O chamado da Mulher Selvagem (2)

Ricardo Kelmer 2009

Criei este espaço pra prosseguir com o tema da Mulher Selvagem, o arquétipo da mulher livre e conectada à sabedoria natural. A crônica A Mulher Selvagem é um dos meus textos mais conhecidos, reproduzidos e comentados, o que indica que ele toca em algo muito precioso nas mulheres, no bom sentido  –  e também nos homens que não temem o Feminino.


A Mulher Selvagem sempre surpreendendo…

Encontrei uma versão da crônica num blog português chamado O Sentido da Palavra. Até aí nada demais, esta crônica é mesmo bastante reproduzida por aí. A novidade é que havia algumas alterações no texto. Bem, isso eu também já vi em alguns textos meus – parece ser o tipo da coisa com que escritores precisam aprender a conviver nesses tempos de internet, onde seus textos originais podem se transformar à medida em que são copiados, repassados e reproduzidos pela rede.

Neste caso específico, o que me chamou a atenção é que as alterações no texto parece que foram feitas com o objetivo de tornar o texto mais compreensível no português de portugal. Achei ótimo, claro, é o tipo de coisa que muito me gratifica.

Separei alguns trechos pra você ver.

É um tipo raro e não tem habitat definido: vive em Catmandu, mora no prédio ao lado ou se mudou ontem para Barroquinha.

Ficou assim:

É um tipo raro e não tem habitat definido: vive em Praga, mora no prédio ao lado ou se mudou ontem para o Porto. E não deixou o endereço. É ela, a mulher selvagem.

Catmandu virou Praga. Tiraram a mulher selvagem da Índia e a levaram pra República Tcheca. E Barroquinha virou Porto. Nesse caso, perdeu-se o sentido original da idéia, que era a de uma cidade pequena, longe e escondida, algo assim como “ela se mudou pro cu do mundo”. Mas, convenhamos, ficou mais chique, agora a mulher selvagem toma vinho do porto.

Em quase tudo ela é uma mulher comum: pega metrô lotado, aproveita as promoções, bota o lixo para fora e tem dia que desiste de sair porque se acha um trapo. Porém em tudo que faz exala um frescor de liberdade. E também dá arrepios: você tem a impressão que viu uma loba na espreita. Você se assusta, olha de novo… e quem está ali é a mulher doce e simpática, ajeitando dengosa o cabelo, quase uma menininha. Mas por um segundo você viu a loba, viu sim.

Ficou assim:

Em quase tudo ela é uma mulher comum: vai de metrô cheio, aproveita as promoções, coloca o lixo fora de casa e tem dias que desiste de sair porque se acha um trapo. Porém em tudo que faz exala um frescor de liberdade. E também dá arrepios: tu tens a impressão que viste uma loba na espreita. Tu ficas assustado, olhas de novo… e quem está ali é a mulher doce e simpática, ajeitando dengosa o cabelo, quase uma menininha. Mas por um segundo tu viste a loba, viste sim.

“Pega metrô lotado” virou “vai de metrô cheio”, o que alivia um pouquinho o aperto pra nossa mulher selvagem. O que mudou mesmo foi o uso do pronome, que passou de você, que os portugueses não costumam usar, pra tu.

Como todo bicho ela respeita seu corpo mas nem sempre resiste às guloseimas. Riponga do mato, gabriela brejeira? Não necessariamente, a maioria vive na cidade. E há dias paquera aquele pretinho básico da vitrine.

Ficou assim:

Como todo a mulher selvagem ela respeita seu corpo mas nem sempre resiste às guloseimas. Guerreira do mato, gabriela cravo e canela? Não necessariamente, a maioria vive na cidade. E há dias gosta daquele pretinho da montra.

Minha riponga do mato virou guerreira do mato, o que lhe emprestou um tom mais valente. Quando li pela primeira vez, pensei que guerreira do mato fosse um termo usual em Portugal mas pesquisei e não encontrei nada que indicasse isso. Pode ter sido escolha puramente pessoal do tradutor. E “gabriela brejeira” virou “gabriela cravo e canela”, assim sem vírgula mesmo. Ficou interessante, embora a idéia original fosse referenciar a personagem amadiana de modo mais sutil. Talvez o tradutor tenha considerado redundante a junção de gabriela e brejeira. De fato, é. E “paquera aquele pretinho básico da vitrine” virou “gosta daquele pretinho da montra”. Saiu a paquera e entrou o gostar. Portuguesas não paqueram? E o básico do pretinho pulou fora. Seria “pretinho básico” uma expressão incompreensível pros portugueses? Ou as portuguesas é que não são chegadas no famoso vestidinho preto que funciona tanto na boate quanto no velório? E montra significa vitrine mesmo. Bem, de qualquer forma, felizmente a tradução de “paquera aquele pretinho básico da vitrine” não ficou “insinua-se para aquele negrinho ordinário que decora a montra”.

Na postagem em que li o texto traduzido, constava um parágrafo extra ao final, que não faz parte do texto original, este:

Esta é a mulher selvagem, a mulher que possuem o antagonismo da vida dentro e fora de si. A mulher selvagem existe e será eterna entre a sociedade mundana dos homens e nunca será extinta.

Terá sido outra pessoa quem inseriu o trecho enxerido? Não sei. Só sei que não gostei nadinha, claro. Além de conter um erro grosseiro de concordância verbal (a mulher que possuem), traz umas coisas esquisitas como “antagonismo dentro e fora de si” e “será eterna entre a sociedade mundana dos homens e nunca será extinta”. Espero que não reproduzam o texto com esse trecho.

Tô feliz. Minha mulher selvagem deixou a terra brasilis e agora corre livre e nua pelo velho mundo, que bom. Acho que de agora em diante pedirei que me apresentem como “escritor traduzido em Portugal”. Chique no último!

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Ricardo Kelmer 2008 – blogdokelmer.wordpress.com

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“Você se assusta, olha de novo… e quem está ali é a mulher doce e simpática, ajeitando dengosa o cabelo, quase uma menininha. Mas por um segundo você viu a loba, viu sim.

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Ler a crônica/assistir o vídeo A Mulher Selvagem

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9 Responses to O chamado da Mulher Selvagem (2)

  1. Izabela disse:

    Não esqueci o blog, prof! Apenas estava sem tempo de acessar. Avisa p MULHER SELVAGEM q assim q eu puder irei visitá-la p dividirmos um bacalhau. Kkkkkkkkk.

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  2. Ilde disse:

    risos… Puxa vida, ainda bem que vc aceita a coisa dessa forma, acho que não me acostumaria a isso, ver minha cria ser adotada sem autorização judicial e ainda efetuarem um clone à la Dolly.

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    • ricardokelmer disse:

      > Veja por um outro lado, Ilde. É interessante ver o caminho espontâneo e anãrquico que fazem os textos nessa terra de Malboro da internet. Não há como impedi-los de se reproduzirem livremente. Se eu for querer corrigir todos os meus textos reproduzidos erroneamente aí pela rede, vou apenas gastar energia, perder tempo e me irritar à toa. Melhor relaxar.

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  3. Kdela disse:

    Pois é, seu Terráqueo,o espírito da mulher selvagem é universal. E já que a terra é o teu país, nada mais natural que a tua obra ultrapasse fronteiras. Beijos e boa sorte na nova empreitada. Ah, e quando estiver passando aqui pela minha cidade, não esqueça da tua leitorinha tarada.

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  4. Desfrutando disse:

    Ola Ricardo

    Me desculpe mas também vou ter que reproduzir seu texto no meu blog, já faz tempo que procuro inspiração para falar de mim mesma lá, mas os deveres do dia-a-dia, casa, marido e filhos as vezes, fazem a inspiração desaparecer. E esse texto fala extamente o que me vai na alma, é assim mesmo que me sinto, é claro que mais um monte de mulher deve achar isso também, mas o que importa sou eu, afinal eu sou única..Mas pode deixar que não vou fazer nenhuma alteração no seu texto e faço questão de indicar o autor.
    Pode dar uma olhada se quiser http://blog.desfrutando.com

    Se tiver alguma coisa contra é só me falar
    Abços

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