06set2009
No dia seguinte, após uma noite sem fim de comemorações, você acorda. Abre o olho e ela está ao seu lado, bem juntinho, linda e sorridente
RECAÍDAS DA PAIXÃO
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Não lembro exatamente como começou nosso caso. Mas lembro quando meus olhos de criança viram pela primeira vez aquelas camisas entrando em campo. Meu padrinho me levara ao estádio, era decisão de campeonato, a cidade toda no clima do jogo. Aquele estádio imenso, o gramado verdinho, a festa das torcidas, a emoção à flor da pele – eu descobrira um mundo encantado. Infelizmente meu time perdeu, mas eu já estava fisgado: voltei para casa com uma tristeza de adulto, a primeira dor de cotovelo. E na alma levava uma coisa nova, uma paixão vibrante, um sentido a mais a me acompanhar.
Tem gente que morre e não entende uma paixão assim. Mas paixão nunca foi para se entender. Tem quem veja futebol como doença. Mas doença é viver sem paixão. Tem mulher que quando seu homem sai para o estádio, ela se sente trocada por onze marmanjos. Nada a ver, Bete, são coisas incomparáveis, entenda… Felizmente tem mulher que entende. Tem até as que também vivem a sua paixão. Quando é pelo time rival, putz, é um problema: dia de clássico é dia de briga, pode apostar. Mas quando o casal torce pelo mesmo time, ah, que suprema compatibilidade! Sabe lá o que é se vestir junto para ir ao estádio, escutar agarradinho os gols da campanha vitoriosa, o hino do clube, ver os gols da rodada no motel… Que romântico!
Em nome da paixão a gente faz de um tudo. Um amigo meu namorava uma garota que detestava futebol. Um dia, cansada de se sentir trocada, ela deu-lhe as contas e foi embora. Meu amigo, desesperado, foi atrás. Ela relutou, mas aceitou voltar, com uma condição, que ele fosse menos fanático por futebol. Sim, claro, meu amor, ele concordou, aliviado. Na semana seguinte ela apareceu com dois ingressos para o teatro. Uma peça bem romântica para comemorar nossa volta, disse ela. Quando ele viu a data, não acreditou. Seria no mesmo dia e hora de um jogão decisivo. E agora, como fazer? O amigo apelou: foi ao teatro, mas levou um radinho escondido na calça e acompanhou o jogo pelo fone de ouvido, torcendo e suando loucamente em silêncio, sentadinho, comedido, que tortura. Tudo para satisfazer a dois amores geniosos.
– Tá gostando da peça, amor?
– Claro, meu bem. Impedimento!
– Heim?
– Impedimento. Nada será impedimento pro nosso amor…
Às vezes essa paixão faz da vida um inferno: time ruim, gols perdidos, derrotas para o maior rival. Além da dor, ainda tem que aguentar a gozação. Por outro lado, quando o time está bem e é campeão, ah, a vida se transforma num sonho maravilhoso, e até acordar cedo para trabalhar é gostoso, acredite. Nesses momentos, somem as dívidas do cartão, desaparecem inquietações existenciais e até os programas evangélicos da madrugada ficam bons de ver.
Como todo romance, tem também as brigas, claro. Às vezes você passa anos distante, magoado. Quer nem ouvir falar. Mas um dia você decide ir ao jogo, é dia de clássico. Manda lavar a velha camisa e liga para os amigos. Chega ao estádio e aos poucos retornam detalhes esquecidos de um antigo ritual: as bandeiras feito estandartes, as batucadas, o grito de guerra, a cervejinha antes de subir, nada mudou. O time entra em campo e você levanta para aplaudir, a torcida rival vaia, o coração aperta, pede mais uma cerveja – a velha magia está de volta. No intervalo, desce para o banheiro e discute o pênalti não marcado. Depois é o segundo tempo, o nervosismo crescente, o impedimento escandaloso, o gol que não sai. Lá está você esfregando as mãos, suando, mordendo todas as unhas, torcendo, torcendo, e de repente… gooooooooool!!! Vixe, você vira ninguém no turbilhão da alegria. Atira longe o chinelo e beija o vendedor de amendoim. Paga cerveja para todo mundo. Que bonito as bandeiras tremulando, a torcida delirando, vendo a rede balançar…
No dia seguinte, após uma noite sem fim de comemorações, você acorda. Abre o olho e ela está ao seu lado, bem juntinho, linda e sorridente, toda carinhosa, pedindo para ser tocada mais uma vez, a camisa do seu time. Você sorri de volta, beija a camisa, se ajeita sob o lençol e fecha os olhos, buscando novamente aquele sonho gostoso onde o centroavante dribla dois e toca na saída do goleiro.
Mas não era você quem dizia que vocês dois não tinham mais nada a ver? – prepare-se que alguém vai perguntar. Pois não tente explicar, colega. Paixão antiga é assim mesmo, não tem explicação. Um dia ela reaparece, mais bonita e desejável que nunca, e você se vê na marca do pênalti. Aí só tem um jeito: é tocar com firmeza e correr para o abraço.
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Ricardo Kelmer 2002 – blogdokelmer.com
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Esta crônica integra o livro A Arte Zen de Tanger Caranguejos
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