11mai2012
Já que a formiga só trabalha porque não sabe cantar, Raulzito pegou a linha 743 e foi ser cigarra
MALUQUICE BELEZA
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Ele está no palco, a guitarra embaixo do braço. Jeans e jaqueta preta de couro, os cabelos encaracolados, óculos raiban para compensar a falta do colírio, aquela barba de profeta do novo aeon. Raul Seixas, o grande maluco beleza. Ele faz paz e amor nos dedos, ajeita o microfone e começa:
‒ Viva… Viva… Viva a sociedade alternativa!
É a senha. A plateia explode, cantando numa só voz o sonho anarquista de um outro mundo possível. Você pode não estar dentro da sociedade alternativa, mas a sociedade alternativa sempre esteve dentro de você. E por alguns minutos, a força da música torna real esse anseio coletivo. Talvez seja esse o segredo: cantar sempre. Para que o sonho não se dissipe.
Besta é quem quer ser prefeito: Raulzito queria ser roqueiro. Já que a formiga só trabalha porque não sabe cantar, Raulzito pegou a linha 743 e foi ser cigarra. Mas uma cigarra de dez mil anos não pode ter compromisso com nada a não ser com sua própria precisão de cantar. Então Raulzito cantou. E sua música diferente o fez um dos mais criativos e significativos artistas de todos os tempos. Sua estrada ele a trilhou sozinho, e por isso foi único e sempre surpreendente.
Desde a juventude em Salvador, nos anos 1960, tocando rock com os amigos, Raul já não se enquadrava. Depois, muito menos. Sua obra dança com o rock, com a mpb e com o universo lúdico infantil, mas dança também com elementos populares como o baião, o forró e o bolero. Raul é tão eclético quanto indefinível: toca em cabaré de periferia, festinha chique, aniversário de criança e embalo cabeça. Os hippies adotaram sua loucura real. Os esquerdistas zumbizaram com sua mosca na sopa para perturbar o sono da ditadura. A mídia curtiu com seu corpo por mais de dez anos. Os místicos rezaram com ele e o parceiro Paulo Coelho no caminho do início, do fim e do meio. O povo simples e os intelectuais riram de sua deliciosa irreverência. Como explicar tal metamorfose ambulante?
Em 1973, ele aparecia, provocador, dizendo que o ouro dos tolos ele não queria. Sua música nos pôs um espelho à frente do rosto e nos sentimos uns grandessíssimos idiotas, humanos, ridículos e limitados: é o Raul cutucador daqueles que morreram e nem sabem qual foi o mês. O Raul pacifista transparece ao dizer que o soldado não foi para a guerra porque sabia que o inimigo também não estaria lá. O crítico político fala dos quarenta ladrões de Ali Babá, aqueles que não querem nada com a pátria amada, e por ser verdadeiro foi censurado. Mas um caubói fora da lei como ele, que já perdera o medo da chuva, sabia mexer na panela do diabo. O que ele queria, ele conseguiria.
Raul foi um bendito fenômeno musical, mdc da mpb. O visionário genial que misturou maluquez e lucidez, rock e berimbau, bom humor e contestação, carimbando nosso passaporte para a liberdade e os sonhos. O maldito provocador que lembrou que o rock é filho do diabo e que lutou por seu direito de deixar Jesus sofrer. O artista multifacetado e incomodamente verdadeiro, que uma vez, acredite, foi preso e espancado por considerarem-no um impostor dele próprio. Que não sabia para onde estava indo, mas sabia que estava em seu caminho. Raul trilhou como poucos os caminhos interiores da experimentação de si mesmo, fazendo de cada revelação trampolim para as seguintes, cantando em suas metáforas a grande insanidade da busca.
Em 1989, Raul parou e a cabeça não aguentou: partiu ele, como já disse o poeta Bráulio Tavares, para o castelo de Avalon, onde seria recebido pelos lobos uivantes: Rauuuuuuuuuuul!!! Hoje, todos esses anos depois, penso em tudo que o maluco beleza me ensinou. Penso numa sociedade onde cobras e aranhas são igualmente respeitadas, onde há mais filé e menos osso duro, onde podemos tomar banho de chapéu, onde não precisamos fumar roliúde só porque a TV diz que é o cigarro do sucesso, e onde temos a liberdade de viajar em nosso pluct-plact-zum sem problema algum.
E lembro também que por causa dele, guardo, feito um segredo valioso, feito um chaveiro escrito love, que não precisamos andar pelos quatro cantos do mundo a procurar essa sociedade. Porque é justamente nos sonhos que ela nos fala. E sonho que se sonha junto vira realidade. Né não, Raulzito?
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Ricardo Kelmer 1999 – blogdokelmer.com
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> Esta crônica integra o livro A Arte Zen de Tanger Caranguejos
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01- Esta foi a melhor biografia-numa-só-página de Raulzito que alguma vez li. Há até um livrinho, muito inhos mesmo, com a bio de Raul Seixas e juro que não e´tão completa. Muito boa :D. Susana Xavier Mota, Leiria-Portugal – mai2005
02- tem que republicar o Arte Zen também, é o meu preferido. Wanessa Bentowski, Fortaleza-CE – mai2012
03- Um ídolo homenageando outro. Crônica sensacional – isso já virou redundância! – do Ricardo Kelmer sobre o nosso eterno Maluco Beleza. Texto inspirado, que costura bem demais as referências que todos aqueles que viveram e vivem a obra do Raulzito cultivam em seus próprios baús da memória. Marcelo Pinto, Rio de Janeiro-RJ – mai2012
Estava procurando” bicho maluco beleza” música do Alceu em homenagem ao Raul, na internet, neste exato momento e, vou encontrar justamente esta crônica no teu blog! Show! Falou todo e mais um pouco sobre Raul Seixas.Completando com o que diz a música de Alceu Valença “ai qtas dores tu destes ao teu caçador!!!!”
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> Alceu leva a Raul, que te traz a mim. E assim os malucos-beleza fazem a sociedade alternativa.
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Adorei!!!
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> Tata adorando. Adoro.
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