31mar2010
Cauby, poderoso, tem o gesto exato pra cada momento, seja pra pedir o solo do teclado, seja pra tirar o lencinho do bolso e enxugar a testa
CAUBY, EU SOU SEU ÍDOLO
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Cauby Peixoto faz show na Boate Oásis. E eu, que nos meus 34 anos nunca vira o Cauby de perto, pensei: É agora ou nunca mais. Sem querer botar mau agouro pra cima de ninguém, será que teria outra chance de assistir ao show desse monstro da música brasileira? Monstro no melhor sentido, claro, que ele não se ofenda. Até porque sua plástica continua resistindo bravamente ao tempo.
But Cauby is Cauby. E ele adentra o palco elegantérrimo num impecável conjunto amarelo-sóbrio, calça vincada e jaleco de zíper, nem um amassadinho sequer, a banda toda a caráter, uau. Peço uma vodca e me surpreendo emocionado. O homem está ali no palco, a cinco metros de mim, “sentimental eu sou… eu sou demais…”, o imortal Cauby. Tomo um gole. Fabiana comenta sobre o cabelo dele, que nem mulher consegue cachos tão perfeitos… Inveja, Cauby, inveja dessa gente.
Cauby, poderoso, tem o gesto exato pra cada momento, seja pra pedir o solo do teclado, seja pra tirar o lencinho do bolso e enxugar a testa em pequenos pousos tipo almofadinha de pó. Os olhos puxados brilham sob a luz dos refletores e ele vive profundamente cada verso de El Dia que me Quieras… Comoção geral, aplausos, suspiros. Cauby ergue a mão esquerda e, sutilmente, põe dois dedos a agradecer, dois dedinhos, nem mais nem menos, gesto clássico. Ou seria uma bênção? Eu, por mim, tomo mais um gole. E reconheço abençoado: o homem conhece mesmo o reino dos refletores.
No meio do show, pausa pra deixar subir ao palco um fã mais exaltado. Surpresa: é um rapaz dos seus 20 anos, visivelmente emocionado. Cauby o abraça e recebe com classe a homenagem do admirador juvenil, ah, l’amour, l’amour… Depois diz à plateia como é gostoso ser reconhecido pelos jovens. Não duvido, não duvido. O rapaz, à beira do choro, quer falar. A plateia assiste enternecida. Cauby estica o microfone e ouvimos a voz nervosa do moço: “Cauby… eu sou seu… sempre fui seu… ídolo…” Heim? Eu sou seu ídolo? Foi isso mesmo que ouvi? Olhamo-nos sem acreditar, eu e Fabiana, rindo do absurdo da coisa. Eu sou seu ídolo é demais. Cauby certamente pensou: será que eu conserto essa frase? Prudentemente, deixou como estava.
“Veja só, que tolice nós dois brigarmos tanto assim…” Cauby apresenta o tecladista, diz que ele é seu grande maestro, a plateia aplaude. “Conceição… eu me lembro muito bem…” Cauby abre o jaleco, deixa aparecer a camisa preta, põe elegante a mão no bolso e homenageia Nat King Cole: “When i fall in love… it will be forever…” Depois imita admiravelmente Sarah Vaughan, como só ele pode fazer. Então puxa o banquinho, senta-se, deixa seu maestro introduzir uma canção de notas tristes e abala Paris em chamas: “Ne me quites pas… Ne me quites pas…” Lembro emocionado de Maysa.
O clímax vem no fim com Bastidores, presente de Chico Buarque, música que é a sua cara, encarnada e esculpida. Cauby solta sua voz vitaminada, desliza o olhar pela plateia, delicia-se com os homens lá pedindo bis, bêbados e febris a se rasgar por ele. Mas Cauby, o cruel, não concede bis algum. Desce rápido ao camarim onde o aguarda entrevista pra tevê.
Aproveito pra ir ao banheiro. Lá, na parede, encontro um cartaz do show com a foto de Cauby ao lado de outro que dizia “Temos bolinho de bacalhau”. Salvo Cauby daquela má companhia e levo o cartaz ao camarim, pra que meu fã pouse nele sua sagrada dedicatória. Mas que nada. Meia hora de espera e o empresário insensível explica que Cauby está moooorto de cansado, ontem fez show e amanhã fará outro. Aplico a cara de pau: “Mas seo Zé, nós viemos de Teresina porque perdemos o show lá… Mas seo Zé, peça ao menos pra ele autografar este cartaz…” Tsc, tsc, nada feito. Cauby está tão cansado que certamente desfaleceria com tamanho esforço. Apelo pro desespero: “Mas seo Zé, eu também já tive uma banda de rock e sei como é importante a relação do fã com o ídolo…” Foi tão boa que não convenceu.
Vamimbora, Fabiana, esqueçamos o artista e sua ingratidão que ele não merece nossa tristeza. Devíamos é tê-lo deixado no banheiro, ao lado dos bolinhos de bacalhau. Ao atravessar a rua, porém, eis que passa por nós, num carro… quem?, quem? Ele, o monstro, sagrado e extenuado, sendo levado ao seu hotel. Acenamos empolgados, um restinho de esperança de que ele nos veja e acene também, pelo menos isso…
E não é que o danado nos vê? E não é que acena? Uau! São só dois dedinhos, assim sutilmente, bem rapidinho, uma migalha de atenção. Ou seria uma bênção? Mas acena, é o que importa. E pronto, esquecemos a frustração, vibramos de alegria. Dormiremos felizes. Um dia direi em minhas memórias que naquela madrugada de setembro de 1998 Cauby Peixoto acenou pra mim. Pra mim. Seu ídolo. Uau.
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Ricardo Kelmer 1998 – blogdokelmer.com
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> Este texto integra o livro A Arte Zen de Tanger Caranguejos
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01- Adoro ler esta, Kelmer! Parabéns. Felipe Barroso, Fortaleza-CE – abr2005
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“Eu sou sua ídola!” Quase digo isso no dia que o vi todo pimpão na Bienal do Livro aqui em Fortal City. A amiga Lia já me esperando na porta e eu:”Deixa eu só ver ali se aquele rapaz de óculos de lentes esverdeadas é de verdade mesmo.” Mentira! Disse isso não (mas pensei).Só falei que ia dar um oi pra um amigo. O que não deixou de ser verdade, já que me sinto quase íntima do seo Ricardo de tanto que fuço os escritos dele. E fiquei toda nervosa também. Quem dera houvesse um cartaz pra eu levar pra casa.
“…Eu me lembro muito bem…”
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Tá explicado porque tem certos dias em que eu me sinto muito, como direi, fuçado. Pode fuçar que eu deixo, viu, Rosita?
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Estava lá com você e Fabiana! Essa noite tomamos bem mais que um calmante um excitante e um bocado de gim, mas lembro-me de tudo, do Cauby, da libélula frenética que subiu ao palco…lembro da recusa sumária de nos receber em seu camarim. Lembro também que depois de tudo isso ele recebeu, mesmo cansado, o noviço em seu repouso. Imagine o autógrafo que ele recebeu daquele fã!
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> É verdade, gente, Isabelle tava lá. Ela é testemunha presencial dos acontecimentos e não me deixa mentir!
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