse enquanto fechava o colete. – Acredite nisso.
.

.

AQUELA SITUAÇÃO não podia continuar. Deus perderia minha localização em algumas horas e a missão seria abortada. Eu tinha que encontrar Rehf de qualquer maneira. E logo.

– Kirtl?

Ela estava do lado de fora da tenda, dando água para o dorth.

– Preciso ver Rehf.

– Impossível.

– Você certamente sabe que manter prisioneiro um monitor significa…

– Significa uma honra para mim – ela falou, me interrompendo. – Você é a nossa primeira visita oficial em Hukat. A propósito, sei que não foi sincero quanto ao seu nome. Como realmente se chama?

Já não havia motivos para continuar mentindo.

– Yehdu.

Ela virou-se, surpresa.

– Yehdu Arhkan? Departamento de RPs?

– Sim.

– Bem que seu rosto não me era estranho! – ela exclamou, enquanto entrava rapidamente na tenda. Para minha surpresa, abriu as algemas e soltou minhas mãos. – Venha, vou levá-lo a quem procura.

– Sério? Ao menos explique essa mudança tão brusca.

– Saberá logo.

Ela caminhou rumo ao dorht e eu a segui. Antes de montarmos, ela avisou, encostando o dedo em meu pescoço:

– Ainda é meu prisioneiro, monitor. Não esqueça.

Nenhuma vantagem em provocar conflito, afinal ela me levaria a Rehf. Porém, se ela sabia que Deus monitorava a situação, por que faria isso, arriscando a segurança de seu líder?

Sobrevoamos uma parte do deserto e chegamos a um outro oásis, onde o dorth pousou. Havia tendas e outros dorhts. E lá estavam também os outros fugitivos de Groor. Vestiam-se de modo parecido com Kirtl, estavam armados e a tensão no ar era quase palpável. Kirtl conversou reservadamente com um dos homens do bando e depois veio até mim.

– Como estou dando plantão no posto avançado, eu não sabia dos últimos acontecimentos na base. Por isso não sabia que era você quem viria a Hukat. Desculpe o mau jeito, Yehdu. Agora me acompanhe, por favor.

Aquele súbito respeito à minha pessoa me intrigava. Porém, o que era mais intrigante era o fato deles terem conhecimento sobre o que se passava na base. Como podiam saber?

Kirtl conduziu-me a uma rocha na qual entramos por uma pequena abertura. Descemos dezenas de metros por um estreito corredor iluminado por tochas e entramos numa sala de paredes de pedra. Enquanto eu me perguntava sobre como Rehf me receberia após oitocentos anos, vi algo que simplesmente não pude acreditar. Ocupando um espaço no canto da sala, vi um psicomputador.

– Rehf? – Kirtl falou. – Yehdu Arhkan está aqui.

Olhei ao redor e não vi ninguém. Então escutei:

– Yehdu… Meu velho amigo.

Avaliação imediata dos registros vocais. Checagem positiva: era mesmo Rehf. Porém, eu continuava sem vê-lo.

– Onde ele está? – perguntei a Kirtl.

– Rehf está na Terra. Mas por meio de Deusa pode se comunicar conosco.

Informação falsa. Não existiam portais de teletransportes entre a Terra e as RPs.

– Agora vou deixá-los a sós – ela disse, saindo da sala.

Aquele psicomputador ali, numa RP, no fundo de uma caverna, não fazia nenhum sentido. E o que era Deusa? Então, aos poucos, a imagem de Rehf surgiu no centro da sala num holograma de tamanho real. Ele estava vestido com uma longa túnica branca e sandálias. Seu cabelo crescera, chegava aos ombros. Tinha o semblante calmo e sorria, o mesmo sorriso amável que sempre tivera. Por alguns instantes, olhei fascinado para aquela imagem à minha frente. Era estranho rever meu antigo amigo, meus sentimentos estavam confusos…

– Talvez não esteja entendendo algumas coisas, Yehdu – Rehf falou, fazendo-me voltar à sala. – Posso esclarecer. Mas antes deixe-me dizer que estou muito feliz em reencontrá-lo, e que lembro sempre com carinho da nossa amizade.

– Gostaria de dizer o mesmo, Rehf – afirmei, reassumindo o controle sobre mim mesmo. – Mas você é um traidor do projeto.

– Compreendo seu ponto de vista.

– Que psicomputador é este?

– É Deusa. Irmã gêmea de Deus.

Deusa. Absolutamente nenhum registro. Ele mentia.

– Você é um ótimo monitor, Yehdu, e parabéns pela graduação. Mas duvido que receba a direção do Departamento de RPs.

Como ele podia saber de tudo aquilo?

– Você foi ingênuo de pensar que eles permitiriam isso. E de acreditar tanto em Deus. Mas age assim porque é um bom vehzy.

– Deus não me enganaria.

– Você não sabe tudo que envolve esse projeto, Yehdu. Não sabe, por exemplo, que o Projeto Sapiens original consistia de dois psicomputadores gêmeos, um na base representando o princípio yang e outro numa RP representando o princípio yin, os dois trabalhando em harmonia, complementando-se, como sendo um só.

– Você… está mentindo.

– Duzentos mil anos atrás o projeto foi iniciado com os dois psicomputadores, mas Deus, aproveitando-se de uma pausa para atualização no sistema de Deusa, convenceu o Conselho da companhia que ela deveria sair do projeto e que ele deveria atuar sozinho, inclusive porque, dessa forma, seria possível maquiar alguns dados do projeto perante o Tribunal das Monitorias, o que era ilícito, claro, mas significava muitas vantagens para a InterPlan. E o Conselho aceitou.

Deusa… De fato, eu sabia que no início do projeto havia dois psicomputadores, e que um deles, por apresentar sérios defeitos, fora desativado.

– Deus excluiu Deusa do projeto e ela foi desativada – prosseguiu Rehf. – Para Deus, sua irmã realmente deixou de existir. Desde então, o Alto Comando passou a basear-se apenas nos dados de Deus, ou seja, numa visão yang das questões, e, evidentemente, o equilíbrio psíquico do Homo sapiens rompeu-se com a negação da própria completude.

Enquanto olhava para a imagem de Rehf à minha frente, eu efetuava rápidas combinações de dados. Mas tudo era estranho demais e eu começava a ficar bem confuso. Rehf não estava na Terra, não podia estar, isso era impossível. Ele só podia estar em Hukat, talvez naquela caverna. Eu precisava ganhar tempo para que Deus o localizasse.

– Como você poderia saber de tudo isso?

– Quando ainda estávamos em Vehz, eu achava que o projeto corria perfeitamente bem. Assim como você, Yehdu, eu confiava cegamente em Deus e na versão oficial sobre a desativação do segundo psicomputador. Foi somente após chegar à base, monitorando os humanos de perto, que vi que a espécie estava unilateralizada em seu desenvolvimento psíquico, supervalorizando os aspectos masculinos e desprezando os femininos, e isso obviamente gerava crescente desequilíbrio na espécie e no planeta. Você certamente lembra dos meus protestos, que fui preso e que fugi de Groor com meus companheiros. Vim para Hukat porque tinha informações de que esta era a única RP que Deus não conseguia rastrear. E aqui encontrei o motivo: Deusa.

Senti estremecer algo dentro de mim. Por um instante, tive medo de que aquilo tudo fosse verdade.

– Após reativarmos Deusa, ela foi conectada a Deus, e assim tivemos acesso a todos os registros dele. É por isso que sabemos o que se passa na base.

– Mas como conseguiu despistar Deus durante duzentos anos?

– Deus mesmo o fazia. Sempre que localizava esta RP, a presença de Deusa o confundia a tal ponto que ele automaticamente rejeitava os dados. Deus realmente se convencera que sua irmã não existia.

Podia tudo aquilo ser verdade? Que outras coisas mais a respeito do projeto não constariam em meus registros?

– Infelizmente, Deus tornou-se obcecado pelo poder. Acha que conduz a humanidade no melhor caminho, mas ninguém, nem mesmo um psicomputador, pode estar num bom caminho enquanto renega sua própria natureza integral. Encantados com a aparente autossuficiência de Deus, o Conselho deu-lhe carta branca até mesmo para decidir sobre julgamentos e condenações, o que obviamente é uma temeridade. Porém, como ele maquia os dados do projeto, o Tribunal das Monitorias não sabe nada sobre os absurdos que são cometidos.

Eu estava atônito.

– Felizmente, conseguimos reativar Deusa e ela reconectou-se à psique da humanidade, o que fortaleceu os aspectos femininos, mas é preciso mais. Foi justamente esse maior equilíbrio psíquico do Homo sapiens que gerou a instabilidade no sistema operacional de Deus. Para repará-la, ele só tem uma opção: voltar sua atenção para cá. Foi o que fizemos.

– Então minha vinda a Hukat… foi uma armadilha para Deus?

– Prefiro dizer que foi um remédio amargo. Trazendo você aqui e forçando Deus a reconhecer de novo a existência de Deusa, ele entenderá que precisa reincluí-la no projeto. Assim, a espécie humana será salva da destruição iminente e Deus seguirá trabalhando como no início, junto com sua antiga e legítima parceira. Evidentemente, o Conselho da InterPlan, em Vehz, não gostará nada disso, pois terá que se explicar com o Tribunal das Monitorias.

Os dados não batiam. Eu não sabia o que deduzir de tudo aquilo. Ao mesmo tempo em que me sentia traído por Deus, e para mim isso era algo impensável, tinha medo de estar sendo enganado por Rehf.

– Você está mesmo na Terra?

– Sim. Escolhi uma região no Oriente Médio pela semelhança com Hukat. Ainda estou me adaptando, mas tem sido uma experiência gratificante viver entre os humanos. E em breve meus doze companheiros virão para cá.

– Mas… isso é impossível.

– Deus nos ensinou que o único portal para a Terra fica na base, não é? Aí em Hukat há um também. E vim para a Terra porque se Deus quiser me capturar, precisará intervir diretamente no planeta, enviando a Legião de Combate, o que ele só fará se estiver totalmente louco, já que isso levará o planeta ao completo caos. Os humanos descobrirão a verdade e isso poderá ser o fim do projeto.

– Lamento informar, Rehf, mas acho que esqueceu um detalhe. Em último caso, Deus pode fazer a desconexão do avatar com o corpo original. Se isso acontecer, você despertará em Vehz e todo o seu esforço será em vão.

– Deusa agiu primeiro. A desconexão reversa já foi feita.

Desconexão reversa. Nenhum registro.

– Mais uma nova informação para você, Yehdu. Só Deus pode fazer a desconexão do avatar com o corpo original, é verdade, mas é possível transferir em definitivo a autoconsciência para o avatar, o que se chama desconexão reversa, e só quem pode fazer isso é Deusa. Meu corpo original está morto em Vehz, e meu avatar agora é meu único corpo. A mesma coisa ocorreu com meus companheiros. Agora somos também humanos e nosso mundo é a Terra. E Deus, coitado, até agora está tentando entender o que aconteceu.

Aquilo tudo era tão absurdo que eu não conseguia mais raciocinar.

– Sua chegada nessa caverna, Yehdu, obriga Deus a aceitar de novo a existência de Deusa. Se ele preferir esconder a verdade do Alto Comando, que ainda acha que Deusa está desativada, não poderá ordenar a invasão de Hukat. Sem poder invadir Hukat e sem poder intervir na Terra, o que resta a ele?

O que Rehf dizia fazia sentido. Mas não podia ser verdade…

– Deus está me vendo e ouvindo agora, Yehdu. Como o notável psicomputador que é, ele sabe que a saída para tais dilemas é vivenciar a dor dilacerante dos opostos até o fim para, então, poder nascer a terceira via. Ou seja, só lhe resta entregar os pontos e reconduzir Deusa de volta ao projeto. A terceira via soa como a própria morte, eu sei, mas na verdade é sempre um renascimento.

Quem falava agora era o sábio Rehf Icul que eu sempre admirara, uma das maiores autoridades da galáxia em psicologia de novas espécies. De repente, era como se estivéssemos em Vehz, cinco mil anos atrás, eu escutando-o falar sobre projetos de monitoramento, o cuidado e respeito que devia-se ter pelas novas espécies… Como eu pude simplesmente esquecer de tudo que ele me ensinara?

– Para o Alto Comando, eu e meus companheiros sofremos da síndrome de Ohj. Mas nós sabemos que quem está doente é Deus. E agora que você também sabe, chegou o momento de decidir seu destino. Se quiser juntar-se a nós, será muito bem vindo.

Eu não sabia o que responder. Não sabia sequer o que pensar.

– Tenho de deixá-lo agora, Yehdu.

– Espere. Nós ainda… nos veremos?

– Sinceramente, não sei, pois é impossível prever o que Deus fará.

Enquanto o holograma sumia, eu fiquei ali, olhando para o vazio, zonzo com todas aquelas informações. Se Rehf realmente encontrava-se na Terra, a missão fora em vão. Se, ao contrário, ainda estava em Hukat, então eu tinha poucas horas para encontrá-lo.

E se a intenção era me fazer perder o chão, ele o conseguira.
.

.

– REHF SEMPRE FALOU muito bem de você. Dizia que um dia também descobriria a verdade.

Eu e Kirtl retornáramos ao posto no primeiro oásis. Já havia anoitecido e estávamos sentados na areia, encostados a uma pedra, olhando o céu estrelado de Hukat. Eu ainda não sabia o que concluir de tudo aquilo, mas já não via Kirtl como inimiga.

– Não sei o que descobri. A única coisa que sei é que ainda estou em missão oficial. No entanto, se Rehf realmente não está aqui, talvez não valha a pena atacar Hukat.

– Ele não está aqui, acredite.

– Queria saber o que Deus pensa agora que sabe novamente da existência de… Sua irmã.

– Talvez ele aceite Deusa novamente. Ou surte de vez.

Eu estava fragilizado. As últimas experiências me deixaram mesmo bastante confuso e inseguro. Não sabia o que pensar, não sabia o que faria dali para frente. Sentia-me desamparado, como jamais me sentira em toda a vida.

– Você lembra de Vehz? – ela perguntou-me.

– Bastante.

– Quando vai voltar?

– Daqui a quinhentos anos.

– Falta pouco. Vai sentir falta daqui?

– Acho que não. Nunca me acostumei com os humanos, com sua autodestrutividade.

– Eles não têm culpa. Fazem guerras e matam em nome de Deus e, no entanto, Deus não passa de um psicomputador deslumbrado com o poder.

Aqueles termos ainda me incomodavam… Porém, se tudo aquilo era mesmo verdade, ela tinha total razão.

– Yehdu… Acha que para nós também existe algo como Deus, um psicomputador para monitorar nossa própria evolução?

– Um Deus? Para nós?

Ri da ideia. Era ridículo pensar que podíamos também estar sendo monitorados.

– Não há nenhum registro disso.

– Registros! Esta é a doença da nossa espécie, Yehdu. Achamos que a vida se resume em equações, níveis, relatórios… Foi nossa obsessão pelo controle de dados que criou um psicomputador fanático por si próprio. Precisamos de menos registros e mais sentimentos.

Kirtl me fazia raciocinar por outros ângulos. Era desagradável ter de admitir que as coisas talvez fossem de uma maneira bem diferente daquela que eu sempre me acostumara a ver.

– Acho que este é um tempo difícil para os humanos, mudanças drásticas poderão acontecer. Mas, e nós, Yehdu, estaremos em melhor situação, você sendo enganado por Deus durante todo esse tempo e eu tratada como doente, sempre fugindo?

Eu não tinha a resposta.

– Por que não fica conosco?

– Não quero ser julgado traidor. Muito menos viver para sempre como uma minhoca de museu.

– Se fizer a desconexão reversa, não correrá esse risco.

Tornar-me definitivamente humano… Eu jamais havia pensado a respeito, até porque não sabia que era possível. Era um procedimento radical. E eu desejava voltar a Vehz.

– Agora você sabe de tudo, Yehdu. Por que não luta pela verdade?

Lutar pela verdade. Sim, eu poderia fazer isso, não fosse por um detalhe…

– Porque… não sei mais qual é a verdade.

Eu estava à beira de um colapso nervoso, suando e tremendo bastante. Kirtl percebeu e me abraçou com carinho. E aceitei seu abraço. Eu me sentia tomado por uma solidão cósmica, absolutamente sem tamanho. Velhas verdades caíam aos meus pés, e no lugar delas não havia nada, nada. Qual sensação era a mais insuportável: trair Deus ou… ser traído por Ele?

O abraço de Kirtl me aliviou, e aos poucos me acalmei. Ela retirou o turbante e pude ver seu rosto suave, o cabelo negro cortado curto. Parecia agora uma simples garota, e não a perigosa desertora perseguida pelo Alto Comando. Vendo-a assim, bela e afetuosa, não resisti e beijei-a, e seus lábios mornos me fizeram reviver antigas sensações… Quando eu havia trocado carinhos pela última vez? Pensei que talvez valesse a pena juntar-me a ela, lutar pelo futuro dos humanos, tornar-me também um deles…

Olhei o relógio. Logo findaria o prazo de doze horas. Rehf Icul não devia estar mesmo em Hukat. O que Deus faria?

– Kirtl, pode me levar ao lugar onde me encontrou? Voltarei para a base.

– Tem certeza que deseja isso?

– Logo mais estarei aposentado e voltarei para meu planeta e minha família. Isso é tudo que me resta.

Ela olhou-me e sorriu. Era um sorriso triste e resignado.

– Eu entendo.

Minutos depois, alcançamos o lugar do deserto onde eu havia chegado e desci do dorth.

– Boa sorte, Kirtl – despedi-me, sabendo que provavelmente nunca mais a veria.

– Para você também, Yehdu.

Caminhei até o local exato e segundos depois comecei a sentir o desconforto típico da experiência de ser teletransportado. Eu estava nas mãos de Deus.

.

Teletransporte do monitor Yehdu Arhkan finalizado com sucesso e encerramento da missão Hukat. Confirmo? SIM.
Disponibilização para o Alto Comando dos arquivos da missão Hukat. Confirmo? NÃO.
Destruição total dos arquivos da missão Hukat. Confirmo? SIM.
Acionamento da Legião de Combate para intervenção na Terra. Confirmo? SIM.
Deportação imediata do monitor Yehdu Arhkan para Vehz sob a acusação de alta traição. Confirmo? SIM.
Condenação do monitor Yehdu Arhkan à pena máxima. Confirmo? SIM.

.

Ricardo Kelmer 1997 – blogdokelmer.com

.

.

Este conto integra o livro
Guia de Sobrevivência para o Fim dos Tempos

O que fazer quando de repente o inexplicável invade nossa realidade e velhas verdades se tornam inúteis? Para onde ir quando o mundo acaba? Nos nove contos que formam este livro, onde o mistério e o sobrenatural estão sempre presentes, as pessoas são surpreendidas por acontecimentos que abalam sua compreensão da realidade e de si mesmas e deflagram crises tão intensas que viram uma questão de sobrevivência. Um livro sobre apocalipses coletivos e pessoais.

.

.

.

Seja Leitor Vip e ganhe:

– Acesso aos Arquivos Secretos
– Descontos, promoções e sorteios exclusivos
Basta enviar e-mail pra rkelmer@gmail.com com seu nome e cidade e dizendo como conheceu o Blog do Kelmer (saiba mais)

.

.

Comentarios01COMENTÁRIOS

.
01- escuta, Kelmer… tô lendo seu livro de contos… gostei especialmente do ‘pequeno incidente em hukat’… é um ótimo roteiro pra cinema… abs! Arnaldo Afonso, São Paulo-SP – ago2014

PequenoIncidenteEmHukat-02a


O segredo dos predestinados

13/10/2008

13out2008

OSegredoDosPredestinados-03

O SEGREDO DOS PREDESTINADOS

.
No futuro, a humanidade é prisioneira de sua própria criação, a Inteligência Artificial, que criou a Matrix, uma realidade virtual onde foram inseridos todos os seres humanos para que eles não oponham resistência ao poder das máquinas. Todos não, pois um grupo de rebeldes mantém-se fora dessa realidade e luta para libertar o restante da humanidade. Eles creem na profecia do Oráculo que diz que um Predestinado um dia virá para vencer as poderosas máquinas e salvar a todos. Para eles, Neo, um jovem que vive na Matrix, é o Predestinado. Neo de fato desconfia que há algo errado com a realidade, mas não pode aceitar que ele seja o tão aguardado salvador.

.
Depois de ver o filme Matrix e ler certas críticas (o filme não tem história, ela é confusa demais, vale apenas pelos efeitos especiais, é só uma colagem de citações…) decidi meter o nariz onde não fui chamado. E contar do segredo. Matrix é grandioso. Sua história é densa e intrincada, sim, mas para quem anda familiarizado com certas questões atuais, Matrix é claro. É uma ótima história em ritmo de cinemão e expõe ao grande público uma nova e intrigante fronteira que de agora em diante não mais poderemos evitar: a questão do que é de fato a realidade. Com o advento da realidade virtual, ultrapassamos o ponto de retorno e teremos agora que encarar mais esse desafio sobre as possibilidades da psique. Matrix tem um conteúdo tão rico que pode-se abordá-lo sob diversos ângulos. Escolhi o ângulo da mitologia.

Mitos são como esqueletos da psique, imprescindíveis a quem busca entendê-la. Matrix reedita um velho tema mitológico que se repete desde nossos peludos antepassados: a jornada do herói. Trata-se de uma metáfora do processo de crescimento psicológico, autoconhecimento e verdadeira realização do ser humano. O herói, nos mitos, somos cada um de nós, representados no personagem que abandona sua terra (a segurança de velhas certezas) e parte em busca de algo precioso (verdades mais úteis e abrangentes) e enfrenta inimigos terríveis (encarar os próprios medos e o desconhecido de si mesmo). Jornada difícil e perigosa, que requer coragem, obstinação e honestidade. Mas o herói vence o desafio e volta à sua terra, levando benfeitorias a seu povo e às vezes substituindo um velho rei doente ou injusto (renovação).

Neo, o herói de Matrix, aventura-se entre sonho e realidade, em mistérios que podem enlouquecê-lo e até matá-lo. Ele recusa-se a crer que possa ser o Predestinado de que fala a profecia e que salvará as pessoas, e essa dúvida faz com que o Oráculo consultado não o esclareça. Oráculos são meros instrumentos de autoinvestigação psicológica com os quais podemos obter respostas sobre nós mesmos pela concentração e meditação. Até que nem tanto esotérico assim. A rigor, ninguém precisa de um oráculo para saber sobre si, porém o ritmo de vida atual nos afastou de nosso mundo interior e são exatamente o simbolismo e a ritualística dos oráculos que propiciam essa interiorização. Na verdade, quem responde à questão lançada somos nós mesmos, ou melhor, uma parte de nós que é mais sábia e mais antiga, e que não costumamos ouvir no dia a dia.

Neo consulta o Oráculo. Mas a ideia de ser o Predestinado o incomoda e ele obtém a resposta que deseja ouvir. Porém, atente: o Oráculo não diz em momento algum que ele não é o Predestinado. Diz apenas que ele tem o dom, mas parece esperar algo. E quanto a isso ninguém pode fazer nada, nem oráculos, nem deuses, nem ninguém. Somente o próprio herói pode trilhar seu caminho. Somente ele pode encontrar sua própria verdade, aquela que concretizará todos os seus dons e finalmente o libertará.

A jornada pessoal de autorrealização nos põe em situações onde não confiamos em nosso potencial. Somos capazes de grandes proezas quando temos plena consciência de quem somos, porém chegar a essa autoconscientização é difícil. Conhecer verdadeiramente quem somos é luta travada no campos da consciência e do inconsciente, guerra de toda uma vida onde cada autorrevelação é uma importante batalha vencida. O verdadeiro autoconhecer-se dói muito porque implica necessariamente enfrentar o que se teme, tornar-se o que se evita ser, entrar no fogo dos piores medos. A recompensa é o mundo novo que só a realização mais íntima nos traz.

No mundo de Matrix as pessoas estão adormecidas, sem senso crítico, e creem no que lhes é dado a crer. Nada muito diferente de nosso mundo atual, onde a massificação das ideias faz as pessoas perderem a noção de si mesmas, onde querem nos convencer que numa sociedade desonesta e violenta temos de ser mais violentos e desonestos que os outros. Difícil fugir desse círculo vicioso. Em Matrix, Neo sofre para aprender que tudo que precisa é… mudar a visão que tem de si próprio, só isso. Não pense que é, saiba que é. A profecia diz que o Predestinado mudará o mundo e salvará a humanidade. Neo não pode crer-se capaz disso tudo. Mas o segredo da vitória do herói esconde uma simples e irônica verdade: para mudar o mundo, basta mudar a si mesmo. Transforme-se e tudo em volta se transformará – eis o segredo! Porque a aparente separação das coisas esconde a unicidade de tudo que existe. Talvez seja impossível dobrar uma colher com o pensamento. Mas se você sabe que a colher e você são a mesma coisa, então basta dobrar a si mesmo.

O mito da jornada do herói ensina que o destino de cada um de nós é realizar o que verdadeiramente somos mas ainda não aceitamos. A aventura de Neo é a de nós todos em busca de nossa essência mais legítima, aquela que enfim nos libertará. Até alcançá-la a vida nos provará de muitos modos e teremos de conviver com dolorosas incertezas e autoenganações. Porém, indo do micro para o macro, a aventura de Neo é a aventura da humanidade inteira, em busca de sua sobrevivência como espécie. Num tempo de tecnologia idolatrada e valores essenciais esquecidos, corremos o risco de ver nossa própria criação voltar-se contra nós. Diante disso a única saída parece ser, ainda, seguir o que dizia, logo em sua entrada, o Oráculo de Delphos na Grécia antiga: Conhece-te a ti mesmo. A tecnologia não tem sentimento. Nós temos. Uma máquina não é capaz de amar. Nós somos. Essa diferença óbvia pode pesar bastante no roteiro do nosso filme.

Um certo nazareno, dois mil anos atrás, ensinava que somos todos deuses. Sigamos pelo mesmo caminho: igual a Neo, somos todos heróis. Heróis de nossas próprias vidas. Como Neo, nascemos predestinados a realizarmos a nós mesmos. Feito um Salvador, cada um de nós tem o poder de mudar o mundo. Mas é preciso antes mudar a forma como entendemos a nós próprios. Eis o segredo que se esconde por trás do filme Matrix e também de toda a vida. O segredo que de tão óbvio não se vê, mas que aguarda pacientemente por todos os predestinados.


Ricardo Kelmer 1999 – blogdokelmer.com

.

Este texto integra o livro A Arte Zen de Tanger Caranguejos

Este texto no site Adoro Cinema

.

FILMEMatrix-012Matrix (The Matrix, EUA, 1999)

ARGUMENTO, ROTEIRO E DIREÇÃO: Lilly e Lana Wachowski
ELENCO: Keanu Reaves, Lawrence Fishburne, Carrie-Anne Moss, Hugo Weaving

.

.

.

.

Matrix2012Capa14x21aMatrix e o Despertar do Herói
A jornada mítica de autorrealização em Matrix e em nossas vidas

Analisando o filme Matrix pela ótica da mitologia e da psicologia do inconsciente e usando uma linguagem simples e descontraída, RK compara a aventura de Neo ao processo de autorrealização que todos vivem em suas próprias vidas.

.

.

en español

EL SECRETO DE LOS PREDESTINADOS

Ricardo Kelmer

Después de ver la película Matrix entusiasmadas veces y de leer ciertas críticas (que el filme no tiene historia o que ella es confusa en exceso, que vale apenas por los efectos especiales, que es sólo un collage de citas…) decidí meter la nariz donde no fui llamado. Y contar el secreto.

Matrix es grandiosa. Su historia es densa e intrincada, sí, pero para quien anda familiarizado con ciertas cuestiones actuales, Matrix es claro. Se trata de una óptima historia en ritmo de gran cine y expone una nueva e intrigante frontera que ya no podremos evitar más: la cuestión de qué es de hecho la realidad. Con el advenimiento de la realidad virtual, sobrepasamos el punto de retorno y ahora tendremos que encarar más ese desafío sobre las posibilidades de la Psique. Matrix es tan fuerte en su contenido tan rico que se puede abordar bajo diversos ángulos. Elegí el ángulo de la mitología

Los mitos son como esqueletos de la psique, imprescindibles para su comprensión. En Matrix, se reedita un viejo tema que se repite desde nuestros más remotos y peludos antepasados: la travesía del héroe. Se trata de una metáfora del proceso del crecimiento psicológico y la auto-realización del ser humano. El héroe, en los mitos, somos cada uno de nosotros, representados en un personaje que generalmente precisa abandonar su tierra (la seguridad de viejas certezas) y partir en busca de algo precioso (verdades más útiles y abarcadoras) o enfrentar enemigos terribles (encarar los propios miedos y bloqueos). Travesía difícil, y peligrosa, que requiere coraje, obstinación y honestidad. Pero el héroe vence el desafío y retorna a su tierra, llevando buenas obras a su pueblo y muchas veces substituyendo a un viejo rey enfermo o injusto (renovación).

Neo, el héroe de Matrix, se aventura en una realidad que parece un sueño, partiendo en busca de un misterio que puede enloquecerlo y hasta matarlo. El se niega a creer que pueda ser el Predestinado de quien habla la profecía y que cambiará el mundo y despertará a las personas. Esa duda hace que el Oráculo consultado no lo esclarezca. Los oráculos son meros instrumentos de auto-investigación psicológica donde podemos obtener respuestas sobre nosotros mismos a través de concentración y la meditación. Hasta que ni tan esotéricamente así. En rigor nadie precisaría un oráculo para saber sobre sí. Entretanto, el ritmo de la vida actual nos apartó de nuestro mundo interior y son exactamente el simbolismo y la ritualidad de los oráculos los que propician esa interiorización. En verdad quien responde a la cuestión lanzada somos nosotros mismos, o mejor, una parte de nosotros que es más sabia y que no acostumbramos a escuchar en el día-a-día. Si la respuesta es oscura, es porque la pregunta también lo fue. La pregunta cierta ya contiene en sí la respuesta.

Neo consulta al Oráculo. Pero la idea de ser el Predestinado lo incomoda y obtiene la respuesta que desea oír. Por lo tanto, presta atención: el Oráculo no dice en momento alguno que él no es el Predestinado. Dice apenas que él no está preparado. Preparado para entender que de hecho lo es é. En cuanto a eso, nadie puede hacer nada, ni los oráculos ni los dioses ni nadie.

La travesía personal de auto-realización nos pone en una situación donde no confiamos en nuestro potencial. Sólo somos capaces de mucha cosas cuando tenemos perfecta conciencia de quién somos y de lo que podemos hacer. Por lo tanto, llegar a esa autoconcientización es difícil. Conocer verdaderamente quién somos es una lucha armada trabada en los campos de la conciencia y del inconsciente, guerra de toda una vida donde cada auto-revelación representa una importante batalla vencida. El verdadero autoconocerse duele hasta doler porque implica necesariamente enfrentar lo que se teme, volverse lo que se evita ser, entrar en el fuego de los peores miedos. La recompensa es el mundo nuevo que la realización más íntima nos trae.

En el mundo de Matrix las personas están adormecidas y sin sentido crítico. Creen en lo les es dado para creer. Nada muy diferente de nuestro mundo actual, donde la masificación de las ideas hace que las personas pierdan la noción de sí mismas, donde nos quieren convencer de que en una sociedad deshonesta y violenta tenemos que ser más violentos y deshonestos que los otros. Es difícil huir de ese círculo vicioso. En Matrix, Neo sufre como loco para aprender que todo lo que precisa es… cambiar la visión que tiene sí mismo, apenas eso. No tienes que pensar que eres, debes saber que eres. La profecía dice que el Predestinado cambiará el mundo y salvará a la humanidad. Neo no puede creer que sea capaz de todo eso. Pero el secreto para la victoria del héroe esconde la más simple y la mayor de todas las ironías: para cambiar al mundo, basta cambiarse a sí mismo. Transfórmate y todo alrededor se transformará – ¡es el secreto! Porque la aparente separación de las cosas esconde la unicidad de todo lo que existe. Tal vez sea imposible doblar una cuchara con el pensamiento. Pero si sabes que la cuchara y tú son la misma cosa, entonces basta doblarse a sí mismo.

El mito de la travesía del héroe nos enseña que el destino de cada uno de nosotros es realizar lo que verdaderamente somos pero que todavía no aceptamos. La aventura de Neo es la aventura de todos nosotros en busca de nuestra esencia más legítima, aquella que al fin nos liberará. Hasta alcanzarla, la vida nos pondrá a prueba de muchas maneras y tendremos que convivir con dolorosas incertidumbres y auto-engaños. Entretanto, yendo de lo micro hacia lo macro, la aventura de Neo es la aventura de la humanidad entera, en busca de su supervivencia como especie. En un tiempo de tecnología idolatrada y valores esenciales olvidados, corremos el riesgo de ver nuestra propia creación volverse contra nosotros. Ante tal posibilidad, la única salida parece ser, todavía, seguir lo que decía, justo en su entrada, el Oráculo de Delfos en la Grecia Antigua: conócete a ti mismo. La tecnología no tiene sentimiento. Nosotros lo tenemos. Una máquina no es capaz de amar. Nosotros somos. Esa diferencia obvia puede pesar bastante en el guión de nuestra película.

Cierto nazareno revolucionario, dos mil años atrás, ya decía que somos todos dioses. Pues voy en el mismo camino: igual que Neo, somos todos héroes. Héroes de nuestras propias vidas. Como Neo, estamos predestinados a realizarnos a nosotros mismos. Hecho un Salvador, cada uno de nosotros tiene el poder de cambiar o mundo. Pero antes es preciso cambiar la forma como nos entendemos a nosotros mismos. Es el secreto que se esconde detrás de la película Matrix y también de toda la vida. El secreto que de tan obvio no se ve y que aguarda pacientemente a todos los predestinados.

.

.

LEIA TAMBÉM

Blade Runner: Deuses, humanos e androides na berlinda – Como todo ser, o criador busca sempre transcender a sua própria condição e é criando que ele faz isso.

A ilha – Uma fábula sobre o autoconhecimento

Pesadelos reais (filme Alucinações do Passado) – A realidade, em si, não existe – o que existe é nossa interação com ela

Cine Kelmer apresenta – Dicas de filmes

Mulheres na jornada do herói – É ainda mais interessante ver o relato das mulheres, pois elas sempre foram, mais que os homens, historicamente reprimidas na busca pela essência mais legítima de suas vidas

.

.

Seja Leitor Vip e ganhe:

– Acesso aos Arquivos Secretos
Descontos, promoções e sorteios exclusivos
Basta enviar e-mail pra rkelmer@gmail.com com seu nome e cidade e dizendo como conheceu o Blog do Kelmer
(saiba mais)

.

.

Comentarios01COMENTÁRIOS
.

01- Acabo de ler seu fantástico artigo sobre o filme MATRIX. Até hoje não li crítica tão perfeita sobre esse ainda incompreendido filme, mas que com certeza ficará na história do cinema como marco (não foi assim com 2001 uma odisséia no espaço?). Parabéns pela qualidade da abordagem comparativa entre o enredo e a mitologia, além do foco dado à mensagem de que tal como afirmava Emerson “somos aquilo que pensamos”. Mantovanni Colares, Fortaleza-CE – ago1999

02- Gostaria de prabeniza-lo pela sua maravilhosa reportagem acerca do filme MATRIX que foi publicada segunda feira no jornal O POVO. Fiquei encantando com a forma coom que vc utilizou o arquétipo junguiano do herói, e com todo o seu ponto de vista sobre como a sociedade moderna encontra-se em relação a essa “tecnologia”. Infelizmente o meu jornal com a matéria sobre o filme foi jogado fora, caso vc pudesse enviar-me o artigo ficaria muito contente. Thaís, Fortaleza-CE – ago1999

03- Adorei principalmente o seu comentário sobre o filme “Matrix”, já sou fã mesmo antes de assistí-lo, estou ansioso para que o filme chegue em vídeo. Bem, eu adoraria adquirir “Matrix” . Eu já havia lido várias críticas sobre o filme, algumas depreciativas e outras elogiando o filme, mas me convenci ainda mais de que se trata do melhor filme dos últimos tempos após ler a sua crítica sobre o filme. Jurandyr G. Loureiro, Linhares-ES – ago1999

04- Escrever é um ato solitário, eu sei de mim solitário também… Parabéns. Ótimo artigo em O Povo de hoje. Sensacional, digno de reprodução Federal, quiçá mundial. Suas abordagens são maravilhosas, me fez viajar na simples aventura humana: a da compreensão (ou busca) de si mesmo. Procuro dar minha colaboração, na internet, há anos, envio diáriamente algo chamado Kbytes de Sabedoria (inspirado no Minutos de Sabedoria…) que são trechos sábios como daquele livrinho azul, da bíblia e de outras fontes de sabedoria. Hoje, no Kbytes… o dia é seu, fiz questão de dividir e propagar as suas idéias com os netfriends. Parabéns e grato mais mais uma vez, pela luz! Giovanni Colares, Fortaleza-CE – ago1999

05- Fiquei emocionada com sua abordagem sobre o filme Matrix no O Povo (O segredo dos predestinados), 9/8/99. Foi absolutamente perfeito. Já li três vezes e nunca ouvi falar de você. Leio o Diário e O Povo $todos os dias. Já li muitos livros mas hoje o cinema me fascina. Mande-me umas dicas de filmes. E escreva mais. Você tem talento e escreve com uma beleza incomum! Parabéns! Irei assistir o filme só porque li seu artigo. Edita Machado, Fortaleza-CE – ago1999

06- Caro Ricardo , Fiquei sendo seu fã desde que em 1999 qdo assiti a uma palestra tua no auditório do colegio capital sobre o filme MATRIX. Na tua palestra fizeste uma analogia de espelhos dentro de uma bola de vidro a refletir a luz do sol com nós seres humanos e perguntaste: O que é necessário fazer para mudar o modo do globo de vidro refletir a luz do sol? Ao que respondeste… basta mudar um só espelho. Assim querias dizer que não precisamos mudar ninguém somente a nós mesmo. Cara vc não sabe o quanto já falei de vc para as pessoas a quem conto esta analogia. O fato é que ouvir aquelas tuas palavras me levou a uma pesquisa igual “A ILHA”. Continue sempre assim… em constante questionamento consigo mesmo pois acredite foi assim que passei a ser uma pessoa melhor. Luiz Ferreira de Sousa Junior, Fortaleza-CE – nov2004

07- Te achei procurando um texto sobre Neo – Matrix e foi o “ O SEGREDO DOS PREDESTINADOS” que li e adorei. Como você conseguiu falar tudo tão bem. Simplesmente adorei. E já andei fuçando seu site também. É muita coisa para ler. Terei muito que fazer. Lais Paulinelli, Belo Horizonte-MG – jan2007

OSegredoDosPredestinados-03a


O convite dos etês

02/07/2008

02jul2008

Os extraterrestres debatem sobre os humanos

Esse negócio de ser correspondente da Confederação Galática tá começando a ficar muito sério…

Esta madrugada tive outro contato. E dessa vez não foi em sonho, eu tava acordadinho, trabalhando no computador. A mensagem veio de repente, feito uma enxurrada de ideias no pensamento. É tão intenso que a vontade natural é de narrar o que chega, falar pra quem estiver perto, escrever…

Digitei a mensagem do jeito que me veio. Arquivei e agora, dia seguinte, tô escrevendo esta apresentação. Não sei dizer se o estilo de quem enviou é este mesmo ou se a mensagem foi filtrada pelo meu próprio estilo. Mas me parece que esses etês têm um certo senso de humor interessante…

Será que eu tô ficando louco, quer dizer, mais louco ainda do que já sou? Bem, taí a mensagem. Tire suas próprias conclusões.

(contribuição: Luciano Hamada)

Salve Terraqueo Kelmer ! Saudaçoes Cosmicas !

Voce foi um dos terraqueos escolhidos para o debate sobre o seu planeta , a Terra e suas terraqueas.

Os escolhidos para o debate terao o direito de participar do 7.852.004 º Encontro Cosmico no planeta  ¨Q-h¨¨)vbb’><I==O’ , onde na unica cidade deste  ‘Uooeuooummmm…’  seres de varios planetas, asteroides, luas e cosmonaves colonias irao debater sobre os seguinte tema ” Terraqueos sao humanos ou cosmicos?

O nosso contato na terra avaliou o seu trabalho sobre o ser humano,  considerado muito bom  pelos nossos organizadores  e participantes deste encontro. Aguardamos  seu contato para confirmar sua estimada presença .  Os topicos que serao abordados sao:

1–Humanos sao Cosmicos? Com tendencias belicas o ser terraqueo pode se tornar cosmico?

2– Os terraqueos sao fedidos? Assunto polemico e misterioso para alguns ,o palestrante do planeta ‘BommmArrrrrr’  SachePinho enumera  aqui os mais variados cheiros que o ser humano exala e suas consequencias. Depoimentos chocantes! ! !

3– As terraqueas. A visao Kelmerica sobre o ser Mulher (terraquea). Que bicho e esse? Palestrante Ricardo Kelmer (terraqueo) da Terra  e sua visao “galatica” sobre o ser humano. Por favor confirmar presença com antecedenciao junto ao seu contato na terra.

– Tambem teremos eventos paralelos na 5º ,9º e 13º dimensoes!!!
Traduçao simultanea em 4882 linguas.
Lançamento do livro “Voçes Terraqueas” de Ricardo Kelmer , saiba aqui o que e´a mulher terraquea ,venda de livros Kelmericos em 3776 linguas.( brevemente em 4430 linguas!!!)
Tour turistico gratuito nas famosas 9 luas de “Q-hvbb’><I==O’ (taxas a parte)
Show intimista (muuuuuuinto intimista) de Spok e os Vulcanos!!!

.

Sem mais

HamadadamaH ( contato na terra )
para contato trans cosmico digite: |'<+-=~~}ÕXOXO>>//§

.

Este encontro tem o apoio da:
Federaçao Cosmica – Confederaçao Galatica – Grupo Mulheristico da Via Lactea

.

Ricardo Kelmer 2008 – blogdokelmer.com

.

.

Seja Leitor Vip e ganhe:

– Acesso aos Arquivos Secretos
– Descontos, promoções e sorteios exclusivos
Basta enviar e-mail pra rkelmer@gmail.com com seu nome e cidade e dizendo como conheceu o Blog do Kelmer.
(saiba mais)

.

.

Comentarios01 COMENTÁRIOS


%d blogueiros gostam disto: