O brega não tem cura

26nov2011

Porque o senhor sabe, né, doutor, o brega sempre puxa uma dose, que puxa outra, que puxa a lembrança daquela ingrata, que puxa outra dose…

O BREGA NÃO TEM CURA

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Pois é, doutor… essa coisa do brega. Sei explicar não. Sou chegado sim, assumo. Já tentei largar várias vezes e nada. Até na igreja fui. O pastor disse que tinha um demônio dentro de mim, se eu fosse lá no culto ele tirava. Mas não fui com a cara daquele pastor não. Foi aí que me falaram desse negócio de terapia. Tem cura pro brega, doutor?

Se lembro de algo na infância? Deixa eu ver… Lá em casa tinha uma empregada. Marluce o nome dela. Eu na sala fazendo o dever de casa e lá na cozinha a Marluce ligava o radinho e mandava ver no brega. E tome Waldick Soriano, Lindomar Castilho, Bartô Galeno, Núbia Lafayette, Roberto Muller, Diana, a tarde inteira. Eu estudando OSPB e pensando na menina da cadeira de rodas, tudo eu daria pra ver novamente feliz…

Depois eu cresci e a coisa piorou. Porque o senhor sabe, né, o brega sempre puxa uma dose, que puxa outra, que puxa a lembrança daquela ingrata, que puxa outra dose… Quando a gente vê, está lá no Roque Santeiro se esgulepando na cachaça, sábado seis da manhã, virado da noite, escutando os Pholhas e ligando praquela ex que casou, botando o celular pra ela ouvir She Made me Cry, ô desgraceira. Tem cura pra isso, doutor?

Pois foi exatamente por conta desses desmantelos que larguei o brega. Larguei. Dei meus discos tudinho, deixei de cantar Secretária da Beira do Cais debaixo do chuveiro, não quis mais saber. E nunca mais dei trabalho pros garçons, deitando no chão dos bares, como na música do Reginaldo Rossi. Arreneguei aquela vida pregressa, virei outro homem, me regenerei.

Mas semana passada, doutor… tive uma recaída. Foi terrível. Genival Santos no BNB Clube. Com Fernando Mendes e Raimundo Soldado, olha a tentação. E sabe quem mais? Ele, o homem da pílula: Odair José. Me deu logo uma coceira no juízo. Quando vi, já estava lá dentro tomando montilla, todo empolgado. Tinha muita gente sim, aquele cheiro de Contouré no meio do mundo. Moça velha? Vixe, tinha de puxar de rodo. “Não tem jeito que dê jeito, pra você viver comigo…” É, Raimundo Soldado. Trinta anos de peleja e o homem ainda tá com essa patente, ô injustiça.

E o Fernando Mendes? “Numa tarde tão linda de sol, ela me apareceu…” Esta o senhor conhece, né? Marluce caía no chão por esta música. Cadeira de Rodas? Cantou também, claro. Nessa hora me deu até saudade de estudar OSPB, pro senhor ver o que o brega não faz… E a cabeleira do Fernando, rapaz! Essas técnicas modernas de alongamento são uma coisa…

E o Genival, homem de Deus! “Sendo assim, vou acabar ficando louco…” Clássica, né? “Meu coração está em greve…” Ai, meu Jesus Cristino! “Se errar uma vez dou castigo pra não se acostumar, se errar outra vez mando embora pra saber me respeitar…” Isso é que é bonito, doutor, melhor mandar embora que dar um tiro na desgraçada, né?

E o Odair… Ah, doutor, o homem tem aquela cara de bandido de velho-oeste, mas é um cavalheiro, sempre distinto, gestos elegantes, precisa ver. Eu era um olho no palco e outro no chão pra não escorregar nas latas de cerveja. Da próxima vez eu mesmo pago um servente pra limpar aquela sujeira. Mas o Odair bem ali na frente compensava tudo. Pare de Tomar a Pílula, Cadê Você?, A Noite Mais Linda do Mundo… Cantou tudo. Qual? Eu, Você e a Praça? Cantou sim. O senhor parece que é chegado também, né? Vou Tirar Você desse Lugar… Também cantou, claro.

Aliás, esta música só me lembra a Mardônia, lá do Crateús. Menina boa, educada, tinha ginásio. Muito mimosa. Mas o pai bulinava ela, o senhor sabe, e a mãe vivia por aí embriagada, nem ligava pra menina. Não deu outra: ela fugiu de casa, se mandou pro rumo de cá. Menor de idade. Acabou lá no Farol, no Hamburg Bar, o senhor chegou a frequentar? Não? Pois não sabe o que perdeu. Foi lá que eu conheci ela. Novinha, bonitinha, cheirosa que era uma beleza. Botei uma ficha na máquina e a gente dançou juntinho Eu Hoje Quebro esta Mesa, do Carlos André. Me apaixonei, né? Como é que não se apaixona? Vixe, deixei muito dinheiro naquele cabaré, o senhor nem imagina. Até chamei ela pra morar comigo, mas ela não quis não. Até emprego de balconista na Lobrás eu arrumei pra ela. Quem disse que quis? Quis nada. Preferiu se juntar com um fulerage lá, mais liso que eu. Depois sumiu. Nunca mais que vi.

Pois sabe quem eu encontrei lá no show? Justamente: a Mardônia. Dez anos depois. De shortinho jeans e batinha frente-única, pense… Um pouco mais gordinha, mas ainda bem aprumada. Ah, eu não me aguentei. Fui lá, paguei-lhe um saco de jujuba e comecei a cantar Não se Vá pra ela. Ahn? Acabou o tempo? Puxa, passou rápido. Mas diga ao menos se tem cura pro brega, doutor, diga, eu preciso saber. Tem não, né? Tem nada. Eu sabia.
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Ricardo Kelmer 2001 – blogdokelmer.com

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– Esta crônica integra o livro A Arte Zen de Tanger Caranguejos
Esta crônica integra o livreto e o show Trilha da Vida Loca

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Na Wikipedia

Genival SantosFernando Mendes
Raimundo SoldadoOdair José

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VÍDEO
O Brega Não Tem Cura (conto c/ sonoplastia)
Boteco Vintage, Fortaleza-CE, 03.04.14

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TrilhaDaVidaLocaShowDiv-02aTRILHA DA VIDA LOCA O SHOW
Contos e canções para celebrar o amor doído

Mesclando música e literatura, este show reúne clássicos da dor de cotovelo da MPB e histórias de amor inspiradas em sucessos de Odair José, Waldick Soriano, Diana, Reginaldo Rossi e Fernando Mendes, num formato divertido e interativo. As canções são executadas por Ricardo Kelmer e Felipe Breier (voz e violão) e também em trechos de suas gravações originais, com participação da plateia. Paixões de cabaré, traições, vinganças e outras baixarias em nome do amor… Favor pagar o couvert antes de cortar os pulsos. SAIBA MAIS

Texto e direção: Ricardo Kelmer. Com Ricardo Kelmer e Felipe Breier
Duração: 2h (ou versão de 1h30)

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Comentarios01COMENTÁRIOS
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01- Adorei! Kelmer, voce é o cara! bjs de fã. Sandra Ribella, Limeira-SP – nov2011

02- quero me curar não, ó doutor… Flávia Castelo Batista Magalhães, Fortaleza-CE – nov2011

03- eu sou brega!!!!!!!!! Magna Mastroianni, São Paulo-SP – nov2011

04- Eu escuto brega desde que me entendo por gente !!!! Adoro. Monalisa Serafim, Fortaleza-CE – nov2011

05- Maravilha Kelme!!! Só tu pra escreve dessa forma! Adoro! Lendo a crônica, parecia que tu tava falando o repertório de ontem do Roque Santeiro, inclusive, vamos em você na hora da “cadeira de rodas”… Vania Vieira, Fortaleza-CE – nov2011

06- E se tivesse eu ficava doente pra sempre. Eduardo Lima, Fortaleza-CE – nov2011

07- Adorei! Bjs. Carmem Távora, Brasília-DF – nov2011

08- Kkkkkkkk comédia viu!!!! Brega nem com reza braba passa!!! Del Montenegro, Fortaleza-CE – abr2014

09- o “brega não tem cura” foi ótimo!!! PARABÉNS, pelo trabalho!!! Paula M Castro, São Paulo-SP – mar2015

4 Responses to O brega não tem cura

  1. Sérgio Dantas. disse:

    Tá danado. Esse homem vive atormentado pelas reminiscências. Essa figura é o Riobaldo do Brega. Conflito perigoso. Viver é perigoso… e sob as bênçãos do brega, nem se fala.

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  2. Susana X Mota disse:

    “Brega não tem cura e agrava-se com o tempo. É uma doença contagiosa, altamente invasiva, sobretudo nos casos de predisposição genética. Lusofonia é uma das condições para o desenvolvimento da patologia, mas a virulência pode tomar proporções de pandemia.” – Dra X., Portugal

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