21abr2009
UM MITO A 300 KM POR HORA
O arquétipo do herói na trajetória de Ayrton Senna.
UM MITO A 300 KM POR HORA
O arquétipo do herói na trajetória de Ayrton Senna.
.
Há os heróis que morrem anônimos, sim, e são a maioria. Mas há os que atingem celebridade. A humanidade precisa desses para conhecer seus exemplos e por eles se guiar. São modelos de vida. A história pessoal do piloto brasileiro Ayrton Senna é mais uma reedição de um antiquíssimo modelo arquetípico, o mito da jornada do herói. As histórias variam mas a essência é a mesma: o herói é alguém que larga a segurança de seu mundo cotidiano e parte em busca de algo difícil e precioso, enfrentando incertezas, sofrimentos, perigos e arriscando a própria vida para, no fim, retornar transformado e vitorioso, para guiar seu povo, casar-se ou substituir um velho rei injusto ou doente, e mesmo a sua morte tem o poder de levar benfeitorias à sua gente.
A infância de Ayrton Senna foi tranquila, mas desde cedo uma inquietação especial lhe tomava o espírito e se fazia clara em seus olhos. Nas redações do primário já se via como um piloto. Era o sonho de sua vida tomando forma. A mãe conta que de tão veloz, o menino era atrapalhado. Velocidade: era essa a delícia de sua vida. Delícia e desafio.
Foi campeão desde o começo da carreira, no kart. Subiu cada degrau armado da convicção que só possui quem enfrenta seu próprio destino de peito aberto. Abandonou família, namoradas, amigos, o seu país, e foi viver sozinho na Europa, preparado para as adversidades que viriam. Ele só queria uma oportunidade para provar que podia realizar seu grande sonho: ser o maior piloto de todos os tempos. Sim, sua família tinha condições de ajudá-lo, mas a solidão da alma não tem preço, e o herói que segue seu destino precisa cruzar o deserto. De fato, no Brasil ele certamente teria uma vida muito mais fácil. Na Europa ele não era ninguém, aliás, era um brasileiro, o que às vezes é ainda pior. Ayrton, porém, suportou tudo em nome de seu sonho. Bastava só uma oportunidade. E ela surgiu. E ele não a largou mais.
Introspectivo, místico e passional, Ayrton fazia das corridas metáforas e aprendizados para sua vida. Contra muitos perigos ele precisou lutar: sua própria obstinação excessiva que muitas vezes atrapalhava, a inveja, a mesquinhez e a rivalidade explosiva do mundo da Fórmula Um, arquirrivais talentosos… Lutou também contra as incessantes investidas da mídia que buscavam tirar dele a privacidade que tanto prezava. Mas ele conseguiu. A bandeira que Ayrton fazia tremular nas manhãs de domingo devolvia ao seu povo o orgulho perdido e a esperança de que, sim, da mesma forma que aquele abusado Silva de capacete verde-amarelo, outros Silvas também podiam vencer. Ayrton Senna da Silva tornou-se o maior piloto de todos os tempos. Não somente seu país, mas seus colegas de profissão e o planeta inteiro reconhecem seu valor e festejam seus feitos inesquecíveis.
Muito antes de morrer, naquela fatídica curva para a esquerda do circuito italiano de Ímola, já fixara morada definitiva em seu olhar uma expressão incomum, uma angústia indefinida, uma dor da alma. Ayrton parecia sempre sozinho. Por quê? Ninguém sabia responder, e ele não se manifestava a respeito. Seria alguma mulher? Algum problema na família? Talvez nada disso. Talvez ele já intuísse sobre o que o aguardava. Talvez vivesse um dilema: em que exatamente a sua vida, suas vitórias e seu dinheiro estariam contribuindo positivamente para a humanidade? Certamente ele pensou nisso algumas vezes, pois antes daquele trágico domingo de 1994 já havia manifestado à sua irmã Viviane seu outro sonho: usar o dinheiro e o prestígio que ganhara para mudar o destino das crianças pobres do Brasil. Ele já pensava que quando parasse de correr poderia se dedicar a esse novo desafio, ainda maior que o primeiro. O sonho do campeão foi relizado, e hoje o Instituto Ayrton Senna é uma referência mundial no trato com a infância carente. Que maravilha seria se outros campeões fizessem o mesmo!
A trajetória da vida de Ayrton possui o tal esqueleto que sustenta o mito da jornada do herói. Há outros detalhes significativos em sua vida, mas o mais importante é que ele foi um homem que vislumbrou seu destino, apostou todas as fichas em seus sonhos, encarou os perigos, lutou contra todas as dificuldades e por fim atingiu a sua máxima realização pessoal, que era ser o piloto maior, o insuperável. Enfrentou terríveis monstros internos, destronou outros reis das pistas, envolveu-se com princesas e plebeias, e sua morte, a princesa maior, ironicamente, apressou a realização de seu outro sonho, que era cuidar das crianças de seu país. Nesse ponto sua história deixa o âmbito pessoal, as glórias esportivas e se mistura ao universo do social. Pronto, é o mito que se completa: o herói morre, mas sua morte traz benefícios ao seu povo.
É inquietante pensar assim, mas tudo soa como uma… predestinação. Quando lembramos que Ayrton era um dos que mais lutavam pela segurança dos pilotos, que ele morreu numa cidade de nome Ímola, no dia do trabalhador e ao vivo para o mundo inteiro, tudo isso reveste sua morte de um significado mitológico de sacrifício, uma autoimolação. Na véspera de seu acidente, o piloto austríaco Roland Ratzenberger falecera durante os treinos, e Ayrton, bastante abalado, cogitou não participar da prova. Em seu carro foi encontrada uma bandeira austríaca que Ayrton, caso chegasse ao pódio, empunharia em homenagem ao colega. Após o acidente de Ayrton, medidas severas de segurança foram enfim tomadas, e a partir daí não haveria mais nenhum acidente fatal na Fórmula 1. Isso faz com que a imagem de Ayrton, morrendo tragicamente no chão daquele autódromo, vista-se ainda mais de um manto simbólico, como se sua morte tivesse a força de deter as futuras mortes que certamente continuariam acontecendo caso não fossem tomadas as medidas de segurança pelas quais ele tanto lutava. Infelizmente ele não pôde usufruí-las.
Ayrton Senna é um ídolo nacional e mundial, sim. Mas é muito mais que isso: ele é um herói. Primeiro porque aceitou, lutou e realizou seu destino, sua lenda pessoal, sua missão − coisa que poucos têm a coragem de fazer. E é um herói também porque transformou e continua transformando, para melhor, a vida de milhares de crianças neste país tão grande quanto injusto, oferecendo-lhes algo precioso que elas certamente jamais teriam, algo que ele teve: uma oportunidade. Para essas crianças, jamais haverá um herói maior.
.
Ricardo Kelmer 2000 – blogdokelmer.com
.
LEIA NESTE BLOG
O herói e a princesa – O destino estava marcado em sua alma, sim, mas ele sabia que teria de suar e sangrar bastante para realizá-lo
Instituto Ayrton Senna – Impulsionados pelo desejo do tricampeão de Fórmula 1 Ayrton Senna, sua missão é levar educação de qualidade para as redes públicas de ensino no Brasil. Atua em parceria com gestores públicos, educadores, pesquisadores e outras organizações para construir soluções concretas para os problemas da educação básica.
.
DICA DE LIVRO
Matrix e o Despertar do Herói – A jornada mítica de autorrealização em Matrix e em nossas vidas
Usando a mitologia e a psicologia do inconsciente numa linguagem descontraída, Kelmer nos revela a estrutura mitológica do enredo do filme Matrix, mostrando-o como uma reedição moderna do antigo mito da jornada do herói, e o compara ao processo individual de autorrealização, do qual fazem parte as crises do despertar, o autoconhecer-se, os conflitos internos, as autossabotagens, a experiência do amor, a morte e o renascer.
.
.
‒ Acesso aos Arquivos Secretos
‒ Descontos, promoções e sorteios exclusivos
Basta enviar e-mail pra rkelmer@gmail.com com seu nome e cidade e dizendo como conheceu o Blog do Kelmer (saiba mais)
.
.
.
01- Bela Homenagem. Marcos Felix, Ceilândia-DF – mai2016
02- Amei. Tânia Mary, João Pessoa-PB – mai2016
03- Adorei o conto! Gratidão! Felipe Silva, Salvador-BA – mai2016
04- Ricardo, me ensine a escrever igual a você: bem humorado, irreverente, sem agressividades e fluente? Qdo eu crescer quero ser como você!!!!! Dalton Roque, Curitiba-PR – mai2016
.
.
.
Parabéns pelo texto, Kelmer! Essa coragem pra encarar um desafio, renúncias pra seguir um sonho… com essa leitura eu consegui identificar o arquétipo do herói em uma certa pessoa que conheço, só que esse cara não vai precisar nos deixar pra contribuir com a humanidade porque ele faz a diferença aqui, com sua liberdade pulsante iluminando a todos e escrevendo textos como esse. Bjsss
CurtirCurtir