O vestido decotado da impunidade

05set2012

Vê este corpinho, rapaz? Ainda está conservado porque são vocês que o solicitam e tratam de cuidá-lo toda vez que lhes é vantajoso

O VESTIDO DECOTADO DA IMPUNIDADE

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Encontrei Impunidade na última mesa daquele bar, de vestido vermelho e tomando martini. Era uma espelunca de terceira, sim, mas não se engane: ela também frequenta, e com muita classe, ambientes refinados. Impunidade aprendeu cedo a se virar na vida, ela que nunca teve quem lhe assumisse a paternidade.

Foi sorte encontrá-la, ela é muito requisitada. Sentei à sua mesa e reparei que usava um decote generosíssimo. Talvez ela pudesse me ajudar a encontrar Justiça. Comecei perguntando se lembrava de Renata. Ela me lançou um olhar indiferente.

– A bailarina morta com um tiro no olho… – falou para si mesma. E voltou o olhar para a rua.

Quando dei por mim já olhava novamente para seu decote. Era como um ímã. Ela tomou um gole de seu martini (Impunidade também bebe, com desenvoltura, uísque 18 anos) e começou a falar, sem pressa.

– Você realmente acha que o assassino, Wladimir o nome dele, né, vai continuar preso?

Nesse momento me veio a imagem que não consigo esquecer: o jipe em que Renata se encontrava, eu fora vê-lo um dia depois na delegacia. Vi as manchas de sangue, os fios do cabelo loiro dela ainda grudados ao sangue… Wladimir a acertara covardemente após uma discussão no trânsito. Putz, e Justiça?

– Justiça?! – Impunidade virou-se de repente, exaltada. – Não me venha falar dessa vaca! O que vocês podem saber de Justiça com toda a falsidade em que vivem? Ficam gritando sobre o que é justo, mas têm mil interesses pessoais em jogo. Quanta hipocrisia.

Fiquei sem saber o que dizer. Passou-me então pela cabeça qual seria a reação da família do assassino se houvesse sido ele a vítima… Seríamos todos tão hipócritas assim?

– São mais que hipócritas… – Ela lia pensamentos? – São atores, meu bem, encenando sua Justiça pra vocês mesmos enquanto eu os observo no palco e nos bastidores. Quer saber de uma verdade? Seus advogados, com seus ternos e termos tão bem estudados, podem entender de leis, as leis com todos os seus meandros e corredores mal iluminados. Mas de Justiça não sabem merda nenhuma.

Pediu licença e levantou. Disse que tinha um compromisso, que costumavam requisitar seus serviços também à noite e não apenas nos escritórios e gabinetes do dia claro. E foi saindo. Mas eu a peguei pelo braço. Ela virou e me encarou séria. Devia pensar sobre o que poderia eu lhe oferecer com minha cara de garoto à procura de Justiça – em contraste com as propostas volumosas com as quais lhe costumavam honrar.

– Vê este corpinho, rapaz? Ainda está conservado porque são vocês que o solicitam e tratam de cuidá-lo toda vez que lhes é vantajoso. E quando não é, falam de mim como a mais suja das prostitutas… Eu não sei o que é escrúpulo, rapaz. Não conheço nem o certo nem o errado. Essas coisas vocês é quem sabem. Eu apenas vivo.

– Renata também só queria viver… – falei de um impulso e logo me arrependi, temeroso pelo que pudesse vir. Ela então me olhou com seus olhos cativantes e eu, pela primeira vez, percebi de fato sua estranha beleza. Nesse instante o farol de um carro na rua iluminou seu busto e não pude evitar de olhar seu decote mais uma vez. Era como se seus belos seios fossem saltar em minha direção. Uma leve e agradável sensação de torpor me envolveu, e de repente tudo que existia era a visão de seus seios bem próximos de meu rosto, bem próximos…

Fechei os olhos num último esforço para não ser arrastado pela tentação que me tomava conta. Segurei firme a borda da mesa e respirei fundo. Quando abri os olhos a tentação havia desaparecido. Quantos já haviam resistido?

– Sinto por sua Renata. Mas também sinto por Wladimir. Na verdade tenho pena de vocês todos, vítimas do mundo cruel que vocês mesmos criaram.

Mas e Justiça? Eu precisava tanto saber…

– E quanto à sua Justiça, meu bem, essa que você tanto procura, se quer saber mesmo, ela também frequenta lugares como este e tem muitos clientes como eu. Mas pelo menos eu não sou hipócrita. E, se me permite, tenho aluguel pra pagar…

E saiu por entre as mesas, em seu vestido decotado. Ela e seu andar seguro de quem se sabe irresistível.
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Ricardo Kelmer 1995 – blogdokelmer.com

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> Esta crônica integra o livro A Arte Zen de Tanger Caranguejos

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SOBRE O CASO DA BAILARINA

A crônica O Vestido Decotado da Impunidade foi inspirada num caso real. Em 28 de dezembro de 1993, em Fortaleza-CE, a bailarina Renata Maria Braga de Carvalho foi covardemente assassinada aos 20 anos de idade, com um tiro de revólver no rosto, pelo então universitário Wladimir Magalhães Porto, de Brasília, após uma discussão no trânsito. O criminoso está solto.

Acusado do crime é absolvido – Jornal Diário do Nordeste, 21.06.08

Acusado de matar bailarina será levado a júri popular pela terceira vez – Site do TJCE, 28.05.15

Acusado de matar bailarina é condenado a 12,5 anos de prisão – Jornal Diário do Nordeste, 01.06.15

Morre em Brasília o assassino da bailarina Renata Braga – Focus, 09.07.20

A bailarina da fé – Se as palavras servem, infelizmente, para deixar impunes os criminosos, servem também para manter acesa a fé das pessoas num mundo melhor

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Comentarios01 COMENTÁRIOS
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01- caramba!!!! demais seuu texto kelmer! Cai Duarte, Bragança Paulista-SP – jul2014

02- Uau, belo texto Ricardo!!!!! Elizabeth Oliveira, Campinas-SP – jul2014

03- Essa madame é mesmo irresistível, nos ambientes mais “castos”. Muito bom. Osmar Casagrande, Palmas-TO – jul2014

04- Belo texto Ricardo! No fim é a justiça enfeitiçada pela sensualidade do poder? Meire Braga, Jandira-SP – jul2014

05- Excelente! Irônico e ácido, mas bem humorado. Tudo na medida certa! Anne Calanchoe, Feira de Santana-BA – jul2014

One Response to O vestido decotado da impunidade

  1. Soraya Borges disse:

    Esperando pelo último post… aquele que finalmente, a senhora em questão se encontra com a justiça e perde o embate, por incrível que pareça!.

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