A cruz da paixão

12jul2013

O crescimento só virá se o ego se entregar ao sacrifício da paixão, mandando Judas fazer logo a sua parte e aceitando o sofrimento inerente ao processo

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A CRUZ DA PAIXÃO

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Os religiosos costumam ver os mitos de sua religião como fatos históricos, que realmente aconteceram. Limitar a compreensão a essa mera questão diminui a beleza do mito e esconde a essência metafórica da história. Mitos são metáforas, e uma metáfora não é uma mentira, mas um outro modo de expressar a realidade. Ao insistir na questão factual e desprezar o simbolismo da narrativa, o crente se afasta da verdade psicológica contida no mito e perde a chance de aplicá-la em sua vida.

Talvez Jesus Cristo, historicamente, não tenha existido e sua vida seja, na verdade, uma mistura de relatos posteriormente agrupados. Porém, o mito Jesus Cristo é rico de simbolismo e nele há profundas verdades psicológicas que podem ser úteis a crentes e não crentes. Uma delas diz respeito à cruz, que é o símbolo maior da mitologia cristã. No filme A Paixão de Cristo, do diretor Mel Gibson, há uma cena representativa da força desse símbolo: é o momento em que Jesus é apresentado à cruz onde será pregado. Exausto pela tortura, o corpo uma chaga só, ele vê o madeiro e, curiosamente, ajoelha-se e o abraça em meio a uma súbita crise de choro. Enquanto alguém zomba do ato aparentemente despropositado, ele mantém-se abraçado à cruz, acariciando-a e chorando feito criança.

Mas que insano… Por que ele abraça a cruz onde morrerá? Porque simplesmente não lhe resta outra coisa a qual se agarrar. Jesus foi traído por seus discípulos, seu próprio povo o condenou, seus amigos se escondem, sua família não pode ajudá-lo e seu Pai Celestial não afastou dele o terrível cálice. Nenhuma ajuda ele pode esperar. Em que se agarrar num desamparo desses? Ao destino. Sim, porque por paradoxal que pareça, o destino é a única coisa certa. Por isso Jesus se agarra à cruz, o símbolo mor de sua missão. É um ensinamento difícil de assimilar, pois é natural fugir do sofrimento, mas é preciso confiar nas forças da vida e do crescimento psíquico, por mais que as dores se anunciem no horizonte do que nos espera. O sofrimento de Jesus ensina a quem quiser aprender: no momento de maior abandono, em que tudo parece perdido, é preciso abraçar a cruz e aceitar o que nos aguarda. Este é o único modo possível de não afundar em desespero antes de cumprir o que deve ser feito.

Só há vida se houver morte. E não há morte sem dor. Para alcançar novos níveis de percepção e relacionamento com a vida, o ego tem de atravessar o fogo da transformação. Ele sempre resistirá até onde puder, afinal morrer não é fácil, mas há um momento em que o crescimento só virá se o ego se entregar ao sacrifício da paixão, mandando Judas fazer logo a sua parte e aceitando o sofrimento inerente ao processo. É assim que transmutamos o que nos aterroriza naquilo que nos salvará. De outra forma, viveremos num exílio psíquico, fugindo do que verdadeiramente somos.

Os crentes não deveriam se preocupar com a possibilidade de Jesus não ter existido historicamente, pois isso em nada desmerece o mito. O sagrado e o numinoso não residem na factualidade das histórias religiosas, mas nos símbolos que elas guardam. O que importa é que o Cristo mitológico vence o desamparo toda vez que alguém abraça com firmeza seu destino. O que realmente vale é que o mistério de sua paixão se renova toda vez que alguém morre para um velho e limitado eu e ressuscita psicologicamente na vida nova.

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Ricardo Kelmer 2004 – blogdokelmer.com

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Este texto integra o livro Blues da Vida Crônica

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Comentarios01COMENTÁRIOS
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01- Fantástico meu irmão….Deixar morrer o ego e ressucitar no seu verdadeiro destino…..Agarrar-se a sua missão…..Adorei seu texto…… Jacques Josir, Santo André-SP – jul2013

02- Eu amei demais esse artigo. Porque as pessoas querem explicar mesmo tudo. Se existe, se não existe, se deve acreditar, se não deve… E há tantas possibilidades a partir desses simbolos. Rainha Frágil, Fortaleza-CE – jul2013

03- Tudo a ver, Ricardo Kelmer Do Fim Dos Tempos e que lindo texto: ADOREI! Cristina Balieiro, São Paulo-SP – jul2013

04- Oi,amigo Ricardo! Interessante mesmo o trecho.Muitos se perdem pelo caminho sabendo que se perdem.O homem desde sempre,Ricardo,contou histórias para justificar algo…e eis o mito.E dessa necessidade surgiu a hagiografia para sustentar a função religiosa e não a beleza da fé por si só.E fez um belo estrago…rs.Eu já li alguns livros do Jiddu Krishnamurti e você me recordou umas palavras dele. Fateha Liza, Dourados-MS – jul2013

05- Ótimos textos, Ricardo Kelmer! Ana Velasquez, Corumbá-MS – abr2015

06- Excelente texto Entendo e sinto a Vida dessa maneira, inclusive os mitos, deuses e demônios, que criamos. Dorah Andrade, São Paulo-SP – abr2015

07- É bom ver você em plena forma!… Waldemar Falcão, Rio de Janeiro-RJ – abr2015

08- Amei ler esse texto claro e sincero agora. Ser senhor do seu destino é uma leitura fantástica do mito Jesus. Jane Arruda de Siqueira, São Paulo-SP – abr2015

09- Meu querido, BELÍSSIMO!! E chega até mim numa hora tão necessária que você nem imagina. Terá sido porque Deus mandou você me dizer isso? Ou por acaso? Não, não falemos nem em Deus nem em acaso, mas, permanecendo nos domínios junguianos que tanto nos inspiram, digamos que foi mais um momento de encantadora sincronicidade. Inclusive, um beijo no seu coração, meu brother! Rógeres Bessoni, Recife-PE – abr2015

10- Grandioso texto, Ricardo Kelmer! Giba C. Carvalho, Recife-PE – abr2015

11- Belo texto, Ricardo. E bota belo nisso! Obrigado por esta dádiva de Páscoa! Pedro Camargo, Rio de Janeiro-RJ – abr2015

12- Belíssimo texto, Ricardo. Se me permite acrescentar, acrescento, com muito menos elegância, que o problema todo está na covardia e desonestidade das pessoas. A grande maioria não está interessada no *trabalho* de aperfeiçoamento moral, mental ou espiritual. A maioria só quer fazer parte de algum clube, bando ou coletivo que lhe dê razão e proteção contra inimigos e adversidades. A grande maioria só quer mesmo fazer média com Deus, porque acha que assim será protegida. Animais são mais fortes em bando, logo todos têm que aderir a alguma religião, filosofia, ideologia, partido, time de futebol, escola de samba, ter parente na polícia, parente advogado, conhecidos em Brasília, amigo na favela e diversos outros esquemas de se garantir pela força de um coletivo, um bando, uma máfia. (As pessoas defendem seus coletivos com unhas e dentes porque assim defendem, em última instância, uma ferramenta da sua própria segurança e bem-estar. Nada mais egoísta que o coletivismo.) Tá cheio de “cristão” que nem sonha em amar o próximo, mas faz sinal da cruz quando passa na frente da igreja, que é pra puxar o saco do Patrão mesmo. E vivem pedindo coisas. Putzgrila, como essa gente pede!

Toda essa lógica fica mais evidente no Brasil, onde as pessoas são católicas e devotas de algum santo *protetor*, mas também são filhas de algum orixá, fazem despacho, descarrego, vão a centro kardecista tomar passe, andam com amuletos pendurados no corpo e tratam muito bem a benzedeira do bairro, tudo isso e muito mais, que é pra garantir. Mané fé coisa nenhuma, é medo da vida mesmo. Sempre digo: a grande maioria de quem se considera religioso é apenas supersticioso.

Concluindo: as pessoas se prendem à interpretação factual porque, sem ela, sua proteção fica desmoralizada. Sem a autoridade dos fatos, resta apenas o ensinamento. A ilusão da proteção se esfarela, e o devoto de uma figa se vê diante do que mais teme: estar só e ser responsável pelo próprio destino. Namastê, anauê, katinguelê e Salve Jorge pra você. Luc Lic, São Paulo-SP – abr2015

12- Texto cheio de sabedoria e beleza, Ricardo. Obrigado. Mas acho que vc é ateu só na religião. Não no Espírito… Abr e ótima Páscoa. Luis Pellegrini, São Paulo-SP – abr2015

13- Luis Pellegrini, Waldemar, eu acho que Kelmer é ateu não praticante! Hahahaha Abraços a todos e excelente Páscoa. Rógeres Bessoni, Recife-PE – abr2015

14- Perfeito Ricardo Kelmer. Texto muito, muito bom. Iris Medeiros, Campina Grande-PB – abr2015

15- Profundo Ricardo Kelmer, qdo nos agarramos a nossa cruz ela deixa de ser um sofrimento! Numa sociedade q proclama apenas a ” felicidade sempre” é preciso rever a questao da cruz. Talvez tivessemos menos depressoes e outros males da alma! Michele SJ, Fortaleza-CE – abr2015

16- Brilhante Abordagem!! Marcelo Figueiredo, Rio de Janeiro-RJ – abr2015

17- Muito louvável o que se tenta passar. E, com a licença de um comentário meu, e não tendo de longe entendido mal, é sempre bom relembrar que é justamente paralelo a este medo onde trabalham as trevas, negando a simbologia, antes do ser (tanto de Jesus como nossa). Tanto que o que existe, no que se refere a Jesus, é justamente o contrário: correntes materialistas tentando provar a existência de um Jesus histórico mas terreno, para negar o Jesus “Cósmico”. Tendo o cuidado, como no trecho “não deveriam se preocupar com a possibilidade de Jesus não ter existido historicamente” é um bom texto para entender um pouco a questão de como Jesus, existindo como ser unigenito, desceu a terra para, junto a nós, dar esse exemplo único da lição do crescimento. O texto tenta explicar, com muito esplendor, que não é no nosso “ser” (estático) e sim no nosso “estar sendo”, na dinamica ser-dor-redescoberta-crescer-ser, que nós existimos. Quando a humanidade descobrir isso, muitos dos dramas e artificialismos emocionais deixarão de existir. Todos nós torcemos para que isso aconteça. Muito legal! Valeu ! Ney José, Recife-PE – abr2015

18- Muito bom o texto, é auto-explicativo, quando induz o leitor a uma refkexão do seu existir como simbolo metafórico de si mesmo, afinal o mito Jesus Cristo está inserido no inconsciente coletivo da humanidade ao percebermos que nós precisamos de mitos para suplantar os nossos medos existenciais e nisso o simbolo da cruz quando verdadeiramente compreendido nos leva ao patamar da nossa redenção espiritual nessa jornada cósmica. Texto para ser lido e relido, vou compartilhar o mesmo. Francisco Souza Bonifacio, Recife-PE – abr2015

19- Como seria importante que todos pudessem compreender. Obrgada Giba C. Carvalho por esse belo presente. Elizabeth Costa Carvalho Andrade, Recife-PE – abr2015

20- muito bom gostei mesmo do seu domínio com as palavras do seu pensar! pena que não podemos mais criar outro mito como esse que mudou ate o calendário o tempo contado da nova história criado por esse mito! gostaria de usar minha consciência para uma nova história agregada a tecnologia e que não fosse uma tragedia como a de cristo que convenceu a humanidade que na dor seremos salvos! o destino que temos que nos agarrar! obrigado amigo gostei de ler! Luis Carlos Pedrosa, Fortaleza-CE – abr2018

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