08mai2013
A folha em branco era o próprio Partido Comunista Chinês a me desafiar, ou você escreve trinta linhas ou então zapt!
O MAJOR DA CHINA
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Com 11 anos, entrei para o Colégio Militar, e lá se foi meu cabelão anos 70. No início, até me empolguei com a novidade, mas aos poucos emergiram incompatibilidades com a filosofia militar. Eu era um aluno estudioso, sim, mas ali a minha energia criativa e os anseios de liberdade não tinham muito espaço. O colégio parecia desafiar minha natureza, ei, mocinho, esse lugar é pequeno demais para nós dois…
Passar por média era importante, mas bem melhor foi me sagrar campeão do Torneio de Tampinha de 1977, organizado pelo grêmio, uma final arduamente disputada entre eu e Celestino ‒ e a medalha, ostentei-a orgulhosamente no peito por meses. Havia uma máfia que protegia calouros em troca de lanche na cantina, e eu fiz parte, claro. E participava das excursões ao Colégio Imaculada Conceição para paquerar as alunas, e depois, inspirado nelas, escrevia contos eróticos que circulavam secretamente durante as aulas. Era divertido. Mas havia todas aquelas regras, hierarquias, a ênfase no obedecer ordens…
Então, na sétima série, o major professor de geografia, disciplina que eu adorava, marcou a prova final. E, como sempre, nos passou cinco temas para a redação, um deles cairia. Segui minha velha e infalível estratégia, inspirada na lei das probabilidades: estudar três temas, dar uma olhadinha no quarto e desprezar o quinto. Pois dessa vez falhou: caiu a China, o tema que eu não estudara. Putz, bateu logo a angústia. Eu, um dos melhores em geografia, tirar zero na redação, que vergonha. Respirei fundo, me concentrei. Mas a folha em branco era o próprio Partido Comunista Chinês a me desafiar, ou você escreve trinta linhas ou então zapt!
Aumentei logo o tamanho da letra, recurso básico. E tratei de errar aqui e ali, riscando e reescrevendo em seguida, tudo para preencher as trinta linhas. Sobre a China, nada de economia, clima, bacias hidrográficas, apenas o ridiculamente óbvio: era um país enorme, ficava na Ásia, capital Pequim, o Japão ao lado, e tinha a muralha. Estiquei bem o trivial, que nem os olhos dos chineses. No fim, percebi, desanimado, que ainda restavam sete intermináveis linhas. O que mais poderia dizer?
Resolvi apelar para o bom humor. O major, gente boa, ia entender. “Como já disse no primeiro parágrafo, caro professor, a China é o país mais populoso do mundo. Há quem diga por aí que isso se deve, veja só o senhor, ao fato dos chineses comerem com dois pauzinhos. Mas não há confirmação científica.” Pois é, juro por minha medalha de ouro de tampinha que escrevi isso. A piadinha cumpriu seu papel, sim, mas ainda restavam três malditas linhas. Então, aberta a porteira, soltei a boiada: “Bem, major, isso é tudo que sei. Se o senhor quiser saber mais, só me resta dizer: vá pra China!”
Entreguei a prova satisfeito, crente que minha espirituosidade renderia uma boa nota. Três dias depois, o major manda me chamar, eu deveria vestir a farda e ir até sua residência. Como morávamos próximos, fui caminhando até lá, sonhando com honras ao mérito. Ele me recebeu fardado, muito sério. Bati continência e ele me conduziu à sua sala. E me passou um sermão que jamais esquecerei. Falou de minha petulância e falta de respeito, que eu zombava da autoridade, que se eu pensava que podia mandá-lo para a China e ficar impune, estava muito enganado. “Por causa dessa estupidez, vou lhe dar um zero, não só na redação mas na prova inteira, e você vai para a recuperação! E só não será expulso do colégio por consideração a seu pai, de quem sou amigo!”
Expliquei que não quis ofender, só tentei por um pouco de humor… “Respeite a instituição, aluno! O Colégio Militar não é circo!”, ele metralhou, do alto de sua patente, os meus ingênuos 13 anos. Mas major, eu só estava brincando, o senhor não sentiu? “Eu não julgo as coisas pelo que sinto! Eu julgo pelo que vejo!”
Saí de lá humilhado. E decepcionado, pois gostava do major, era um bom professor. Mas o pior era a recuperação em geografia, que merda. Por essas e outras é que no ano seguinte saí do colégio. Por vontade própria, bom que se diga. Comemorei deixando o cabelo crescer por um tempão, viva a liberdade capilar!
Não guardo nenhum ressentimento, pelo contrário, tenho ótimas lembranças. O Colégio Militar me ensinou disciplina, me deu amigos e uma medalha de ouro. E o major? Nunca mais vi. Hoje rio do episódio e percebo que serviu para a fortalecer minhas convicções, por isso sou grato ao meu professor. Tornei-me escritor profissional e sempre lutei para que as regras não tolhessem minha criatividade e meus sonhos. A vida não é um quartel, mas há algo pelo qual vale a pena fazer uma guerra, ah, vale: é a essência do que somos.
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Ricardo Kelmer 2003 – blogdokelmer.com
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> Esta crônica integra o livro Blues da Vida Crônica
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01- Kelmer, eu nao conhecia esta sua estoria. Parabens, e realmente foram anos incriveis! Helder Avila, Fortaleza-CE – jun2013
02- Histórias verídicas da época do Colégio Militar contadas pelo meu amigo Ricardo Kelmer Do Fim Dos Tempos. Quem não acreditar, vá pra China. Rsrs João Ilo Barbosa, Fortaleza-CE – jun2013
03- Que legal!!! Gostei do que li!!! Adeli Timbó, Fortaleza-CE – jun2013
04- Lembro de uma discussão que tive com o Maj. Studart na sala, sobre o Rio Nilo. Eu não aceitava que o Nilo nascesse no centro sul da África e desaguasse no Mediterrâneo que fica bem ao norte. Caramba, foi metade da aula para entrar na minha cabeça que Sul, não sobe para o Norte e o Norte não desce para o Sul. rsrsrsrsrsrs. João Guy Almeida, Fortaleza-CE – jun2013
Lembro dessa história, Ricardo. Mas acredito que você foi talvez o único aluno a mandar um major para a China.
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> Podiscrer, João Ilo. Muitas boas histórias desse tempo, heim?
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Oi Kelmer, sabe, meu pai era militar, sei bem o que é isso. Saiba que vc. tem alguma coisa desse “colégio militar”, calma, é coisa boa kkkkk e deu o tempero perfeito pra poder, digamos, “bater as asas”. Lendo esse lembrei do meu tempo de menininha, eu paquerava os meninos do colégio militar, que já vinham no bonde (sic kkkk) que passava na minha escola. E como paquerava! Nesse tempo eu queria ser jornalista e/ou escritora, depois me “enquadrei” e me perdi. Estou me achando de novo (me achando em que sentido?kkkkk).
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> Obrigado por comentar, Marialucia. Fico feliz de saber que você está se achando.
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