Quem tem medo do desejo feminino? (1)

04mai2010

Você consegue imaginar Nossa Senhora tendo desejos sexuais? Alguma vez na vida você a imaginou fodendo?

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Na Idade Média o desejo sexual feminino foi demonizado pela Igreja Católica, servindo de pretexto para levar muita mulher ao fogo da Santa Inquisição. Coisa de homem que morre de medo de mulher. Coisa de uma religião altamente repressora da natureza, inclusive a natureza humana. Coisa de uma sociedade comandada por homens que não conseguem lidar bem com o princípio feminino em si próprios e, por consequência, ao redor deles.

Mas a Igreja Católica não está sozinha nessa perseguição ao tesão feminino. Em todas as culturas patriarcalistas o feminino é reprimido e o tesão das mulheres então, nem se fala. Essas sociedades fazem de conta que suas mulheres não sentem desejo, não pensam em sexo, e assim tratam de convencê-las de que mulher deve apenas casar, ser uma esposa prendada e fiel, cuidar do marido e dos filhos… E isso não se discute, tá, minha senhora, é assim porque Deus quer, e agora reze dois pai-nossos e três ave-marias pra senhora tirar esses pensamentos malignos da cabeça.

O mais triste é que a maioria das mulheres dessas tais sociedades, ao menos no nível da consciência, realmente se convence de que seu desejo sexual é algo errado. E como não se discute o assunto, pronto, está criado o tabu, um bicho que se alimenta do silêncio. E se o desejo feminino é um tabu, o prazer feminino é um tabu ainda maior…

– Senhores do Conselho. Não podemos permitir que esse assunto seja sequer comentado. Perderemos as rédeas de nossos casamentos se as mulheres descobrirem que podem ter prazer.

– Pior. Perderemos as rédeas do mundo!

– E vamo levar chifre pra caramba…

Esse último comentário aí foi do faxineiro, que estava varrendo o corredor e escutou o papo. Foi despedido no mesmo dia.

Se você é muito jovem, leitorinha querida, talvez se surpreenda, mas até algumas décadas atrás ainda discutíamos seriamente sobre se existia ou não orgasmo feminino. Eu juro!

bendita sois vós

Como todos os arquétipos, o arquétipo feminino possui variados aspectos. Em nossa cultura ocidental, que ainda é patriarcal-cristã, o aspecto mais valorizado do feminino sempre foi o maternal, aquele ligado à reprodução e ao cuidado com a prole. Durante séculos o maior ícone feminino foi Maria, a mãe de Jesus. Você consegue imaginar Nossa Senhora tendo desejos sexuais? Alguma vez na vida você a imaginou fodendo? Certamente não. Porque Nossa Senhora é um símbolo que evoca apenas aspectos do feminino ligados não somente a maternidade mas também a pureza e castidade, além de mansidão e passividade. Nossa Senhora é uma imagem inteiramente assexuada.

Se maternidade é apenas um aspecto do arquétipo feminino, onde estão outros aspectos como força, sabedoria e desejo sexual? Afinal sabemos que uma mulher também é e sempre foi capaz de ser forte, sábia e de sentir tesão. Esses outros aspectos foram reprimidos, tão reprimidos que só lhes restou morar no inconsciente das mulheres. E mais: a Igreja, estrategicamente, as projetou em imagens negativas, principalmente na da prostituta, o que fez dela o maior símbolo da sexualidade feminina, ela e toda a negatividade automaticamente associada. Estava formada a dicotomia: a maternidade, a castidade e a mansidão de Nossa Senhora como bom exemplo, e a força, a independência e a liberdade sexual da puta como exemplo contrário, a ser jamais seguido.

Pra reforçar a repressão sobre o feminino sexualmente livre, a Igreja ainda transformou a Madalena dos evangelhos numa puta pecadora – mas uma puta que se arrepende, aaah bom, e que por isso tem seus pecados perdoados, ooohhh, e de bandida vira mocinha, louvado seja Deus!!! Bastante didático, admitamos. E que funcionou durante muito tempo. Porém…

dominando a natureza selvagem

Hoje, com a mudança dos valores, a emancipação das mulheres e a Igreja e seus ditames enfraquecidos, esses outros aspectos do arquétipo feminino se manifestam mais facilmente. As mulheres atuais podem exercer sua sexualidade de forma bem mais livre, sem medo de serem vistas como putas, pois aspectos como força, independência e desejo sexual não são mais privilégios das prostitutas. As mulheres podem agora ser fortes, ativas e senhoras de seus desejos livremente, e podem ser tudo isso ao mesmo tempo que são doces e maternais. A dicotomia foi finalmente quebrada, que bom.

A sexualidade livre e a independência são aspectos que ligam a mulher à sua natureza selvagem, ao seu lado animal, naturalmente livre, forte e sábio, conectado aos ciclos de crescimento. É o arquétipo do feminino selvagem, que durante séculos esteve reprimido no inconsciente. É por isso que os homens medrosos, o cristianismo e a sociedade patriarcal temem e reprimem o tesão feminino, porque sabem que não se domestica facilmente o que é selvagem. Uma mulher que tem consciência de sua natureza selvagem – como convencê-la a se aprisionar?

Para manter o domínio, a sociedade teve que fazer as mulheres esquecerem de sua natureza selvagem. E ainda hoje faz isso pois o medo da mulher independente continua existindo entre os homens – e até entre muitas mulheres. Mas mesmo presa e amaldiçoada, a mulher selvagem nunca morreu. O feminino selvagem está vivo, como sempre esteve. A diferença agora é que seus valores deixam o escuro do inconsciente das mulheres e aos poucos são incorporados pela consciência, tornando-as mulheres mais livres e independentes, mais fortes e ligadas à sabedoria natural. O mundo será mais belo e mais justo quanto mais o arquétipo do feminino selvagem for reativado em nossas mulheres, quanto mais elas perderem o medo de correr com os lobos.

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Ricardo Kelmer 2008 – blogdokelmer.com

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O texto a seguir foi publicado em 04.06.10, em minha coluna Kelméricas, no O Povo Online.
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O DESEJO FEMININO APRONTOU DE NOVO
Ricardo Kelmer

Esta semana usarei o espaço da Kelméricas pra me desculpar. Tenho um grande respeito por meus leitores e sei que aqueles que acompanham de perto meu trabalho acessam O POVO Online às sextas-feiras pra ler a coluna atualizada, bem fresquinha. Portanto, você que tá aí me lendo, desculpa pela coluna não ter sido atualizada semana passada. Vou explicar.

O texto não publicado se chama “Quem tem medo do desejo feminino?” e fala sobre a histórica repressão à sexualidade feminina. Ele foi enviado ao O Povo On Line mas não foi publicado. A resposta oficial do portal foi:

“Todas as colunas são lidas e publicadas apenas se estivem de acordo com a linha editorial do grupo. A coluna Kelméricas que deveria ter ido ao ar sexta-feira passada no O POVO Online continha expressões ofensivas aos devotos de Maria e palavrões e, portanto, optamos em não publicar em respeito aos leitores que professam o catolicismo.”

Foi-me sugerido que eu reescrevesse o texto. Decidi não reescrever. Agradeci e expliquei que não posso pautar meu trabalho pelo receio de que algumas pessoas se sintam ofendidas. Pra mim, escrever pensando nisso é um tipo de contorcionismo ideológico mais difícil que lamber o próprio cotovelo. E olhe que eu tenho a língua grande.

Sou leitor do jornal O Povo há 37 anos e desde 1993 escrevo em suas páginas. Do O Povo Online sou colunista desde 2004, com quase 300 textos publicados. Somando tudo, são muitos anos de uma boa relação de parceria que, mesmo sem envolver dinheiro, me traz muita satisfação e me mantém ligado às minhas raízes cearenses. E tenho um orgulho danado por todos os leitores que conquistei ao longo de todos esses anos, cada um deles. Sim, inclusive os religiosos raivosos que adoram me insultar, afinal eles também vêm aqui me dar a honra de sua leitura.

Mas e o tal texto? Ele tá em meu blog, disponível pra ser lido, avaliado e criticado.

O jornal tem suas razões, eu sei. E eu tenho as minhas. Mas entre as duas razões, estará sempre o leitor, a nossa razão maior.

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MAIS SOBRE SEXUALIDADE FEMININA

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Me estupra, meu amor – Fantasiar ser estuprada é uma coisa – querer ser estuprada é outra coisa totalmente diferente

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MAIS SOBRE LIBERDADE E O FEMININO SELVAGEM

AMulherSelvagem-11aA mulher selvagem – Ela anda enjaulada, é verdade. Mas continua viva na alma das mulheres

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Medo de mulher – A mulher é um imenso mistério, que o homem jamais alcançará

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Os apuros do homem feminista – Minha busca por relações igualitárias foi dificultada também porque muitas mulheres, mesmo oprimidas, preferiam relações baseadas no velho modelo machista

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LIVROS

Vocês Terráqueas – Seduções e perdições do feminino – Livro de contos e crônicas sobre a mulher

Mulheres que correm com os lobos – Mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem (Clarissa Pinkola Estés –  Editora Rocco, 1994)

A prostituta sagrada – A face eterna do feminino (Nancy Qualls-Corbert – Editora Paulus, 1990)

As brumas de Avalon (Marion Zimmer Bradley – Editora Imago, 1979)

O feminino e o sagrado – Mulheres na jornada do herói (Beatriz Del Picchia e Cristina Balieiro – Editora Ágora, 2010) – É ainda mais interessante ver o relato das mulheres pois elas sempre foram, mais que os homens, historicamente reprimidas na busca pela essência mais legítima de suas vidas

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Comentarios01 COMENTÁRIOS


5 Responses to Quem tem medo do desejo feminino? (1)

  1. Márcia disse:

    Hoje na verdade podemos assumir o desejo de
    olhar o homem chamado Jesus dentro da sua
    existencialidade e sensualidade envolto em um
    pano amarrado na cruz .
    Quantas Madalenas no diriam Kelmer ?

    Poiszé ,,, rss

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  2. Gledson Shiva disse:

    “PREGADO”?!…

    KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK!!!

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  3. Márcia disse:

    Na verdade, me parece “PRESO” não é Gledson ?

    eita !!!

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  4. kIKA disse:

    Na verdade, o desejo feminino precisou ser sublimado para a sobrevivencia dos filhos e da familia. Quem teve filhos pequenos sabe que não dá para uhuuuuuu, vou com aquele lá, agora! Mas qdoa mulher é livre, filhos criados ou não os tem, o desejo aflora com mto mais liberdade. O texto é mto bom.

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