15nov2008
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Detetive investiga estranhos crimes envolvendo personagens típicos da boêmia Praia de Iracema e descobre que alguém pretende matar a noite.
Terror, mistério, erotismo
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> Este conto integra o livro Guia de Sobrevivência para o Fim dos Tempos
> O livro Crimes de Paixão, contendo somente este conto, pode ser adquirido em PDF (direto com o autor) e também na Amazon (kindle).
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CRIMES DE PAIXÃO
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Todos os frequentadores do Quais Bar pararam surpresos quando chegaram no sábado e descobriram que o Olimar não aparecera para trabalhar. Afinal de contas, além de se tratar do garçom mais folclórico do boemíssimo bairro da Praia de Iracema, ele era conhecido por Penalidade, alcunha que lhe botaram os clientes por ter faltado ao trabalho uma única vez em vinte anos de profissão – justamente por ter, no dia, defendido de forma magistral uma penalidade máxima na final da Liga de Futebol do Quintino Cunha. A comemoração foi tamanha que à noite não teve condições de trabalhar. Olimar, o Penalidade.
E agora o homem faltava pela segunda vez. Era um acontecimento quase tão histórico quanto o da primeira. Gente se gabava de ter estado no bar na noite em que o Penalidade faltara. Roger Gaciano Jr., o renomado jornalista e frequentador da praia, procurando alguém para ilustrar sua matéria sobre a boemia do bairro, entrevistou quem? O garçom Penalidade, claro. E a entrevista até hoje está lá na parede do bar, plastificada para todo mundo ler.
– O Olimar não veio trabalhar?! Será que defendeu outro pênalti?
– Proponho realizarmos uma assembleia pra mudar seu nome pra Dupla Penalidade…
Especulações correram soltas por toda a noite. Apostas foram abertas, um mês de birita grátis para quem acertasse o motivo da segunda falta do Olimar. Tão carismático o homem que até mesmo sua ausência era uma festa.
Porém, no domingo à noitinha, quando a mulher do Olimar chegou ao bar perguntando pelo marido, começou-se a desconfiar de algo mais sério. Dona Cândida, aflita, menino novo no braço, dizia que ele saíra sábado à tarde e desde então não teve mais notícia. Carlitos, dono do Quais Bar, sensibilizado com a aflição da mulher, propôs organizarem uma comissão para ir atrás de notícia do seu melhor garçom. Dona Cândida não se preocupasse, fosse para casa, ele mandaria um táxi deixá-la e logo estaria tudo bem, o Olimar ia aparecer.
O mistério continuou até segunda pela manhã quando o corpo do garçom Penalidade deu à praia da Barra, já em decomposição. O laudo apontaria afogamento. Ele não sabia nadar, portanto jamais se arriscaria no mar. E o mais esquisito é que estava de roupa – teria caído do píer? Dinheiro e documentos no bolso. No corpo, marca nenhuma de violência. O que poderia ter acontecido?
Penalidade foi enterrado no fim da tarde. Consternação geral. Quase todos os seus clientes se fizeram presentes, inclusive os ocasionais e até mesmo os que lhe deviam e ultimamente evitavam aparecer. A viúva recebeu ofertas de auxílio e pôde constatar como era querido o finado. Um turbilhão de flores acompanhou a descida do caixão e alguém puxou um violão para cantar “Beira-Mar”, de Ednardo, música favorita do Olimar.
No meio do chororô ninguém escutou o Jeová, vulgo Profeta, de dentro de seu casacão preto que havia muito não via sabão, dizer com seu jeito grave e o olhar fixo no caixão que descia:
– Lá se vai o segundo mártir.
Ou se alguém escutou, fez que não ouviu. Já não era fácil aguentar o Profeta nos bares com seus discursos sobre profecias apocalípticas, imagine em enterro.
– Mas o fim não se fez. Ainda restam três…
Apesar de muitos evitarem tocar no assunto, por uma lua inteira não se falou de outra coisa nas mesas dos bares da Praia de Iracema. Os mais inconformados fizeram abstinência etílica de três dias in memoriam. Outros beberam sem parar durante três dias.
Entretanto, ninguém, ninguém se deteve a relacionar a morte do garçom Penalidade com outra ocorrida três meses antes no Le Bombom, um motelzinho humilde frequentado pelas putinhas e travecas de fim de noite. A vítima fora seo Neném, dono do estabelecimento, gentil e pacato senhor de idade. Foi encontrado morto num dos quartos, estirado na cama. Estava nu e com a boca entupida com papel de bombons finos, coisa mais desumana.
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O detetive Eládio Vieira, como gosta de ser chamado (porém conhecido no submundo do crime por Eládio Ratoeira), trinta e nove de idade e quarenta de baralho, que sempre se gabou de ser um detetive de nível, acordou naquela manhã numa ressaca federal. Não dormira mais que duas horas. Tomou um banho rápido e pegou um táxi para a favela Verdes Mares. Daquela vez exageraram: o pôquer terminara às seis da manhã. E ainda pagou o equivalente a um mês de trabalho ao filho-duma-égua sortudo do Mardônio.
O detetive Eládio Ratoeira (ele que nos desculpe, mas certos apelidos já fazem parte da pessoa) nunca trabalhava nas manhãs de quarta-feira. Naqueles anos todos nenhum caso foi tão importante que justificasse sua falta ao velho pôquer das terças nem ao sagrado sono da manhã seguinte. Porém, ele conhecia dona Iza, a cigarreira, era seu cliente fazia tempo. E não teve como não se sentir abalado quando soube pelo telefone de sua morte naquela madrugada.
Quando terminou de fazer suas perguntas a vizinhos, parentes e amigos da vítima, o detetive Ratoeira rumou para seu escritório, no centro da cidade. Sentado em sua mesa com vista para a Catedral, comparou as informações que tinha e montou sua reconstituição. Dona Iza chega em casa, um pequeno barraco de madeira na favela Verdes Mares, aproximadamente às quatro da manhã. Vem da Praia de Iracema, onde trabalha como vendedora ambulante de balas e cigarros. Meia hora depois o marido sai para a fábrica, deixando mulher e filho no barraco. As primeiras chamas são avistadas logo depois por três homens que jogam sinuca num bar distante cinquenta metros. Socorrem o menino que dormia e retiram o corpo de dona Iza, já carbonizado, que jaz no chão da cozinha.
Ninguém da favela viu nada suspeito, nenhum fato estranho. Apesar de tudo indicar acidente, Ratoeira coçava a nuca sem entender por qual motivo a vítima não conseguira sair do pequeno barraco a tempo.
À noite, foi à Praia de Iracema. Escutou garçons, taxistas e vendedores ambulantes – todos unânimes em afirmar que se tratava de pessoa querida, simpática e generosa, não cultivava inimizade. Às onze, fechou o caderninho e encerrou as atividades. Mas antes de ir para casa deu uma passadinha no Quais Bar, o bar do finado garçom Penalidade, só para molhar o bico numa cachacinha. Reconstituiu as conversas da noite, uma a uma. A mulher não devia a ninguém, não gostava de confusão, era fiel ao marido. Nem crime passional, nem latrocínio e nem vingança. Restava acidente.
Ratoeira coçou a nuca com a ponta do polegar. Alguma coisa lhe dizia que tinha cachorro naquele mato. E sua intuição nunca lhe pregava peças. Por isso lhe botaram o Ratoeira no nome. Por mais que se esforçasse, não conseguira tirar o apelido. Apelido ridículo, dizia ele, Ratoeira é para investigador de polícia, corrupto e camisa manchada de suor. Ele não, ele tinha nível. Trabalhava de detetive porque sempre gostara de investigar, mas era formado em Engenharia. Dava aulas em cursinho pré-vestibular mas seu negócio era desvendar casos. Era tão bom no que fazia que muitas vezes a própria polícia lhe solicitava auxílio. Aliás, foram eles que lhe botaram o ingrato apelido: Eládio Vieira é nome de professor, diziam. Então ficou Ratoeira. Até algumas madames, sempre preocupadas com as saidinhas dos maridos, conheciam-no pelo apelido: Dessa vez eu tenho certeza que ele está me traindo, seo Ratoeira…
Então tomou um gole e olhou para o mar iluminado da Praia de Iracema, descansando a vista. Os vendedores disso e daquilo, os carrinhos de pipoca e as luzes fortes dos postes faziam aquela parte do bairro parecer um parque. Como o bairro pudera mudar tanto em tão pouco tempo? Alguns anos antes, os bares eram meia dúzia e conviviam pacificamente com os moradores. Agora, eram mais de cem, e de pouco adiantavam os esforços da associação de moradores para garantir mais tranquilidade e respeito às famílias que ainda insistiam em morar ali.
De uns moradores, em depoimentos que recolhera, escutou repetidas queixas quanto ao inferno em que se transformara a vida no bairro. Alguns chegaram a dizer que a morte da vendedora podia ter sido fruto da luta por pontos de venda, já não duvidavam de mais nada, os bares haviam trazido muitas pessoas de fora, e com elas, a violência.
Ratoeira já fora assíduo frequentador do bairro e conhecia sua história. Sabia que procedia a queixa dos moradores. Mas sabia também que a vocação boêmia do bairro vinha de longe e que a proliferação dos bares era difícil de ser controlada por envolver muitos aspectos, entre eles a geração de empregos e o turismo cada vez mais forte.
Ele praticamente deixara de frequentar o bairro depois da massificação. Antes, podia-se caminhar pelas ruas à noite, tranquilamente. Podia-se namorar olhando o mar sem medo de assalto, e os frequentadores conheciam-se uns aos outros e mantinham certa cordialidade para com os moradores. Era comum encontrar uma roda de violão na calçada. A boemia continha em si uma boa dose de poesia e amizade.
Mas agora, não. Em lugar de músicos, artistas, poetas e intelectuais, a Praia de Iracema via desfilar por suas ruas bandos barulhentos de mauricinhos e patricinhas, jovens obcecados pela potência do som de seus carros e a etiqueta de suas roupas. Com eles, vieram assaltos, roubos de carro, brigas nos bares, mortes. Traficantes de drogas e jovens brigões de academia também descobriram o filão. Então vieram os turistas, ávidos por consumo. Depois chegaram as prostitutas, por que não haveria um pedaço também para elas? A Praia de Iracema é de todos! – alardeava o slogan da campanha turística.
O detetive voltou para sua quitinete com muitos pensamentos e uma pulga atrás da orelha. Embora se esforçasse para não levá-lo a sério, não conseguia esquecer do Profeta, o maluco que encontrara no Quais Bar aquela noite. Conhecia-o de vista dali dos bares. Era o mesmo bêbado cabeludo de vinte anos atrás, o mesmo casacão fedorento, a mania de rimar as frases, não mudara nada. Ele sentara-se à sua mesa sem pedir licença:
– Sua intuição está certa, seo detetive. O que aconteceu com dona Iza não foi acidente. Mas não adianta um culpado perseguir, pois a profecia vai se cumprir.
Na hora, não atinou para o fato, mas depois sim: como é que ele podia saber a respeito de sua intuição se não falara dela para ninguém? Era só o que me faltava, pensou intrigado, um maluco lendo meus pensamentos. Bem, concluiu, virando-se na cama para dormir, até mesmo os malucos acertam uma de vez em quando…
Dias depois, o laudo do IML saiu com uma conclusão curiosa: não havia indícios de fumaça nos pulmões da vítima. Isso significava que ela morrera antes de começar o incêndio. Mas não concluía sobre a causa. Para isso seria preciso mais alguns dias.
Ratoeira coçou a nuca com o polegar: quer dizer então que dona Iza já estava morta? Teria sido queda ou algo assim? Ou alguém a matara?
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‒ Ô Garçom, duas cachaças, por favor.
– A minha é dupla.
– Muito bem, seo Jeová. O que o senhor sabe a respeito da morte de dona Iza?
Jeová, vulgo Profeta, de dentro de seu velho e endurecido casacão preto, olhou para o homem à sua frente com um misto de simpatia e desdém.
– O que eu sei é o que está escrito, seo detetive…
Naquela noite, uma semana após a morte de dona Iza, Eládio Ratoeira reencontrara o Profeta pelas ruas da Praia de Iracema e o convidou a tomar um aperitivo, por sua conta. Talvez o maluco tivesse algo de interessante a contar, ele que vivia dia e noite a realidade do bairro. O diabo era ter de aguentar o fedor daquele casaco…
O garçom chegou com as bebidas. O Profeta tomou a sua cachaça de dois goles e então pôs-se a falar da noite, da magia da praia e dos segredos dos bares. Contou histórias do bairro, lendas dos antigos moradores da área, personagens que já não existiam mais. Eládio Ratoeira escutava com atenção, surpreso com a própria paciência. O Profeta andava por ali desde o início da ocupação da praia pelos bares, ele e seu casaco, o cabelo sujo, os dentes estragados e todas as suas histórias esquisitas. Diziam que fora fotógrafo de jornal. Diziam que tivera uma banda de rock nos anos 1970, Punk Froid ou algo assim. Diziam que endoidara por causa de mulher. Não havia quem não o conhecesse, quem já não lhe tivesse pago uma dose de cana.
– Não duvide da realidade, seo detetive. Isso é importante pra sua profissão. Por exemplo, se eu disser que tem alguém sentado nesta mesa com a gente, alguém que veio com o senhor, o senhor duvidaria, né?
Eládio Ratoeira olhou automaticamente para o lado. Quando deu-se conta, irritou-se consigo mesmo e entendeu que já escutara demais, meia hora ouvindo maluquices, onde andava com a cabeça? Então respirou fundo e, botando um pouco de autoridade na voz, falou que já estava tarde e que se o outro não tivesse nada de mais concreto para dizer, então fosse desculpando que ele tinha trabalho amanhã cedo. E pediu a conta.
O Profeta sorriu um sorriso curto de resignação.
– Vou falar na língua que o senhor conhece, seo detetive. Me diga uma coisa. Se o senhor não sabe que eu tenho nas mãos uma quadra de damas, então essa quadra não existe pro senhor, não é mesmo? Não existe porque o senhor não sabe que eu tenho, não é isso? Pois ela existe sim, independente do senhor saber.
O detetive Eládio Ratoeira, quarenta anos de baralho, encarou o Profeta e sentiu um calafrio lhe percorrer a espinha. O maluco sabia que ele jogava pôquer? Então lia mesmo pensamentos?
Por alguns segundos, manteve o olhar fixo nos olhos do homem, procurando alguma pista que indicasse qualquer coisa… Mas a expressão do outro não mudou, permaneceu impassível, o olhar manso e desarmado, tipo do sujeito incapaz de mal algum.
De repente, um gato preto entrou pela porta do bar e aproximou-se da mesa, miando para o Profeta. Ele o pegou nos braços e pôs no colo, acariciando-lhe o pelo.
– O senhor está investigando somente o caso de dona Iza, não é? Pois vou ampliar um pouco mais seu horizonte. É só porque simpatizei com a sua honestidade.
Eládio Ratoeira esperou. Dos braços do Profeta, o gato preto o observava com seus olhos amarelos.
– Olhe, a morte de dona Iza tem dois precedentes. Um é seo Neném, dono do motel, que morreu cinco meses atrás. O outro é o garçom Penalidade, morto faz dois meses. Eu sei que o senhor sabe, eu sei. Mas ainda não ligou os fatos. Os três eram personagens conhecidos na praia, faziam parte da paisagem. Atente pra ironia, homem: o dono do motel, que vendia sexo, morreu na cama. O garçom, que vendia bebida, morreu afogado. E a cigarreira morreu queimada.
– Morreu antes de ser queimada – interrompeu Ratoeira, dando-se conta, um segundo depois, que revelava um segredo de trabalho.
– É o simbolismo que vale. A noite está morrendo por meio de seus personagens. A profecia é desumana, mas é real.
– Que profecia?
– O senhor conhece. Um dia, a noite da Praia de Iracema vai morrer.
Eládio Ratoeira perdeu de vez a paciência. Pagou a conta e levantou-se.
– Pelo que me consta, seo Profeta, e talvez não conste ao senhor, é que foi uma mulher loira, bonita e aparentando vinte e poucos anos, trajando vestido preto, que foi vista na companhia de seo Neném poucos minutos antes dele ser encontrado morto. Nada de símbolo. Foi assassinato e vou provar.
– Então, homem? Pra que melhor simbolismo? Uma loira bonita e cruel, vestida de preto… A cool girl will kill you in a darkened room… O senhor conhece essa música?
Pronto, o maluco sabe inglês, pensou Ratoeira, coçando a nuca.
– O senhor está tão obcecado em descobrir o assassino que não consegue ver o óbvio.
Ratoeira caminhou para a calçada e, enquanto acenava para o táxi, pôde ouvir o Profeta lá na mesa, ainda com o gato preto nos braços:
– Toinho, Tereza, Tarzan… Quem é o próximo de amanhã?
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Durante os dias que seguiram, o detetive Eládio Ratoeira aguardou com expectativa o segundo laudo sobre a morte de dona Iza. Finalmente, obteve uma informação: os legistas não conseguiam descobrir a causa mortis. Simplesmente, não sabiam.
A segunda conversa com o Profeta repercutia insistente em sua cabeça. Aquela história da profecia sobre a morte da Praia de Iracema era antiga, mas era apenas mais uma das histórias malucas sobre o bairro. O povo ficava fumando maconha nos becos e inventando aquelas coisas. A verdade verdadeira era que seo Neném morrera de ataque cardíaco e a mulher loira fora realmente vista na noite do crime por duas testemunhas. O garçom Olimar morrera afogado e não havia suspeitos. O caso de dona Iza é que era o mais misterioso. As mortes, porém, não tinham ligação entre si, como supunha o Profeta.
De qualquer modo, os casos do garçom e do dono do motel não eram da sua conta. O garçom certamente caíra sozinho do píer, embriagado. E a loira suspeita de matar seo Neném estava sendo procurada pela polícia. Seu problema era a cigarreira, descobrir por que ela não conseguira escapar do incêndio.
Eládio Ratoeira ligou o chuveiro e meteu-se debaixo da água fria. O que precisava era de um bom banho e de uma mesinha de pôquer divertida. Quadra de damas… Quem sabe não seria uma dica para a mesa daquela noite? Bem que podia ser. Descontar o que o Mardônio lhe ganhara da última vez.
Após o banho, vestiu-se rapidamente e foi encontrar o resto do pessoal no Papagaio, o único bar que aceitava receber aquela mesa de pôquer, uma mesa no depósito do primeiro andar, é verdade, mas aceitava. Mesa de cinco, uma garrafa de conhaque, pratinho de amendoim. Do lado de suas fichas, uma foto da Danusa pelada, secretária do escritório vizinho ao seu, era para dar sorte, patuá antigo, ela até já casara. O cacife vale vinte, primeira pausa à meia-noite, mexeu no patuá do outro vale uma advertência, o prêmio é um, dois e quatro cacifes, vamos jogar que o jogo é jogado e tomem cuidado que hoje eu tô invocado…
Ratoeira tentava se concentrar no jogo, mas não podia aparecer uma dama na mesa que logo lembrava da conversa do outro. Como o maluco podia saber que ele jogava pôquer? Será que era por isso que o chamavam de Profeta, tinha o dom de adivinhar coisas?
As três cartas da mesa começaram a ser abertas. Uma dama de espadas surgiu. Precisava se concentrar no jogo.
Toinho, Tereza, Tarzan… Mas até o Tarzan estava metido naquela história? Ratoeira achou engraçado e riu. Precisava se concentrar, estava muito disperso.
A segunda carta da mesa: dama de paus.
Toinho, Tereza, Tarzan… Todos começavam com T. Será que o maluco queria dizer que o nome do próximo a morrer começava com T?
Então, a dama de copas apareceu na mesa. Trinca de damas! Uma exclamação geral percorreu a mesa. Todos se entreolharam, sorrindo maliciosos. Quem tivesse a dama de ouro faria a quadra. Se alguém tinha, sorriu para disfarçar a felicidade. E quem não tinha, sorriu para esconder o medo.
Ratoeira sentia o coração pulando dentro do peito. Ergueu o olhar e, do outro lado da mesa, deu de cara com os olhos desconfiados do Mardônio por trás da fumaça do baseado. Voltou às suas cartas. Ou se concentrava ou então o demônio do Mardônio lhe adivinharia o jogo.
Já havia visto a primeira de suas duas cartas. Era um dois de paus. A outra estava por trás. Faria um pequeno suspense para si próprio. Então, num impulso, dobrou a aposta, ainda sem saber qual era sua segunda carta, uma jogada no escuro. Claro que era arriscado. Não costumava fazer aquilo, mas era o tipo da coisa que podia funcionar como um bom golpe psicológico nos outros jogadores. Tomou um gole do conhaque. Tinha de aparentar calma.
Então Mardônio pôs várias fichas sobre a mesa, dobrando a aposta mais uma vez. E tornou a encará-lo. Os outros jogadores desistiram e sobraram eles dois. Ratoeira, ainda sem ver a segunda carta, pagou a aposta. Alguém assobiou, surpreso.
Ratoeira tentou manter-se tranquilo. A coisa estava ficando séria. Respirou longamente e decidiu finalmente ver a segunda carta. Seu próximo lance dependia dela. Se fosse a dama de ouros, iria com a aposta até o fim do mundo. Tinha que ser a dama. Tinha que ser a quadra. A quadra do Profeta.
Ratoeira deslizou os dedos lentamente, fazendo a pressão exata para que a carta de trás não surgisse de todo. Fazia suspense para os outros e para si próprio. Podia sentir que Mardônio o observava atentamente, pronto para interpretar qualquer mínimo gesto seu. Os outros não ousavam falar nada. Era a maior aposta da noite.
Ratoeira deslizou os dedos mais um pouco. Descobrindo o lado inferior esquerdo, percebeu pelo desenho que a carta era uma figura, não era um número. O coração disparou. Tinha uma trinca de damas já certa e agora aquela carta podia ser a outra dama que faltava. Ou era um rei ou um valete ou uma dama. Tinha de ser a dama de ouros.
Continuando o suspense, descobriu um pouco da parte superior esquerda e a letra começou a aparecer, em cor vermelha, aos poucos, devagarinho, a cor vermelha…
Ratoeira, quarenta anos de baralho, não acreditou no que viu. Por alguns segundos, não conseguiu pensar em qualquer coisa. Depois, imaginou que alguém aprontara alguma brincadeira idiota para cima dele. Mas ninguém ria. Estavam todos sérios aguardando sua decisão.
Ratoeira engoliu seco. Em sua mão estava uma carta que não era rei, nem valete e nem dama. Em sua mão estava um macabro esqueleto sobre um cavalo, empunhando uma foice. E a letra, no canto superior da carta, era um T. Um T vermelho como sangue.
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Tânia Mara parou em frente ao espelho do banheiro e enxugou os longos cabelos negros. Passou uma escova e jogou-os para trás. E parou para se olhar. Sua experiência como loira durara apenas seis meses, não foi muito proveitosa, poucos aprovaram. Até mesmo Rian, seu gato, estranhou a mudança. Ficava olhando para ela com seus olhos amarelos, olhando como se não reconhecesse aquela mulher loira. Agora seus cabelos eram negros novamente, a cor do seu gato e das roupas que usava, e era confortável reencontrar a velha imagem.
Vivia um bom momento. Os shows estavam acontecendo. Os rapazes da nova banda eram músicos competentes, e juntos faziam um bom trabalho. A noite aos poucos tomava conhecimento de Tânia Mara. Ah, a vida devia ser sempre assim, ela falou para a imagem no espelho, cantar blues e viver as emoções. De preferência, bem fortes, meu bem.
Deu uma última olhada no corpo nu refletido, o corpo que assumidamente usava como arma, nos palcos e na vida. Pôs duas gotas de perfume nas mãos e passou na nuca e no colo. Apalpou os seios. Olhou-os de perfil. E vestiu uma camiseta preta, que lhe desceu até metade das coxas. No espelho, viu seu rosto ao lado do de Jim Morrison, refletido do pôster da parede de trás. Antes de deixar o banheiro e dirigir-se ao quarto, beijou-o na boca pelo espelho.
– Você não me engana, cara. Sei que está vivo. Um dia a gente se encontra.
No toca-disco da sala, era ele, o Rei Lagarto, quem cantava: If you give this man a ride, sweet family will die… Killer on the road… Tânia Mara fechou os olhos, escutou a música e respirou fundo. Mordeu o lábio. Eu resisto a tudo, meu bem, menos às tentações… No quarto, pegou a garrafa de Jack Daniel´s na mesinha de cabeceira e foi para a sala. Parou na porta, segurando a garrafa e olhando para o homem sentado no chão encostado no sofá. O relógio da parede lhe dizia que demorara vinte minutos no banho. Vinte minutos para o que ele terá é pouco…, ela pensou, sorrindo.
– Tim-tim… – ela brindou, após servir os copos.
– A você. Desumana Tânia.
– A mim.
Enquanto Jim cantava a mortal carona na estrada, Tânia Mara bebeu um pouco do uísque e olhou para o homem à sua frente. Conhecera-o por ocasião de um show, uma semana antes. Logo que chegou ao bar seus olhares se cruzaram de um modo estranho, e durante o show pôde perceber como ele a olhava com desejo. Cantou o tempo todo excitada, sentindo a calcinha molhada. E fez seu melhor show. Quando saiu do camarim passou pela mesa para chamar sua atenção. A isca funcionou: ele a convidou para um drinque e ela aceitou. Ele elogiou sua voz e as músicas, principalmente “Desumano blues”. Ela gostou do jeito dele, misterioso. Além do mais, ele falou: Você tem o jeito da noite… E isso ficou em sua cabeça, não esqueceu. O jeito da noite.
Rian surgiu de repente, vindo da cozinha, e foi enroscar-se em suas pernas. Ela pôs o gato preto em seus braços.
– Escapou, né, safado? Vem, vamos voltar. Hoje você não pode ficar comigo, entenda…
Ela saiu em direção à cozinha e voltou logo depois.
– Quem é você, Tânia?
– Uma garotinha sortuda sob os holofotes da noite.
– Ou só mais um anjo perdido na noite da cidade?
Ela imitou uma garotinha tímida e desprotegida, brincando com os dedos. Então foi até a estante botar novamente o disco para tocar. Podia sentir o olhar dele em suas costas, deslizando pelos seus contornos. Ele agora vai levantar e vir até aqui…
– Também gosta de Jim Morrison? – perguntou ela, pousando a agulha novamente na última música.
– Gosto mais de Tânia Mara.
A voz dele bem atrás, podia senti-la em seu pescoço.
– Por que você diz que eu tenho o jeito da noite?
– Porque a noite é desumana.
Desumana…, pensou ela, saboreando o que escutara.
– Nada que eu possa evitar, meu bem…
– Você tem futuro, Tânia Mara.
– Eu sei.
– Comigo.
– Com você? Essa parte do roteiro não recebi.
– Se quiser, posso levá-la daqui, exibir sua voz pelo mundo, vivermos uma tórrida paixão. No fim, morreremos de amor em Paris. Na banheira de um quarto de hotel.
– Tentador… Mas os lagartos não morrem em Paris, querido.
Primeiro, foi o braço dele em sua cintura, puxando-a com força. Em seguida, foi a sua boca invadindo a dele, as línguas sem cerimônia. Depois as mãos, a camiseta subindo, rasgando, as mãos em suas costas, em seu pescoço, nos seios, seu corpo nu nos braços dele, no meio da sala. Depois foi o sofá, depois as roupas dele, a urgência, o suor. Depois as estrelas, as estrelas… E os teclados gotejantes de um blues morrendo aos poucos, sob a chuva. Depois, o silêncio. Desumano silêncio.
Meu bem, esta cidade ensurdece
E você esquece do que eu tenho pra dizer
Meu bem, a noite é desumana
Fumando e bebendo sozinha em meu apê…
(Tânia Mara – Desumano Blues)
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Foi o tenente Trindade, amigo informante na polícia, quem avisou Eládio Ratoeira. Imediatamente, ele pegou um táxi e conseguiu chegar ao apartamento da vítima antes da imprensa, quando a polícia ainda recolhia material e fazia as fotos. Ratoeira conferiu o estrago com os próprios olhos. Viu o corpo nu da cantora, belo e ensanguentado, estirado de bruços no tapete, as pernas abertas, o pescoço rasgado. A polícia já havia recolhido alguns objetos para análise pericial, entre eles dois copos e um disco de vinil partido ao meio com restos de sangue.
– Conhece, Ratoeira? – perguntou o tenente Trindade, mostrando o disco partido.
– “L. A. Woman”. Um crime quebrar um vinil desse.
Ratoeira caminhou pelos aposentos. No mural do quarto viu fotos, bilhetinhos, cartazes de show… De repente, um gato preto surgiu correndo e foi meter-se debaixo do guarda-roupa. Pela ração na cozinha, Ratoeira deduziu que morava com a moça. Tentou pegá-lo, mas o gato saltou e em dois tempos estava no parapeito da janela, olhando para ele. Por um instante, passou-lhe pela cabeça que o bichano podia estar tentando dizer algo, gatos são meio bruxos. Fixou o olhar nos olhos do animal e perguntou:
– Quem foi? Eu sei que você sabe.
O gato, imóvel no parapeito, continuou olhando para ele. E miou.
– Então é este seu método, Ratoeira… Interrogação felina.
Ele virou-se e viu o tenente, parado na porta.
– A vizinha disse que o nome dele é Rian. Em francês quer dizer…
– Nada.
– Exatamente. Ou seja: ele não sabe nada.
Enquanto o tenente Trindade ria, Ratoeira pegou o gato nos braços e o acariciou.
– Não se deve duvidar da realidade… Né, Rian?
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Eládio Ratoeira sentou no sofá da sala de sua quitinete. Ligou a tevê, mas não prestou atenção. Seu pensamento estava na Praia de Iracema…
Tânia Mara, o nome da moça. Bonita. Vinte e três anos, cantora de blues. Tinha uma banda e os frequentadores dos bares a conheciam. Estava na cidade havia um ano, morava sozinha. Fizera um show na noite de terça e depois não foi mais vista. Quem descobriu o corpo foi o gaitista da banda, dois dias depois. Como ela não havia comparecido ao ensaio nem atendia ao telefone, ele fora até seu apartamento. A porta não estava trancada e ele entrou, encontrando o corpo estendido no tapete.
Tânia Mara… O T da charada, pensou Ratoeira. Cantora da noite. Morreu com o pescoço rasgado por um disco. Indícios de luta corporal, ela certamente resistiu. Mas o assassino era mais forte e a derrubou. Virou-a de costas no tapete da sala, deitando sobre ela. Tapou-lhe a boca com um lenço para que não gritasse. Quebrou o disco ao meio e rasgou-lhe o pescoço. Enquanto a hemorragia a enfraquecia, ele a sodomizou ao som de “Riders on the Storm”…
– Miaaauuu…
Ratoeira despertou com o miado do gato aos seus pés.
– Tá com fome, Rian?
Levantou-se e pôs mais ração no pratinho. Depois, ainda com a cena do crime em sua mente, pegou caneta e papel. E escreveu o nome de todas as vítimas. Primeiro, o dono do motel, que morreu na cama. Três meses depois, o garçom, que morreu afogado. Dois meses depois, a cigarreira, que morreu queimada. Um mês depois, a cantora, morta com o pescoço rasgado por um disco. Nenhum latrocínio. Nem crime passional, nem vingança. Em seis meses, quatro crimes sem sentido. Mas simbolicamente coerentes, como dizia o Profeta. Ratoeira coçava a nuca, pensando se a polícia estaria a par daquela suposta relação entre os crimes. Coincidência ou não, ele já não conseguia deixar de relacioná-los.
Mas como o Profeta sabia que a próxima vítima começaria pela letra T? Ou teria sido apenas um palpite? Ratoeira escreveu o nome das vítimas no papel. Neném, Penalidade, Iza e Tânia, em sequência cronológica. N, P, I e T. Não formavam nada lógico à primeira vista. Tentou algumas combinações, mas nada lhe chamou a atenção. Então percebeu que os dois primeiros eram apelidos. O nome verdadeiro do seo Neném era Nilton, a mesma inicial. Mas o nome do garçom era Olimar.
Substituiu a letra P de Penalidade pela letra O de Olimar. Tinha agora N, O, I e T.
Um relâmpago cruzou o interior de sua mente. Um arrepio percorreu-lhe o corpo de cima a baixo. Ratoeira ficou olhando para o papel, sem acreditar.
A profecia.
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– Eu sabia que você viria. Quer sentar?
Jeová, o profeta da praia, ele e seu casacão preto e imundo.
– Uma dose de cana pro Profeta – pediu Ratoeira ao garçom.
– Tripla – acrescentou Jeová, grave como sempre. – A moça merece.
– Como você sabia que seria ela?
– Tudo que sei é o que está escrito.
– E o que está escrito?
– Que chegou o fim dos tempos.
– Que mais?
– Que a noite desta praia está condenada.
– Condenada por quem?
O garçom chegou com a bebida. Eládio Ratoeira observou o Profeta erguer o copo cheio de cachaça à altura do nariz, fechar os olhos e cheirar. Ia repetir a pergunta quando o outro abriu os olhos.
– As pessoas dizem que eu sou louco. O que o senhor acha?
– Não acho nada. Quem está tentando matar a noite?
– A noite está morrendo… – prosseguiu o Profeta, entre um e outro gole. – Mas a morte sempre vem, seo detetive. Ninguém sai vivo daqui. A noite dessa praia morre quando abrem um novo bar, por mais estranho que pareça. A noite morre quando esses boyzinhos vêm desfilar suas grifes por aqui, quando as barraquinhas na rua vendem bebida aos menores, quando os próprios garçons fornecem cocaína aos clientes e os taxistas e donos de motéis fazem vista grossa pros turistas e suas menininhas de doze anos.
Ratoeira escutava, seus olhos nos olhos vermelhos do Profeta.
– A noite morre toda vez que alguém é assaltado na esquina escura, quando um carro é roubado, quando brigam os garotões valentes de academia. A noite morre quando a mãe se exaspera ao ouvir o choro do bebê que não consegue dormir por causa do som alto do bar vizinho. A noite morre nas músicas dos carros, nas churrascarias que trazem gente de bairros distantes e que não entende a brisa da praia. A noite morre porque esse é o destino de todos. E a culpa não é de ninguém. Por isso não adianta o senhor procurar o culpado.
– O que fazer então?
– Os dias estranhos nos alcançaram, seo detetive. Seguiram nosso rastro e destruíram nossas alegrias mais simples. Nada a fazer.
– Tem de haver um assassino.
– A Praia de Iracema é de todos… – O Profeta sorriu tristemente, olhando o mar pela janela do bar: – Todos têm direito a uma cota de seu linchamento.
– E você, não tem pena dela? Ou das vítimas?
– Lamento pelos filhos da praia, que tentam perpetuar o que já é passado. Esses amam a noite e morrem com ela. Muitos nem nasceram aqui, mas são feitos da mesma maresia. É ruim se apegar demais ao que vai morrer. Koi-guera.
Ratoeira escutou com atenção. Dessa vez as palavras do Profeta, por mais loucas que fossem, pareciam ter alguma coerência. Ou será que sempre tiveram e ninguém nunca percebera?
– Quem será o próximo?
– O senhor ainda não desconfia?
– A letra E é de Eládio?
– O que o senhor acha?
– Faria sentido. O assassino matou o sexo, a diversão, a droga e a música. Não falta mais nada. Matar quem quer desmascará-lo seria o último passo. O grand finale.
O Profeta escutava, sério.
– Quem matou a cantora foi um homem, eu sei que foi, o mesmo que esteve com ela depois do show, bebendo no bar. Se vários foram os assassinos, então eles estão obedecendo à sequência “noite” nas mortes. Ele ou eles trabalham pra quem?
– O senhor não entende. Quem matou os quatro foram os mesmos que matam a Praia de Iracema, a cada noite, a cada violência. E eles não têm consciência disso, matam por ignorância. Pensando bem, talvez seja melhor acabar de vez com sua agonia. Matar antes que ela morra. Matar por amor – acrescentou o Profeta, bebendo o resto da cachaça e levantando-se da mesa.
– O que vai acontecer quando morrer a letra E?
– Cumpre-se a profecia.
– Como assim?
– Pensei que o senhor já tivesse entendido… É a parte mais óbvia da história, seo detetive.
Sempre que pensava na profecia, Ratoeira sentia-se meio ridículo. Mas já não podia evitar.
– A noite morre… – repetiu o Profeta, saindo em direção à porta. – Nada lhe ocorre?
Enquanto pensava nas palavras do Profeta, Ratoeira puxou a carteira para pagar a conta. Foi quando percebeu que o copo de cachaça do Profeta continuava cheio, do jeito que chegara. Mas ele não havia bebido tudo?
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Eládio Ratoeira entrou em casa, foi direto ao quarto e deitou-se, os olhos pesando de tanto sono. Precisava de uma noite bem dormida.
Mas… algo estranho estava acontecendo…
Acendeu o abajur e viu Rian, deitado na cama, olhando para ele. Então percebeu que Rian na verdade era uma gata. E estava parindo, exatamente naquele momento, estava tendo gatinhos em sua cama, vários gatinhos saindo sem parar, vários, muitos…
Ratoeira abriu os olhos. A luz do quarto estava acesa. Passou a mão no rosto suado, compreendendo que sonhara. Se as coisas continuassem daquele jeito terminaria precisando de um tratamento. No pôquer do mês anterior vira uma carta com a figura da morte, um esqueleto montado num cavalo, a letra T, que loucura. Terminou jogando as cartas na mesa, indignado com o que pensava ser uma brincadeira idiota dos amigos. Teve que pedir para sair, tão abalado que ficou com a visão da carta. Depois viu o copo cheio de cachaça do Profeta quando, na verdade, vira-o bebendo tudo bem à sua frente. E agora tinha pesadelo com uma gata parindo em sua própria cama.
Tomou um banho frio e depois pegou um pedaço de pizza na geladeira. Comeu sem esquentar. A tevê exibia o clipe da Intocáveis Putz Band tocando o “Manifesto das bem-aventuranças”, todos vestidos feito monges, capuzes, o clima sombrio… Ratoeira desligou, irritado. Aquelas mortes estavam inspirando até mesmo as bandas da cidade.
Olhou para Rian, dormindo no sofá. Estaria sentindo falta da antiga dona? Lembrou do sonho, a gata parindo. O que podia significar? Parto… nascimento… algo importante que virá… Mas o quê? Quando?
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“No dia 28 de dezembro completam-se nove meses da primeira morte.”
Eládio Ratoeira olhou para a frase que escrevera, pensando em quanto aquilo era estranho. Deixaria um depoimento escrito a respeito de tudo que sabia sobre as mortes, caso algo viesse a acontecer com ele. Na carta, admitia que podia muito bem estar fantasiando mas não podia desprezar o simbolismo de que falava o Profeta.
Podia muito bem dar o caso de dona Iza por encerrado: os legistas finalmente admitiram que havia sim vestígios de fumaça nos pulmões da vítima e, portanto, ela morrera asfixiada, fora um acidente. Mas isso lhe parecera algum tipo de armação, talvez os legistas realmente não tivessem descoberto a causa da morte. E como se tratava de gente pobre e não havia nenhum interesse maior no caso, inventaram tal conclusão.
As outras mortes continuavam sem culpados. A polícia concluíra que o garçom realmente se afogara. Quanto a seo Neném, nenhuma pista sobre a tal loira de preto. Nem sobre o assassino da cantora.
Mas as estranhas mortes viraram assunto indispensável, e frequentavam as mesas da Praia de Iracema todo tipo de suposições, desde as que acusavam ser tudo obra para desviar a atenção das eleições às que denunciavam maquiavélicos planos de empresários dispostos a substituir os bares por hotéis de luxo.
E havia os que reiteravam o que dizia o Profeta: faltava apenas uma morte para que a profecia se cumprisse e a noite da Praia de Iracema morresse de vez. Por isso era preciso aproveitar o que ainda restava, as noites estavam no fim. Bandas compunham músicas sobre as mortes. Nas mesas, os poetas vendiam cordéis de terror. Nas ruas, as camisetas circulavam com os dizeres “Esta pode ser a última noite. Aproveite. Comigo.” Bares pegavam carona na onda e faziam promoções. “ApocaLIP-se!” – assim convocava seus clientes o Lip Bar. Alguns mais supersticiosos vendiam barato seus pontos para evitar prejuízo maior: se não haverá noite, quem irá aos bares?
A noite, porém, ainda estava viva. E naquele 28 de dezembro, exatos nove meses após a morte de seo Neném, Ellen Star faria na Boate Circus a sexta apresentação de seu macabro espetáculo transformista “Mate-me que eu já te matei”, que tratava exatamente de todas aquelas mortes. E era lá que Eládio Ratoeira estaria.
“Nove meses que tudo começou. Sinto que hoje o mistério será decifrado. Tenho que estar lá. Se estou fantasiando, nada acontecerá, e os crimes seguirão sem solução. Mas se estou certo, então alguém morrerá. E talvez eu descubra quem é o assassino.”
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Era quase meia-noite quando Eládio Ratoeira chegou à boate Circus e sentou-se numa mesa mais ao fundo. Pediu uma cachaça e foi ao banheiro. Aproveitou para observar o ambiente, balcão, cozinha, corredores. A boate não era grande, cabiam ali umas vinte mesas. No canto havia um pequeno palco. Em caso de confusão, a porta principal seria estreita demais para evacuação rápida.
Todas as mesas estavam cheias quando as luzes se apagaram.
– Estão todos aí? – uma voz cavernosa ecoou pela boate. – O espetáculo vai começar.
A cortina se abriu para o primeiro ato. Uma voz feminina cantando ao som de um piano. Você me olha desse jeito… Pensa que eu não sei que você quer me comprar… O cenário de um quarto de motel. Um homem deitado na cama. Uma mulher loira num vestido negro com uma generosa fenda lateral, exibindo suas belas pernas. Mas eu não estou à venda, meu bem… A mulher caminhando devagar até a cama. Ratoeira ajeitou-se na cadeira, impressionado com a beleza da atriz. O que está à venda é seu sonho de ter o que você pode pagar…
Ellen Star foi a loira amante do dono do motel que morria de ataque cardíaco durante um orgasmo. Depois, foi o garçom que se encontrou no píer com o amante de sua mulher, que o empurrou ao mar. Ratoeira demorou a acreditar que Ellen também era o ator que interpretava o garçom. Como alguém podia ser tão convincente como mulher e também como homem?
Em todas as cenas Ellen dublava músicas especialmente escolhidas. Na terceira, ela era um garoto que tentou roubar dinheiro do barraco da cigarreira e causou o incêndio que a vitimou.
– Ellen é ela ou ele? – perguntou Ratoeira ao garçom.
– É um mistério. Mais uma cachaça?
A cena da cantora começou com Ellen Star dublando “Little girl blue”, um blues muito triste na voz de Janis Joplin, e Ratoeira pôde observar como as pessoas estavam bastante absortas no espetáculo, algumas visivelmente emocionadas. Havia no ar um clima de comoção, mas também de suspense. No momento em que a cantora chegava em casa radiante de felicidade por ter feito o melhor show de sua vida, Ratoeira escutou um miado. Procurou no palco, mas não viu gato algum. Então escutou novamente, dessa vez mais forte, e viu as cabeças se virando, todos procurando saber de onde vinha o som.
Vinha do lado da entrada. Ratoeira virou-se, e na penumbra percebeu um homem em pé, encostado na parede, de frente para o palco, vestido num sobretudo preto. Olhando melhor, percebeu que seu rosto estava pintado, lembrando o de um gato. Faria parte do show? No palco, a cantora rasgava com um disco de vinil a própria garganta, morrendo feliz e realizada. Quando Ratoeira olhou novamente, o homem havia sumido.
Ratoeira coçou a nuca, cada vez mais nervoso. Algo o inquietava. Havia algum mau presságio no ar, ele podia senti-lo.
A quinta cena começara e Ellen Star representava uma travesti batendo seu ponto na esquina, sob a luz fraca de um poste. Saia branca curtíssima, meias pretas, salto alto, o cabelo ruivo chanel revelando o pescoço fino. Os olhos sombreados e os lábios vermelhos. Os carros passavam e ela, insinuante, fazia trejeitos e jogava piadinhas aos motoristas. Tocava um envolvente bolero chamado “Lupiscínica”, de onde vinha a frase-título do espetáculo.
Vamos adiar essa briga, amor…
De repente, um automóvel parou mais à frente. Ellen sorriu. A luz traseira acendeu-se e o carro voltou de ré. Ellen ajeitou a saia e assumiu posição de espera.
Na madrugada, sonolento, de bolero em bolero…
O carro parou ao lado e o vidro fumê baixou, surgindo os rostos de uma garota e de um garoto. A travesti aproximou-se pelo lado da garota, debruçou-se na janela e sorriu, os seios como se numa bandeja.
A tua boca guarda segredos de mim…
– Boa noite, jovens.
– Oi – respondeu a garota.
– Ontem vocês passaram por aqui, não passaram?
– Você é boa observadora.
– Sou boa também em outras coisas…
E hoje sinto ciúmes até da tua falta…
– Você é homem ou mulher?
– Sou o que você e ele quiserem, meu bem.
– Quanto custa desvendar o mistério?
– Pra vocês faço por cem.
Mas não vou mais matar ninguém por tua causa…
– Você é muito bonita.
– E vocês são uma gracinha.
– Bonito, teu peito…
– Quer pegar? – perguntou a travesti, levando a mão da garota até seu seio. – Concorrência desumana, né, querida?
– Outra noite a gente vem com mais calma – disse o garoto.
– Mas não demora, viu? Posso não estar aqui.
– Vai mudar de ponto?
– Eu sou a noite, meu bem. A noite sempre chega ao fim.
Mate-me que eu já te matei…
Um homem. Vestido num sobretudo preto. Rosto pintado como um gato. Surgiu de algum lugar da escuridão da rua. Tão silencioso que de repente ele já estava lá, na calçada. Aproximou-se.
No momento em que a travesti virou-se, ele desferiu-lhe um violento soco no rosto. Ela caiu no chão, sobre o meio-fio, quase no asfalto.
Assustada, Ellen passou a mão no canto da boca e percebeu que sangrava. O homem continuava em pé. O automóvel arrancara. E o bolero havia terminado. Ele meteu a mão sob a roupa e puxou um revólver.
Ratoeira sentiu o coração gelar. O único som era o dos automóveis passando pela avenida. Ratoeira viu Ellen Star levantar-se e encarar com altivez o sujeito à sua frente. Foi ela quem gritou, a mão sobre os lábios feridos:
– Você tinha que estragar tudo, né?
Quando o homem empunhou a arma e apontou para ela, Ratoeira não ousou piscar os olhos. Estava petrificado, a respiração presa, toda a sua atenção concentrada nos dois, a travesti que encarava o homem e o homem que atiraria na travesti.
O tempo parecia ter parado. Ratoeira não mexia um único músculo. Alguma coisa iria acontecer no próximo instante e ele não fazia ideia do que seria.
Um pensamento lhe veio rápido à mente: e aqueles carros passando, aqueles prédios todos ao redor? Ninguém via nada? Ninguém para gritar, impedir um crime? Aquelas janelas todas, centenas, milhares de janelas… A noite da cidade tinha tantos olhos e, no entanto, ninguém via nada…
Ellen Star moveu-se rapidamente e de dentro da bolsa sacou um revólver, apontando-o com as duas mãos para o homem. A arma disparou. Um grande estrondo, o eco permanecendo no ar por longos segundos, a fumaça subindo do cano…
Ratoeira viu Ellen afastar-se para trás, cambalear sobre os saltos altos, perder o equilíbrio e chocar-se contra o poste feito um triste boneco desengonçado. Depois escorregou para o chão e ficou lá, inerte, enquanto os faróis seguiam indiferentes pela avenida. E as janelas nada viam.
O homem do sobretudo, ainda segurando o revólver, avançou. Ele agachou-se sobre o corpo de Ellen, passou a mão levemente por seu rosto e falou baixinho:
– Meu amor…
Então ergueu-se e saiu caminhando devagar pela calçada. E atravessou a avenida, num passo tranquilo, sem olhar para os lados. Um carro freou bruscamente para não atropelá-lo e quase provocou um acidente com outros carros. Na confusão, os passantes perceberam o corpo na calçada e se ajuntaram ao redor.
Eládio Ratoeira também foi para lá, abrindo caminho entre a multidão. Dirigiu-se até o corpo caído. Viu o sangue espalhado pela roupa, escorrendo para o chão. Suspendeu a cabeça de Ellen enquanto ela abria os olhos devagar. No meio de sua expressão serena surgiu um doce sorriso:
– Aquela cartomante me paga…
– Como? – indagou Ratoeira.
– Ela me garantiu que… ai…. eu morreria em Paris…
– Aguente mais um pouco, Ellen.
– É o fim, meu belo amigo. O fim das doces mentiras… das noites em que tentamos morrer…
– Não fale. O socorro está chegando.
– Você… ai, como dói… faz parte deste teatro ridículo?
– Ahnn… sim… – ele respondeu, sem saber o que dizia.
– Acho que minha participação termina aqui… Você gostou?
Ratoeira virou-se para as pessoas ao redor, elas e seus rostos impassíveis.
– Quem é ele, Ellen? Um cliente seu?
– Ele não tem culpa…
Ratoeira percebeu que ela respirava com cada vez mais dificuldade.
– Por que ele atirou em você?
– A profecia. Tem que ser cumprida.
Ratoeira desgrudou o cabelo ensanguentado da boca de Ellen e, olhando para aquele rosto bonito, lembrou-se do que ela dissera ao casal do carro: Eu sou a noite…
– O que vai acontecer agora?
– Acabou a peça, meu bem. As luzes se acendem.
Então ela fechou os olhos. E sua cabeça tombou para o lado no momento em que as luzes se acendiam. Ratoeira olhou para o corpo imóvel em seus braços, o belo corpo de Ellen. Percebeu que um seio estava de fora, um seio bonito. Olhou para as pernas. Lentamente estendeu o braço e tocou o sexo de Ellen, apalpando-o…
– Essa técnica eu não conhecia, Ratoeira.
Ele virou-se rápido, retirando a mão. Reconheceu o tenente Trindade, em pé, a viatura parada atrás. Pousou a cabeça de Ellen no chão e ficou de pé, a roupa encharcada de sangue.
Ratoeira olhou o relógio: uma da manhã. Foi então que percebeu que a claridade não vinha dos faróis de carro algum. Nem vinha dos prédios ao redor. Estava clara a noite da Praia de Iracema. Estranhamente clara.
Desumanamente clara, diria o outro.
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Ricardo Kelmer 1994 – blogdokelmer.com
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TRILHA SONORA DESTA HISTÓRIA
Flor púrpura (Ricardo Kelmer e Joaquim Ernesto) – Um tango para cortar os pulsos da angústia
Beira-mar (Ednardo) – E um gosto de você que foi ficando… e a noite enfim findando… igual a todas as demais
Riders on the storm (The Doors) – Pegue uma carona na tempestade desse som
Quanto você paga (Ricardo Kelmer e Toinho Martan) – Você me olha desse jeito… Pensa que eu não sei que você quer me comprar?
Little girl blue (R. Rodgers e L. Hart) – Querida, você não vê que está na hora?
Lupiscínica (Augusto Pontes e Petrúcio Maia) – Bolerão maravilhoso, na inesquecível interpretação de Teti e Ednardo
The end (The Doors) – É o fim, meu belo amigo. O fim das doces mentiras… das noites em que tentamos morrer…
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Este conto integra o livro
Guia de Sobrevivência para o Fim dos Tempos
O que fazer quando de repente o inexplicável invade nossa realidade e velhas verdades se tornam inúteis? Para onde ir quando o mundo acaba? Nos nove contos que formam este livro, onde o mistério e o sobrenatural estão sempre presentes, as pessoas são surpreendidas por acontecimentos que abalam sua compreensão da realidade e de si mesmas e deflagram crises tão intensas que viram uma questão de sobrevivência. Um livro sobre apocalipses coletivos e pessoais. > Mais
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– Acesso aos Arquivos Secretos
– Descontos, promoções e sorteios exclusivos
Basta enviar e-mail pra rkelmer@gmail.com com seu nome e cidade e dizendo como conheceu o Blog do Kelmer (saiba mais)
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01- Massa. Jose Leite Netto, Fortaleza-CE – mai2015
02- Muito bom,li só o trecho mas já gostei . Vou ler tudo qndo meu computador sarar. Samuel Araujo, Vilhena-RO – mai2015
03- Eita! crimes passionais sempre são comoventes, afinal são motivados (na maioria das vezes) pelo amor que adoeceu… E como há amores doentes perambulando pelas curvas da nossa velha Iracema! Valeu pela indicação de leitura amigo! Lílian Martins, Fortaleza-CE – mai2015